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CRISE DO CAPITAL a contemporaneidade brasileira nos percursos do ajuste dependente ao capitalismo financeirizado
CAPITAL CRISIS: Brazilian contemporaneity in the paths of dependent adjustment to financialized capitalism
CRISE DO CAPITAL a contemporaneidade brasileira nos percursos do ajuste dependente ao capitalismo financeirizado
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 296-314, 2022
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 14 Febrero 2022
Aprobación: 21 Junio 2022
Resumo: Este artigo discute o capitalismo do século XXI, tomando por referência a crise estrutural do capital, suas configurações específicas no Brasil e desdobramentos no mundo do trabalho. Inicia com reflexões sobre a crise estrutural do capital, para adentrar nas especificidades da inserção dependente e subordinada do Brasil no capitalismo sob o domínio das finanças, via modelo de ajuste rentista neoextrativista, a partir de 1990. Estabelece configurações do mundo do trabalho sob a égide da crise, com foco na superexploração do trabalho, em meio a políticas ultraliberais. Enfatiza o momento-limite vivido pela sociedade brasileira, nos seis últimos anos (2016-2022), na confluência do bolsonarismo e pandemia da covid19. Assume a perspectiva de que a História do Brasil contemporâneo está em aberto, com diferentes possibilidades de desfecho, apostando na capacidade política das resistências.
Palavras-chave: crise estrutural, contemporaneidade brasileira, dependência, superexploração do trabalho.
Abstract: This article discusses 21st century capitalism, taking as a reference the structural crisis of capital, its specific configurations in Brazil and developments in the world of work. It begins with reflections on the structural crisis of capital, to delve into the specificities of Brazil's dependent and subordinated insertion in capitalism under the dominion of finance, via a neo-extractivist rentier adjustment model, from 1990 onwards. It establishes configurations of the world of work under the aegis of the crisis, with a focus on the super-exploitation of work, amidst ultra-liberal policies. It emphasizes the limit moment experienced by Brazilian society, in the last six years (2016-2022), at the confluence of bolsonarismo and the covid19 pandemic. It assumes the perspective that the History of contemporary Brazil is open, with different possibilities of outcome, betting on the political capacity of the resistances.
Keywords: structural crisis, brazilian contemporaneity, dependence, over exploitation of work.
1 INTRODUÇÃO
O presente texto consubstancia um esforço analítico para discutir o capitalismo no Brasil do século XXI. Para tanto, toma como referência central a crise estrutural do capital e suas configurações específicas no cenário brasileiro, enfocando seus desdobramentos no mundo do trabalho, em particular, as expressões da superexploração. Neste contexto, analisa as reconfigurações do Estado brasileiro contemporâneo, nos diferentes ciclos de ajuste ao capitalismo financeirizado, privilegiando o modelo rentista neoextrativista, em suas expressões peculiares no país, em meio à regressão de direitos e ao crescimento do autoritarismo, a partir de 2016.
O desafio maior consistiu em articular, em um texto único, abordagens distintas apresentadas na mesa coordenada temática da X JOINPP, a garantia, a coerência interna na dinâmica expositiva. Ademais, o texto esboça avanços analíticos de pesquisa, em curso, sobre a crise capitalista na contemporaneidade e suas manifestações no Brasil do século XXI.
2 APONTAMENTOS PARA PENSAR A CRISE DO CAPITAL: vias para circunscrever as especificidades brasileiras
Desde a primeira década do século XXI, marcada pela crise financeira global, de 2007-2008, Istvan Meszaros (2009, 2015) proclama que a crise do capital é estrutural. Posteriormente, ao longo de suas reflexões, o autor reafirma esta tese. Em publicação póstuma, “Para além do Leviatã: crítica do Estado”, Meszaros afirma peremptoriamente que se está diante de uma “crise estrutural cada vez mais profunda do capital”, que não encontra saídas no âmbito do próprio capitalismo, a exigir mudança estrutural para além da ordem capitalista e de seu sistema sociometabólico (MESZAROS, 2021).
Em análise de 2017, François Chesnais adentra nos elementos constitutivos da crise, afirmando que a crise econômica do nosso tempo é uma crise de superprodução e de sobre acumulação, agravada pela queda da taxa de lucros.
Ademais, o autor pontua que a crise resulta de um problema de realização, uma vez que as condições macroeconômicas, que determinam a correlação de forças entre o capital e o trabalho, impedem a realização da totalidade da mais-valia produzida em escala mundial. Em sua avaliação, Chesnais (2017a) destaca que esta crise já estava em gestação desde a segunda metade dos anos 1990, porém seu aprofundamento foi adiado em função da forte expansão do crédito e da plena incorporação da China à economia mundial.
Avançando na análise da dinâmica da crise econômica contemporânea, François Chesnais concorda com a tese de Willams e Kliman (2014), para quem os investimentos das empresas não caíram em função da indisponibilidade de recursos nos mercados financeiros, ou em razão da mudança na repartição do lucro entre lucros retidos (e reinvestidos) e dividendos. Na verdade, o recuo do investimento produtivo decorre da queda da taxa de lucro e da retração dos investimentos rentáveis. Logo, na medida em que os investimentos produtivos se tornam menos atrativos, as empresas procuram, então, formas alternativas de valorização dos seus lucros no mercado financeiro (WILLIAMS; KLIMAN, 2014; CHESNAIS, 2017a). Como o montante de mais-valia decresce, apesar do aumento da taxa de exploração, a financeirização se aprofunda de maneira cumulativa com as inovações financeiras e o desenvolvimento do capital fictício nas suas formas contemporâneas. Neste processo, contrariamente ao esperado, as políticas econômicas visam garantir a expansão do capital fictício. Esse fato afeta substancialmente a dinâmica do capitalismo, mantendo-o em uma trajetória persistente de baixo crescimento.
Assim, a finança constitui uma enorme máquina de captação e reciclagem da mais-valia produzida pela exploração da mão de obra. Nesta perspectiva, em um artigo recente, publicado no site A l’encontre, Chesnais (2017b) formula uma questão central: “Le capitalisme a-t-il rencontré des limites infranchissables?” Em outras palavras, a crise econômica mundial de 2007-2008 pode simplesmente ser vista como uma grande crise do capitalismo, com possibilidade de inaugurar uma nova longa fase de reprodução ampliada do capital em escala mundial ou, ao contrário, seria o início de um momento histórico em que o capitalismo encontraria limites sistêmicos intransponíveis? Esta é uma questão a constituir-se em divisor de águas entre analistas críticos do capitalismo contemporâneo. François Chesnais sugere que a crise atual é intransponível, na medida em que combina crise climática com crise do capital. Ou seja, a automação e o meio ambiente constituem barreiras estruturais à própria reprodução do capital.
Ao analisar especificamente quem são os perdedores dessa crise atual do capitalismo, Michel Housson (2017) argumenta que essa crise afeta, sobretudo, as vítimas das políticas de austeridade, no âmbito do Estado neoliberal. Na visão do autor, o esgotamento dos ganhos de produtividade no setor produtivo significa igualmente uma perda de dinamismo do capitalismo. A manutenção ou aumento da taxa de lucro exige uma redução cada vez maior do custo do trabalho. Isso significa não somente moderação salarial, mas também recuo do Estado social. Na perspectiva do capital, a saída para a crise passa necessariamente pelo aumento da regressão social. Assim, o sistema capitalista não teria mais nada a oferecer para se legitimar. Logo, Housson (2017) considera que essa crise tem uma dimensão sistêmica, tendo sua origem nas relações de produção capitalistas. Restabelecer a taxa de lucro sobre novas bases significaria conter o ímpeto do capital financeiro. É este o grande dilema da contemporaneidade capitalista, enredada no padrão de acumulação rentista, com seus graves desdobramentos sobre o setor produtivo, atingindo, violentamente, o trabalho.
Na mesma direção de análise da crise estrutural do capital, David Harvey[1](2016) aponta os limites dos diagnósticos e soluções apresentados pelos analistas para a crise contemporânea do capital, polarizados entre duas grandes vias: por um lado, a continuidade e o aprofundamento das soluções neoliberais e monetaristas, enfatizando a austeridade como saída; por outro, a versão diluída de uma expansão Keynesiana, baseada na demanda e financiada pela dívida, desconsiderando a ênfase na redistribuição. Neste contexto de saídas controversas para a crise, Harvey sustenta que o resultado é o favorecimento do “clube de bilionários”, a constituírem uma “plutocracia”, cada vez mais poderosa, tanto no interior dos países, como no cenário mundial. Alerta, então, que, em toda parte, os ricos estão cada vez mais ricos e o bem-estar das massas estagna ou sofre uma degradação crescente, senão catastrófica (HARVEY, 2016).
Cabe, assim, como desafio analítico, pensar as particularidades do Brasil neste contexto de crise orgânica e de carência de alternativas a esta crise. A questão que se coloca é discutir as configurações da crise em nosso país, no cenário dos anos 2000, no cerne do ajuste subordinado e dependente do Brasil ao capitalismo financeirizado e de falência do Estado interventor.
3 A INSERÇÃO DEPENDENTE E SUBORDINADA DO BRASIL NOS CIRCUITOS DO CAPITAL: elementos fundantes da crise contemporânea brasileira
Para desvendar as tessituras da crise contemporânea brasileira a partir da segunda década do século XXI, é necessário revisitar o Brasil contemporâneo. Nas investigações empreendidas por CARVALHO (2010, 2018, 2019), este é um tempo histórico configurado a partir da confluência complexa e contraditória de dois marcos estruturantes da vida brasileira, nas duas últimas décadas do século XX, nas duas primeiras do século XXI e limiar da terceira. Por um lado, a democratização, cujo ápice ocorre na década de 1980, com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, a ampliar o Estado pela via da política, constituindo o Estado Democrático de Direito e, assim, delineando bases legais para constituição do Estado Social no país; por outro lado, a experiência tardia, intensiva, dependente e subordinada de ajuste ao capitalismo financeirizado, a partir de 1990, a submeter o Estado aos ditames da expansão do capital, na constituição de um Estado Ajustador (CARVALHO, 2000), a limitar e enfraquecer a jovem democracia brasileira.
Ao adentrar na contemporaneidade brasileira, delineiam-se dimensões econômicas, políticas e culturais peculiares da dinâmica da civilização do capital no país, nos últimos quarenta anos, tendo como marco a década de 1980, com o debacle da ditadura civil-militar (1964-1985). Em meio aos movimentos da História, reconfigura-se e agrava-se a marca estrutural da dependência, decorrente da própria divisão internacional do trabalho, que atinge a periferia do sistema. Em verdade, seguindo as trilhas de Ruy Mauro Marini, na Teoria Marxista da Dependência - TMD[2], o Brasil, como país periférico, no contexto da América Latina, no século XX, é expropriado pelos países centrais, mediante um intercâmbio desigual nas transferências de valor, a implicar em superexploração da força de trabalho no contexto brasileiro, desenvolvendo formas específicas de acumulação do capital, a caracterizarem-se como uma acumulação dependente (CARVALHO; GUERRA; RODRIGUES JÚNIOR, 2021).
Considerando o novo momento do capitalismo, a partir das três últimas décadas do século XX, nos marcos da financeirização, é importante destacar que, no plano mundial, efetivou-se o que Filgueiras (2018) configura como o “casamento político-prático” entre o neoliberalismo e o capital financeiro (uma espécie de afinidade eletiva), que deu origem a um “[...] programa político-econômico que pode ser resumido pelas seguintes características: privatizações, desregulamentação e liberalização” (FILGUEIRAS, 2018, p. 527-528). A rigor, é este um programa básico de ajuste ao capitalismo financeirizado, sob a égide do neoliberalismo, posto em prática de acordo com as especificidades das distintas formações sociais, singularizadas, sobretudo, pela condição de centro ou periferia.
No caso particular do Brasil, constituinte da periferia do sistema do capital, Leda Paulani (2012a) estima que, na condição de devedor[3], o país vivenciou uma primeira forma de inserção passiva no capitalismo financeirizado. E, assim, torna-se “[...] uma das maiores vítimas da primeira fase do processo de financeirização, quando as finanças foram primordialmente intermediadas e o capital financeiro foi majoritariamente o capital bancário” (PAULANI, 2012b, p. 5). Desse modo, mais uma vez, o Brasil paga um ônus elevado por sua dependência aos países centrais.
Na década de 1980, em um cenário de retração do fluxo de capitais para os países periféricos e devedores, sobremodo, da América Latina, sob imposição das Instituições Multilaterais, especialmente, do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Estado brasileiro implementa políticas de ajustamento, com o objetivo de gerar superávit na balança comercial e, assim, honrar o pagamento dos pesados serviços da dívida. A lógica do ajuste engendra profunda recessão no país, dando início a um ciclo de hiperinflação. Esse processo de estagflação fragilizou a capacidade de intervenção do Estado, em decorrência da forte expansão da dívida interna, gerando uma crise fiscal sem precedentes. Tal contexto de instabilidade macroeconômica propicia condições objetivas para o avanço das forças democráticas, acirrando a luta de classes, que está na origem do debacle da ditadura militar.
Assim, a década de 1980, considerada como “década perdida”, no plano da economia, constitui-se, justamente, num período de fortalecimento da sociedade civil, nos processos de democratização. Ao mesmo tempo, outras formas de financiamento, vinculadas à lógica da finança desintermediada, generalizam-se, com o retorno dos países endividados da América Latina ao mercado internacional de capitais. Com a securitização da dívida, por meio das emissões de títulos no mercado financeiro norte-americano e do surgimento de novos instrumentos financeiros nos mercados internacionais, as chamadas economias emergentes da América Latina retornam à condição de receptoras de capitais externos (AMÉRICO MOREIRA; SCHERER 2002)[4].
Instauram-se novas formas de integração dos países da América Latina ao ambiente financeiro mundial. Neste contexto, a partir dos anos 1990, a inserção passiva do Brasil no capitalismo financeirizado foi substituída por uma inserção ativa e dependente, ao assumir, de modo tardio e intensivo, a agenda do Consenso de Washington[5], estabelecida para o ajuste dos países periféricos e devedores, em uma forma contemporânea de dependência. A rigor, seguindo os ditames da agenda de Wall Street, na tentativa falaciosa de transformar-se em potência financeira emergente, o Brasil efetiva: “[...] a abertura financeira desbragada, a internacionalização do mercado de títulos da dívida, a adoção de políticas monetária e fiscal extremamente rígidas e o estabelecimento de taxas de juros descabidamente elevadas” (PAULANI, 2012b, p. 6).
Impõe-se, portanto, como exigência analítica, circunscrever o padrão de ajuste do país ao capitalismo financeirizado, delineando novas formas de atualização do signo histórico da dependência. Um elemento central é o processo de inserção do Brasil nos movimentos de acumulação do capital, por mais de 30 anos (1990-2022). A rigor, constata-se uma dupla via de inserção: por um lado, uma inserção ativa e subordinada na acumulação rentista, a configurar um padrão de financeirização dependente, nos circuitos da mundialização com dominância financeira; por outro, uma inserção internacional periférica e subordinada, mediante processos de acumulação por espoliação (HARVEY, 2004), na produção de commodities, sobremodo, agrícolas e minerais (CARVALHO; MILANEZ; GUERRA, 2018).
Nesta perspectiva, o assumir da agenda de ajuste teve consequências nefastas na inserção brasileira ao capitalismo financeirizado, na medida em que levou à desindustrialização e à reprimarização da pauta de exportações, desmontando o parque industrial brasileiro, consolidado nos anos 1970. Efetiva-se, então, o retrocesso do Brasil para uma posição periférica clássica de país produtor de commodities.
Cabe explicitar como se combinam os processos de desindustrialização e reprimarização. De fato, a lógica da política de estabilização, baseada no crescimento substancial das taxas de juros reais, foi crucial para a apreciação da moeda nacional. A combinação de juros elevados e câmbio apreciado foi determinante para afirmação do modelo rentista/neoextrativista, na medida em que se consolidou um padrão de especialização exportador, baseado em commodities metálicas e agrícolas, já na década de 1990. O processo de regressão qualitativa da inserção do Brasil reflete a perda de competitividade da indústria, assim como uma transformação do comércio brasileiro no sentido da reprimarização das exportações (AMÉRICO MOREIRA; SEBAG, 2014).
Elementos centrais para entender os processos de desindustrialização, no Brasil, consistem na racionalização do capital produtivo, mediante a desarticulação das cadeias produtivas no espaço nacional e a financeirização de grandes grupos econômicos (AMÉRICO MOREIRA; ALMEIDA, 2013) Esses dois elementos se articulam para tentar reverter as tendências à queda da taxa de lucro, resultando na desindustrialização, afirmando, assim, novas formas de dependência na sua dimensão produtiva.
Neste cenário, efetiva-se a dupla via de ajuste brasileiro ao capitalismo financeirizado, que significa uma dupla dependência. Primeiro, o país transforma-se em uma emergente plataforma internacional de valorização financeira (PAULANI, 2012b), com pagamento de juros exorbitantes ao capital especulativo, que pouco ou nada deixa nos percursos de sua tramitação no contexto brasileiro, sem nenhum compromisso com a acumulação na esfera real da economia. A rigor, em um contexto em que as finanças são, primordialmente, diretas, em vez de intermediadas, “[...] o Brasil transformou-se em um mercado que viabiliza os maiores ganhos do mundo em moeda forte, graças à combinação entre taxas de juros elevadas e um persistente processo de apreciação cambial” (PAULANI, 2012b, p. 6).
A segunda via da dependência brasileira constitui-se pelo retorno do país à condição de exportador de commodities agrícolas e metálicas, compradas por países centrais, com destaque para a China, que disputa com os EEUU a liderança como potência imperialista. Estas duas vias de inserção dependente articulam-se e se complementam, “[...] nos complexos processos de composição orgânica do capital, configurando a intrincada relação entre o extrativismo e o mercado financeiro, fundamento do modelo rentista-neoextrativista” (CARVALHO; MILANEZ; GUERRA, 2018, p. 20).
Em verdade, esta dupla dependência do ajuste brasileiro, pelas vias da financeirização e da desindustrialização/reprimarização, consubstancia um padrão de acumulação capitalista que se materializa num modelo rentista-neoextrativista, centrado na financeirização dependente e no extrativismo intensivo. De fato, “[...] trata-se da intrincada relação entre o rentismo e o neoextrativismo, a reforçar o processo de ‘dependência redobrada’ do Brasil ao capitalismo financeirizado, nos marcos da experiência brasileira de ajuste” (CARVALHO; MILANEZ; GUERRA, 2018, p. 21).
No esforço investigativo de adentrar nos meandros desse padrão de acumulação capitalista dependente brasileiro, cabe demarcar o que é denominado “ciclos de ajuste”. Retomamos, então, as configurações de Carvalho e Guerra[6], a delinear 7 (sete) ciclos de ajuste, nos últimos 32 (trinta e um) anos da história econômica e sociopolítica brasileira contemporânea: ciclo de adesão à agenda do Consenso de Washington e abertura irrestrita da economia (Governo Collor de Mello – 1990 a dezembro de 1992); ciclo de estabilização da economia (Itamar Franco – dezembro de 1992 a 1994 – e os dois governos de Fernando Henrique Cardoso – 1995 a 2002); ciclo de consolidação das políticas de ajuste e de reconstrução do mercado interno de consumo de massa (primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva – 2003 a 2006 – e primeira metade do seu segundo governo – 2007 a 2008); ciclo de articulação de políticas de ajuste e neodesenvolvimentismo (segunda metade do governo de Luiz Inácio Lula da Silva – 2008 a 2010 – e primeiro governo de Dilma Rousseff – 2011 a 2014); ciclo de tentativa de intensificação da ortodoxia rentista em um ajuste à direita (segundo governo de Dilma Rousseff – 2015 a 2016 – mandato interrompido pelo impeachment); ciclo de aprofundamento do Estado Ajustador e de contrarreformas neoliberais (governo de Michel Temer – maio de 2016 a 2018), a gerar regressão social; ciclo de articulação do ultraliberalismo, militarismo e reacionarismo político-cultural (governo de Jair Bolsonaro – 2019 até hoje), a configurar o chamado bolsonarismo[7]. De fato, os dois últimos ciclos, inaugurados com o Golpe de 2016, materializam uma nova versão do modelo de ajuste rentista neoextrativista de caráter ultraliberal, voltado inteiramente para o ajuste fiscal e para as chamadas políticas de austeridade, com base em uma intensa e violenta superexploração da força de trabalho e em um recrudescimento da pobreza, atingindo, fortemente, as populações que habitam às margens da sociedade (CARVALHO, 2020).
Nos percursos dependentes do ajuste brasileiro, a viabilizarem o modelo rentista-neoextrativista, cabe um foco específico no chamado Brasil do Presente, aqui entendido como tempo histórico relativo aos últimos 6 (seis) anos, tendo como marco o Golpe de 2016, que redefine o bloco no poder, com reconfigurações do Estado brasileiro, acirrando o caráter e a natureza do Estado Ajustador[8], em uma perspectiva ultraliberal do Ajuste Fiscal e das políticas de austeridade, em meio ao circuito de desmonte da democracia e a um crescente autoritarismo.
Em verdade, o Golpe de Estado de 2016 está estreitamente vinculado à crise contemporânea brasileira, que intensifica, entre nós, expressões peculiares da crise estrutural do capital, a permear a civilização capitalista, em deslocamentos permanentes. É fundamental ter presente as configurações dessa crise no âmbito do padrão de ajuste dependente brasileiro, em seus diferentes ciclos.
De fato, ao longo de mais de três décadas, o processo de ajuste brasileiro, nos marcos da financeirização, vem inviabilizando a construção do Estado Social, consubstanciado na Constituição de 1988. Observa-se, como tendência dominante, o aumento da regressão social, com diferentes inflexões nos distintos ciclos de ajuste. Tal regressão social agrava-se nos dois últimos ciclos (a partir de 2016), a expressar-se na desestruturação do mercado de trabalho, no desmonte das bases do sistema de proteção social e no recrudescimento da pobreza. A lógica do ajuste fiscal permeia o Estado brasileiro, com nítidas expressões na Constituição Federal de 1988. Neste sentido, são emblemáticas as contrarreformas trabalhistas, previdenciária, fiscal, com especial destaque para a Emenda Constitucional 95, de 2017, que estabelece o teto dos gastos públicos, com repercussões fortemente negativas no financiamento das políticas sociais.
A rigor, no Brasil, a crise contemporânea, em suas múltiplas dimensões, está na base da ruptura do chamado “pacto de classes”, que funda os ciclos petistas de ajuste[9]. Assim, em face da erosão das condições objetivas desse pacto de classes, regido pelo privilegiamento dos interesses do capital, na viabilização do modelo rentista-neoextratitivista, as elites rompem o pacto, deflagrando, também, uma crise política e criando o pretexto legal para o “impeachment”. Na verdade, trata-se de um Golpe que redefine o bloco no poder, com o domínio das forças conservadoras de direita e de extrema direita. De fato, a crise do modelo rentista neoextrativista, na versão petista, nos marcos de uma tentativa de conciliação de classes, em um contexto internacional desfavorável, propicia a erosão das bases políticas de sustentação do governo, a partir de uma ruptura das elites, em uma articulação com o Congresso Nacional, o Poder Judiciário e a grande mídia.
Sustentamos a tese de que a crise é o chão histórico do Golpe de 2016[10]. E, nos circuitos do Golpe e da mobilização da extrema direita na cena política, circunscreve-se o que denominamos Brasil do Presente, caracterizado pela dominância da direita, em meio às ofensivas conservadoras contra a democracia e o Estado de direito. Em uma síntese, o momento histórico da vida brasileira em curso apresenta marcas estruturantes: desmonte de direitos, centralização do poder, crescimento do autoritarismo, a beirar o fascismo, desmanche da democracia, reacionarismo político-cultural, obscurantismo, instabilidades e crise política institucional.
É fundamental delinear os rebatimentos da crise brasileira, com reconfigurações das forças do capital sobre o mundo do trabalho no país. A questão central é ver como a precarização estrutural do trabalho, que marca a contemporaneidade capitalista brasileira é agravada, nos circuitos de ciclos de ajuste ultraliberais, consubstanciados no ajuste fiscal e nas políticas de austeridade.
4 O MUNDO DO TRABALHO SOB A ÉGIDE DA CRISE: a superexploração do trabalho, em meio a políticas ultraliberais
O capitalismo contemporâneo, fundado em novo padrão de acumulação e de valorização do capital, engendra reconfigurações no mundo do trabalho, intensificando a exploração da classe trabalhadora, mediante a reedição de formas pretéritas de expropriação, associadas a novos mecanismos de extração do mais valor. Antunes (2015; 2018; 2022) e Alves (2016) demarcam, como fenômeno desse novo momento histórico do capitalismo, a precarização estrutural do trabalho, a atingir diferentes segmentos de trabalhadores e trabalhadoras, aviltando suas condições de trabalho e de vida.
Tal fenômeno da reconfiguração do mundo do trabalho, em tempos contemporâneos, assume dimensões estruturais - relativas ao novo momento do capitalismo - e dimensões conjunturais, decorrentes da intensificação do neoliberalismo em políticas voltadas para o ajuste fiscal, consubstanciando as chamadas políticas de austeridade, com sérios rebatimentos no mundo do trabalho.
Vale mencionar que as mudanças estruturais no mercado de trabalho, no plano mundial, são potencializadas na periferia do sistema capitalista. Desse modo, a lógica das relações de trabalho no Brasil traz a marca da precarização histórica constitutiva da sua formação socioeconômica, enquanto economia periférica, a combinar dimensões históricas e conjunturais.
Nesse sentido, pesquisadores brasileiros têm se inspirado na Teoria Marxista do Dependência (TMD)[11] para apreender a dinâmica de superexploração da força de trabalho nos tempos hodiernos, nos países periféricos da América Latina e, dentre estes, no Brasil. De fato, a TMD traz aportes importantes para compreender como o desenvolvimento do capitalismo nos países centrais, a partir do intercâmbio desigual com os países periféricos, têm resultado em superexploração do trabalho nas formações sociais dependentes, como forma de compensar a perda de mais-valia pelas burguesias nacionais, no nível das relações de mercado. A rigor, nas formulações de Marini, resgatadas neste século XXI[12], a transferência desigual de valor está organicamente vinculada à superexploração do trabalho nas formações sociais dependentes, com configurações peculiares. Assim, a dinâmica da superexploração do trabalho nos circuitos nacionais dependentes efetiva-se a partir da combinação de múltiplos mecanismos: extensão das jornadas de trabalho; aumento da intensidade do trabalho e redução do consumo dos operários para além dos limites "normais" (MARINI, 2000). Concretamente, isto implica em subtrair do trabalhador anos de vida, por mutilações e agravos à sua saúde e, ainda, pelo comprometimento de suas condições de existência, ao reduzir drasticamente suas possibilidades de consumo de produtos essenciais à sua sobrevivência enquanto força de trabalho.
Mathias Luce (2018) tem ressaltado a atualidade das formulações de Marini para apreender as dinâmicas de superexploração do trabalho nestas décadas iniciais do século XXI. Com efeito, as tentativas de enfrentamento da atual crise[13] do sistema do capital sustentam-se, inclusive, em estratégias de ampliação da extração de mais-valia no uso da força de trabalho, resultando em combinações nefastas de intensificação dos ritmos de labor, de extensão das jornadas de trabalho e da redução do consumo do trabalhador para além do seu limite “normal”, a produzir um modo específico de aumentar o tempo de trabalho excedente (MARINI, 2000). A superexploração, em tais níveis, finda por comprometer o tempo de reposição da força física e da capacidade psíquica do trabalhador, implicando em sérios adoecimentos e redução do equilíbrio e da vida.
No século XXI, ao reeditar velhos mecanismos e introduzir novas estratégias, fundadas na tecnologização e nos métodos de gestão e controle, o capital mantém níveis de superexploração que se assemelham àqueles do século XIX, porém em um cenário de mobilização e de organização da classe trabalhadora extremamente difícil e fragilizado. Neste sentido, em um contexto de desemprego e de precarização estrutural do trabalho, merecem especial destaque, as armadilhas da subjetividade neoliberal (DARDOT e LAVAL, 2016), incorporadas pelos trabalhadores e trabalhadoras, a exemplo da ideologia do empreendedorismo, da falácia do “ser patrão” e “senhor de seu tempo”, da suposta liberdade na civilização do capital, afirmada, justamente, por aqueles que se encontram no fio da navalha, na total instabilidade, sem quaisquer direitos ou formas de proteção social.
Nos percursos dos trinta e dois anos de ajuste do Brasil ao capitalismo financeirizado (1990-2022), no âmbito do modelo rentista neoextrativista, a superexploração do trabalho assume configurações peculiares, no interior dos diferentes ciclos. Cabe especial destaque aos ciclos da experiência petista de ajuste, quando ocorre uma contratendência na dinâmica conjuntural do mercado de trabalho. Mais especificamente, nos treze anos de governos petistas, o mercado interno ganha relevância na reprodução do capital, com a ampliação do emprego formal e a redução da informalidade, em concomitância com a política de valorização do salário mínimo. Trata-se de um momento conjuntural, em um contexto internacional favorável, em que o governo brasileiro pôde investir em mecanismos que possibilitaram maior democratização e expansão do mercado interno (AMÉRICO MOREIRA; SEBAG, 2016).
Em 2015, já no segundo governo de Dilma Rousseff, marcado pela tentativa de viabilizar o ajuste fiscal e em meio a pressões das forças do capital, efetiva-se uma ofensiva contra os interesses da classe trabalhadora, com a aprovação do PLC 30/2015, que estabelece as bases legais da terceirização, a constituir passo decisivo no desmonte de direitos trabalhistas, com o falacioso argumento de garantir direitos aos trabalhadores terceirizados e de ampliar postos de trabalho. Em verdade, implantou-se mais um mecanismo de superexploração da força de trabalho, com ampliação de jornadas, exigência de maior produtividade, intensificando os ritmos de trabalho, com a ressignificação do sistema de metas, como condição para manutenção no emprego.
No Brasil, a partir do Golpe de 2016, com a dominância das direitas e da extrema direita no interior do bloco no poder, vivencia-se um momento conjuntural de intensa precarização do trabalho, a implementar processos de devastação da classe trabalhadora (ANTUNES, 2018). As medidas ultraliberais, implantadas ao longo dos últimos seis anos, agravam a conjuntura socioeconômica, desconstruindo as históricas conquistas trabalhistas e desmontando direitos sociais alcançados entre 2003 a 2014 (OLIVEIRA; AMÉRICO MOREIRA; CASTRO, 2021). Ao mesmo tempo, as contrarreformas efetivadas neste período atendem aos interesses da expansão desmedida do capital rentista, em intrínseca articulação com outras frações do capital.
As reconfigurações na política econômica, no âmbito dos processos de ajuste, com a manutenção de elevadas taxas de juros reais (AMÉRICO MOREIRA; SEBAG, 2016) atingem violentamente o mundo do trabalho. Mantêm-se altos índices de desemprego e de desalento, aprofunda-se a precarização das condições de trabalho, intensifica-se a informalidade, em meio a novas relações laborais. Alguns indicadores relacionados ao mercado de trabalho revelam esse cenário de regressão social. Entre 2014 e 2019, constata-se uma escalada do desemprego, da subocupação e da informalidade, O ano de 2015 constitui o ponto de inflexão no comportamento do mercado de trabalho brasileiro. De fato, considerando o último trimestre de cada ano, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (IBGE-PNADC, 2014 a 2021) revelam o notório crescimento do patamar da taxa de desocupação passando de 6,6%, em 2014, para 11,1% em 2019, após atingir 12,2% em 2017. Nos anos de forte impacto da pandemia no desempenho do mercado de trabalho, esse indicador chegou a 14,2% em 2020, recuando para 11,1% em 2021. A taxa combinada de desocupação e subocupação por insuficiência de horas trabalhadas salta de 11,3%, em 2014, para 17,5%, em 2019, e 20,9% em 2020, revelando os impactos nocivos da reforma trabalhista de 2017 sobre a qualidade do emprego.
Se o emprego formal foi violentamente atingido, a informalidade ganhou contornos de servidão. É emblemático o caso das atividades realizadas por meio de plataformas digitais, a constituírem o fenômeno contemporâneo da uberização, que se expande vertiginosamente nos últimos seis anos no Brasil. Alia-se a alta tecnologia informacional a condições de trabalho extremamente precárias, com jornadas extenuantes, total insegurança e risco, agravadas pela desproteção trabalhista.
Em seus estudos sobre a uberização, Ludmila Abílio (2021) considera tratar-se de um novo tipo de informalização do trabalho, baseado em uma nova forma de racionalidade na gestão, altamente concentrada nas empresas, que comandam uma categoria de trabalhadores totalmente disponíveis para o capital, em constante e crescente situação de risco. De fato, na conjuntura mais recente, de aumento intensivo do desemprego e da informalidade, os trabalhadores têm se submetido a condições de extrema exploração, de submissão, de total sujeição ao capital, em suas múltiplas imbricações. ANTUNES (2018) consegue expressar estas situações-limite em uma síntese instigante: “O privilégio da servidão”. Em verdade, o trabalhador, subsumido ao capital, considera-se privilegiado por estar em atividade laboral, mesmo que nos marcos da total servidão, que se aproxima das formas de superexploração do século XIX. E agora, estes trabalhadores submetidos à servidão encontram-se fragmentados, individualizados, sem qualquer percepção de classe.
A gravidade desta conjuntura de precarização e servidão evidencia-se ainda mais com a contrarreforma trabalhista, aprovada em 2017, no governo de Michel Temer (2016-2018), desmontando a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e todo o sistema de proteção do trabalho. O desmonte radical dos direitos dos trabalhadores intensifica-se no governo Bolsonaro, em meio à política econômica recessiva, de contenção do salário mínimo, em meio a uma situação de estagflação, que priva os trabalhadores do acesso a condições mínimas de subsistência, com o recrudescimento da pobreza e a ampliação do contingente de pessoas em situação de miséria. A fome, que se alastra cada vez mais nas periferias e territórios de precariedade, é a expressão mais forte da tragédia brasileira neste limiar da terceira década do século XXI.
O contexto pandêmico agrava ainda mais a questão social e penaliza, sobremodo, os trabalhadores e trabalhadoras que se viam frente a um dilema na fase mais aguda da pandemia: saíam para trabalhar, expondo-se ao risco de contrair a doença ou ficariam privados de condições básicas de sobrevivência.
Entrecruzam-se tragédias na vida brasileira: a morte de 669 mil pessoas por Covid19, a maioria das quais poderia ter sido evitada; crescimento vertiginoso de pessoas submetidas à fome, à situação de rua, à pobreza pluridimensional, a múltiplas formas de violência e destituição de direitos humanos. Tais situações expressam políticas e posicionamentos do governo designados por alguns analistas brasileiros como expressivos do necrobiopoder[14].
Frente ao agravamento desmedido da questão social, o bolsonarismo desmonta radicalmente os sistemas de proteção social, em um aparente paradoxo que, antes de tudo, revela o projeto político do governo. Sob o abrigo legal da Emenda Constitucional 95 - “do teto dos gastos públicos”, o governo impõe severos cortes no orçamento das políticas públicas sociais, sobretudo, de saúde, educação e assistência social, ao mesmo tempo em que libera bilhões de reais acobertados no chamado “orçamento paralelo”.
No Brasil, nos últimos seis anos, constata-se a consolidação de uma lógica ultraliberal, a propiciar o domínio do rentismo, em detrimento do atendimento das demandas e necessidades das camadas mais vulneráveis da população. Nessa dinâmica, a racionalidade do Estado Ajustador está associada à redução substancial do gasto público produtivo e social. Ademais, crescem as despesas financeiras em função da elevação da dívida pública. Assim, a política fiscal revela-se claramente regressiva e seus sucessivos ajustes inviabilizam, por completo, a implementação de políticas públicas de enfrentamento da situação de desemprego e de vulnerabilidade de segmentos crescentes da população (CARVALHO; GUERRA; AMÉRICO MOREIRA, 2021).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No século XXI, o capital em seus processos de acumulação e valorização, sob o signo da financeirização da economia, enfrenta dilemas e impasses, com distintos rebatimentos nas regiões centrais e periféricas. Trata-se de expressões de sua crise estrutural e orgânica, em permanente deslocamentos, materializados em crises que se entrecruzam, atingindo brutalmente a natureza e as forças do trabalho: crise ambiental, com ameaça de inviabilidade da vida no planeta, em decorrência da voracidade da expansão do capital; crise no mundo do trabalho, com desemprego estrutural e formas contemporâneas de precarização, em uma simbiose de formas pretéritas e novas formas de espoliação da força de trabalho, criando uma população supérflua para o capital, submetida à servidão “consentida” e “autorizada”; crise sociossanitária, com sucessivos eventos de epidemias e pandemias, com nítidas relações com a destruição desmedida do meio ambiente; crise política, que ameaça a democracia e os direitos humanos, a exigir posicionamentos radicais em defesa da vida; crise ética, com a difusão de bases da ideologias ultraliberal, forjando subjetividades domesticadas, intolerantes, tomadas pela indiferença e o cinismo frente às tragédias humanas e, especialmente, pela naturalização da morte das “populações matáveis”. De fato, vive-se um capitalismo, em que a concorrência desmedida, o individualismo extremado e o consumismo exacerbado pautam a vida social.
A partir de 2020, esta crise estrutural do capital é agravada pelo contexto da pandemia, gestando o que Antunes (2022) designa por “capitalismo pandêmico”. Neste cenário, o Brasil contemporâneo, com base na financeirização dependente e na reprimarização da pauta de exportações, vive um momento-limite, a partir do golpe de 2016. De fato, o país está imerso em um tempo histórico que hibridiza novas configurações da dependência, na sua inserção no sistema do capital, com ressignificações da herança colonial, em meio ao exacerbado autoritarismo. As tragédias brasileiras se acentuam, com o recrudescimento da pobreza e da extrema pobreza e a volta do país ao mapa da fome. É uma pobreza pluridimensional que atinge drasticamente as populações que vivem às margens sujeitas a todo tipo de violação de direitos e às práticas de necrobiopoder (BENTO, 2018). É um tempo histórico extremamente fugaz, fincado na tecnologização da vida, que parece não abrir horizontes de futuro, sobremaneira, para os jovens. Impõe-se a exigência de reinvenção de modos de vida fundados em valores para além do capital e dos múltiplos sentidos do colonialismo expressos no racismo estrutural, no machismo, no patriarcado, na LGBTQfobia e na xenofobia.
Neste primeiro semestre de 2022, a contemporaneidade brasileira constitui, em verdade, um cenário em aberto, com possibilidade de caminhos extremos. As eleições de outubro próximo constituem um momento decisivo para definir os rumos do país. É exigência estratégica para as forças progressistas e de esquerda derrotar Bolsonaro e enfrentar o bolsonarismo. Acreditamos na força das resistências que pulsam na sociedade civil, abrindo veredas para a construção de uma democracia de alta intensidade, sustentada na dialética igualdade-diferença.
REFERÊNCIAS
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Notas