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CUIDADO INFORMAL DE PESSOAS VELHAS o gênero feminino nesta provisão e nas políticas públicas
INFORMAL CARE OF OLD PEOPLE: the place of the female gender in this provision and in public policies
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 335-354, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepción: 14 Febrero 2022

Aprobación: 29 Abril 2022

Resumo: O artigo tece considerações sobre o cuidado informal prestado a pessoas velhas com dependências na atenção domiciliar realizado por mulheres. Ancorado em aportes teóricos e documentais, discute o envelhecimento populacional no mundo e a importância do cuidado informal com o objetivo de apreender os elementos que contribuem para ratificar a determinação do gênero feminino para o exercício de cuidadora no Brasil e, exemplos de políticas públicas dirigidas a cuidadores informais, como as de Portugal. Conclui que, não por acaso, o público feminino aí se destaca, dada sua íntima relação com os papéis sociais que imputam às mulheres a responsabilidade com ações de cuidados da casa e seus integrantes, ou seja, o cuidado essencial à existência humana, complexificado com a rápida evolução demográfica, variação de dependência demandadas por pessoas velhas, mas, que segue ignorado e desvalorizado na maior parte do mundo.

Palavras-chave: Envelhecimento, cuidado, mulheres, políticas públicas.

Abstract: Considerations on informal care provided to elderly people with dependencies in home care performed by women. Anchored in theoretical and documentary contributions, it discusses the aging population in the world and the importance of informal care with the objective of apprehending the elements that contribute to ratify the determination of the female gender for the exercise of caregiver in Brazil and, examples of public policies aimed at informal caregivers, such as those in Portugal. It is concluded that, not by chance, the female audience stands out there, given their close relationship with the social roles that attribute to women the responsibility for taking care of the home and its members. Essential care for human existence, compounded by the rapid demographic evolution, variation of dependency demanded by old people, but which remains ignored and undervalued in most parts of the world.

Keywords: Aging, caution, women, public policy.

1 INTRODUÇÃO

Durante muitos séculos, a população mundial aumentou muito lentamente. Porém, após a Segunda Guerra Mundial, registrou-se um exponencial aumento populacional. Consoante Osório (2007, p.11):

Uma das transformações sociais mais importantes que ocorreram nos últimos 50 anos está relacionada com o aumento demográfico das pessoas de idade. Assistimos, portanto, ao fenómeno crescente e novo do envelhecimento da população em todas as sociedades economicamente desenvolvidas. Este acontecimento converteu os chamados idosos num grupo social que atrai o interesse individual e coletivo de forma crescente, devido às suas implicações a nível familiar, social, econômico, político, etc.

Para a Organização das Nações Unidas (ONU), o número de idosos, com 60 anos ou mais, duplicará até 2050, e mais do que triplicará até 2100, passando de 962 milhões em 2017 para 2,1 bilhões em 2050 e 3,1 bilhões em 2100. Desse modo, até 2050 todas as regiões do mundo, exceto a África, terão quase um quarto ou mais das respetivas populações com mais de 60 anos. Ou seja: nas próximas décadas, muitos países irão enfrentar severos desafios, ao lado de pressões fiscais e políticas na esfera dos sistemas públicos de saúde, providência e proteção social para a população com a faixa etária mais avançada (ONU NEWS, 2022).

Outro dado relevante refere-se à população “muito idosa”, posto que é a que tem apresentado as maiores taxas de crescimento. Nos últimos dez anos, o segmento populacional das pessoas acima de 100 anos passou de 14 mil para 17 mil, o que leva a uma maior heterogeneidade do grupo de pessoas idosas (IBGE 2010).

Essa conjugação de fatos, fez com que no século XXI emergissem com mais vigor os debates e ações com vistas ao reconhecimento do papel social das pessoas velhas como cidadãos e cidadãs detentores(as) de direitos. Circunstância que favorece o alargamento do entendimento de que essa etapa da vida não é resultante apenas do processo fisiológico meramente natural. Continuum que se inicia com a concepção e se encerra com a morte, mas que decorre de um processo multidimensional, heterogêneo, dinâmico, progressivo, que pode ser constituído por um contingente de velhos (as) saudáveis, detentores de infraestrutura econômica, familiar e boa habilidade funcional, bem como por pessoas frágeis, com vários graus de deficiências, dependências e incapacidades, situação financeira e familiar precárias.

Trata-se de envelhecimentos, pois nem todos envelhecem nas mesmas condições em termos de dignidade, saúde, autonomia, independência, segurança e contextos, o que faz com que políticas públicas de longo prazo (de saúde, assistência social, previdenciária, dentre outras), sejam ampliadas e efetivadas, de modo a atender às demandas, não apenas desse público, mas do que dele cuida, geralmente as mulheres.

Assim, se, por um lado, viver mais apresenta-se como conquista que precisa ser celebrada, por outro a situação conclama a sua priorização nos debates sociais, políticos, acadêmicos de forma analítica e interdisciplinar, ao lado das já anunciadas políticas públicas com alguma cobertura/benefício social aos provedores desse cuidado, dados os desafios que ensejam para população que envelhece de forma diversa, mulheres na condição de cuidadoras informais, famílias, sociedades e governos.

Foi sobre essa realidade que o presente artigo se debruçou, não somente para dar visibilidade a esse fenômeno complexo que é o envelhecimento populacional e suas demandas por cuidados no Brasil, mas, pela necessidade de apreender os elementos que contribuem para ratificar a determinação do gênero feminino para o exercício do papel de cuidadora informal no país, bem como demonstrar avanços legais na área do cuidado na Europa, a partir da realidade portuguesa. País que já dispõe de legislação e benefícios sociais que contemplam, a partir de critérios, cuidadores/as informais de idosos e pessoas com deficiência em cuidados integral, a exemplo do Estatuto do Cuidador Informal/Lei nº. 100/2019. Trata-se de um estudo exploratório, com abordagem qualitativa, sem desconsiderar dados quantitativos. Ambos foram utilizados simultaneamente para explicar o tema em questão, ancorado em aportes teóricos e documentais que enfocam o envelhecimento populacional no mundo e a importância do cuidado informal.

Partiu-se do pressuposto de que a eleição do público feminino para as ações do cuidado, também com idosos, tem íntima relação com a divisão sexual do trabalho, ancorada em papéis sociais atribuídos às diferentes categorias de sexo, os quais imputam às mulheres, a responsabilidade pela casa, filhos/as (SAFFIOTI, 1987). E que, ainda hoje, situa o cuidado em estreita relação com o substantivo de cuidadora, circunscrito ao feminino, portanto, à esfera do privado, do doméstico, da família (GUIMARÃES; HIRATA ; SUGITA, 2011).

Imperioso ressaltar ainda que definir, conceituar, repensar o envelhecimento e a velhice é um ponto crucial para a introdução de qualquer estudo proposto sobre a temática. A complexidade das várias designações em relação ao sujeito que envelhece, frequentemente, gera dúvidas quanto ao termo mais adequado a ser utilizado em um trabalho científico. As distinções conceituais entre velho e idoso não são claras, nem fáceis, resultando em um estado de confusão no qual florescem interpretações esparsas, equivocadas, ambíguas (SERRA, 2005).

No trabalho aqui desenvolvido utilizamos os termos velha(o) e idosa(o), pessoas envelhecidas, pessoas em idade avançada como sinônimos, tentando desmistificá-los, pois acreditamos que o maior dos preconceitos é a não visibilidade da pessoa como ela é, cidadão e cidadã de direitos e deveres que envelheceu; alguém que teve um passado e tem um presente, no qual se faz necessário construir um futuro sem anular as etapas de vida (SERRA, 2005).

2 ENVELHECIMENTOS NO BRASIL: breves considerações

A expectativa de vida está aumentando de forma exponencial em todo o mundo, impulsionando mudança da pirâmide populacional. Tal transição demográfica ocorrida em quase todo o mundo, também é observada no Brasil, só que num ritmo acelerado e em curto espaço de tempo. Em 1999, do total de 160.336.471 brasileiros identificados, 14.512.803 estavam com 60 anos ou mais. O que correspondia a 9,1% da população total do país. A participação da população acima de 65 anos no total da população brasileira mais do que dobrou nos últimos 50 anos: passou de 4% em 1940, para 5,9% em 1991, 8,6% em 2000, reduzindo a 7,4% em 2010. O que significa dizer que atualmente há no país mais pessoas com idade acima de sessenta e cinco anos do que abaixo de quatro anos, como ilustra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010):

Nas últimas décadas, o Brasil tem registrado redução significativa na participação da população com idades até 25 anos e aumento no número de idosos. E a diferença é mais evidente se comparadas às populações de até 4 anos de idade e acima dos 65 anos. Em 2010, de acordo com a Sinopse do Censo Demográfico, o país tinha 13,8 milhões de crianças de até 4 anos e 14 milhões de pessoas com mais de 65 anos.

Dado igualmente enfatizado por Kalache (2010), ao destacar que o número de pessoas acima de 65 anos deverá aumentar para 64 milhões em 2050 no país, quando certamente terá a quinta maior população de idosos do mundo.

Brasileiros/as passaram a viver mais, devido a um conjunto de fatores, tais como a redução da mortalidade, queda na taxa de natalidade, conquistas médicas (vacinas, antibióticos, medidas de prevenção e promoção da saúde), melhoria das condições sanitárias, ambientais e nutricionais, bem como da elevação dos níveis de higiene pessoal (KALACHE; VERAS; RAMOS, 1987).

Assim, o Brasil, que sempre foi considerado um país de jovens, está em pleno processo de envelhecimento. As pessoas estão convivendo com esta nova realidade, à primeira vista alvissareira, mas que traz em seu bojo profundas implicações.

Cumpre destacar que os países desenvolvidos envelheceram ao longo de muitas décadas, gozando de níveis econômicos altos. Enquanto o Brasil está envelhecendo rapidamente. Isso sem falar nas disparidades sociais e econômicas entre o Brasil e países europeus. Em solo luso, esse envelhecimento se faz num contexto de desigualdades sociais, originadas de problemas não resolvidos nas mais diversas áreas: educação, saúde, saneamento, segurança, geração de emprego e renda, transporte, segurança, preservação do meio ambiente.

Configuração que aponta, e com urgência, para a construção de estratégias para vencer o desafio do envelhecimento populacional no país, prover condições para que este seja digno para todos e todas as pessoas, uma vez que o fenômeno do envelhecimento não se restringe a mero dado numérico, decorrente do acelerado crescimento populacional. Como já destacado, nem todos e todas envelhecem da mesma forma e em iguais condições.

Há que se considerar nesse percurso as condições de classe, raça, etnia, gênero, os valores de uma sociedade que enaltece a juventude. É fundamental que se tenha um olhar político e social ampliado em torno deste fenômeno que é o envelhecimento, com adoção de proteção social, medidas de promoção de saúde direcionada a essa população, capaz de enfrentar a transição epidemiológica que fomenta número elevado de pessoas idosas com predominância das Doenças Crônicos Não Transmissíveis (DCNTs), acúmulo de sequelas, predisposição a algum grau de deficiência, dependência e incapacidade, perda da autonomia e qualidade de vida.

Ante o exposto, não resta dúvidas de que envelhecer é um verbo que se conjuga no plural. Isso porque, como já descrito anteriormente, não se trata de mero fenômeno biológico, posto que envolve outros aspectos: social, político, cultural, econômico, psicológico, espiritual. Assim como também não se processa de uma única forma. Figura como fenômeno múltiplo, processo que ocorre durante todo o curso da vida da pessoa, envolve aspectos biológicos, psicológicos e sociais. Contudo, o conhecimento a respeito do envelhecimento visto por essas três dimensões é algo recente.

No que se refere ao envelhecimento biológico, este constitui-se num processo sequencial, individual, acumulativo, irreversível, universal não patológico.Algo natural e universal concorrente ao desenvolvimento, caracterizado por declínio fisiológico, o qual ocorre depois da maturação sexual e implica em diminuição gradual da probabilidade de sobrevivência do organismo. Porém, é imperativo registrar que cada sistema do organismo tem seu próprio ritmo de envelhecimento (PAPALEO, 2002). Portanto, processo natural, dinâmico, progressivo, universal, inerente a todo ser vivo. Subdivide-se no envelhecimento fisiológico (senescência ou senectude) resultante de um somatório de alterações orgânicas, psicológicas e funcionais próprias do processo de envelhecimento normal. E no envelhecimento patológico (senilidade) decorrente das alterações determinadas por afecções que acometem os idosos (PAPALEO, 2006).

No contexto comportamental, há o envelhecimento psicológico, no qual a evolução etária influi no modo de pensar e de agir assumindo assim atitudes e comportamentos de cada fase da vida: infância, juventude, maturidade e velhice. Decorre das condições de saúde física e mental estabelecidas por determinantes biológicos e ambientais ao longo de toda a vida que interferem no seu ritmo e nos seus desfechos (NERI, 2014). Tendo como importantes elementos: sexo, classe social, saúde, educação, personalidade, história passada, contexto socioeconômico.

O envelhecimento é também um processo sociológico na medida em que cada sociedade estabelece a idade para início da velhice, a qual marca a mudança em status e em papéis sociais e se relaciona com mudanças na identidade e na percepção da idade pelas pessoas (NERI, 2014). Como exorta Beauvoir (1970) “A condição humana do velho depende do contexto social”.

Envelhecimento continuum ocorre durante todo o curso de vida do indivíduo, indo desde o nascimento até a morte. É universal, afetando a família, a comunidade e a sociedade como um todo, tendo a velhice como a última fase. A velhice não é um processo como o envelhecimento, e sim um estado que caracteriza a condição do ser humano idoso; não é um fato estático; é o resultado e o prolongamento de um processo, ideia ligada a noção de mudança (BEAUVOIR, 1970). De acordo com Papaléo (2006) o envelhecimento é o processo, a velhice a fase da vida e o velho o resultado final desse processo.

Além disso, vale ressaltar que o envelhecimento é individual, depende da situação social, dos hábitos, do estilo de vida de cada pessoa. Experiências de envelhecimento e velhice variam de acordo com tempo histórico de uma sociedade, dependem de circunstâncias econômicas (PAPALEO, 2006).

De acordo com Mota (2015), ser velho é uma situação vivida em parte homogeneamente e em parte diferencialmente. O gênero, a classe social e também a raça conformam expectativas e configuram a ação social, nas quais o racismo e as discriminações sociais e raciais, naturalizadas no país, impactam, sobremaneira, no modo como a população, sobretudo a preta, tem chegado à faixa etária de sessenta anos de idade. A perspectiva de gênero, classe e raça são estruturantes e precisam ser consideradas na explicação das diferentes trajetórias de vida percorridas socialmente por homens e mulheres na velhice. Ambos são sujeitos genderificados, socializados em contextos permeados por desigualdades de gênero, classe e raça que rebatem/impactam nas experiencias e processos de envelhecimentos. Produzem tratamentos discriminatórios, estigmas e diferenças em termos de oportunidades (THEODORO, 2010) e acesso a bens e serviços básicos.

3 ENVELHECIMENTO POPULACIONAL E A FACE FEMININA DO CUIDADO NO BRASIL

As transmutações demográficas, epidemiológicas e sociais ocorridas nas últimas décadas que originaram esse novo perfil populacional, não apenas provocaram alteração na pirâmide etária brasileira, posto que é caracterizado também pelo aumento das já mencionadas desigualdades sociais, com prevalência de pobreza, desempregos, doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) na vida adulta, transformações estruturais das famílias (monoparentais, por afinidade, homoafetivas, chefiadas por mulheres, etc.). Tais eventos também confluíram para mudanças nos padrões de cuidados que vigoravam em gerações anteriores (FLASCH; LINS; CARVALHO, 2016).

Devido aos altos custos da assistência hospitalar ou institucional especializada, o cuidado direcionado a estas pessoas, principalmente aquelas acometidas por problemas de saúde que comprometam sua independência e autonomia, têm sido realizado no seio familiar. Mesmo sem domínio de saberes mínimos de saúde que lhe possibilite o exercício da provisão de cuidar ou de condições financeiras, a família passa a ser um recurso fundamental para o amparo de idosos(as). O que requer dedicação de um membro dessa composição, nas ações de cuidados que atenda as demandas do ente em suas múltiplas necessidades na vida diária, de modo a contribuir com a qualidade de vida dos longevos (NASCIMENTO et al., 2008). Ainda que tal atribuição interfira ou altere seus projetos pessoais.

Atribuição que, como já citado, comumente recai sobre as mulheres, na condição de cônjuge, filha, sobrinha, irmã, tia, noras, vizinhas, amigas, que assumem o encargo de cuidadora principal. Atividades realizadas informalmente, de forma voluntária, gratuita. Por vezes, de forma solitária e cumulativa com os demais afazeres domésticos, uma vez que lhes falta com quem dividir as tarefas, suas queixas, angústias, inseguranças e cansaços. Especialmente para aquelas que são pobres e negras. Com base em pesquisas como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios/IBGE (PNAD) e o Mapa da Violência, o Criola e a Oxfam Brasil (2018) explicitam que a parcela da população que sofre com os piores índices é a negra, com maior intensidade para as mulheres negras. São elas as que mais são impactadas pelo desemprego, contabilizam como maioria entre as encarceradas figura como o principal grupo de pessoas pobres e a menor representação política no país. Motivo pelo qual é fundamental atentar para o “racismo patriarcal” que impele violências e negação de direitos superiores ao que é vivenciado por outros grupos sociais na cidade, o que vulnerabiliza sua existência, com desvantagens em diversas dimensões de suas vidas.

Nunca é demais lembrar que as mulheres não compõem um grupo homogêneo. Logo, tal como os processos de envelhecimentos, de formas distintas tais mulheres vivenciam as desigualdades de gênero, raça e classes.

O trabalho do cuidado é múltiplo, consubstanciado por vários afazeres que, geralmente, são circunscritos ao domicílio, junto àqueles que neste habita. Abarca o cuidado com o lar, tanto no que se refere à sua organização cotidiana (arrumação e/ou limpeza), quanto no preparo da alimentação, higiene das roupas, louças, dentre outras ações fundamentais, mas pouco reconhecidas ou valorizadas pelos residentes do lar e pela sociedade. Entretanto, toda gente aprecia ambiente asseado, boa comida, vestes engomadas, mas pouco se importa em saber o trabalho que isso dá, contabilizar o tempo que consome. Exceto, quando deixa de ser feito. Trata-se de algo imprescindível, mas, invisível.

O envelhecimento populacional em nível nacional e mundial tem feito crescer as demandas por essa provisão, seja de modo informal ou formal, como mostra o estudo comparativo entre Brasil, França e Japão, realizado por Guimarães, Hirata e Sugita (2011). Neste, o envelhecimento das pessoas, com as devidas particularidades demográficas, econômicas e sociais de cada país, apresenta-se como um dado comum. Achado similar refere-se ao sujeito que assume essa atribuição, nomeadamente as mulheres. São determinações que reconfiguram a demografia global, bem como as atividades do cuidado. Fato que já justificaria a inserção desse debate na agenda pública governamental, uma vez que sua prestação sugere responsabilidades que deveriam ser compartilhadas entre família, comunidade e o Estado.

3.1 Mulheres nos cuidados informais no domicílio: elemento para se pensar as desigualdades de gênero

Partilha-se da assertiva de que não é por acaso que o cuidado esteja atrelado às atividades domésticas, como se inerente fosse à população feminina, decorrente de sua biologia. Esse é um debate que remete às relações de gênero e ao patriarcado. Este último potencializado com o racismo e o capitalismo. Ante o exposto, pondera-se que a concepção que desvaloriza as atividades ditas reprodutivas realizadas por mulheres no âmbito da casa e seus arredores, esconde seu real valor, posto que estas não são alheias ao capital, embora este se empenhe para que pareçam devoção, benemerência (FEDERICI, 2021).

Nesta lógica, o privilegiamento recai, como demonstra a Oxfam Brasil (2020), no sistema econômico sexista, na valorização da riqueza de uns poucos, em sua maioria do sexo masculino, em detrimento de ações que importam para toda a sociedade, que consome bilhões de horas dedicadas ao trabalho do cuidado, comumente não remunerado e/ou mal pago, que explora, sobretudo, mulheres e meninas em todo o mundo. Vale destacar que a desigual responsabilidade vigente no trabalho de cuidado, perpetua desigualdades de gênero e econômica.

O debate sobre gênero como categoria analítica, histórica e cultural é essencial para desvelar como se dá a construção social de homens e mulheres no seio não de atributos físicos, emocionais, intelectuais. Introduzida no debate acadêmico e político pelos movimentos feministas, tem contribuído para uma leitura crítica das questões que envolvem as desigualdades sociais vivenciadas ao longo da história pelas mulheres, potencializadas quando estas são negras e pobres.

As relações de gênero não são neutras, mantêm estreita ligação com fatores políticos e econômicos em cada sociedade. Trata-se de um processo que se alicerça nas diferenças sexuais, de cariz biológico, reproduzidas em larga escala através de estereótipos patriarcais diversos e que reforçam binarismos do tipo homem forte e mulher frágil. Forjam relações desiguais, mesmo com os progressos femininos contemporâneos em prol de sua emancipação (direito ao voto, educação, inserção em espaços públicos, nas instâncias decisórias de poder).

O debate sobre o patriarcado[1] por sua vez, propicia apreender esses mecanismos que propagam relações sociais hierarquizadas entre os gêneros, com desvantagens para as mulheres, em termos de prestígio e oportunidades. Ou seja, seus veículos difusores, tais como instituições, religiões, legislações, educação, dentre outros, em que mulheres aparecem como inferiores.

E, em assim sendo, papéis culturais atribuídos às mulheres relacionados ao cuidado são vistos como vocacionais, isento de valor financeiro, mesmo quando gera o produto mais valoroso do mundo capitalista, que é a força de trabalho recomposta (FEDERICI, 2021). Relacionam-se com a divisão sexual do trabalho, a uma identidade socialmente construída, disseminada e que, ainda hoje, situa o cuidado como verbo transitivo indireto, pois quem cuida, cuida de algo ou de alguém, mas, em estreita relação com o substantivo de cuidadora, circunscrito ao feminino, portanto, à esfera do privado, do doméstico, da família (GUIMARÃES; HIRATA; SUGITA, 2011).

Como assevera Saffioti (1987, p. 8)

[...] a identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através da atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo. À sociedade delimita, com bastante precisão, os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.

Através de sucessivos aprendizados constrói-se o ser homem e o ser mulher. Reproduzidos e reafirmados dentro e fora de casa, a partir de um conjunto de padrões morais, comportamentais, de cariz disciplinador através de práticas que se inscrevem nos corpos. Desse modo, cada um deve fazer somente aquilo condizente com seu sexo de origem, do jeito que o capitalismo espera (se for homem, dar-se-á de um jeito e, se for mulher, de outro). E assim, a imbricação gênero-patriarcado, tonificado pela raça e classe, institui lugares, expectativas sociais para cada indivíduo. Padrões prevalentes na construção das identidades de gênero, sob a influência do modelo político, econômico e cultural de cada época e lugar e que vão ser determinantes para ratificar a mulher nas ações do cuidado e domésticas.

Deve-se atentar para o grande investimento na naturalização deste processo, o que leva à crença de que esse espaço destinado às atribuições domésticas e aos cuidados é algo específico das mulheres, enquanto os homens se ocupam do espaço público. Nesta lógica, não há porque se estranhar ou contestar a vigência de algo que sempre foi desempenhado por elas em todos os lugares, de forma dedicada, zelosa, ainda que com renúncias à própria vida em benefício dos outros, ao mesmo tempo em que “eliminam-se as diferenciações históricas e ressaltam-se as características “naturais” dessas funções” (SAFFIOTI, 1987, p. 11).

Como aduz Saffioti (1987), é de extrema importância compreender a gênese de processos socioculturais que limitam ou inviabilizam a participação feminina em outros espaços, ao mesmo tempo em que concorre para sobrevalorizar os espaços e legitimar a superioridade masculina, assim como a dos brancos, dos heterossexuais, dos ricos.

No que se refere à dinâmica de cuidados com outros, a imagem de altruísmo pessoal feminino esconde a dura realidade de submissão, traduzida na ação de cuidar de mulheres, brancas ou negras pobres, das condições familiares precárias, de carência socioeconômica, no duro cotidiano de atendimento ao idoso dependente, com múltiplas requisições.

Muitas vezes, para a cuidadora, soma-se à execução do cuidado específico a higienização do ambiente na qual o/a idoso/a permanece, a elaboração das suas refeições, a lavagem e a manutenção das suas roupas. A realidade de poucos recursos econômicos da família torna impensável a contratação de qualquer profissional especializado em reabilitação e de auxiliares em trabalhos domésticos, tão necessários para bom atendimento do idoso como para, também, não sobrecarregar de forma desumana, a cuidadora.

Em determinadas configurações familiares a cuidadora sobrevive numa condição crucial. Por vezes, é uma das pessoas, ou a única, a obter renda para sustentar o grupo. Algo que também significa que há a necessidade de conciliar as suas atividades laborais rentáveis com o cuidado com a/o idosa/o. Nessa situação, é obrigada a delegar alguma tarefa inerente ao ato de cuidar para alguém próximo: seja um familiar que possa ficar em casa em algum horário do dia, ou alguém da vizinhança. Contudo, essas circunstâncias não descaracterizam ou aliviam o seu papel de cuidadora informal principal. Ela precisa recorrer a estratégias e improvisações para dar conta da obrigação assumida, pois, quando, aparentemente, divide com alguém a atenção ao familiar dependente a responsabilidade sobre a saúde e o bem-estar daquele de quem cuida é, ainda, sua. Isso ocorre amiúde por uma convenção não verbal, mas tácita entre a cuidadora e os demais membros da família. Seja a esposa, a filha, a irmã do idoso, como em geral acontece, os familiares entendem que a função é dela e, embora a participação dos demais seja pouca ou inexista, a cobrança acerca dos cuidados ministrados ao longevo é feita.

Estudos de Pinquart e Sörensen (2013) mostram a existência de mulheres acima de 65 anos na provisão do cuidado de outros membros familiares, com jornada que sugere incompatibilidade com suas idades. Revelam ainda dificuldades nesta lida desacompanhada, sem auxílio de outras pessoas. O que certamente eleva o risco de seus adoecimentos físicos, emocionais e psicológicos, ao mesmo tempo em que pode comprometer as ações do cuidar.

A Oxfam Brasil (2020) ressalta que 90% do trabalho de cuidado no Brasil é feito informalmente pelas famílias – e desses 90%, quase 85% é feito por mulheres. Destaca ainda que Mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado – uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global – mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo.

São dados que evidenciam percalços, obstáculos e incompreensões vivenciados por mulheres na condição de cuidadoras informais na atenção domiciliar, junto a pessoas envelhecidas com dependência física ou cognitiva. Manifestas de formas diversas, através de “tensão, constrangimento, fadiga, estresse, frustração, redução do convívio social, depressão e alteração da autoestima, entre outros” (VIEIRA et al., 2011).

Às vezes, seu adoecimento pode acarretar sentimento de culpa, por não poder cumprir a tarefa do cuidado traçada como “obrigação” pelos liames afetivos que a ligam ao idoso e na imputação desse dever, exigido ou naturalizado por familiares.

Para Federici (2021), enquanto as mulheres não recusarem a eternização da divisão sexual instituída, não falarem por si, se fortalecerem para romper com a identidade que lhes tem sido imposta, seguirão dependentes financeiramente, acumulando encargos domésticos, de cuidados em casa, exauridas, trabalhando numa condição análoga à da escravidão, a troco de nada ou, a um baixo preço. O que reafirma a urgência de políticas públicas estatais que reconheçam ações do cuidado realizado majoritariamente pela ala feminina como trabalho que deve ser assalariado.

4 O ENVELHECIMENTO EM PORTUGAL

A aceleração no envelhecimento demográfico a nível mundial, e particularmente na Europa, deve-se fundamentalmente ao crescimento econômico nas sociedades desenvolvidas, aos progressos da medicina, aos cuidados de saúde e às políticas sociais orientadas para a diversidade e especificidade das necessidades sociais das pessoas idosas.

Esse fenômeno tem significativos reflexos de âmbito socioeconômico com impacto na delineação das políticas sociais e de sustentabilidade, assim como nas alterações de índole individual que levarão à adoção de novos estilos de vida (DESMET, 2017). “Este acontecimento converteu os chamados idosos num grupo social que atrai o interesse individual e coletivo de forma crescente, devido às suas implicações a nível familiar, social, económico, político, etc” (OSÓRIO, 2007, p.11).

Em 2019, o Instituto Nacional de Estatística (INE) referencia, no conjunto dos 28 países da União Europeia (UE), Portugal como o quarto país mais envelhecido da UE, apenas ultrapassado pela Finlândia, Grécia e Itália.

Devemos reconhecer, perante esta reconfiguração das estruturas demográficas em que o envelhecimento apresenta um notável destaque, o manifesto impacto que o processo de envelhecimento tem na relação do homem com o tempo, com o mundo e com a sua própria história (BEAUVOIR, 1970).

Diante desta evidência, torna-se necessário repensar “a aritmética das idades, as idades e os ciclos de vida, e, inevitavelmente, o próprio conceito de velhice” (BANDEIRA, 2012, p. 22), como forma de encontrar soluções ajustadas às novas necessidades e que visem promover a construção de uma sociedade mais inclusiva e adequada às pessoas idosas.

Em Portugal, a construção do Estatuto do Cuidador (Lei nº 100 de 2019), dispositivo legal que dispõe sobre os direitos, deveres do cuidador, da pessoa cuidada e estabelece medidas de apoio, se fez através de um longo percurso, aqui pontuado de forma breve.

4.1 Políticas para a velhice em Portugal: do voluntariado religioso à Lei nº 100 de 2019 que disciplina os direitos e deveres do cuidador e da pessoa cuidada

Até a Primeira República, implantada em 5 de outubro de 1910, Portugal seguia as tendências europeias no que concerne à organização de equipamentos e serviços, cuja responsabilidade competia às ordens religiosas e mutualidades, baseadas no voluntariado religioso.

Após a declaração da República, em 25 de maio de 1911, foi publicada uma lei de assistência e oficializados alguns equipamentos públicos como hospitais civis, hospícios e asilos. As ordens religiosas, retiradas da gestão dos equipamentos e hospitais logo após a publicação da referenciada legislação, só retomam as responsabilidades educativas e de assistência quando Portugal entra na Primeira Guerra Mundial.

Com a implantação do Estado Novo (1926) surge o período do corporativismo, no qual se pode identificar duas fases no desenvolvimento da proteção social: A primeira, como destaca Carvalho (2010, p.62), “nas décadas de 30 a 50 e a segunda, durante a década de 60 até meados de 70. Nesta primeira fase, foi desenvolvido um sistema de proteção social composto por duas áreas: a previdência social e a assistência social”.

Nos anos 1960 assiste-se ao reconhecimento da proteção na velhice, doença, morte e encargos familiares. Neste contexto de mudanças, foi publicada a primeira Lei de Bases da Política de Saúde e Assistência (Decreto-lei nº 2120, de 19 de julho de 1963), a qual mantinha a premissa de que o Estado devia ter uma ação supletiva no âmbito da política de saúde e assistência. Este diploma reconhecia ainda, às misericórdias, às mutualidades e às fundações, a responsabilidade pela prestação de serviços de assistência social e saúde.

Com a constituição da República Portuguesa de 1976, abandona-se o princípio do papel supletivo do Estado no domínio da assistência social” (JOAQUIM, 2015, p.9). Destarte, a Segurança Social é um direito fundamental de todos (as) cidadãos (ãs) quer estejam ou não no mercado formal de trabalho, sendo uma das mais importantes funções do Estado. Segundo Carvalho (2005), podemos identificar três fases no período de construção do sistema de segurança social em Portugal; o primeiro período, de 1974 a 1985, correspondendo ao processo de emergência do sistema de segurança social; o segundo período, de 1985 a 1995, correspondendo ao seu desenvolvimento e, o terceiro período, de 1996 a 2006 correspondendo à sua consolidação.

  • a) 1.º Período 1976 a 1985

O ano de 1976 inaugura a primeira Constituição democrática portuguesa, datada de 25 de abril daquele ano que também demarca a Revolução dos Cravos ou Revolução de Abril. Esta Carta Magna consagra o direito à segurança social, ao trabalho, à saúde, à educação e à habitação, dando-se forma à proteção social setorial nessas mesmas áreas. Em 1977 foram reformuladas também algumas leis de proteção social e efetuada a primeira tentativa de criar uma lei orgânica para a segurança social (Decreto-lei nº 549 de 31 de dezembro). As instituições de solidariedade social constituem-se também de pessoas coletivas de utilidade pública (Decreto-lei nº 460 de 7 de novembro de 1977). No âmbito do Serviço Nacional de Saúde em 1979 (Decreto-lei 56 de 15 de setembro) o Estado “assegura o direito à proteção da saúde” (art. 1) e o garante “a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social” (art. 4, nº1).

Em 1982, a Constituição da República é revista e alguns de seus artigos reconfigurados. O Estado assume responsabilidade pela segurança social de grupos fragilizados, jovens, crianças, idosos e deficientes, bem como pela promoção de uma política da terceira idade. No que diz respeito à política da terceira idade, esta engloba medidas de caráter econômico, social e cultural orientadas para oferecer às pessoas idosas oportunidades de realização pessoal, através de uma participação ativa na vida da comunidade.

Em 1984, dez anos após o 25 de abril, foi publicada a primeira Lei de Bases da Segurança Social (Decreto-lei nº 28 de 1984, de 14 de agosto), constituindo os princípios gerais do sistema: a universalidade, a unicidade, a igualdade, a eficácia, a descentralização, a solidariedade e a participação. A segurança social estrutura-se em dois sistemas: regime geral ou contributivo e regime não contributivo, cujas prestações eram garantidas como direitos.

Nesse período surge um sistema de ação social assente na responsabilização das entidades privadas sem fins lucrativos (CARVALHO, 2005), ao lado de equipamentos sociais de proteção às pessoas idosas, considerados inovadores para a época, como os centros de dia, os centros de convívio e os primeiros apoios domiciliares. Além destas modificações foram tomadas medidas para promover os idosos na sociedade, designadamente a criação dos passes de transportes públicos para a terceira idade.

  • b) 2.º Período 1985 a 1995

Este período é caracterizado pela entrada de Portugal na União Europeia (1986), constituindo um marco fundamental na mudança social, política e econômica em Portugal.

A Resolução do Conselho de Ministros nº 15, de 23 de abril de 1988 cria a Comissão Nacional para a Política da Terceira Idade – CNAPTI, assumindo o Estado a responsabilidade pelos cuidados aos idosos. Ampliam-se e aperfeiçoam-se as redes de equipamentos sociais (centros de dia, centros de convívio e apoio domiciliar), surgindo simultaneamente outras tipologias de respostas, o acolhimento familiar e as colônias de férias. O acolhimento familiar, forma de proteção social baseada em laços de solidariedade, define-se, de acordo com o Decreto-lei nº 391, de 10 de outubro de 1991, como uma resposta social que integra, temporariamente ou permanentemente, em famílias consideradas idóneas, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, a partir da idade adulta, garantindo um ambiente sociofamiliar e afetivo propício à satisfação das suas necessidades básicas e ao respeito pela sua identidade, personalidade e privacidade.

A intervenção do Estado, no que concerne às políticas de idosos, evidencia-se também nas seguintes medidas legislativas: reformulação do quadro legal das pensões de invalidez, velhice e morte e do complemento por cônjuge a cargo, criação do subsídio de assistência a terceira pessoa (Decreto-lei nº 29, de 23 de janeiro de 1989) e do complemento social (Decreto-lei nº 329, de 25 de setembro de 1993) que apoia as pessoas idosas do regime não contributivo, nos casos em que a pensão seja inferior ao valor da pensão social mínima fixada.

Reconhecendo-se a necessidade de instituir uma profissão na área da prestação de cuidados, em 1989, pelo Decreto-lei nº 141 de 28 de abril, foram regulamentadas as condições de exercício da profissão de ajudante familiar (CARVALHO, 2005). Na década subsequente, chama a atenção a preocupação de qualificação dos modelos do cuidar e da regulamentação das respostas sociais (CARVALHO, 2010).

Em 1994, o Despacho Conjunto nº 259 do Ministério da Segurança Social e do Trabalho e do Ministério da Saúde de 20 julho cria um Programa de Apoio Integrado a Idosos - PAII introduzindo uma visão diversificada e integrada na prestação de cuidados - saúde e apoio social.

No âmbito do PAII foram promovidos, numa primeira fase, diferentes projetos, tais como os centros de recursos e de reabilitação, com equipes pluridisciplinares e bancos de ajudas técnicas, teleassistência, passes de terceira idade, tratamentos termais e atividades sócio-recreativas, formação de recursos humanos e de cuidadores informais, bem como a qualificação e ampliação do tradicional serviço de apoio domiciliar com alargamento dos horários e dos serviços (RIBEIRO, 1995).

  • c) 3.º Período 1996 a 2006

Nesse período, outras medidas destinadas aos idosos foram igualmente desenvolvidas no âmbito da ação social, como o Programa Idosos em Lar - PILAR (Despacho n.º 6 de 21/1/97), que visava a melhoria de cuidados para a população idosa, aumentando a oferta do número de lugares em lares e criando novas respostas, como o alojamento temporário.

A Lei Orgânica do Ministério da Solidariedade e Segurança Social (Decreto-lei nº 35, de 2 de Maio de 1996) reconfigura o sistema de proteção social público, com a definição dos serviços de administração direta e organismos de segurança social. Posteriormente, em 2000, uma nova lei define as bases gerais de um novo sistema de solidariedade e de segurança social (Decreto-lei nº 17, de 8 de Agosto de 2000, revogado pelo Decreto-lei nº 32, de 20 de Dezembro de 2002 e pelo Decreto-lei nº 4, de 16 de Janeiro de 2007).

De acordo com Capucha et al. (2005, p .205)

[...] as políticas ativas adquiriram um “duplo sentido”, pois visaram capacitar simultaneamente os indivíduos e as instituições, numa relação positiva entre os que prestam e os que recebem, que compatibiliza a responsabilidade social com a efetiva participação, numa nova perspetiva de cidadania. Significa que o Estado assume um papel fundamental na regulação e também na prestação de serviços (transferências financeiras e serviços) assumindo também responsabilidade no processo os agentes públicos e privados, formais e informais (welfare mix).

A partir de 2005 destacam-se algumas medidas políticas para a velhice: O Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais (PARES) e o Programa de Apoio ao Investimento em Equipamentos Sociais (PAIES), alicerces para o desenvolvimento e consolidação de uma rede de equipamentos sociais em Portugal; o Programa de Cooperação para o Desenvolvimento da Qualidade e Segurança das Respostas Sociais dá início a um trabalho de requalificação das respostas sociais, visando atender à qualidade da sua organização e funcionamento; o Programa Conforto Habitacional para Pessoas Idosas (PCHI) que finda em 2013, qualifica as habitações com o objetivo de melhorar as condições básicas de habitabilidade e mobilidade das pessoas idosas que usufruam de serviços de apoio domiciliar, de forma a prevenir e evitar a sua institucionalização e, o Complemento Solidário para Idosos (CSI), que corresponde a um apoio em dinheiro pago mensalmente, destinado aos idosos com baixos recursos econômicos e que visa à manutenção das suas necessidades básicas.

A Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados - RNCCI (Decreto-Lei N.º 101/2006, de 6 de junho) surge no âmbito dos Ministérios do Trabalho e da Solidariedade Social e da Saúde com o objetivo de apoiar a pessoa na sua recuperação ou na manutenção da sua autonomia, assim como a maximizar a sua qualidade de vida. Alicerça-se na garantia do direito da pessoa em situação de dependência: à dignidade, à preservação da identidade, à privacidade, à informação, à não discriminação, à integridade física e moral, ao exercício da cidadania e ao consentimento informado das intervenções efetuadas. Esta Rede é constituída por um conjunto de instituições, públicas ou privadas, que prestam cuidados continuados de saúde e de apoio social a pessoas em situação de dependência, tanto nas suas casas como em instalações próprias.

Portugal não passa imune à crise financeira global 2007-2008. Seus impactos atingem o país de 2010-2014, contexto em que o sistema de segurança social sofreu profundas alterações, sobretudo no que se refere ao modelo mais universalista que lhe estava subjacente.

Em 2012 é publicada a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, consagrando o direito e regulando o acesso dos cidadãos a esses cuidados, assim como definindo a responsabilidade do Estado em relação a esta matéria. Ao mesmo tempo em que origina a Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP). O percurso dos Cuidados Paliativos vem sendo bastante lento, tendo praticamente estagnado com a pandemia, apresentando-se a Rede escassa em face das necessidades da população.

Não obstante a taxa de ocupação das ERPIs apresentar valores próximos dos 100%, e o número de lugares ter vindo a crescer, as respostas continuam tímidas. Não parece solução desejável, nesta conjuntura, expandir indefinidamente esta resposta social em detrimento de outras que possam garantir a manutenção da pessoa idosa no seu domicílio.

Uma alternativa aos internamentos e às ERPIs reside na permanência dos idosos inseridos na comunidade, na sua própria casa, o maior tempo possível, à medida que vai envelhecendo, mesmo que padeça de uma doença funcional ou cognitiva (TIMMERMANN, 2012), nos moldes do Ageing in Place, concepção que pressupõe uma articulação de ações ao nível da vizinhança e do meio envolvente, ao nível urbano, ao nível da estrutura habitacional, assim como o estudo e implementação de novas estratégias de apoio domiciliar. A manutenção do idoso em casa presume, na sua maioria, a existência de um cuidador em tempo integral, não excluindo, contudo, o apoio por parte de um serviço de apoio domiciliar.

Recentemente, e de modo a responder a esta lacuna, é que foi aprovado o Estatuto do Cuidador Informal (Lei n.º 100/2019, de 6 de setembro) que regula os direitos e deveres do cuidador, da pessoa cuidada e estabelece as respetivas medidas de apoio. Em que pese a sua positividade, trata-se de uma legislação que carece de melhorias no que concerne aos apoios a serem dados ao (a) cuidador (a), de modo a preservar a sua saúde e autoestima. Neste sentido, deve a legislação enquadrar uma formação contínua ao cuidador com supervisão técnica e mecanismos de apoio para a prevenção do burnout[2] e preservação da sua constante ligação à comunidade envolvente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A longevidade e o aumento da proporção dos mais velhos na pirâmide populacional é, sem dúvida, uma das grandes conquistas do século XX, contexto em que a redução da mortalidade infantil e das taxas de fecundidade, a partir da segunda metade do século em tela, contribuíram para a democratização desse “viver por mais anos” na maior parte do mundo, embora de forma diferenciada nos diversos países. No Brasil, o fenômeno passa a ser observado em meados desta era, e continua em escalada progressiva.

Ainda que envelhecer não seja sinônimo de adoecimentos, o esforço analítico até aqui apreendido revelou que o fenômeno enseja preocupações, desafios, sobretudo em países que contabilizam grandes desigualdades sociais com raízes históricas, culturais e econômicas, a exemplo do Brasil. Por aqui dificuldades diversas se multiplicam na área da saúde, alimentação, habitação, trabalho, renda, dentre outros. É preciso que não se perca de vista que temos vários envelhecimentos. Trata-se de um processo heterogêneo, multidimensional, com implicações diversas correlacionadas aos contextos político, social, cultural e econômico, em que estes ocorrem, configurados pelo acesso ou pelo inacesso a direitos basilares.

De modo geral, a família tem sido o lócus primeiro desse tipo de cuidado e, no interior desta, as mulheres são as que mais figuram à frente de sua provisão. Em nome do amor, da benevolência, devoção à família, estas ações para elas vão se mesclando às domésticas, sem que se considere suas relevâncias social e econômica. De tão naturalizadas que estão, tornaram-se invisíveis, isentas de qualquer tipo de reconhecimento seja financeiro, social ou político. Sem que se problematize quem lucra, de fato, com tudo isso, os desgastes, renúncias, as desigualdades de gênero aí instauradas penalizam muito mais as mulheres no mundo inteiro.

Ancorada em sacrifícios, explorações e dominações que emolduram tais ações, a tríade patriarcado-racismo-capitalismo se retroalimenta, potencializa e segue se apropriando do tempo e vida feminina de forma gratuita, voluntária. Nunca é demais ressaltar que o trabalho doméstico não pago tem no cuidado informal realizado no domicilio uma de suas âncoras que gera lucro e enriquece os mais ricos. Como afirma Federicci (2021), através dele recuperam-se cérebros e corpos humanos. Sem reconhecimento legal e nem social, mulheres na condição de cuidadoras informais abrem mão de seus projetos de vida e seguem nesta empreitada solitárias e/ou adoecidas.

A experiência portuguesa reafirma os desafios que as alterações demográficas registadas nas últimas décadas trouxeram, e o quanto tem acarretado um conjunto de alterações que colocam em causa o atual modelo de desenvolvimento social e econômico. Preocupação que tem impulsionado os Estados Europeus, incluindo Portugal, a buscar soluções que respondam às necessidades da população idosa, proporcionando-lhe qualidade de vida no seu envelhecimento, a exemplo do reconhecimento de uma profissão na área da prestação de cuidados, especialmente, nos domicílios e com o Estatuto do Cuidador Informal.

Contudo, é preciso considerar os desafios enfrentados na implementação do Estatuto prescrito. As dificuldades encontradas são de variada monta, envolvem desde as questões financeiras até os aspectos relativos aos recursos humanos. Assim, aponta-se com ênfase o caso de Portugal, na perspectiva de demonstrar seus esforços no enfrentamento do envelhecimento populacional. Não se trata de sugerir a reprodução de modelos de intervenção, mas de acompanhar experiências inspiradoras para a edificação de um conjunto de ações próprias, adequadas ao cenário local e/ou nacional.

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Notas

[1] É difícil precisar a origem do patriarcado, uma vez que este resulta de um conjunto diversificado de combinações (econômica, religiosa, política), construídas ao longo do processo histórico da vida social. Pode ser caracterizado como uma das formas de relações de gênero que remete a relações desiguais e hierárquicas, presente em todos os espaços sociais (sociedade civil e no estado). Consiste, segundo Saffioti (2004), num sistema que está para além da dominação, modelado pela ideologia machista, posto que também se constitui num sistema de exploração/opressão dos homens sobre as mulheres. Para a autora a grande contradição da sociedade atual é composta pelo nó patriarcado, racismo e capitalismo.
[2] Palavra inglesa utilizada para se referir a algo que deixou de funcionar por exaustão. Figura como um problema que atinge profissionais de serviço, principalmente os cuidadores.


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