Mesas temáticas coordenadas
Recepción: 14 Febrero 2022
Aprobación: 01 Julio 2022
Resumo: Este artigo, por meio de uma abordagem interdisciplinar, objetiva debater os direitos humanos e o combate às desigualdades de raça, gênero e classe em tempos de barbárie, ressaltando a relação intrínseca entre violação aos direitos humanos, desigualdades, barbárie e manutenção do capitalismo. Discute as gerações-dimensões dos direitos humanos e as políticas públicas para os direitos humanos da população negra desenvolvidas no Brasil (2003-2021). Estuda a relação entre a divisão social do trabalho no capitalismo e as hierarquizações raciais e de gênero presentes no mercado de trabalho brasileiro. Analisa as mobilizações das mulheres sul-africanas pela defesa dos seus direitos e contra o Apartheid. Em seu conjunto, este artigo destaca a importância das análises interseccionais para combater violações aos direitos humanos das mulheres negras.
Palavras-chave: Direitos Humanos, raça, gênero, políticas públicas.
Abstract: This article, through an interdisciplinary approach, aims to debate human rights and the fight against racial, gender and class inequalities in times of barbarism, highlighting the intrinsic relationship between violation of human rights, inequalities, barbarism and the maintenance of capitalism. The generations-dimensions of human rights and public policies for the human rights of the black population developed in Brazil (2003-2021) are discussed. The relationship between the social division of labor in capitalism and the racial and gender hierarchies present in the Brazilian labor market is studied. The mobilizations of South African women in defense of their rights and against Apartheid are analyzed. Taken together, this article highlights the importance of intersectional analyzes to combat violations of the human rights of black women.
Keywords: Human rights, race, genre, public policy.
1 INTRODUÇÃO
Não há como dissociar a luta emancipatória dos direitos humanos no Brasil e na África do Sul sem levar em consideração a complexidade das relações raciais e de suas enormes assimetrias em vários aspectos da vida em sociedade. Constituída por todos os tipos de violências, de exclusões sociais, econômicas e políticas de grande parte da população e pela manutenção dos privilégios dos grupos dominantes, as histórias desses dois países devem ser analisadas sob dois aspectos centrais: a) a constatação das violações contínuas dos direitos humanos e das práticas de racismo e b) os índices altíssimos de desigualdades sociais, raciais e de gênero, gerados pelas estruturas seculares díspares, em sociedades marcadas por históricos patriarcal e racista.
A associação entre a luta por direitos humanos e o combate ao racismo está no radar do movimento social negro brasileiro desde, pelo menos, a fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), que, ainda durante o período da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), recorria a órgãos internacionais para denunciar a violência policial e buscar apoio para condenar o Estado brasileiro por violações aos direitos humanos de negros e negras[1] (SANTOS, 2013).
A Constituição Federal de 1988 e as legislações promulgadas sobre a questão racial no Brasil atestam que a defesa dos direitos humanos da população negra e o combate a todas as formas de discriminação e de violência devem compor os compromissos principais de um Estado Democrático de Direito.
O objetivo deste artigo é analisar a relação entre as discussões sobre direitos humanos e a questão racial, destacando como a violação dos direitos fundamentais da população negra, no Brasil e na África do Sul, foi instituída e legitimada por seus Estados e por suas sociedades ao longo da história e como esse padrão segue sendo reproduzido e normalizado por meio de mecanismos institucionais e estruturais.
Este texto é composto por quatro partes, além desta Introdução e das considerações finais. A primeira parte discute, de maneira breve, as chamadas três gerações-dimensões de direitos humanos que foram conquistadas pela humanidade – ao menos nos acordos e tratados internacionais. Apresenta e estuda também números que mostram as enormes assimetrias raciais existentes no campo educacional. Na segunda parte são levantadas as políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro durante o período 2003-2016, que, apesar de alguns percalços, conseguiram avançar no combate ao racismo e desenvolver ações importantes na área dos direitos humanos, sobretudo no que se relaciona à elaboração de leis, planos, projetos e programas que procuraram tratar desses temas. Essa seção também debate os ataques que as políticas públicas voltadas à população negra e aos direitos humanos estão sofrendo desde 2016. Na terceira parte, analisam-se as hierarquizações sexual e racial e o legado de desigualdades no Brasil, com foco nas assimetrias presentes no mercado de trabalho. Por fim, na quarta parte, perscruta a história de luta das mulheres negras sul-africanas por direitos fundamentais.
2 OS DIREITOS HUMANOS, O COMBATE AO RACISMO E AS ASSIMETRIAS RACIAIS NO CAMPO EDUCACIONAL BRASILEIRO
Pesquisadoras(es) da área consideram os direitos sociais como parte dos direitos humanos da chamada segunda geração temporal (BENEVIDES, 2000; BOTO, 2005). Seguindo essa divisão geracional, os direitos humanos seriam agrupados da seguinte maneira: 1ª geração ou dimensão – séculos XVIII e XIX: direitos civis e políticos; 2ª geração ou dimensão – século XX: direitos econômicos e culturais; 3ª geração ou dimensão – segunda metade do século XX e início do XXI: direitos coletivos da humanidade, como o direito à paz, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos povos, ao patrimônio científico, tecnológico e cultural da humanidade, ao meio ambiente ecologicamente preservado, ao respeito de sua identidade na diversidade.
De acordo com Boto (2005), o direito à democracia faria parte de uma possível 4ª geração-dimensão de direitos humanos, que a humanidade ainda luta para ratificar e alicerçar como direito fundamental em tratados internacionais. Essa linha de raciocício pondera que as instituições educacionais (escolas e universidades) são espaços valiosos para a formação do cidadão participante, crítico, responsável e comprometido com a mudança das práticas e condições da sociedade que violam ou negam os direitos humanos e para o desenvolvimento e consolidação de personalidades autônomas, intelectual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de julgar, escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos (BENEVIDES, 2000). Em outras palavras, para a formação de seres históricos, defensores e construtores de sociedades democráticas, ativas, plenas e justas.
Uma série de textos legais nacionais são referências para os direitos humanos e o combate ao racismo no Brasil, por exemplo, no que se relaciona ao primeiro item, o Programa Nacional de Direitos Humanos (BRASIL; SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2010) e o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (BRASIL; COMITÊ NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS, 2007); quanto ao segundo item, o Estatuto da Igualdade Racial (BRASIL, 2010) e a Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003), que obriga os currículos escolares brasileiros a inserirem a História e a Cultura Africana, entre outros. Vale ressaltar que todas essas legislações têm como base a Constituição Federal de 1988, que referencia os direitos humanos e o combate ao racismo em muitos artigos[2].
Nosso país também é signatário de tratados internacionais que se coadunam a esses temas, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), a Declaração e Programa de Ação de Viena – II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (ONU, 1993) e a Declaração de Durban e Plano de Ação - III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (ONU, 2001).
O racismo está presente, segundo Almeida (2019), em três âmbitos: 1) nas ações individuais, 2) nas diversas instituições que compõem o Estado e 3) na estrutura política e econômica. No caso das políticas públicas educacionais, o Estado brasileiro, por meio de seus poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – e dos sujeitos que as gestam dentro de cada um deles, podem colaborar para a reversão das assimetrias raciais historicamente estruturadas no país, podem simplesmente se eximir em relação à adoção de ações que transformem o quadro de exclusão da população negra ou, ainda mais grave, podem desenvolver medidas que aprofundem tais assimetrias, contribuindo para a manutenção e a expansão dos privilégios para poucos e, consequentemente, para a exclusão da maioria da população.
A desigualdade racial no atendimento educacional pode ser verificada, por exemplo, nos números de pessoas de 18 a 24 anos de idade que frequentavam uma instituição educacional. Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019 (PNAD Contínua – IBGE, 2019), no recorte cor ou raça, 37,9% das pessoas brancas nessa faixa etária estudavam (educação formal), sendo 29,7% no ensino superior, ao passo que a taxa de escolarização das pessoas de cor preta ou parda era de 28,8%, com apenas 16,1% cursando uma graduação. De forma adicional, 6,0% dos jovens brancos nessa faixa etária já tinham um diploma de graduação, enquanto entre os pretos e pardos esse índice era de somente 2,8%.
A média de anos de estudo das pessoas negras de 25 anos ou mais de idade, em 2019, era de 8,6, enquanto a da população branca era de 10,4 anos; entre as pessoas de cor branca, de 25 anos ou mais de idade, 57,0% tinham concluído o ensino médio, enquanto essa proporção era de 41,8% entre a população negra (pretos ou pardos). Entre as pessoas de 15 anos ou mais de idade, a taxa de analfabetismo dos pretos e pardos era 5,3 pontos percentuais maior que a dos brancos: respectivamente, 8,9% e 3,6% (PNAD Contínua – IBGE, 2019).
As diferentes assimetrias (de raça e de gênero, por exemplo) se sobrepõem – o campo teórico convencionou chamar esse fenômeno de interseccionalidade – e são combatidas por meio de ações antirracistas e emancipatórias que mirem as relações de poder constituídas desde o tempo da colonização, que se metamorfoseiam no contexto do capitalismo e das injustiças globais, e pela desconstrução de práticas conservadoras e autoritárias.
3 O COMBATE AO RACISMO E ÀS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS: políticas públicas indissociáveis
Durante o período 2003-2016, o governo federal brasileiro atuou no enfrentamento da desigualdade racial, ao questionar e atacar a lógica da igualdade abstrata, em especial por se tratarem de direitos efetivos de sujeitos marginalizados historicamente, ainda que algumas ações pudessem ter sido mais incisivas, como pontua Egrare (2004).
As políticas públicas educacionais voltadas à população negra e à inclusão das Histórias e Culturas Africanas e Afro-Brasileiras nos currículos escolares brasileiros ganharam força a partir da aprovação da Lei nº 10.639/2003 e das legislações correlatas, que se tornaram um marco no debate sobre a temática étnico-racial no Brasil. Tais políticas impulsionaram a problematização do eurocentrismo nas práticas curriculares e o desenvolvimento de ações educativas de combate ao racismo e às discriminações. Dentre as ações mais importantes, podemos citar: a inauguração da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (SECADI-MEC); a instituição do primeiro Estatuto da Igualdade Racial do país (Lei nº 12.288/2010); e a aprovação de ações afirmativas, na modalidade cotas, para ingresso de estudantes negros e negras no ensino superior brasileiro (CARVALHO; ABREU, 2020)[3].
Foram muitos os avanços também no campo dos direitos humanos: a criação do Comitê de Educação em Direitos Humanos (2003); o Plano Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (2004); o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2005); a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (2006); o Decreto nº 6.230/2007, que estabeleceu o Compromisso pela Redução da Violência Contra Crianças e instituiu o Comitê Gestor de Políticas de Enfrentamento à Violência contra Criança e Adolescente; o já citado Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2007); a Resolução CD/FNDE nº 15/2009, que estabeleceu orientações e diretrizes para a produção de materiais didáticos e paradidáticos voltados para a promoção, no contexto escolar, da educação em direitos humanos; a criação do Programa Minha Casa, Minha Vida (2009); o Decreto nº 6.861/2009, que dispôs sobre a Educação Escolar Indígena, definindo sua organização em territórios etnoeducacionais; o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3/2010); o Plano Brasil Sem Miséria (2011); a Lei nº 7.611/2011, que instituiu o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver sem Limite; o Plano Estratégico de Educação no âmbito do Sistema Prisional (2011); a instituição da Comissão Nacional da Verdade (2012), para apuração das violações aos direitos humanos e do terrorismo de Estado realizados durante o período 1964-1985; o Código Florestal (2012); a Lei de Acesso à Informação (2012); o Programa Mais Médicos (2013), que incentivava médicos brasileiros e estrangeiros a trabalhar no interior do país e em áreas carentes das periferias das grandes cidades.
Após o impeachment de Dilma Rousseff (2016), o contexto mudou consideravelmente. Muitas das importantes ações inauguradas nas áreas dos direitos humanos ou do combate ao racismo foram desmanteladas, menosprezadas ou mesmo canceladas. Michel Temer (2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019-em andamento) não mostraram qualquer comprometimento em continuar com as políticas públicas inclusivas desenvolvidas por seus antecessores, ao contrário, trataram-nas com descaso, desatinos e desmontes. A SECADI-MEC foi extinta, ministérios importantes para o desenvolvimento de ações educativas que visam combater o racismo, como o MEC e o Ministério dos Direitos Humanos (renomeado por Bolsonaro como Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), foram ocupados por gestores ou gestoras que não fizeram ou fazem questão de englobar os direitos humanos ou o combate ao racismo nas políticas públicas federais.
A falta de comprometimento com os direitos humanos pode ser verificada nos investimentos que deixaram de ser feitos no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado pela pastora evangélica Damares Alves. Em 2020, apesar de a ministra ter comemorado nas redes sociais que sua gestão havia empenhado 98% do orçamento daquele ano de pandemia, o total realmente gasto, de acordo com informações constantes no Portal da Transparência do Governo Federal, foi de apenas 53%, ou seja, pouco mais da metade do valor empenhado. Quando detalhamos esses gastos, verificamos que nenhum centavo foi gasto com o combate ao trabalho escravo, com políticas para o público LGBTQIA+ ou para a população em situação de rua; no caso de políticas para a igualdade racial, 80,4% do valor empenhado não foi gasto; quanto aos direitos das mulheres, o valor foi ainda menor: 97,3%. Em 2021, a falta de investimento continuou. De acordo com levantamento realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), a Casa da Mulher Brasileira, uma das principais políticas públicas na área, sofreu forte impacto em suas verbas: dos recursos autorizados para esse ano (R$ 25,5 milhões), foram gastos apenas R$ 672 mil, ou seja, 2,6% da verba autorizada! Não há, até o momento, qualquer política específica e relevante direcionada às populações negra ou indígena.
Durante a realização da reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em fevereiro de 2020, que contou inclusive com a presença de Damares Alves, os relatores da ONU apontaram uma série de denúncias efetivadas por organizações da sociedade civil brasileira – indígenas, ambientalistas, ativistas etc. – e relataram descasos do governo brasileiro na área dos direitos humanos, como a falta de empenho no combate à fome, com destaque para o desmantelamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, as queimadas na Amazônia, os ataques, invasões e destruição de territórios indígenas, a falta de recursos financeiros alocados para políticas de direitos humanos e de um órgão de monitoramento independente, entre outros. Somente em 2019, foram 35 denúncias contra o Estado brasileiro na ONU em relação a violações na área dos direitos humanos ocorridas nesse primeiro ano de governo Bolsonaro.
Para o MEC, Bolsonaro indicou gestores que não possuem competência ou mesmo compromisso para chefiar políticas educacionais de boa qualidade social voltadas aos grupos mais vulneráveis da sociedade. Quanto à área “educação para as relações raciais”, nenhuma medida inclusiva foi desenvolvida. Na atual gestão, Milton Ribeiro nomeou Sandra Ramos, ligada ao movimento “Escola sem Partido”, para coordenadora geral de materiais didáticos. Uma das principais decisões tomadas por ela foi o veto ao tema da diversidade no Plano Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Ultraconservadores e militares sem qualquer relação ou experiência com a educação nacional também foram nomeados para cargos de importância. Vale lembrar que o pastor-ministro Ribeiro já defendeu teses como “o uso de violência de forma pedagógica” e ”os benefícios da dor na educação das crianças”[4] e atuou para criar uma comissão de análise ideológica das questões do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), iniciativa que perdeu fôlego após críticas e repercussões negativas por parte da mídia e da sociedade[5].
Outro exemplo de descaso nas políticas públicas que deveriam ser endereçadas à população negra foi a nomeação de Sérgio Camargo para presidir a Fundação Cultural Palmares (FCP). As demarcações de territórios negros caíram significativamente na gestão de Jair Bolsonaro, sobretudo após a nomeação de Camargo. No período anterior a 2019, a FCP emitiu por ano, em média, 180 certificações, mas, em 2020, com Camargo o ano todo à frente da Fundação, foram expedidas somente 29 certificações – em 2021, até o período em que finalizávamos este artigo, foram emitidas apenas seis documentações.
Camargo também esteve metido em muitas polêmicas: 1) em 2020, ordenou a retirada de 29 pessoas da lista de personalidades negras da entidade, dentre elas, Martinho da Vila, Conceição Evaristo, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Alaíde Costa – o disparate só foi revertido após o Senado Federal derrubar a portaria em que constava a exclusão dos nomes dessas personalidades e 2) ainda em 2020, Camargo teve alguns de seus áudios vazados, nos quais chamava o movimento negro de “escória maldita” e professava discriminações contra uma mulher negra liderança de uma religião de matriz africana. Em vez de garantir direitos para a população negra e zelar pelo respeito das contribuições dessa população para a sociedade brasileira, Camargo tirou da Palmares a força e a sua própria razão de existência. Todos esses absurdos levaram a Coalizão Negra por Direitos a apresentar uma denúncia à ONU contra Camargo, em julho de 2021, por violações de direitos humanos.
No Ministério da Justiça, o ex-ministro Sérgio Moro defendeu a aprovação de uma lei que garantisse excludente de ilicitude para as forças policiais ou de repressão, de acordo com o que continua argumentando o próprio presidente da República e outros ocupantes em cargos da sua administração. Tal defesa pode ser considerada um enorme ato contra os direitos humanos ou de insensibilidade frente aos altíssimos números de violência ou mesmo de homicídios contra negras e negros desse país, em boa parte, realizados pelas próprias forças de repressão.
Ricardo Salles e Teresa Cristina, respectivamente, ministros do Meio Ambiente e da Agricultura, desferiram sérios golpes aos direitos humanos dos indígenas e à destruição da Floresta Amazônica e de outros biomas. Essa aliança macabra conseguiu aprovar uma série recorde de agrotóxicos extremamente nocivos, quase todos proibidos no exterior. Madeireiros, garimpeiros e ruralistas conseguiram “passar a boiada” no tocante à devastação, queimadas e poluição ambiental, em parceria com quem estava à frente dessas pastas ministeriais. O agro-tóxico-pop-negócio dessa vez se superou: conseguiu a proeza de fazer o gestor do Meio Ambiente realizar o serviço sujo para seus intentos. E ainda manteve certa áurea moderna junto a setores econômicos e midiáticos. O Brasil está entregue a quem destrói mais rápido e em grandes proporções.
Com todo esse descalabro, a Lei nº 10.639/2003 e suas correlatas, que objetivam combater o racismo e construir uma educação antirracista, ficam na dependência da aplicação por parte dos municípios e estados, posto que o governo federal não possui qualquer boa vontade ou reserva recursos financeiros e humanos para cumprir o que está na legislação. Os diversos dispositivos legais que procuram assegurar a defesa dos direitos humanos seguem deixados em segundo plano, pois quem está à frente da gestão federal tem como narrativa e prática a defesa de violações a uma série desses direitos.
3 CAPITALISMO DA DESUMANIZAÇÃO: as hierarquizações sexual e racial e o legado de desigual
No modo de produção capitalista é possível observar certas invariâncias no que se refere à inserção retardada – e sequer plenamente realizada – de determinados grupos populacionais nas relações de produção que são características da sociedade capitalista. Sobre isso, Saffioti (2013, p. 58) afirma que “fatores de ordem natural, tais como sexo e etnia, operam como válvulas de escape no sentido de um aliviamento simulado de tensões sociais geradas pelo modo capitalista de produção”, o que reforça a apreensão de existir um mecanismo de utilização dessas dimensões pelo capitalismo para sua manutenção necessariamente desigual.
O fato de a estrutura da sociedade capitalista ser amplamente limitativa dos potenciais humanos, faz com que seja imprescindível uma reprodução contínua e renovada de crenças em restrições de certos grupos populacionais, que aparentem ser de ordem natural, camuflando a essência da realidade de nossa sociedade: a liberdade formal se consolida e se torna possível através da conformação de privilégios ou desvantagens para os diferentes indivíduos na luta pela existência (SAFFIOTI, 2013).
O modo capitalista caracteriza-se fundamentalmente pela mercantilização. De acordo com Almeida (2019, p. 92), “[...] Sem liberdade individual, igualdade formal e propriedade não poderia haver contratos, mercado e, portanto, capitalismo”. Sendo assim, sua existência depende de uma relação social livre e igualitária entre os indivíduos, pelo menos no sentido formal do “perante a lei”. Por esse motivo, o Estado precisa necessariamente aparecer (aparência) como ente imparcial e impessoal, de modo que não comprometa o imaginário do “todos iguais perante a lei”. Dentro de tudo isso, os antagonismos, as contradições e os conflitos que marcam esta forma societal são absorvidos pelas instituições que, se não alcançam controle suficiente pela via da ideologia, o fazem por meio da violência. A ideologia da meritocracia tem grande utilidade dentro desse aparato, pois fornece sentido necessário para a manutenção do status quo, ao tempo que naturaliza a desigualdade, especialmente a racial, por meio do discurso do sucesso pessoal (ALMEIDA, 2019).
É importante expor que a divisão social do trabalho é parte da essência do modo de produção capitalista. De acordo com a lei geral da acumulação capitalista, no capitalismo existe uma contradição essencial, antagônica e irreconciliável: a produção cada vez mais coletiva (e social) – o que representa o aumento da divisão social do trabalho e das forças produtivas, bem como a complexificação dessa produção – ao mesmo tempo em que a apropriação é cada vez mais privada (concentração e centralização). Isso significa que toda reprodução capitalista é em si concentração de valor, e pode-se arguir que também é ampliação de desigualdades sociais (MARX, 2013).
A ampliação da mercantilização e a divisão social do trabalho aumentam também a necessidade de reproduzirmos nossa vida por meio de mercadorias, conduzindo a uma maior fetichização. Foge ao trabalhador o controle do seu próprio trabalho; o processo de produção é controlado pelo capitalista, decorrendo contradição entre sujeito e objeto. O processo de mercantilização, dada a ampliação da divisão social do trabalho, oculta essas relações sociais e históricas. Isso ocorre porque o modo de produção capitalista, por sua natureza, está sempre em busca de expansão, isto é, de ampliação da acumulação.
O imperialismo, assim como foi o colonialismo, se baseia na busca de explorar para fora de suas “fronteiras” novos mercados consumidores, bem como matérias-primas e força de trabalho de baixo valor, isto é, mão de obra barata para, assim, conseguir extrair a maior taxa de mais-valia possível de todo o processo de produção. E esse é o motivo da relação intrínseca entre a necessidade de ampliação do capital e os mecanismos necessários para legitimar culturalmente a atribuição de diferentes valores (salários) à diversidade de forças de trabalho disponíveis no mercado.
Acrescentam-se aqui informações sobre elementos que incidem na determinação do valor da força de trabalho e influenciam na desvalorização da mão de obra de certos grupos sociais, sendo determinantes para as diferenças de salários e de condições de vida da classe trabalhadora, principalmente em sociedades racistas, patriarcais e da periferia do capital. Isto porque a determinação da quantidade dos meios de subsistência para a reprodução da própria vida do trabalhador, que é o que determina o valor/preço do seu salário, é, segundo Marx (2013, p. 317), culturalmente definida pela história e costumes do país: “[...] Diferentemente das outras mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém um elemento histórico e moral”.
Desse modo, se o valor da força de trabalho é determinado pelo valor dos meios de subsistência necessários para a reprodução da vida do trabalhador e a quantidade desses meios de subsistência é socialmente determinada, dependendo da época, do território, da cultura/tradição, do gênero, da qualificação, da construção histórica das sociedades, então isso vai calhar, por conseguinte, em uma divisão e hierarquização racializada, binário-generificada, entre outras dimensões da divisão social do trabalho no capitalismo.
Quando mulheres, principalmente na Europa, e pessoas negras e indígenas nas Colônias foram marginalizadas do contrato social que está implícito no salário – o que faz com que na prática essas pessoas tenham o valor de sua força de trabalho determinado abaixo do valor da força de trabalho do homem branco –, ocasionando uma decorrente naturalização de sua exploração, não quer dizer que essas pessoas não tenham desenvolvido, desde os primórdios da acumulação primitiva, uma atividade produtiva e reprodutiva sem as quais não teria sido possível a acumulação de capital (FEDERCI, 2017).
Existe uma parte do trabalho feminino que não é contabilizada, por não ser sequer reconhecida como trabalho na sociedade capitalista, o trabalho doméstico gratuito de cuidado. Quando Marx reflete sobre aquilo que é necessário para a reprodução da mercadoria força de trabalho, que inclusive é razão determinante para a formação do seu preço, ele discute apenas o conjunto de mercadorias necessárias à reprodução do trabalhador. Entretanto, a porção de trabalho que é realizado em casa, no âmbito da reprodução da vida privada da classe trabalhadora, não entra na conta do capital, apesar de determinante para sua reprodução e acumulação.
Esse trabalho doméstico e de cuidado gratuito invisibilizado é de extrema importância para a reprodução do capitalismo, que se beneficia diretamente disso, conforme discussões encontradas nas obras de Silvia Federici (2017; 2019). De forma semelhante, mas com suas distinções, as intelectuais da teoria da reprodução social, por exemplo, também fazem a abordagem dessa questão. Sem esse trabalho reprodutivo gratuito na sociedade capitalista, os valores das forças de trabalho teriam de ser necessariamente muito maiores, e a mais-valia seria reduzida, logo, a acumulação capitalista também.
A principal determinação material que incide na perspectiva de cada indivíduo frente ao modo capitalista de produção presente na sociedade em que vivemos, portanto, é a divisão social do trabalho, com todas as dimensões que a compõem – raça, classe, gênero, território. A abolição da escravização da população negra no Brasil, por exemplo, deu-se em uma sociedade em que a possibilidade de acesso aos meios de produção para essa população era inexistente e as condições concretas de formação do valor e do preço da força de trabalho negra não são as mesmas da formação do valor e do preço da força de trabalho branca.
Tudo isso enquanto tais grupos tentam sobreviver em uma sociedade com forte apelo ao ser humano universal – base da reprodução ideológica do capitalismo. O ser humano universal mostrado como padrão para os demais, que parece que não tem raça e gênero, na verdade é homem, branco, heterossexual e europeu (devido à colonização).
Escravização dos corpos negros e liberalismo sempre conviveram na sociedade capitalista, desde cujos primórdios a população africana foi escravizada com a finalidade de viabilizar a produção de mercadorias, embora não tivesse sua própria força de trabalho mercantilizada. A justificativa ideológica daquela escravização – [...] raça inferior – é a mesma que permite hoje o rebaixamento relativo do valor da força de trabalho negra e indígena e seu cerceamento a apenas determinadas tarefas na divisão social do trabalho. Para além desta diferenciação no valor da força de trabalho, incide ainda o maior desemprego de mulheres e negros/as, que rebaixa seus salários ainda abaixo daquele valor, configurando a superexploração de sua força de trabalho [...] (GOUVEIA; MASTROPAOLO, 2019, p. 13-14).
Para Federici (2017, p. 357), o que a história da sociedade capitalista confirma é que existia um intercâmbio entre a ideologia racista e a ideologia da bruxaria (patriarcalismo), pois os nativos colonizados da América e os escravizados da África tiveram destino semelhante ao das mulheres na Europa no sentido de fornecer ao capital “a aparentemente inesgotável provisão de trabalho necessário para a acumulação”. Isso reforça a análise que já foi inferida aqui, de que o capitalismo é o beneficiário e indutor dessas desvantagens que pesam sobre alguns grupos sociais. Sobre o que Federici (2019, p. 26) complementa, “[...] o capitalismo precisa de trabalho reprodutivo não remunerado a fim de conter o custo da força de trabalho”.
Essas ideologias – do racismo e do patriarcado – consolidaram, desde o processo de acumulação primitiva, hierarquias de poder que, atualmente, perpetuam-se e energizam-se a cada rodada de acumulação originária. No entanto, agora sem a necessidade de se apoiar em acusações de bruxaria e sem precisar negar às pessoas negras a qualidade de “filhos de Deus” (FEDERICI, 2019; GOUVEA; MASTROPAOLO, 2019).
Considerando todo esse sistema de desigualdades raciais e de gênero fundamentado na base material “trabalho” da estrutura capitalista de produção e reprodução, o legado que resta a esses grupos sociais ainda hoje é de muita exclusão/marginalização, exploração e violação dos seus direitos humanos.
Podemos analisar alguns dados para confirmar nossas constatações: em relação às assimetrias salariais, segundo o IBGE (2019), as mulheres receberam apenas 78,7% do valor dos rendimentos dos homens. Ainda de acordo com a mesma pesquisa, a discriminação por raça/cor ocupa lugar de destaque nos debates, isso porque abarca aspectos pertinentes às características do processo de formação brasileiro, que originou significativas segmentações ao longo da história do país. Por conseguinte, existem maiores taxas de vulnerabilidade socioeconômica no contingente populacional representado por pessoas negras.
A média do rendimento mensal da população branca ocupada foi de R$ 2.796, enquanto a da população negra foi de R$ 1.608. Isto quer dizer que as pessoas pretas ou pardas receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca, ou seja, pouco mais da metade. Essa diferença obedece a um padrão que se reproduz ano a ano. Por meio do recorte de rendimento de acordo com a categoria, segundo o tipo de ocupação, foi possível constatar que, tanto na ocupação formal, como na informal, as pessoas negras receberam menos do que as brancas (IBGE, 2019).
A pesquisa destaca ainda a vantagem dos homens brancos sobre os demais grupos populacionais, sendo que a maior diferença de renda constatada é na comparação com as mulheres negras, que recebem menos da metade do salário dos homens brancos, 44,4%. Os números demonstram que, após o privilégio garantido aos homens brancos, as mulheres brancas aparecem com rendimentos maiores não só aos das mulheres negras, como também aos dos homens negros. Observa-se também que tanto na população negra, quanto na população branca, os homens ganham mais do que as mulheres – 26,4% e 31,9%, respectivamente. O que equivale a dois formatos de discriminação salarial: uma por sexo e outra por raça/cor.
Além disso, segundo o relatório Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade da Pesquisa OXFAM (2020), as mulheres são responsáveis por mais de 75% do trabalho de cuidado não remunerado realizado no mundo. Somando 12,5 milhões de horas de trabalho de cuidado não pago todos os dias. O valor monetário global do trabalho de cuidado não remunerado prestado por mulheres e meninas a partir de 15 anos de idade é de pelo menos US$ 10,8 trilhões, o que equivale a mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo.
Ainda segundo o relatório supracitado, as mulheres representam 2/3 da força de trabalho envolvida em ramos de atividades remuneradas do cuidado. O relatório informa também que, em 2019, os bilionários do mundo, que somavam 2.153 indivíduos, detinham mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas (=60% da população mundial). E os 22 homens mais ricos do mundo detêm mais riqueza do que todas as mulheres que vivem na África. Nestes dados, ficam evidenciadas as desigualdades de gênero, raça e classe presentes na sociedade em que vivemos.
Durante a crise global desencadeada pela pandemia do COVID-19, as mulheres empregadas no setor do trabalho doméstico ocupam um lugar crucial dentro da resposta pelo papel central que desempenham no cuidado de crianças, pessoas doentes e dependentes, bem como na manutenção de lares, incluindo também a prevenção do contágio do vírus. Entretanto, apesar da enorme contribuição que seu trabalho significa na vida de muitas pessoas, também são um dos principais grupos afetados pela crise. Isso se deve, entre outros motivos, pela situação de precarização laboral que apresenta o setor, caracterizada pelos baixos salários e pela falta de apoios sociais que garantam a sobrevivência e o sustento de suas famílias diante de situações como demissões ou redução salarial (ONU MULHERES; OIT; CEPAL; 2020, p. 1).
Com todos esses últimos dados, o que resta nítido é que a pandemia da Covid-19 tornou mais evidente as perversas desigualdades sociais existentes nas sociedades capitalistas, e que a mesma não atingiu a todos e todas da mesma maneira. No Brasil, assim como ocorre nos Estados Unidos, a população negra tem sido a mais vitimada pela pandemia da Covid-19. Os primeiros dados apresentados pelo Ministério da Saúde, em 10 de abril de 2020, já apontavam um impacto da pandemia sobre a população negra:
Em duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morrem por Covid-19 no Brasil quintuplicou. De 11 a 26 de abril, mortes de pacientes negros confirmadas pelo Governo Federal foram de pouco mais de 180 para mais de 930. Além disso, a quantidade de brasileiros negros hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada por coronavírus aumentou para 5,5 vezes. Já o aumento de mortes de pacientes brancos foi bem menor: nas mesmas duas semanas, o número chegou a pouco mais que o triplo. E o número de brasileiros brancos hospitalizados aumentou em proporção parecida (BRASIL, 2020, s/p).
A OIT considera os/as trabalhadores/as domésticos a categoria mais exposta ao risco de contaminação pela Covid-19. Isso porque trabalham em contato direto com os/as empregadores/as e seus familiares, desempenhando várias atividades, como lavar talheres, roupas e cômodos, cozinhar, passar, cuidar de crianças e de idosos, dirigir, limpar piscina etc., funções que levam a uma maior exposição e, em sua maioria, dependem de transporte coletivo para mobilidade[6].
Não é coincidência que o vírus tenha entrado no Brasil por meio das populações de mais alta renda, com recursos ou condições de empregabilidade suficientes para viajarem ao exterior, e, ao mesmo tempo, que as primeiras mortes tenham sido de trabalhadores que ocupam posições precárias, pouco reconhecidas e valorizadas e que prestam serviços relacionados aos cuidados às camadas mais abastadas. De fato, o trabalho doméstico e de cuidados pressupõe a existência de uma significativa desigualdade de renda entre quem oferece a vaga de emprego e quem a ocupa, pois a remuneração do trabalhador não é paga pelo lucro de um empreendimento, mas pela renda pessoal de uma outra pessoa física. E é nessa desigualdade que se assenta boa parte das vulnerabilidades do trabalho doméstico e de cuidados no Brasil (mas também no resto do mundo), agravadas nas condições da pandemia da Covid-19 (IPEA, 2020, p. 7).
É possível aferir o quão difícil tem sido a sobrevivência dos grupos mais vulnerabilizados na sociedade brasileira, dentre os quais cabe destaque a situação das pessoas negras. Durante o contexto de pandemia especificamente, por uma análise interseccional, sobressai-se a dificuldade que as mulheres negras têm enfrentado. Historicamente essas pessoas têm estado mais expostas a situações precárias de condições de vida em nosso país, o que se agravou no contexto da pandemia de Covid-19. Os direitos humanos dessas pessoas precisam ser garantidos!
4 ÁFRICA DO SUL: uma história por direitos fundamentais
A África do Sul é um palco de lutas históricas por direitos e igualdades civis e políticas. Uma lógica antiapartheid, antirracista e por equidade de gênero/racial/social marcou as várias mobilizações sociais no país, empreendidas especialmente a partir da década de 1950. Mobilizações pela liberação nacional eclodiram fortemente no campo e nas cidades, encampadas por mulheres de vários grupos sociais e origens étnico-raciais distintas, que se envolveram em greves, passeatas e reivindicações públicas durante o contexto de repressão e segregação no país.
Nesse processo, em que as mulheres tiveram sempre um papel atuante e destacável, as mobilizações eram embaladas tanto por preocupações de ordem material e imediatas, como salários, condições de trabalho e de moradia, acesso à educação, direito à greve, como por inspirações filosóficas e políticas mais profundas em torno do bem comum e da capacidade de superar o racismo, as desigualdades de gênero e classe, e o direito à democracia e à participação em negociações coletivas.
No campo, as mulheres foram mais atuantes a partir do final da década de 1980, sedimentando lutas mais específicas de reivindicação por terra, construção de identidades coletivas, afirmação positiva de sua condição de ser no mundo e demandas de erradicação da pobreza. Algumas organizaram-se em associações e movimentos de mulheres ocupados com a questão da democracia, da justiça e dos direitos humanos, especialmente no tocante à equidade de gênero. Nesse contexto emergiram movimentos importantes como o National Movement of Rural Women (NMRW) e o Rural Women’s Movement (RWM) de KwaZulu-Natal, que além de noticiarem situações de exclusão e violência de mulheres no campo, continuam atuantes em projetos de formação e desenvolvimento econômico-produtivo de mulheres rurais.
Nas décadas de 1970 e 1980 houve levantes generalizados contra o Apartheid por toda a África do Sul, muitos dos quais organizados contra a política de remoção de comunidades negras das terras em que habitavam. Para reprimir as mobilizações, a reação do governo considerou novamente a expulsão maciça da população negra para os bantustões. Cresciam os protestos e a violência, ao lado das pressões para que o governo iniciasse negociações com o African National Congress – ANC, que advogava os direitos da população negra, sendo Nelson Mandela um dos seus principais líderes (JONGE, 1991). Nesse período, as contradições do Apartheid foram se tornando crescentemente óbvias, dificultando a estabilidade política do regime.
Nos anos 1980 emergiram novas formas de organização de mulheres pelo país a fim de participarem do processo de abertura política, garantindo suas demandas específicas, como as de trabalho, saúde e moradia. Movimentos significativos foram se consolidando com a incorporação e atuação direta de mulheres, como é o caso da United Women’s Organization (UWO), no Cabo, a Natal Organization of Women (NOW) e a Federation of Transvaal Women (FEDTRAW). As duas últimas organizações tornaram-se afiliadas da United Democratic Front (UDF). Essas inciativas também conectaram o ativismo de mulheres populares às políticas nacionais e reforçaram o poder das organizações de base comunitária. A UDF já havia criado um congresso de mulheres e o COSATU também se ocupou em realizar uma conferência de mulheres em 1988 (WAYLEN, 2004).
Muitos movimentos de mulheres combateram o racismo, do histórico movimento do Black Sash à aliança multirracial Women Against Repression (WAR) que, em 1989, entrou em oposição aberta ao presidente Frederik de Klerk. É fundamental distinguir essas ações daquelas representadas pelas mulheres em armas do ANC e do Pan-African Congress (PAC), as quais tiveram precedentes no seio da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) na época da luta contra os portugueses no país vizinho (MAZRUI, 2010).
Do final da década de 1980 ao início dos anos 1990, as questões das mulheres (no plural) tornaram-se pauta no Black Sash, grupo de protesto composto por mulheres brancas em contato com mulheres de outras categorias raciais, que dava assistência a comunidades ameaçadas de remoção e seria o movimento fundador do Transvaal Rural Action Committee (TRAC). Em contato com outros grupos sociais do país, o TRAC decidiu apoiar lutas mais amplas que se desencadeavam em todo o país. Em 1985, organizações similares de outras regiões se juntaram ao TRAC para formar o National Land Committee.
O Black Sash incorporou jovens inclinadas às preocupações das mulheres (MEINTJES, 1996), atuou na redação da “Carta das Mulheres”, que contestava as leis vigentes no país, entendidas como cerceamento à cidadania feminina. Em conexão com os trabalhadores rurais do TRAC, a organização se tornou uma força motriz na assistência e criação do atual NMRW[7], dada a atuação importante de Lydia Kompe, que, depois da democratização, assumiria uma cadeira no parlamento. Como um movimento importante para dar voz aos problemas e necessidades das mulheres negras nas zonas rurais, o NMRW convocou a uma revisão das leis e práticas costumeiras e advogou especialmente pelo direito das mulheres à herança e à propriedade da terra (MEINTJES, 1996).
A Malibongwe Conference[8], realizada em Amsterdã (1990), colocou juntas mulheres ativistas e exiladas com mulheres de outros países para debaterem sobre a “questão da mulher” no futuro da África do Sul e partiu da consciência de que a liberação nacional não garantiria automaticamente a emancipação das mulheres. Os problemas das mulheres nas áreas rurais, assim como no local de trabalho (como condições estruturais e dupla jornada de trabalho) foram evidenciados na conferência. O patriarcado combinado à opressão racial e à exploração de classe era visto como a principal causa dos problemas. Assim, entendia-se que as mulheres precisavam se organizar em sindicatos, em movimentos civis para lutar pela emancipação (MEINTJES, 1996).
A esta altura, as apropriações dos discursos feministas e de gênero que circulavam mundialmente começavam, cada vez mais, a fazerem parte do cotidiano das lutas dessas mulheres. Como aponta Waylen (2004), o termo feminismo foi significativamente usado nas discussões e na documentação produto daquela conferência e as mulheres estavam se organizando de maneira mais explícita em torno das questões de gênero e essas aspirações já estavam presentes entre elas antes dos anos 1990. Já em 1987, um pequeno grupo de mulheres feministas dentro do ANC compeliu o movimento a reconhecer o fato da opressão de gênero e a necessidade de seu debate no processo de transição.
Entre 1990 e 1991, as mulheres se sentiam marginalizadas nas discussões entre o ANC e o governo e temiam que os problemas específicos enfrentados pelas sul-africanas fossem negligenciados. Para fazer ecoar suas vozes, decidiram trabalhar através da African National Congress Women’s League (ANCWL) e com a ANC’s Emancipation Commission, convocando, em setembro de 1991, organizações de mulheres para uma grande coalizão. O ANCWL queria que a Constituição refletisse o compromisso com a equidade de gênero. (MEINTJES, 1996).
De fato, o limiar dos anos 1990 viu uma série de negociações entre o governo da situação e os opositores ao regime. Como destaca Waylen (2004), depois da libertação de Mandela, a iniciativa e o poder dentro da oposição estavam com o ANC, na sua futura encarnação como um partido político. Organizações da sociedade civil tiveram de decidir quais estratégias e metas deveriam adotar nessa nova conjuntura. Em geral, as associações de mulheres mantiveram suas redes de oposição, sustentadas em novas bases. Nesse ínterim, novos tipos de associação focados nas políticas e pesquisas de gênero começaram a emergir, contribuindo para o processo de “ONGzação” de muitas organizações de mulheres, um efeito que continuaria após as primeiras eleições não raciais. Foi assim que algumas eleitoras já mobilizadas, como as mulheres rurais e sindicalizadas, desenvolveram suas próprias exigências para a nova democracia que se desenhava.
A Interim Constitution of the Republic of South Africa (1993), ao lado da Charter of Fundamental Rights assinalou um importante momento da transição sul-africana para a democracia, demarcando que as mulheres estavam aptas a demandarem seus direitos como cidadãs iguais em uma “sociedade não racial e não sexista”. A inclusão da categoria mulheres no preâmbulo da Carta e na própria Constituição era o resultado dos desafios colocados por organizações de mulheres no processo de negociação constitucional iniciado há mais ou menos dois anos antes (MEINTJES, 1996).
Diretamente inclusa no processo de negociação, a Women’s National Coalition (WNC) protestou contra o primeiro desenho da Constituição Provisória por não incluir em seu texto o princípio de não sexismo em favor das mulheres. Além disso, a grande negociação se deu em torno das leis costumeiras e sobre se deveriam estar sujeitas ou não à cláusula constitucional da igualdade de gênero (WAYLEN, 2004).
A maioria dos líderes tradicionais defendeu a exclusão do princípio de igualdade nas leis costumeiras, possivelmente como meio de perpetuar as formas de herança, propriedade e casamento que mantinham seu poder hereditário. A WNC e o NMRW pressionaram e argumentaram que a não inclusão daquele princípio nas leis costumeiras (direito consuetudinário) serviria para reforçar ainda mais a exclusão da maioria dos sujeitos oprimidos e marginalizados, ou seja, as mulheres negras rurais. Na tentativa de conciliação, foram criadas duas novas instituições: o Council of Traditional Leaders e a Commission for Gender Equality (CGE). Esta ficaria incumbida de promover a igualdade de gênero e fazer recomendações ao parlamento sobre qualquer situação que ferisse o estatuto da mulher (WAYLEN, 2004).
Apesar dos avanços, o direito da mulher à terra não está firmemente sustentado pela legislação. O Restitution of Land Rights Act (1994) não reconhece seus direitos, na medida em que não valida a relação que mulheres ou seus familiares teriam com a terra antes de 1913. O Communal Land Rights Act (2004) foi instituído a fim de reafirmar a igualdade de gênero, mas tem sido questionado por dar maiores poderes ao ministro local e um poder de decisão prática aos líderes tradicionais quando se trata de conceder/alocar terras para mulheres.
Em razão disso, mulheres rurais engajadas em movimentos sociais argumentam que aquela lei não terá como seus direitos à terra. Sizani Ngubane, ativista fundadora do Rural Women’s Movement em KwaZulu-Natal[9], afirmava que, apesar da inserção de gênero no debate, o governo democrático não conseguiu arcar com seus compromissos para com a Beijing Platform for Action e a Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women (CEDAW). Assim, mulheres rurais continuaram confrontando-se com diferentes níveis de dificuldades, como a resistência por parte da maioria dos líderes comunitários em tratar das questões de gênero; a falta de acesso a diversos recursos, como a terra e a água; e o pouco poder nas decisões políticas tomadas em suas comunidades.
5 ANTES DO PONTO FINAL...
As sociedades brasileira e sul-africana devem encarar as desigualdades raciais e de gênero elencadas e garantir os direitos humanos fundamentais para suas cidadãs e cidadãos que ainda são excluídos em muitas políticas públicas. Para tanto, a promoção da igualdade racial e de gênero deve ser objetivo de todos os órgãos governamentais. Ações de Estado devem ser confeccionadas para enfrentar os racismos individuais, institucionais e estruturais e construir novas bases sobre a questão racial.
Nações democráticas têm como premissa básica promover o bem-estar de todos(as) os(as) cidadãos(ãs) sem distinção e não se eximir da responsabilidade de combater as assimetrias históricas que atravessam e estruturam suas sociedades. O desenvolvimento de políticas públicas frágeis, sem a estrutura adequada e desprovidas de recursos financeiros e humanos acabam por prejudicar a população mais pobre, em sua maioria, negra – moradora de periferias urbanas, áreas rurais e quilombos.
Não obstante os avanços das políticas públicas e a aprovação de legislações mais garantidoras de direitos para a população negra desenvolvidas pelo Estado brasileiro no período 2003-2016, permaneceram enormes desafios: investir os recursos financeiros necessários para a aplicabilidade do combate ao racismo, como em ações que garantissem o cumprimento da Lei nº 10.639, do Estatuto da Igualdade Racial, do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, entre outros; acelerar o reconhecimento e a titulação dos territórios quilombolas; extirpar o extermínio da população negra jovem e pobre realizada principalmente pelas forças de repressão de Estado; combater as assimetrias raciais na área educacional, na divisão da renda, entre outros.
Nos governos Temer e Bolsonaro os desafios se tornaram ainda maiores, sobretudo na atual gestão federal. É nítido e vergonhoso o desmonte das políticas públicas voltadas aos direitos humanos e à população negra. Os ministros responsáveis pelas áreas sociais jogam contra os interesses e direitos que deveriam assegurar. Por exemplo, a ministra da pasta relacionada aos direitos humanos joga contra tais direitos, o presidente da Fundação Cultural Palmares parece “combater o combate ao racismo”.
Convém salientar, mais uma vez, que o racismo estrutural e o patriarcalismo são responsáveis por diversos obstáculos que dificultam a inserção da população negra às políticas públicas robustas e aos direitos humanos fundamentais no Brasil e na África do Sul. O passivo histórico de desigualdades raciais, que atinge sobretudo as mulheres negras, continua cobrando a sua conta, e só será eliminado com políticas públicas afirmativas e contundentes que revertam tais assimetrias. Caso contrário, a roda econômica continuará girando sem sair do lugar.
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Notas