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ESTADO DE INSEGURANÇA ALIMENTAR E O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA
FOOD INSECURITY STATE AND THE HUMAN RIGHT TO ADEQUATE FOOD
ESTADO DE INSEGURANÇA ALIMENTAR E O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 396-413, 2022
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 11 Noviembre 2021
Aprobación: 30 Enero 2022
Resumo: O estudo trata sobre o direito à alimentação no contexto das dimensões sociais da sustentabilidade. Analisa a fome e a insegurança alimentar como déficits do Estado de Justiça. Expõe algumas posições teóricas sobre a produção e o consumo de alimentos transgênicos e orgânicos. Discute as diversas dimensões do tema a partir das categorias sustentabilidade e sociedade de risco. Aborda, em seguida, nesse contexto, a alimentação adequada na Reserva Extrativista Marinha de Cururupu. Por fim, discute os reflexos da comoditização do alimento na política de segurança alimentar como resultado do avanço do processo de acumulação capitalista e da construção de políticas ultraliberais, com recorte para a crise de insegurança alimentar vivenciada nos últimos anos, que se aprofundou com a pandemia da Covid-19.
Palavras-chave: Direito à alimentação, insegurança alimentar, sustentabilidade.
Abstract: This is a study about the right to food in the context of social aspects of sustainability. Hunger and food insecurity are analyzed as deficits of the Rule of Justice. Some theoretical positions on the production and consumption of transgenic and organic foods are presented. The various dimensions of the theme are discussed from the sustainability and risk society categories. Then, in this context, adequate food in the Cururupu Marine Extractive Reserve is discussed. Finally, the commoditization of food reflexes in the Food Security Policy is discussed, as a result of the advance of the capitalist accumulation process and the construction of ultraliberal policies, with a focus on the on the food insecurity crisis experienced in recent years, that deepened with Covid-19 pandemic.
Keywords: Right to food, food insecurity, sustainability.
1 INTRODUÇÃO
“Alguns verão e julgarão com a alma
Outros verão e julgarão com a alma que eles não têm
Ouvirão apenas dizer...”
Vinicius de Moraes, Acontecimento
No presente estudo, pretendemos expor e analisar a alimentação saudável como direito fundamental, inclusive porque, no que tange ao direito positivo, esse se encontra assegurado no artigo 6º da Constituição Federal de 1988. Ademais, e não menos importante, cabe lembrar, ainda, a norma prevista no artigo 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
No Brasil, o referido Pacto Internacional foi promulgado pelo Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992. Não poderia mesmo ser diferente, haja vista que o direito à alimentação adequada é um dos mais importantes pilares da existência humana e, por conseguinte, dos direitos fundamentais. Assim, é um dever ético não permitir que, em pleno século XXI, as pessoas passem fome ou se encontrem em situação de insegurança alimentar.
Ora, se a verdade, sob o aspecto ético, […], é o único caminho capaz de conduzir à felicidade sem desvios ou enganos, ela se liga necessariamente à justiça e ao amor, pois sem estes é impossível construir uma vida plenamente feliz, no plano individual ou social.
[…]
A grande função social do amor consiste, na verdade, em atuar como fator de permanente aperfeiçoamento da justiça. É o impulso constante no sentido de não acomodação com as formas de justiças existentes; a procura de uma ampliação ilimitada do princípio de dar a todos e a cada um o que a consciência ética sente como devido. (COMPARATO, 2006, p. 521-534).
Com efeito, neste artigo, analisaremos os pressupostos teóricos do direito à alimentação saudável, tendo como parâmetros as múltiplas dimensões da sustentabilidade.
Este estudo trará à tona as contradições que nascem a partir da concentração de poderes em mãos de poucos, isso, porque os direitos fundamentais, inclusive os sociais, reclamam a sua garantia para todos em todos os lugares[1].
Rechaçar, nas estruturas mundiais ou locais, a excessiva concentração de poderes e de riquezas remonta a alguns pensadores da própria Antiguidade. Nesse sentido, são as palavras de Cícero ([2008], p. 67): “Quando as riquezas ou o nascimento, ou qualquer coisa parecida, fazem predominar na República alguns homens [esses] não passam de facciosos.”
Lançando os pilares da Modernidade, Montesquieu, na primeira metade do século XVIII, já ressaltava:
Se eu soubesse de algo que fosse útil para mim, mas prejudicial à minha família, eu o rejeitaria. Se eu soubesse de algo útil à minha família, mas não à minha pátria, procuraria esquecê-lo. Se eu soubesse de algo útil à minha pátria, mas prejudicial à Europa, ou então útil à Europa, mas prejudicial ao gênero humano, consideraria como um crime. (COMPARATO, 2006, p. 580-581).
Relembrando a mitologia grega, Platão (1987), no livro, O Banquete, traz à tona o conflito entre a abundância e a riqueza, Poros, e a pobreza extrema, representada por Penia. No mundo real, tudo isso produz, quanto ao tema aqui estudado, a fome e a insegurança alimentar para muitas famílias e para muitas vidas.
Warat (1995, p. 102) lembra que “[...] a semiologia política deve associar à retórica oficial do discurso uma outra retórica: a retórica do corpo. Através dessa retórica tentar-se-á demonstrar como os discursos não somente persuadem, mas também procuram se apoderar do corpo.” A fome, onde quer que se encontre, aprisiona corpos.
Que fique claro, contudo. Defendemos para todos o direito a uma alimentação saudável dentro dos parâmetros de um Estado de Bem-Estar Ecológico.
Portanto, para estudarmos, ainda que brevemente, essas questões, teremos como referências a concepção de sociedade de risco analisada por Beck (1992, 2006), bem como o paradigma da sustentabilidade defendido na forma proposta por Freitas (2012).
Em se tratando da sociedade de risco, para logo, destacamos: “En la modernidad avanzada, la producción social de riqueza va acompañada sistemáticamente por la producción social del riesgo.” (BECK, 2006, p. 29).
Então, indagamos:
a) Quando nos alimentamos, temos preocupações com a dimensão social da sustentabilidade?
b) Discutimos a fome e a insegurança alimentar como déficits do Estado de Justiça[2]?
c) Temos informações suficientes sobre alimentos orgânicos e transgênicos?
d) A título exemplificativo, a cultura alimentar na Reserva Extrativista Marinha de Cururupu contempla o que é preconizado pela Alimentação Adequada?
São essas as questões que, em suma, pretendemos enfrentar.
Principiemos.
2 A FOME E A INSEGURANÇA ALIMENTAR: a negação da vida
De acordo com o já citado artigo 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e à luz do artigo 6º da Constituição da República Federativa do Brasil, o direito à alimentação adequada e, por conseguinte, o direito fundamental à segurança alimentar são, claramente, exigências do princípio da dignidade humana.
Ocorre, contudo, que entre as teses renascentistas do ser humano perfeito, descritas por Della Mirandola (2006), e as contradições concretas do mundo contemporâneo e das sociedades pós-modernas, as marcas inaceitáveis da fome e da insegurança alimentar não foram ultrapassadas no mundo. Antes, pelo contrário, agravaram-se neste período da pandemia Covid-19.
A última edição do relatório O Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional no Mundo, […] estima que quase 690 milhões de pessoas passaram fome em 2019 – um aumento de 10 milhões em relação a 2018 e de aproximadamente 60 milhões em cinco anos. Altos custos e baixo poder aquisitivo também significam que bilhões não podem comer de maneira saudável ou nutritiva. As pessoas passando fome são mais numerosas na Ásia, mas esse número aumenta mais rapidamente na África. Em todo o planeta, prevê o relatório, a pandemia de Covid-19 pode levar mais de 130 milhões de pessoas à fome crônica até o final de 2020. Surtos de fome aguda no contexto da pandemia podem ver esse número aumentar ainda mais em momentos como este. (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2020, não paginado).
Perturbadoramente, em 2020 a fome disparou em termos absolutos e proporcionais, ultrapassando o crescimento populacional: estima-se que cerca de 9,9% de todas as pessoas tenham sido afetadas no ano passado, ante 8,4% em 2019.
Mais da metade de todas as pessoas enfrentando a fome (418 milhões) vive na Ásia; mais de um terço (282 milhões) na África; e uma proporção menor (60 milhões) na América Latina e no Caribe. Mas o aumento mais acentuado da fome foi na África, onde a prevalência estimada – em 21% da população – é mais do que o dobro de qualquer outra região.
Também em outras medições, o ano de 2020 foi sombrio. No geral, mais de 2,3 bilhões de pessoas (ou 30% da população global) não [tiveram] acesso à alimentação adequada durante todo o ano: esse indicador – conhecido como prevalência de insegurança alimentar moderada ou grave – saltou em um ano tanto quanto nos cinco anos anteriores combinados. A desigualdade de gênero se aprofundou: para cada 10 homens com insegurança alimentar, havia 11 mulheres com insegurança alimentar em 2020 (comparados a 10,6 em 2019).
A má nutrição persistiu em todas as suas formas, com as crianças pagando um preço alto: em 2020, estima-se que mais de 149 milhões de crianças menores de 5 anos sofriam de desnutrição crônica, ou eram muito baixas para sua idade; mais de 45 milhões tinham desnutrição aguda, ou eram muito magras para sua altura [...][3]. (FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA, 2021, não paginado).
Eis a negação absoluta da potência da vida, expressão colhida da obra de Nietzsche (2000).
Não pretendemos, aqui, analisar os elementos constitutivos do Estado de Bem-Estar Ecológico[4], mas ressaltar, de um lado, que há, em seus primeiros esforços de conceituação, a tendência de, resguardando as suas dimensões sociais, incluir aspectos concernentes ao equilíbrio ecológico e, de outro lado, suscitar que, tal qual o conceito do welfare state, o labor reformista encontrará as amplas e profundas contradições das formas de vida humana desenvolvidas desde a Modernidade.
Entretanto, as discussões sobre o Estado de Bem-Estar Ecológico abrem amplos e fecundos espaços para reiterar que o ser humano não é a outra parte da natureza, mas é um ser vivo, dotado de dignidade, que está dentro da natureza e, como dizia Gullar (2010, p. 91), “dentro é tudo que há.” Ademais, esses debates podem demonstrar a insuficiência quase mitológica do contrato político moderno[5] que deixou de lado e acreditou ter ultrapassado o estado de natureza.
Nesse contexto, não se trata somente, e que já não seria pouco, de ultrapassar a fome e a insegurança alimentar, mas de propiciar nutrição a todos os seres, de acordo com os parâmetros da sustentabilidade (socialmente justo, culturalmente diverso, politicamente ético, ecologicamente equilibrado, economicamente viável)[6].
Entre Poros (a abundância e a riqueza,) e Penia (a pobreza extrema), mais uma vez, emerge a urgência da solidariedade, não como distribuições de favores ou esmolas, mas como princípio jurídico-político (artigo 3º, I da Constituição Federal) que determina a redução das desigualdades regionais e sociais (artigo 3º, III da Constituição Federal (CF)/88) e, por conseguinte, contrapõe-se à concentração de riquezas.
3 ALIMENTOS TRANSGÊNICOS: sirva-se ou pense melhor?
“É o comer que faz a fome.”
Eça de Queirós
A alimentação humana é, certamente, uma necessidade biológica. Mas, não só isso. É, também, um rito social e, portanto, cultural. Há, nela, mais e mais, vícios e um grau exacerbado de pragmatismo que têm levado à banalização do ato de nos alimentarmos.
Sentarmos à mesa, diga-se, literalmente, de passagem por qualquer mesa, ou mesmo de pé, pedir mecanicamente uma refeição, mastigar e, mais recentemente, escorregar os dedos nas telas dos aparelhos eletrônicos para devorar notícias breves têm sido, nos tempos de hoje, um estranho receituário que compõe o ritual da alimentação humana, especialmente, nos centros urbanos, que já nem precisam ser grandes metrópoles.
Não houve, nesse campo, ao que parece, uma possibilidade de combinação entre o local e o regional, ao jeito pensado por Santos e Avritzer (2005)[7]. Pelo contrário, em cidades de médio porte ou nas capitais brasileiras, expandiram-se imensamente os fast foods.
As conversas à mesa, as arquiteturas das casas, os temperos regionais, os cheiros das cozinhas foram ficando para trás e aplacando as memórias afetivas referentes ao hábito de nos alimentarmos. A consequência mais do que esperada foi a indiferença diante de tudo que está posto à mesa. Padecemos de considerável grau de normopatia.
Em outras palavras, encontram-se aqui, no nível dos membros de toda uma sociedade, as três características da normopatia: indiferença para com o mundo distal e colaboração do ‘mal tanto por omissão quanto por ação’; suspensão da faculdade de pensar e substituição pelos estereótipos economicistas [...]; abolição da faculdade de julgar e da vontade de agir coletivamente contra a injustiça. (DEJOURS, 2006, p. 117).
Por conseguinte, com quais indiferenças convivemos quando nos alimentamos? Certamente, com muitas, mas chamamos atenção, aqui, de duas, quais sejam: a falta de preocupação com a origem dos alimentos; a indiferença com as questões socioambientais.
Cabe ouvirmos as explicações da médica Israel (2015, p. 27-33) que apresenta instigantes informações sobre os riscos do que mecanicamente consumimos:
Quando você se depara com uma fruta muito colorida, muito grande, muito perfeita, corra. [...] Pesticidas alteram o funcionamento glandular, comprometendo o sistema autoimune e pequenas quantidades podem ser inocentes se temos caminho para limpá-las. Caso contrário, elas se instalam lentamente no nosso corpo. Análises em peixes e pássaros indicaram altos níveis de pesticidas DDT.
O aumento populacional, no início do século XX, o caminho para as cidades[8], a urbanização acelerada e a corrida industrial, sempre sedenta de novos e maiores mercados, criaram os contornos daquela, que na década de 1950/1960, foi chamada de Revolução Verde.
As atividades agrícolas estão em constante processo de inovação para obter maior produtividade. Nesse contexto, durante a década de 1950, ocorreu de forma mais intensa o processo de modernização da agricultura que envolveu um grande aparato tecnológico provido de variedades de plantas modificadas geneticamente em laboratório, espécies agrícolas que foram desenvolvidas para alcançar alta produtividade, uma série de procedimentos técnicos com uso de defensivos agrícolas e de maquinários.
Todo esse processo ficou conhecido na década de 1960 como Revolução Verde [...]
O aumento da produtividade agrícola foi expressivo, porém, a Revolução Verde não eliminou o problema da fome, pois os produtos plantados nos países em desenvolvimento (Brasil, México, Índia, entre outros), basicamente cereais, eram exportados em grande parte para países ricos industrializados como os Estados Unidos, Canadá e União Europeia. (FRANCISCO, 2016, não paginado).
Eis, em breve análise, alguns pontos concernentes à Revolução Verde:
Principais pontos positivos:
Grande aumento da produtividade de alimentos; Aumento da produtividade agrícola em países não industrializados; Desenvolvimento agrícola; Expansão da fronteira agrícola; Desenvolvimento tecnológico.
Principais pontos negativos: O aumento das despesas com o cultivo e o endividamento dos agricultores; O crescimento da dependência entre os países; Esgotamento do solo; Círculo vicioso de fertilizantes; Perda de biodiversidade; Erosão do solo; Poluição do solo causada pelo uso de fertilizantes; Redução da mão de obra rural. (FRANCISCO, 2016, não paginado).
Quando falamos de alimentos transgênicos, portanto, dois pontos devem, para logo, ser enfatizados: transparência e democracia, de modo a proporcionar ao cidadão, que não possui conhecimento técnico-científico sobre o tema, dados que o levem a conhecer melhor a qualidade, os riscos e vantagens daquilo que ele consome à mesa. A questão, portanto, como lembra Bourdieu (2001)[9], é pôr em xeque as informações e dados apresentados e rediscuti-los com mais cautela e serenidade. Ocorre, contudo, que, não obstante vivermos na era da notícia veiculada rapidamente, ainda padecemos de uma espécie de “monopólio” da informação sobre alimentos transgênicos que ainda não são discutidos de modo mais popular e democrático. Os princípios ambientais da prevenção e precaução[10] exigem, assim, o alargamento dos debates, para que, não apenas os produtores agrícolas, as empresas e os pesquisadores da área disponham de informações mais sólidas sobre esses alimentos.
Por outro lado, a ética suscita a seguinte questão: não nos alimentamos apenas daquilo que necessitamos. A alimentação humana, no Ocidente, tem inúmeros excessos e desperdícios que, convivem, lado a lado, com a fome.
Quando se trata da enorme discussão entre alimentos orgânicos e transgênicos, como dito acima, torna-se mais evidente não apenas a dualidade do tema, mas também a dualidade entre os argumentos do saber técnico e aqueles do dito saber popular. Nesse caso, pode-se ficar diante daquilo que Juarez Freitas chama, no campo da proteção ecológica, das falácias[11]. Assim, ressaltem-se as falácias da autoridade e da desqualificação pessoal, ou seja:
Uma das falácias mais lamentáveis e de incidência reiterada é a do argumento que tenta convencer, desqualificando o adversário, mediante o ataque injusto de ordem pessoal para impedir que a audiência perceba a debilidade das próprias razões. [...]. Precisamente em função disso, uma das razões para se defender a imparcialidade como princípio associado à sustentabilidade radica em impedir que as preferências ou as hostilidades subjetivas determinem as decisões. Na defesa do novo paradigma, convém afastar as desqualificações pessoais, ainda que se deva fazer a decisão exata, o mais isenta possível, dos malefícios pessoais trazidos pela insaciabilidade patológica. [...]
Outra falácia deletéria é a do argumento de autoridade [...], segundo o qual, com base no conhecimento, na trajetória ou na titulação, pretende-se fugir do peso da prova. Claro que não se invalida a força argumentativa da autoridade legítima e dotada de credibilidade (como por exemplo, no caso de perito ou de jurista de notória especialização e de altos predicados morais). Ou seja, pode ser argumento sadio, sob certas condições. Torna-se falacioso quando assume o lugar do dever de fundamentação suficiente. (FREITAS, 2012, p. 144-146).
O homo academicus, como lembra Bourdieu (2001), “gosta do acabado”[12], mas a ciência, contraditoriamente, vive e se oxigena com suas próprias dúvidas e incertezas.
Segundo Popper (1975, p. 56), “O jogo da ciência é, em princípio, interminável. Quem decide um dia que os enunciados científicos não mais exigem provas, e que podem ser vistos como definitivamente verificados, retira-se do jogo”.
Que fique claro, contudo: a palavra e os argumentos técnico-científicos são importantes e, bem por isso, não podem ser descartados do debate democrático sobre alimentos orgânicos e transgênicos. O que refutamos, entretanto, é que os muitos sujeitos envolvidos nesse processo, que vai desde a produção até o consumo, sejam silenciados ou que tenham pouco espaço para a difusão de seus argumentos.
De modo mais realístico, entendemos que muitos são os entraves para a boa escolha dos alimentos. Esses obstáculos perpassam por questões de mercado, de possibilidade financeira de cada família, além de hábitos ou vícios da alimentação, cultural e historicamente adquiridos.
O individualismo, o excesso e o desperdício compõem uma arriscada tríade que favorece o aumento, cada vez maior, da produção de alimentos a uma velocidade que não permite maiores reflexões bioéticas e socioambientais sobre a produção dos transgênicos. A discussão, portanto, parece ficar com os produtores, pesquisadores e técnicos, porém, as consequências são socializadas, para o bem e para o mal, entre os muitos seres que formam a vasta biodiversidade.
4 ALIMENTOS ORGÂNICOS: revisitando um velho (des)conhecido
“E quanto a mim, acho certo que num lar se mantenha aceso o fogo para o que der e vier. Uma casa de família é aquela que, além de nela se manter o fogo sagrado do amor bem aceso, mantenham-se as panelas no fogo.”
Clarice Lispector, Comer, comer
A agricultura está na origem da fixação do homem a terra. Dominados o conhecimento e o manejo do solo, a longa e quase solitária peregrinação humana pelas florestas foi gradativamente interrompida.
Assim, como visto acima, da Revolução Neolítica aos dias de hoje, os alimentos também percorreram um longo caminho que, contraditoriamente, tornou-os mais abundantes, eficientes; algumas vezes, saudáveis, outras, arriscados[13].
Quanto ao processo de produção e consumo de alimentos orgânicos, cabe ressaltar alguns de seus entraves e perspectivas.
O produto orgânico pode ser uma alternativa de mercado confiável?
Rogério Dias – Vivemos hoje num mundo em que cada vez mais tudo se concentra, inclusive na produção de alimento; o que, para mim, é causa de uma preocupação muito grande. Isso vai desde quem produz os insumos até as grandes empresas transnacionais. Quando tudo começa a ficar grande, o pequeno agricultor é descartado no processo. Para mim, o pequeno produtor pode se viabilizar quando se reúne, trabalha em conjunto e agrega valores a seu produto. Daí passa a ter um grande diferencial. Quando o consumidor compra um produto de uma grande marca multinacional, vai atrás de quem é confiável. Mas aí perdem-se outras qualidades, como as culturais, as sensoriais, porque teremos um produto padronizado. Esse é um ponto muito importante do movimento orgânico, que é fundamentalmente de pequenos produtores. Acho que temos que aprender a valorizar isso; não ficar apenas nos produtos que todos já conhecem, mas incentivar e explorar as potencialidades locais, especificidades que só o pequeno produtor pode oferecer. Esse é um ponto estratégico.
Qual é a perspectiva dos orgânicos em termos de mercado?
A agricultura orgânica hoje pode até ter um pequeno volume de produção, pelas dificuldades que enfrenta se comparada às facilidades do plantio convencional, como uso de fertilizantes e outros insumos químicos. Vivemos numa sociedade preparada para valorizar essas qualidades. Por outro lado, as pessoas ainda acham que os orgânicos são caros. Só que essa comparação não considera outros parâmetros [...]. É preciso que o consumidor entenda que, a princípio, tudo é alimento, mas dependendo de como ele foi produzido, há características, valores, qualidades que muitas vezes não são visíveis a olho nu.
A preocupação com o bem-estar coletivo é algo inerente aos orgânicos ou uma consciência que está para vir?
Temos ainda, infelizmente, mesmo em países mais avançados, a necessidade de dar um salto, de ver nos orgânicos [...] para um bem-estar de todos. Porque, se a gente tem medo de se contaminar com resíduos, coitado do agricultor convencional que tem de lidar com o veneno todo dia. É um salto de consciência dizer: ‘Quero comprar orgânico porque quero que o produtor não precise mexer com veneno para eu ter o que comer’, esse movimento ainda estar por vir, essa preocupação coletiva, planetária. Por ora, muito da procura por orgânico é fruto da preocupação pessoal. Mas é um processo que chega gradativamente. (SGANZERLA; MARTINS; SINGH, 2013, p. 43-45).
Há um imenso caminho, permeado por questões de mercado e mesmo culturais, a percorrer quando se trata da melhor e mais saudável qualidade dos alimentos que consumimos. Entretanto, é indispensável prosseguir o debate. Acima de tudo, é necessário lembrar que a alimentação, que deveria ser um ato plural ou pelo menos uma preocupação coletiva, foi, também, relegada ao campo das chamadas “tiranias da intimidade”[14], onde o que vale é a minha satisfação e os meus interesses.
5 A ALIMENTAÇÃO ADEQUADA NA RESERVA EXTRATIVISTA DE CURURUPU
A Reserva Extrativista (RESEX) de Cururupu, situada no litoral ocidental maranhense, possui uma extensão de 185.046 hectares, e é composta pelas comunidades: Caçacueira, Peru, São Lucas, Guajerutiua, Lençóis, Valha-me-Deus, Porto do Meio, Porto Alegre, Mangunça, Bate-Vento, Iguará, Retiro e Mirinzal. As pesquisas contemplaram as cinco primeiras.
Realizou-se pesquisa no período de 2015 a 2018. Entre os procedimentos metodológicos utilizados estão as entrevistas e observações in loco.
O litoral onde está situada a RESEX é composto de estuários, ilhas, baías, restingas, dunas, manguezais, sendo que esse último é o ecossistema predominante na RESEX. Os manguezais são ecossistemas situados em locais de clima tropical e subtropical, onde há contato da água do mar com a água do rio ou na linha de costa. São berçários naturais para inúmeras espécies de aves, peixes, crustáceos, moluscos e mamíferos marinhos. Conforme destacado por Mello e Mochel ([200-]), sua função ecológica é ligada à produtividade primária, constituindo-se o berçário de muitas espécies que vivem na região oceânica adjacente e nas águas estuarinas. É nesse ambiente, ecologicamente rico, que trabalham os pescadores artesanais.
Esse ambiente natural, rico em peixes, crustáceos e mariscos (dentre outros) dá suporte à pesca, cuja atividade é a principal fonte de renda das famílias, constituídas por gerações de pescadores. Os pescados representam os principais alimentos para as famílias da localidade.
Como as comunidades tradicionais conhecem o ambiente natural onde vivem e dele tiram, predominantemente, seu sustento, é natural que na RESEX haja um consumo muito grande de peixes, crustáceos e mariscos. É comum encontrar os frutos do mar em todas as refeições, inclusive no café da manhã, o qual pode ser acompanhado de peixe assado.
Os peixes são os principais alimentos nos almoços e jantares. Podem ser preparados das mais diversas formas: cozido, frito, assado, escalado e assado na folha de bananeira. Podem ser acompanhados de arroz ou farinha d’água.
Entre os crustáceos, os camarões se destacam, e podem ser comercializados frescos (in natura) ou secos (submetidos à fervura e, depois, colocados ao Sol).
Uma dieta à base de peixes é muito salutar, no entanto, ela não pode se restringir apenas a esse componente. Sabe-se a importância das frutas, legumes, grãos, outras fontes de proteínas para o organismo, o que não foi observado de maneira mais consistente.
Pelos imperativos ambientais, o cultivo é limitado, pois o solo é arenoso, o que limita uma produção de origem agrícola. Há, nos quintais, o cultivo de hortaliças, com destaque para a salsa e o coentro. Esses vegetais são usados no preparo de peixes, por exemplo, e não para a comercialização. Outra atividade desenvolvida em menor proporção é a criação de animais de pequeno porte.
Apesar de a região ser rica em pescados, de acordo com a maioria dos entrevistados, o que fica no local e que é consumido pelas famílias é de qualidade inferior ao que é vendido. Isso decorre, em muito, do sistema ao qual os pescadores são submetidos.
Observou-se, durante as pesquisas, a carência de um sistema, de um aparato institucional por parte do município não só para registrar sua produção pesqueira, como também para tributar o pescado destinado a outros municípios e estados. A pesca ainda não aparece com destaque nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quando da composição do Produto Interno Bruto (PIB), conforme é destacado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (2016, p. 59):
Apesar da expressiva produção pesqueira identificada nos dados ora citados, convém observar que o PIB do município, disponível no site do IBGE e apresentado neste Plano de Manejo para 2012 indica que 26% do produto interno bruto referem-se às riquezas geradas a partir da agropecuária, contudo não consideram a contribuição pesqueira na formação das riquezas do município. O entendimento deste fato caracteriza-se uma inferência, não obstante, pode-se supor que uma eventual ausência de série histórica corrobore para o não dimensionamento da real contribuição da atividade pesqueira no PIB municipal.
Infere-se que o próprio município desconhece sua real produção oriunda da pesca e, consequentemente, recursos que poderiam ser utilizados para melhorar a sua situação socioeconômica não o são.
Apesar de o Maranhão se destacar no contexto da produção de pescados em nível nacional e o município de Cururupu ocupar uma posição especial no Estado, observam-se muitas situações de desamparo aos pescadores artesanais. Entre as situações observadas, está a alimentação.
A Organização das Nações Unidas (ONU) incluiu o tema Alimentação Adequada (AA) na pauta de discussões a partir de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, conforme destaque no:
Artigo 25°
1.Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, não paginado ).
A partir dos anos 80 e 90 do século XX, ocorreram intensas discussões, internacionais e no Brasil, sobre AA e Segurança Alimentar. Esse último termo evoluiu para Segurança Alimentar e Nutricional. Leão (2013) destaca alguns eventos importantes nesse percurso, a saber: Conferência Internacional de Nutrição, realizada em Roma, em 1992, pela FAO e pela Organização Mundial da Saúde (OMS); Cúpula Mundial da Alimentação, organizada pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e realizada em Roma, em 1996; Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993 (que reafirmou a indivisibilidade dos direitos humanos), II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), realizada em Olinda-PE, em março de 2004.
No início da década de 1990 consolida-se um forte movimento em direção à reafirmação do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), conforme previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. No Brasil, desde 2010, esse direito está assegurado entre os direitos sociais da Constituição Federal, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 64, de 2010: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (NR)” (BRASIL, 2010, não paginado).
Atualmente, o Brasil adota o seguinte conceito de SAN:
A Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (Artigo 3º). (BRASIL, 2006, não paginado).
Fazendo uma contraposição com o que tem sido observado na RESEX, não há uma diversidade de alimentos. Os pescadores têm acesso ao recurso natural, mas há uma limitação quanto aos recursos financeiros e, gradativamente, novos hábitos alimentares já são percebidos. Observa-se, nos comércios, a existência de uma quantidade significativa de produtos industrializados.
A cultura alimentar na RESEX de Cururupu reflete muito bem a riqueza do ambiente no qual se situa. Contudo, essa não pode se limitar apenas às fontes de alimentos locais. Uma possibilidade para se chegar à variação proposta pelas autoridades que tratam das questões alimentares e nutricionais é a parceria com os produtores de alimentos da porção continental de Cururupu. Assim como a produção da RESEX abastece várias sedes municipais (Cururupu, Serrano do Maranhão e Apicum-Açu, entre outros), a produção agropecuária municipal também deve contemplar, de forma mais intensa, a população da RESEX.
Nesse sentido, tornam-se necessárias ações, no campo das políticas públicas, e organizações que envolvam os diversos sujeitos ligados à pesca, a fim de apresentar alternativas às técnicas danosas ao ciclo reprodutivo das espécies e que a comercialização da produção pesqueira também possa se reverter em maiores benefícios para os pescadores locais e suas famílias.
Importa ampliar o entendimento de que uma alimentação adequada é um direito, inseparável dos demais direitos sociais. Direitos esses que devem ser entendidos de forma irrestrita, buscando, assim, a justiça social e econômica, incluindo respeito às particularidades culturais e ecológicas do lugar.
6 POLÍTICA DE (IN)SEGURANÇA ALIMENTAR E PANDEMIA
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de uma maneira sintética, enquanto uma estratégia do Fome Zero, é um mecanismo de resposta do Estado às dificuldades da agricultura familiar, apoiando os agricultores familiares por meio da compra de alimentos de sua produção para redistribuição a famílias de baixa renda. Admite-se como uma das ações de resposta ao resultado da comodificação do alimento e entrada do capital financeiro na agricultura por meio do agronegócio.
Seja como for, em sendo resposta ou não, constituía-se como uma estratégia de fomento ao Direito Humano à Alimentação Adequada, assim compreendido como um direito fundamental, inerente à dignidade da pessoa humana, cujo desenvolvimento de ações e políticas para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional consequente de seu resguardo, caberia ao poder público (BRASIL, 2006).
Decorre de tudo isso que, atualmente, realizou-se um desmonte das estratégias e políticas anteriormente desenvolvidas, aprofundando a insegurança alimentar (MELITO, 2020). Como exemplo dessas medidas, foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, órgão central no desenvolvimento de políticas de segurança alimentar e, como consequência, as estruturas que permitiam o desenvolvimento das políticas e ações que buscariam assegurar o Direito Humano à Alimentação Adequada enfraquecem a própria capacidade de resposta do Estado às demandas que lhe são apresentadas.
O resultado do enfraquecimento dessa política social pode ser visto, no tempo presente, como uma consequência da Pandemia da Covid-19 que, na realidade, não se resume pura e simplesmente a um de seus efeitos, mas sim a uma associação das consequências de mais uma das crises estruturais do capital, juntamente com a crise do desmonte do Estado Brasileiro de Bem-Estar Social, que sequer chegou a se concretizar, e uma crise sanitária que ainda impede as pessoas de se movimentarem e, substituindo o papel do Estado, buscarem meios de promoção de um direito humano.
Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, estudo produzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (2021), dos 211,7 milhões de brasileiros, 116,8 milhões conviviam com algum grau de insegurança nutricional, ou seja, aproximadamente 55% da população. Destes, 43,4 milhões não dispunham de uma quantidade de alimentos capaz de atender suas necessidades e, ao fim, 19 milhões tiveram que conviver e enfrentar a fome.
Em um recorte regional, esse cenário se agrava. Dos mais de 55 milhões de moradores de domicílios na região Nordeste, pouco mais de 15 milhões possuíam segurança alimentar, todos os outros quase 40 milhões possuíam algum grau de insegurança alimentar, ou seja, quase 80% da população tem convivido com algum grau de insegurança alimentar (REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR, 2021).
Como resposta à grave situação identificada, aprovou-se o auxílio emergencial com o objetivo de reduzir os efeitos da crise sobre o emprego e a renda, contudo, segundo o estudo, ele tem sido insuficiente para superar essa situação de insegurança alimentar (REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR, 2021).
6 CONCLUSÃO
Tendo em vista o que, neste estudo, foi analisado, podemos enumerar as seguintes considerações:
a) A alimentação humana, nomeadamente no século XXI, envolve, no geral, não apenas a satisfação de uma necessidade básica. Oscila, ao sabor dos mercados, entre o excesso e a fome, não poucas vezes, descomprometida com as múltiplas dimensões da sustentabilidade;
b) O que precisa, portanto, ser refutada ou, pelo menos denunciada, é a retórica inteiramente ligada à estética e à disciplina (FOUCAULT, 2001) quando tratamos de alimentos orgânicos e transgênicos. A primeira, a estética, ensinou os sentidos humanos a se alimentarem tendo em conta o belo, o harmônico, o perfeitamente aromático. A segunda, a disciplina, sublima a escolha e condiciona a vontade humana à lógica do rápido e, bem por isso, do que não é pensado ou tampouco questionado.
c) O discurso contra-hegemônico, na sociedade de risco (BECK, 1992), parece ter muito a oferecer quando se trata de analisarmos, mais democraticamente, os alimentos orgânicos e transgênicos.
d) Não se pode falar em Estado de Bem-estar Ecológico quando seja negado ou haja dificuldades para a concretização do direito básico à alimentação adequada, pressuposto fundamental para a otimização do princípio da dignidade humana.
e) A cultura alimentar na RESEX de Cururupu reflete muito bem a riqueza do ambiente no qual se situa. Todavia, essa não pode se limitar apenas às fontes de alimentos locais. Uma possibilidade para se chegar à variação proposta pelas autoridades que tratam das questões alimentares e nutricionais é a parceria com os produtores de alimentos da porção continental de Cururupu. Assim como a produção da RESEX abastece várias sedes municipais (Cururupu, Serrano do Maranhão e Apicum-Açu, entre outros), a produção agropecuária municipal também deve contemplar, de forma mais intensa, a população da RESEX.
f) O modo de produção em que se vive transforma a mercadoria em alimento e, ao mesmo tempo, desenvolve políticas públicas como uma resposta ao conflito derivado da correlação de forças resultantes da luta de classes, como uma forma de minimizar o seu acirramento e, de algum modo, produzir e reproduzir o capital em favor do capital financeiro.
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Notas
2ª tese: Fortalecimento da articulação contra-hegemônica entre o local e o global. Novas experiências democráticas precisam do apoio de atores democráticos transacionais nos casos nos quais a democracia é fraca, como ficou patente no caso colombiano. Ao mesmo tempo, experiências alternativas bem-sucedidas como a de Porto Alegre e a dos Panchayats na Índia precisam ser expandidas para que se apresentem como alternativas ao modelo hegemônico. Portanto, a passagem do contra-hegemônico do plano local para o global é fundamental para o fortalecimento da democracia participativa.
3ª tese: Ampliação de experimentalismo democrático. Foi possível perceber no texto acima que as novas experiências bem-sucedidas se originaram de novas gramáticas sociais nas quais o formato da participação foi sendo adquirido experimentalmente. É necessário para a pluralização cultural, racial e distributiva da democracia que se multipliquem experimentos em todas essas direções.” (SANTOS; AVRITZER, 2005, p. 77-78).
No Brasil, o êxodo nordestino para as cidades grandes foi claramente denunciado por Ramos (1997, p. 125-126): “- O mundo é grande.
Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande – e marchavam, meio confiados, meio inquietos.
[...] Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que empestavam o caminho. [...]
E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos na escola, aprendendo coisas difíceis e necessárias. [...] Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes [...]”.
[...] O homo academicus gosta do acabado. Como os pintores acadêmicos, ele faz desaparecer dos seus trabalhos os vestígios da pincelada, os toques e os retoques: foi com certa ansiedade que descobri que pintores como Couture, o mestre de Manet, tinham deixado esboços magníficos [...] e tinham muitas vezes estragado obras julgando dar-lhes os últimos retoques [...].” (BOURDIEU, 2001, p. 18-19).