Mesas temáticas coordenadas
Recepción: 11 Noviembre 2021
Aprobación: 30 Mayo 2022
Resumo: Fruto de pesquisas de mestrado e doutorado que compartilham a hipótese de que o acesso ao direito, a participação dos sujeitos do campo na formulação e implementação das políticas públicas e o vínculo da Educação do Campo aos interesses dos trabalhadores tem sido historicamente marcados pela negação e pela disputa em relação ao papel e à natureza do Estado, com conquistas na medida da correlação de forças em cada conjuntura, o texto inicia analisando a relação entre Estado e movimentos sociais no capitalismo contemporâneo brasileiro; situa as políticas públicas de Educação do Campo entre o direito e a luta de classes; e analisa três casos: as escolas do campo do município de Caucaia como expressão do Estado autocrático; o CEFFA Manoel Monteiro e sua relação com as políticas educacionais; e o protagonismo do MST nas escolas de ensino médio dos assentamentos de reforma agrária do Ceará.
Palavras-chave: Políticas Públicas, movimentos sociais, educação do campo.
Abstract: Result of master's and doctoral research that share the hypothesis that access to law, the participation of rural subjects in the formulation and implementation of public policies and the link between Rural Education and the interests of workers have been historically marked by denial and by dispute over the role and nature of the State, with achievements as the correlation of forces in each juncture, the text begins by analyzing the relationship between the State and social movements in contemporary Brazilian capitalism; it places public policies for Rural Education between the law and the class struggle; and analyzes three cases: rural schools in the municipality of Caucaia as an expression of the autocratic State; CEFFA Manoel Monteiro and its relationship with educational policies; and the role of the MST in the high schools of the agrarian reform settlements in Ceará.
Keywords: Public Policies, social movements, rural education.
1 INTRODUÇÃO
A instituição da Educação do Campo como políticas públicas no Brasil, nas duas primeiras décadas do século XXI, é um fenômeno que precisa ser compreendido na contraditória atualidade do capitalismo contemporâneo, considerando-se a natureza do Estado capitalista e as especificidades do neoliberalismo brasileiro, nesse período; bem como requer a compreensão da relação entre o Estado, em seu papel mediador, e os movimentos sociais na efetivação de políticas públicas.
Resultante do diálogo construído numa mesa temática, por ocasião da X Jornada Internacional de Políticas Públicas, o presente texto articula as análises produzidas nas pesquisas de mestrado e doutorado dos(as) autores(as), ainda em curso, que ancoradas em pesquisas qualitativas, orientadas por uma perspectiva crítico-dialética e com recurso da pesquisa bibliográfica, documental e de campo, em diferentes contextos e sobre diferentes aspectos, compartilham a hipótese de que o acesso ao direito, a participação dos sujeitos do campo na concepção e implementação das políticas e o vínculo da Educação do Campo aos interesses dos(as) trabalhadores(as) camponeses(as) tem sido historicamente marcados pela negação e pela disputa em relação ao papel mediador e à natureza pública do Estado, com conquistas na medida da correlação de forças em cada conjuntura.
As referidas pesquisas reportam a três contextos distintos, aqui tomados como três casos que se constituem base empírica para a análise da luta pelo direito e a disputa de hegemonia na Educação do Campo, na atualidade do Estado capitalista neoliberal brasileiro, quais sejam: as escolas do campo do município de Caucaia como expressão do Estado autocrático; o CEFFA Manoel Monteiro e sua relação com as políticas educacionais, entre a precarização e a descaracterização da Pedagogia da Alternância; e o protagonismo do MST nas escolas de ensino médio dos assentamentos de reforma agrária do Ceará.
O texto inicia analisando a relação entre Estado e movimentos sociais no capitalismo contemporâneo brasileiro, considerando a relação orgânica entre a natureza e o papel do Estado, explicitando as implicações entre a luta por políticas públicas de Educação do Campo e a luta de classes no Brasil. E coloca em discussão a luta por políticas públicas e a disputa de hegemonia na Educação do Campo, a partir dos três casos citados.
Considera-se, ao final, que o acesso ao direito, a participação dos sujeitos do campo na concepção e implementação das políticas públicas e o vínculo dos projetos de Educação do Campo às necessidades e interesses dos(as) trabalhadores(as) camponeses(as) têm sido historicamente marcados pela negação e pela disputa em relação ao papel mediador e à natureza pública do Estado, com conquistas na medida da correlação de forças em cada conjuntura. Ou seja, a garantia do direito à Educação do Campo (acesso, participação e direção política) se concretiza na medida da capacidade de organização e de luta dos(as) camponeses(as) e as eventuais conquistas não podem ignorar a hegemonia capitalista.
2 ESTADO, MOVIMENTOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: da aparência objetiva e contraditória às correlações de forças na luta de classes
O ponto que se toma como partida é a elaboração marxista de Farias (2000) sobre a natureza e o papel do Estado, cuja apreensão somente é possível numa dada formação social e econômica, a partir da qual referir-se-á ao Estado capitalista neoliberal brasileiro, como se configurou desde os anos 2000, marco de instituição de uma política de Educação do Campo no Brasil.
Para o referido autor, o Estado se estrutura como totalidade dialética numa essência material e social, manifestas na divisão capitalista do trabalho e na luta de classe; e numa aparência que se expressa materialmente nos aparelhos e socialmente na legitimação de Estado. Contudo, a estrutura do Estado capitalista se apresenta de forma fetichizada, reificada na sua aparência imediata de aparelhos de Estado e personificada na burocracia estatal, ocultando sua essência de classes e seus fins gerais estabelecidos desde a gênese da sociedade burguesa de reprodução das relações capitalistas (FARIAS, 2000).
Para tanto, o Estado desenvolve uma autonomia relativa, reproduzindo ao mesmo tempo relações capitalistas, de reprodução do Capital, e antissistemas, de interesse da classe trabalhadora.
Ainda, de acordo com Farias (2000, p. 35),
Para que o Estado capitalista tenha uma forma que lhe permita assumir seu papel mediador de contradições nesta sociedade, é preciso que exista em si e para si. A permanência do Estado como forma particular e relativamente autônoma diante das classes sociais e, portanto, de sua existência para si depende da geração de fundos que lhe permitam representar seu papel simultaneamente material e social, espacial e histórico.
A subsistência do Estado faz parte, portanto, da sua natureza, conferindo-lhe a relativa autonomia necessária para o cumprimento de seu papel mediador, desempenhado em relação às contradições entre capitalistas e trabalhadores, mas também intercapitalistas.
Nesse quadro, as políticas públicas são a expressão mais aparente do Estado capitalista e as disputas por políticas públicas de Educação do Campo no Brasil, dirigidas por movimentos sociais que organizam a classe trabalhadora camponesa, são a aparente expressão da luta de classes no campo brasileiro. Suas conquistas são garantidas na medida da luta social e seu projeto de educação se expressa como disputa de hegemonia, numa contraditória relação própria da natureza e do papel do Estado capitalista.
Corroboram, também, na construção desse referencial teórico as elaborações de Gramsci (2007), que concordando com Marx e Engels, reafirma que o Estado é sempre um instrumento de dominação de classe. Contudo, a forma de dominação varia, demandando estratégias políticas adequadas a cada realidade. Nas sociedades complexas, a que Gramsci denomina de “sociedade ocidental”, nem a classe trabalhadora, nem a burguesia são monolíticas, não funcionando, portanto, as estratégias revolucionárias restritas à tomada do poder político.
Ao explicar a relação entre estrutura e superestrutura como relação dialética de unidade-distinção, Gramsci reconhece, metodologicamente, a existência de duas esferas no interior da superestrutura: “sociedade civil” e “sociedade política”, sendo a dominação no Estado capitalista sempre composta por coerção e convencimento, requerendo a obtenção do convencimento ativo, ao que Gramsci denomina “guerra de movimento”, para a conquista da direção intelectual e moral da sociedade, ou seja, a hegemonia.
Para Gohn (2007, p. 187),
[...] Usar essa concepção significa sair da noção restrita de um mero espaço de poder a serviço da classe dominante – um comitê executivo da burguesia, como foi denominado por alguns – e reconhecer que os conflitos sociais e a luta de classes perpassam os aparelhos estatais. Significa também admitir que a conquista de espaços políticos dentro dos órgãos estatais é importante, assim como sua democratização. [...]
Na mesma direção, Poulantzas (1980) corrobora na compreensão de que o Estado é um Estado de dominação de classe, mas não é o Estado de uma classe. E o poder do Estado não está no governo, está nas classes sociais. Se as classes sociais estão organizadas na sociedade civil, o poder do Estado está na luta entre as classes organizadas.
A esse respeito, Santos (2012, p. 6) ao investigar o protagonismo dos movimentos sociais do campo na instituição de políticas públicas, afirma que “é somente por meio da pressão social, articulada com a proposição política, que a sua estabilidade se instabiliza, que sua imobilidade se move em favor das classes trabalhadoras”.
No âmbito das políticas educacionais e situada nesse mesmo campo teórico, Neves (2005, p. 29)reflete que,
Sendo o Estado capitalista um Estado de classes, tende a organizar a escola em todos os níveis e modalidades de ensino, conforme a concepção de mundo da classe dominante e dirigente, embora, contraditoriamente, dependendo do grau de difusão da pedagogia da contra-hegemonia na sociedade civil, a mesma escola esteja permeável à influência de outros projetos político pedagógicos.
Com o exposto, pretende-se firmar a compreensão da relação orgânica entre a natureza e o papel do Estado capitalista como bases para análise da relação entre Estado e Movimentos Sociais e o papel dos movimentos sociais campesinos na formulação, no desenvolvimento e na atualidade das políticas públicas de Educação do Campo no Brasil, como modo mais aparente do Estado, cuja essência repousa na divisão capitalista do trabalho e na luta de classes, concretamente expressos na reprimarização da economia brasileira com o avanço do agronegócio e na intensificação da luta pela terra.
Considerando-se a particularidade da forma do Estado brasileiro, convém destacar, ainda, que a formação escravista e colonial brasileira impediu a formação de um Estado-nação baseado nos princípios clássicos do liberalismo (FERNANDES, 2017; MAZZEO, 1997). Este processo vai corroborar na formação de um Estado autocrático e inviabilizar a constituição de um sólido sistema nacional de educação que garanta um nível de qualidade educacional às classes populares do Brasil, marcando a educação brasileira com um processo permanente de crises.
Portanto, o estudo da institucionalização da Educação do Campo como políticas públicas requer considerar, também, como as raízes e a formação autocrática do Estado brasileiro estão implicados na histórica negação do direito à educação da população camponesa, ante o ambíguo papel do Estado, e a relevância da organização e da luta dos(as) trabalhadores(as) na garantia do direito.
3 A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO DO CAMPO: entre o direito e a luta de classes
A Educação do Campo é uma novidade na política educacional brasileira que enfrenta desafios e contradições para sua implementação na atualidade do capitalismo neoliberal, em face do avanço do capital sobre o campo brasileiro, sobretudo com o agronegócio, restringindo o território camponês; e no campo da educação, com a expansão da esfera do mercado educacional em detrimento à educação como política social, bem como na intensificação da ação dos aparelhos privados de hegemonia do capital, na disputa dos projetos de educação, do que é emblemática a Reforma Empresarial da Educação (FREITAS, 2018).
O avanço do capitalismo no campo brasileiro, representado sobretudo pelo agronegócio, tem acirrado a luta pela terra e os conflitos no campo, exigindo a organização dessas populações em movimentos sociais, que tem protagonizado a resistência camponesa, dos povos tradicionais e indígenas em defesa da terra e da territorialização de seus modos de vida, recorrendo a diversas estratégias de luta social, do que é exemplar a luta por reforma agrária protagonizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Essa luta tem colocado na agenda nacional não somente a questão agrária e a política fundiária, mas tem pautado diversas outras políticas públicas, necessárias para a produção e reprodução da vida no campo, contrapondo-se ao projeto da agricultura capitalista, com reivindicações de interesse do polo do trabalho, explicitando seu caráter de luta de classes.
É no contexto dessas lutas que se constitui a Educação do Campo, como política educacional que afirma o direito das populações camponesas à educação pública e reconhece a necessidade de adequação do projeto de educação às peculiaridades do trabalho e da vida no campo, onde, numa conjuntura marcada por disputas de projetos de campo que se antagonizam (a agricultura capitalista e a agricultura camponesa), tal adequação é igualmente tensionada pela luta de classes, de forma que a Educação do Campo somente realiza-se com a prevalência do território camponês e como educação da classe trabalhadora, uma vez que suas raízes originárias se encontram na luta dos sujeitos coletivos do trabalho no campo; na agricultura camponesa (luta, trabalho, cultura) e no confronto de classe que move seu desenvolvimento histórico; e em uma concepção de educação com finalidades emancipatórias (CALDART, 2019).
A I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, realizada em julho de 1998, em Luziânia, no Estado de Goiás, promovida pelo MST, UnB, UNESCO, UNICEF e CNBB, tornou pública, no debate educacional, a expressão “Educação do Campo”, afirmando uma concepção de educação que se constitui a partir das práticas e elaborações dos movimentos sociais camponeses, emergentes na fase atual da luta pela terra, e na disputa do projeto de desenvolvimento do território camponês, colocando o campo na pauta das políticas públicas educacionais e da pesquisa acadêmica em educação, aportando uma especificidade ao conceito de educação: o campo. Portanto, não é possível compreendê-la desconectada da luta pela terra, como parte da luta de classes no campo brasileiro, e da relação histórica entre educação e sociedade, considerando sua particularidade.
Vale destacar que sua emergência coincide com o auge da etapa de reconfiguração do Estado brasileiro em sua forma neoliberal, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso na presidência do país. Se consolida, no período seguinte, marcado pela versão social liberal do neoliberalismo do governo Lula e entra em estagnação e desmonte, a partir dos governos de Dilma Rousseff, sofrendo forte ofensiva no atual estágio ultraliberal conservador, a partir do golpe de 2016.
Desse modo, a luta pela terra, a partir das novas necessidades que a realidade apresenta, se faz luta por políticas públicas de educação. Pois, contraditoriamente, a despeito da necessidade ou da afirmação positiva do direito, expresso inclusive na Constituição Federal, “vê-se, pois, que o direito à educação segue sendo proclamado, mas o dever de garantir esse direito continua sendo protelado” (SAVIANI, 2013, p. 754), principalmente para as populações camponesas. E a despeito das diferentes disposições manifestadas, sobretudo pelo governo federal, em seu papel mediador entre as classes dominante e trabalhadora, em todos os contextos, a garantia da Educação do Campo como política pública se expressa na correlação de forças entre as classes sociais, sob o protagonismo dos movimentos sociais camponeses.
Nessa conjuntura, o caráter autocrático do Estado brasileiro e o débil sistema educacional constituído vão gerar um empobrecimento e falta de condições mínimas para educação das populações camponesas. Segundo o Inep (2020), por ocasião do Censo Escolar de 2019, havia 55.345 escolas de educação básica no campo, representando 23,4% do total de estabelecimentos de ensino do Brasil, em 2019. O fechamento de escolas no campo, entre os anos 2002 e 2019, ocorreu em 48,4% do total de estabelecimentos, com média de 3 mil escolas fechadas por ano. Foi constatado, ainda, que 76% das escolas nas comunidades camponesas possuem até 05 salas de aulas; apenas 15,5% possuem bibliotecas; 16,2% possuem laboratórios de informática; 51,7% microcomputadores; 41,2% têm acesso à internet; 14,9% têm quadras de esporte. Segundo dados do Ipea (2021, p. 35), com muita luta e mobilização avançou-se em alguns indicadores: 85,7% das escolas possuem água potável, 87,5% têm energia elétrica e 91,4% instalações sanitárias. Contudo, constata-se que muitas escolas do campo, ainda não têm as condições mínimas de funcionamento, evidenciando a atualidade da luta pelo direito à educação para essas populações.
Compreende-se, portanto, que a Educação do Campo, num primeiro momento, refere-se à luta da população camponesa pelo direito à educação pública. O que denota, exemplarmente, o grito de ordem cunhado pelo MST, que anima os movimentos sociais nessa luta: “Educação do Campo: direito nosso, dever do Estado!”. E, partindo da necessidade concreta e da reflexão crítica, questiona as finalidades e a forma escolar hegemônica, inspirados pelas elaborações construídas nos processos formativos populares, na organização coletiva, nas lutas sociais e em matrizes pedagógicas críticas à sociedade capitalista. Uma crítica que se projeta com diferentes nuances e abrangências.
Em certa medida, refere-se à origem histórica da escola pública educadora da classe trabalhadora que se universaliza a partir da hegemonia burguesa da sociedade capitalista urbano-industrial e da relação dicotômica e subordinada entre campo e cidade. Nesse sentido, trata-se da defesa conservadora da contextualização da educação à realidade do campo, situando o contraponto da Educação do Campo à “Educação da Cidade”, limitando-se às questões culturais, que não deixam de ser relevantes, mas repousam no terreno das aparências.
Segundo Caldart (2004), é a luta em defesa da terra, a resistência camponesa e a construção de um projeto de campo, pelos camponeses, que forjam a Educação do Campo como uma nova concepção de educação, que se diferencia do que até aqui foi posto pela “Educação Rural”, exatamente por seu vínculo de origem com a classe trabalhadora camponesa e suas especificidades. Construída nas lutas de suas organizações e vinculada aos interesses sociais, políticos e culturais dos camponeses, para além de uma educação contextualizada, trata-se de um projeto de formação do homem e da mulher do campo e de um projeto de desenvolvimento do território camponês.
Conforme Arroyo (2005), é somente a partir de uma nova visão de campo e de educação que se tem uma nova relação com as políticas públicas. Outro campo, outras políticas. Nem uma visão de campo como atraso, nem o agronegócio promoverão políticas públicas de educação da classe trabalhadora camponesa. O avanço na consciência dos direitos; a organização dos movimentos sociais e a luta pela terra; e a compreensão da educação como direito dos povos do campo são bases fundamentais desse novo momento.
Essa concepção de Educação do Campo diz respeito, portanto, à classe trabalhadora do campo. Uma educação popular, na perspectiva desses sujeitos e efetivada por eles; desenvolvida no campo e afirmadora do modo de vida camponês; vinculada a um projeto de campo que represente os interesses da classe trabalhadora camponesa, na contradição com o modo de produção capitalista.
Incompatível com o agronegócio e as perspectivas de educação construtoras do campo como lugar estritamente da produção e do negócio, promovidas pela agricultura capitalista, essa perspectiva de Educação do Campo tem como contradição fundamental, não a “Educação da Cidade”, mas a “Educação do Capital”, compreendendo que “apenas dentro da perspectiva de ir para além do capital, o desafio de universalizar o trabalho e a educação, em sua indissolubilidade, surgirá na agenda histórica”. (MÉSZÁROS, 2005, p. 68).
No entanto, apesar dos avanços significativos na elaboração conceitual protagonizada pelos movimentos sociais campesinos em interlocução com intelectuais e segmentos do meio acadêmico, do que o Fórum Nacional de Educação do Campo – FONEC é um importante instrumento; das conquistas no plano jurídico com um marco legal significativo, do que são exemplos: as Diretrizes da Educação do Campo e o Decreto nº 7.352/2010, que institui a Política Nacional de Educação do Campo; da institucionalização de uma Política Nacional com instâncias específicas de gestão da Educação do Campo no MEC, com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA e com o Programa Nacional de Educação do Campo – PRONACAMPO; e das diversas experiências das organizações camponesas na educação formal e informal, o avanço da hegemonia capitalista no campo em antagonismo aos projetos de resistência camponesa da classe trabalhadora, demarcam em igual medida os limites de materialização do projeto da Educação do Campo, na perspectiva da classe trabalhadora, e a hegemonia, também no campo da educação, do projeto de formação do Capital.
Ademais, embora a atual legislação da Educação do Campo, construída numa conjuntura de ascensão dos movimentos sociais camponeses, ofereça uma base jurídica satisfatória para construção de um projeto de educação escolar, que permita avançar numa relação entre trabalho e educação, na perspectiva da classe trabalhadora, o controle do Estado burguês na gestão das políticas públicas, arrefece as reais possibilidades de avanços tomando mão de uma série de mecanismos, dentre os quais, a padronização dos sistemas de gestão escolar, o controle sobre o perfil de formação inicial dos professores, o material didático, o sistema de financiamento e de avaliação nacional. Tais mecanismos engessam a estrutura da política de educação escolar, limitando bastante as modificações em sua forma, exigindo uma intervenção não somente no chão das escolas, mas em todo o sistema educacional brasileiro.
Por outro lado, como parte da mesma dinâmica das transformações contemporâneas de um capitalismo agonizante, em que o Estado burguês se reconfigura em sua versão neoliberal mais extrema, a educação, em particular no que se refere à formação da classe trabalhadora, vê-se tensionada por um conjunto de reformas, premidas pelas necessidades contemporâneas de reprodução objetiva e subjetiva do capital, em seu atual estágio.
Nessa direção, um conjunto de medidas vem sendo implementado nas políticas educacionais brasileiras, desde os anos 1990, como expressão do capitalismo neoliberal na educação, intensificando-se na última década, como uma articulação mais orgânica do empresariado brasileiro, através de seus aparelhos privados de hegemonia do que é emblemático o Movimento Todos pela Educação, organizado a partir de 2006, e seus braços conjunturais como o Movimento pela Base e a Frente de Currículo e Novo Ensino Médio, implementando a Reforma Empresarial da Educação no Brasil, na qual os exames nacionais de larga escala; o Novo Ensino Médio, instituído pela Lei nº 13.415/2017; a Base Nacional Comum Curricular (BNCC); e as novas diretrizes de formação de professores são os instrumentos da vez (FREITAS, 2018)
O pano de fundo, de lado e de frente é a intensificação da esfera privada sobre os diversos aspectos da educação pública, radicalizando a dimensão da educação-mercadoria, expandindo o mercado educacional, e a customização da mercadoria-educação às necessidades, interesses e lógica do mercado (NEVES; PRONKO, 2008).
Com o golpe de 2016, mediante o rompimento da aliança de classes e do pacto social democrático burguês, inserido num movimento do capital internacional em face do agravamento da crise sistêmica, a partir de 2008, que reverbera mais fortemente no Brasil por volta de 2012, a hegemonia neoliberal se impõe exacerbadamente acelerando e intensificando a minimização do Estado para o social e sua maximização para o capital, implicando no esvaziamento da política de Educação do Campo, que já vinha perdendo fôlego, em virtude do descenso da força política dos movimentos sociais camponeses, frente à agressiva territorialização do agronegócio e o avanço da Reforma Empresarial da Educação.
Tal conjuntura eleva a complexidade da disputa de projetos, numa relação ambígua entre os interesses do capital, que se expressam numa intervenção cada vez mais direta na educação da classe trabalhadora, e seus próprios interesses veiculados através da ação dos movimentos sociais (BAHNIUK, 2015).
Uma vez compreendida implicada com a luta de classes, a Educação do Campo, como educação da classe trabalhadora numa perspectiva emancipadora, que se constitui historicamente no chão das contradições decorrentes da atualidade do desenvolvimento do capitalismo no campo, não pode encerrar-se somente como tarefa educacional, mas simultaneamente como tarefa de “transformação social ampla e emancipadora”. (MÉSZÁROS, 2005, p. 76).
4 A LUTA PELO DIRETO E A DISPUTA DE HEGEMONIA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO EM TRÊS CASOS
Ancoradas na discussão supra, as análises que seguem foram produzidas a partir de três contextos distintos, bases empíricas das pesquisas que aqui dialogam, expressando múltiplas determinações da luta pelo direito e da disputa de hegemonia na Educação do Campo. O primeiro caso refere-se à política municipal de educação escolar do campo, em Caucaia/CE, explicitando a crise educacional do Estado autocrático brasileiro e suas implicações na Educação do Campo; o segundo, a partir da experiência do CEFFA Manoel Monteiro, em Lago do Junco/MA, trata dos desafios dos Centros Familiares de Formação por Alternância, ante as políticas educacionais, tanto em relação à garantia das condições objetivas de funcionamento, quanto em relação à autonomia pedagógica, levando à precarização e descaracterização da Pedagogia da Alternância; e, por fim, temos um contraponto, com o caso das escolas de ensino médio dos assentamentos de reforma agrária do Ceará que, embora integrem a rede pública de educação e sejam geridas pelo Estado, indicam o relevante protagonismo do MST, da elaboração à implementação dessa política pública de Educação do Campo.
4.1 As escolas do campo do município de Caucaia como expressão do Estado autocrático e da crise educacional
A análise das políticas de Educação do Campo no município de Caucaia evidencia, a partir de um caso concreto, o ambíguo papel do Estado na garantia e negação do direito à Educação do Campo, compreensível pela natureza do Estado capitalista contemporâneo e pela particularidade autocrática da forma do Estado brasileiro, em consequência da qual a educação é historicamente marcada por crises.
O município de Caucaia, localizado na Região Metropolitana de Fortaleza, no Ceará, possui a maior parte do seu território no meio rural, formado por ambientes geográficos distintos: serra, praia e sertão. Cada um com suas características e peculiaridades em diversos aspectos, inclusive étnico-raciais, com povos indígenas e remanescentes quilombolas, totalizando cerca de 10% da população no campo, em 2017. Segundo dados do Ipece (2015), nesta região encontram-se 07 Projetos de Assentamentos federais: Boqueirão/Capim Grosso, Angicos, Lagoa da Serra, Santa Bárbara, Lenin Paz, Belo Monte e Mulungu/Tigre.
A histórica negação do direito à educação da população camponesa é um reflexo da educação em crise do Estado autocrático brasileiro. Em Caucaia não é diferente e se manifesta em diversos aspectos, como podemos observar, por exemplo, nas escolas que se encontram nos assentamentos de reforma agrária, marcadas por precárias condições de funcionamento, com estradas intransitáveis nos períodos chuvosos, dificultando o acesso às unidades escolares para os professores, gestores e alunos. A maioria destas não possui quadra esportiva, não tem acesso à internet, nem laboratório de informática. Quando existe, os computadores estão quebrados. Dentre outras dificuldades.
Outra característica do Estado autocrático observada no município de Caucaia é a influência de vereadores e “chefes políticos” locais na nomeação dos núcleos gestores e professores, a maioria contratados temporariamente, tendo o “emprego” negociado como moeda política pelos cabos eleitorais.
Estes territórios são historicamente dominados por elites conservadoras, composta por fazendeiros, políticos e famílias tradicionais. Neste sistema, o apadrinhado responde mais ao seu “chefe” político que ao seu superior imediato no serviço público, dificultando a autonomia para a realização de um processo de educação que contribua para a emancipação dos sujeitos, a exemplo das propostas da Educação do Campo.
Essa realidade nos traz à lembrança Darci Ribeiro e sua frase histórica “a crise da Educação brasileira, não é uma crise é um projeto”. Pois, nossas elites nunca pensaram ou desejaram ter um país e um povo instruído, que não esteja subjugado e sem cidadania plena. Para isto, a negação de uma educação de qualidade atende melhor seus planos.
Nos leva, ainda, a considerar que a educação fruto de um Estado autocrático e sem compromisso com o povo é uma educação em permanente crise e que não consegue atingir as metas básicas de escolarização e universalização do ensino. E que constituída como crítica ao Estado autocrático brasileiro e seu projeto de educação, a Educação do Campo como concepção e movimento social é uma contraposição à negação do direito e à concepção de educação hegemônica que somente se concretiza na resistência dos movimentos sociais camponeses.
4.2 O CEFFA Manoel Monteiro e as políticas educacionais: entre a precarização e a descaracterização da Pedagogia da Alternância
O segundo caso parte da expressividade dos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFA’s) – rede de escolas comunitárias organizadas pela Pedagogia da Alternância, constituída pelas Escolas Famílias Agrícolas (EFA’s) e Casas Familiares Rurais (CFR’s) – na educação da população camponesa e considera que as dificuldades de manutenção dessas escolas, com a redução do apoio internacional recebido desde suas origens no Brasil, na década de 1960, até os anos 1990; e as relações estabelecidas com o Estado brasileiro na busca de financiamento público, abrem uma nova ordem de questões para análise, no âmbito das políticas de Educação do Campo, que são aqui perseguidas com o estudo do CEFFA Manoel Monteiro, no município do Lago do Junco, no Maranhão.
No percurso histórico de constituição dos CEFFA’s no Brasil, observa-se que houve prevalência do financiamento estrangeiro europeu, principalmente da Alemanha e Itália, dinheiro arrecadado por instituições ligadas à Igreja Católica. Esse cenário prevaleceu dos anos 1960 a 1990.
A partir dos anos 1990, as EFA’s começaram a receber notificações a respeito da finalização do apoio financeiro externo. Justificado pela dificuldade financeira generalizada, assim também como a possibilidade e necessidade que se visualizava de mobilização de recursos internamente, no país. Segundo Luíz Ramos, professor da EFA de Lago do Junco, Maranhão,
As instituições estrangeiras colocaram que as fontes financeiras secaram e que nós aqui no Brasil, pelo tempo de caminhada no movimento CEFFA já deveríamos ter maturidade para buscar apoio financeiro internamente. A nossa EFA teve de 1996 até 2012 o apoio da Alemanha através da Província Franciscana de Bacabal. Esse apoio custeava salários de professores e outras despesas. (Luíz Ramos, entrevista realizada em 03 de março de 2021)
É nesse cenário, forçado sobretudo pela ausência das instituições estrangeiras, que os CEFFA’s recorrem ao Estado brasileiro, na busca de um financiamento público, considerando o caráter público da educação desenvolvida nessa rede de escolas.
No Maranhão, a partir de 2008, os CEFFA’s passaram a contar com possibilidade de pagamento de professores pelo Estado. No plano nacional, conforme explica Begnami (2019):
A Lei Federal Complementar nº 12.695 de 25 de julho de 2012, no seu artigo 13, abre a possibilidade para os CEFFAs se inserirem no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB). Para tanto, os estudantes precisam ser incluídos no Censo Escolar, as escolas serem devidamente autorizadas e reconhecidas pelos órgãos educacionais dos Estados, estarem situadas no campo e conveniadas com órgãos competentes do município e/ou no Estado. Ressalta-se que, pelas especificidades da repartição das responsabilidades pela educação entre União, Estados, Município e Distrito Federal, o financiamento público do CEFFA é uma luta travada em cada Estado/município onde está localizado o CEFFA. (BEGNAMI, 2019, p. 129)
Para os CEFFA’s, essa relação custa caro, uma vez que, a Associação mantenedora formada pelos pais, lideranças locais, professores e ex-alunos constitui um dos pilares de sustentação da escola e os arranjos de financiamento ou apoio público nem sempre respeitam a autonomia do Movimento Social. Ao se propor a fazer educação, o movimento CEFFA aponta para a necessidade de uma escola diferenciada, que congregue as especificidades e necessidades dos camponeses. É aí que se situa um dos tensionamentos dos Movimentos Sociais que é de se fazer esta disputa por dentro do Estado.
Custa caro ainda para os CEFFA’s ser enquadrado no sistema de gestão da educação do Estado, no mesmo bojo das demais escolas convencionais. A dinâmica de funcionamento das escolas, organizada em tempo Escola e Tempo Comunidade, onde os alunos ficam duas semanas na escola e duas semanas com a família, é inviabilizada pelo Sistema de Informações da Administração Pública (SIAEP). A prestação de contas do recurso recebido pelas escolas acontece como “um faz de conta” por não haver o reconhecimento da Alternância no sistema do governo. Às escolas é imposto um enquadramento, quando é notório que os CEFFA’s não cabem nas normas estabelecidas pela Secretaria Estadual de Educação (SEDUC), sendo necessário um sistema específico que contemple a Pedagogia da Alternância e suas especificidades.
Além disso, observa-se que no Censo Escolar dos CEFFA’s o funcionamento das escolas consta como regular, quando na prática o funcionamento ocorre de forma integral, em regime de alternância. Isso confirma o olhar superficial sobre as escolas por alternância e se visualiza a tentativa de “igualar a educação por baixo”, ou seja, se inclui excluindo sobre vários vieses. Se nega as especificidades e a diversidade didático-pedagógica das escolas por alternância, desde sua caracterização no Censo Escolar, a forma de financiamento e a adoção de um sistema de gestão inadequados.
De acordo com o edital nº 06/2021 – SEDUC/MA, por exemplo, que trata do processo seletivo simplificado para contratação temporária de professores para atuarem no Ensino Médio, nas modalidades Educação do Campo e Educação Quilombola, o salário corresponde ao valor bruto de R$ 1.443,12, independente da titulação comprovada. Por outro lado, o edital nº 05/2021 que trata da contratação temporária e formação de cadastro de reserva de professores da base técnica do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IEMA) em regime de 20 horas, prevê pagamento de R$ 2.320,00 a R$ 3.000,00, conforme titulação. Tal disparidade convida a interrogarmos: a que se deve essa diferença de valor paga ao professor do IEMA em relação ao professor do CEFFA Manoel Monteiro?
O pagamento de baixos salários força os professores a buscarem alternativas para manter uma renda que garanta sua manutenção, buscando contrato com mais de uma escola, como afirma o depoimento de uma professora do CEFFA Manoel Monteiro: “O professor ganha muito mal, por isso muitas vezes tem que trabalhar além de suas forças, acho insuficiente, por isso trabalho em mais de uma escola” (Professora do CEFFA Manoel Monteiro, entrevista realizada em 6 de março, 2021).
Na contramão dos discursos sobre a valorização dos professores, nota-se que,
Apesar de a legislação anunciar a valorização dos profissionais, o que se constata no dia-a-dia é uma realidade bem distinta, que incentiva a precarização do trabalho docente, pois há uma constante desvalorização do profissional do magistério, descaso com as escolas, no que tange às condições de trabalho e infraestrutura, desrespeito às reivindicações dos professores, além do aviltamento dos salários. (PARO Apud ERICEIRA, 2010, p. 116)
Como vimos debatendo, diversos são os problemas que precarizam a Pedagogia da Alternância dos CEFFA’s. A relação com o Estado sem a devida atenção às suas especificidades se apresenta como um dos pontos desafiadores, cujos tensionamentos apontam sobre diferentes formas, desde a questão financeira, aquém da necessidade, à autonomia das escolas, que são submetidas a se adequarem às mesmas normas e estruturas impostas às escolas regulares. Em geral, o que se observa é a não configuração da Pedagogia da Alternância como uma política pública de educação, apesar de sua evidente relevância no campo brasileiro.
4.3 O protagonismo do MST na formulação e implementação das escolas de ensino médio dos assentamentos de reforma agrária do Ceará
Noutra perspectiva, a experiência das escolas de ensino médio dos assentamentos de reforma agrária do Ceará e o protagonismo do MST na formulação e implementação dessa política pública de Educação do Campo demonstram a relevância e o papel dos movimentos sociais, que organizam a classe trabalhadora, na disputa por direitos e pela hegemonia do projeto de educação, na contraditória atualidade do Estado capitalista neoliberal brasileiro.
Desde sua origem, a luta pela terra e por reforma agrária no MST envolveram também outras lutas por direitos, colocadas pelas necessidades das famílias camponesas organizadas, seja pelo histórico abandono do Estado em relação a essas populações, ou por novas necessidades apontadas pelas exigências da construção da reforma agrária. Dentre essas, destaca-se a luta por educação.
Foi isso que levou o MST do Ceará, numa jornada de lutas realizada em 2007, a reivindicar ao Governo do Estado a construção de 64 escolas em assentamentos de reforma agrária, em sua maioria escolas de ensino médio, haja vista que, até então, em nenhum deles havia escola que ofertasse esse nível de ensino. Na ocasião, o então governador Cid Gomes comprometeu-se com a construção de 10 escolas de ensino médio, das quais as 05 primeiras iniciaram funcionamento entre 2010 e 2011, a décima iniciou em 2020 e duas outras estão atualmente em fase de conclusão das obras[1].
Com a conquista das escolas, a partir de 2009, o Movimento inicia uma mobilização, entre os assentamentos envolvidos, para acompanhamento das obras; participação nas decisões de implantação, tais como definição dos nomes das escolas, seleção de professores gestores e demais servidores; e construção coletiva dos Projetos Político Pedagógicos (PPP).
Conforme Silva (2016), na elaboração dos PPPs, numa dinâmica entre encontros locais, encontros estaduais e negociação com a Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC), essa rede de escolas, sob a coordenação do Setor Estadual de Educação do MST, estabeleceu um conjunto de elementos conceituais, referenciais e operacionais comuns inspirados em experiências de educação do próprio Movimento; em experiências históricas da classe trabalhadora; na Pedagogia do Oprimido, na Pedagogia Socialista e na Pedagogia do Movimento, que resultaram num arranjo curricular de escola do campo ímpar, construído nos limites das possibilidades históricas.
No que diz respeito à forma escolar, embora cada escola mantenha especificidades em seu PPP, Silva (2016) destaca cinco elementos comuns ao conjunto de escolas que evidenciam o compartilhamento de um projeto coletivo e que modificam a forma escolar predominante nas escolas de ensino médio da rede estadual do Ceará, quais sejam: o inventário da realidade, pesquisa diagnóstica que subsidia pedagogicamente o vínculo entre o conteúdo curricular e as questões relevantes da realidade local; a diversificação de tempos e espaços educativos, como estratégia para uma formação multidimensional; o campo experimental da agricultura camponesa e da reforma agrária, como um recurso pedagógico para potencializar o trabalho com princípio educativo e a educação em agroecologia; a inserção de três componentes curriculares integradores, na parte diversificada do currículo, organizando pedagogicamente a pesquisa, o trabalho e a intervenção social; e a organização coletiva dos estudantes, educadores(as) e demais funcionários da escola para uma gestão participativa, o trabalho cooperado e a convivência solidária.
Embora, as referidas escolas permaneçam vinculadas e geridas diretamente pela SEDUC, através de suas Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (CREDES) e, portanto, submetidas ao projeto de educação neoliberal, hegemônico no Estado; o MST organiza um “Coletivo Estadual de Coordenação das Escolas do Campo”, formado por representações dos núcleos gestores, docentes, representações dos assentamentos e militantes do Movimento, que funciona como uma instância de gestão político-pedagógica paralela ao Estado, sob a coordenação do Setor de Educação do MST, através do qual articula o conjunto de escolas numa rede estadual; mantém uma mobilização permanente para interlocução com o Estado e para organização das lutas necessárias; e coordena a elaboração de proposições e subsídios, a formação continuada e o acompanhamento político pedagógico.
Essa organização tem permitido coordenar as reivindicações e estratégias de luta e negociação junto ao Estado, com conquistas importantes em relação à estrutura e manutenção das escolas; à seleção do quadro docente e demais servidores; ao financiamento de demandas específicas do projeto pedagógico construído; à formação continuada e ao acompanhamento pedagógico sob a direção dos próprios sujeitos das escolas. Conquistas que resultam da organização coletiva e da luta social, pois embora as variações na sua forma possam reduzir ou ampliar o tensionamento das disputas, o Estado sempre vai ser o Estado capitalista e vai cumprir seu papel.
Nesse sentido, com base na teoria sobre o Estado capitalista, de Farias (2000), considera-se que sua função primeira é a reprodução do modo de produção capitalista; embora, contraditoriamente, em sua função mediadora dos conflitos entre as classes, precise incorporar em suas funções interesses da classe trabalhadora, que podem ser antissistema.
Ainda com base no autor marxista, compreende-se que o Estado capitalista, como universalidade, se expressa, particularmente, em diferentes formas de Estado e em singulares formas do Estado, nas quais suas funções permanecem inalteradas, embora admitam uma diversidade de possibilidades de concretização.
Na atual conjuntura, em que o Estado neoliberal brasileiro se configura em sua versão ultraliberal conservadora, testemunha-se uma série de retrocessos em direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora, agravados com a pandemia da Covid 19, com forte impacto sobre a Educação do Campo, sobretudo, por sua natureza antissistema.
O fechamento de escolas, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Novo Ensino Médio e a Educação à Distância são alguns dos desafios que estão na ordem do dia, pautados pelo Capital através de seus aparelhos de hegemonia, num esforço de girar a “roda da história” para trás, e que exigem dos movimentos sociais e organizações da classe trabalhadora, de modo geral, e dos camponeses e camponesas, em particular, a firme resistência, conduzindo a luta de classes na direção do futuro.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise das políticas públicas de Educação do Campo requer a compreensão da relação orgânica entre as funções do Estado capitalista, dentre as quais seu papel mediador das contradições entre capitalistas e trabalhadores, representando contraditoriamente interesses públicos da classe trabalhadora e de reprodução do capital; e sua natureza, expressa num silogismo entre a forma Estado capitalista, como universalidade; a forma de Estado como particularidade, manifesta contemporaneamente na forma neoliberal; e a forma do Estado, como expressão das singularidades dos Estados nacionais.
Requer, ainda, a compreensão da particularidade da formação autocrática do Estado brasileiro e as implicações dessa forma do Estado sobre a garantia da educação como políticas públicas, historicamente marcada por crises.
Sob essa ótica, é inteligível as origens da Educação do Campo na contraditória conjuntura de emergência do Estado neoliberal no Brasil; seu apogeu no controverso Estado social liberal e os desafios que estão postos na atualidade ultraliberal conservadora do Estado brasileiro.
Desse modo, a despeito da negação e da precariedade, as escolas do campo do município de Caucaia resistem e se reinventam pela força dos movimentos sociais camponeses, expressando simultaneamente a educação em crise do Estado autocrático brasileiro e a contraposição protagonizada pelos movimentos sociais camponeses, explicitando os desafios da classe camponesa que luta para construir alternativas e esbarra constantemente nas barreiras próprias do sistema educacional brasileiro, que privilegia o projeto educacional estabelecido pelo capital.
A relação dos CEFFA´s com o Estado brasileiro, na perspectiva de situar-se como políticas públicas, revela que, apesar de sua importância na garantia do acesso da população camponesa à educação básica, a necessidade de recorrer ao financiamento público tem sido respondida por uma relação financeira insuficiente e inadequada ao funcionamento das escolas, que ignora suas especificidades e ameaça a sua autonomia e o seu projeto pedagógico, precarizando e descaracterizando-as na singularidade da Pedagogia da Alternância.
Por outro lado, a experiência das escolas de ensino médio dos assentamentos de reforma agrária do Ceará nos permite compreender como a Educação do Campo pode contraditoriamente efetivar-se como políticas públicas, no Estado capitalista contemporâneo, encontrando maior ou menor grau de resistência em compor a agenda governamental, conforme as características particulares das formas de Estado e do Estado.
Em todos os cenários, considerando-se as diferentes disposições para inclusão da Educação do Campo na agenda das políticas públicas, é inegável o protagonismo dos movimentos sociais camponeses como sujeitos da Educação do Campo, cuja concretização decorre, sobretudo, da correlação de forças na luta de classes no campo brasileiro.
Por fim, destaca-se a evidência da indissociável relação entre a luta por políticas públicas de Educação do Campo e a luta de classes, de sorte que sua perspectiva de futuro repousa no horizonte da transformação social.
REFERÊNCIAS
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Notas