Resumo: O artigo aborda a inserção contraditória da família na agenda das políticas sociais e o tensionamento entre o projeto democrático popular e o projeto neoliberal na contemporaneidade. Analisa as características das políticas sociais familistas e do trabalho social com família, através do discurso da parceria, da solidariedade e da responsabilização das famílias com a proteção social. Apresenta a experiência do Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora, como estratégia familista de proteção social. Destaca o acirramento da precarização das condições sociais de vida das famílias brasileiras mais empobrecidas, no período anterior e no contexto da pandemia e a ampliação das demandas das famílias para as políticas públicas.
Palavras-chave: Familismo, famílias, trabalho social com família, proteção social.
Abstract: It addresses the contradictory insertion of the family in the social policy agenda and the tension between the popular democratic project and the neoliberal project in contemporary times. It analyzes the characteristics of family social policies and social work with the family, through the discourse of partnership, solidarity and the responsibility of families with social protection. It presents the experience of the Welcoming Family Service, as a family strategy of social protection. It highlights the worsening of the precariousness of the social conditions of life of the most impoverished Brazilian families, in the previous period and in the context of the pandemic and the expansion of the families' demands for public policies.
Keywords: Familism, Families, social work with family, social protection.
Mesas temáticas coordenadas
FAMÍLIA E (DES)PROTEÇÃO SOCIAL EM TEMPOS DE PANDEMIA
Recepción: 11 Noviembre 2021
Aprobación: 30 Mayo 2022
A pandemia da Covid-19 reverberou em todas as famílias brasileiras, independente das condições sociais de vida, pois ela não é uma pauta específica e exclusiva de saúde pública, visto que perpassa todas as dimensões da vida societária, das relações familiares às relações sociais e econômicas, atravessando à educação, a cultura, a política e será um marco na história. O novo coronavírus não escolheu classe social, cor, raça, idade, nem a situação de renda ou de moradia, fazendo parecer que todos estão no mesmo barco, porém as condições concretas que cada família dispõe para enfrentar as imposições da pandemia são bastante diferenciadas, devido à situação de pobreza, extrema pobreza e de desigualdade social.
São diversas as expressões do acirramento da precarização das condições de vida das famílias brasileiras, a partir dos efeitos da pandemia da Covid-19, mas destacamos: ampliação da situação de desemprego, formal e informal; relações de trabalho informais, inseguras, instáveis e sem renda fixa; moradia em aglomerados subnormais das regiões periféricas das cidades; dependência de transporte público para o deslocamento até o local de trabalho; escolas públicas com pouco investimento governamental e limitações diversas; renda familiar insuficiente à provisão das necessidades básicas; alimentação restrita e inadequada com os indicadores de segurança alimentar; e a dependência das políticas públicas para o acesso aos serviços de saúde, dos básicos aos mais complexos.
A partir da pandemia por Covid-19, o acirramento da precarização das condições de vida das famílias ampliou, sobremaneira e profundamente, as demandas familiares por serviços e benefícios junto às políticas públicas. Entretanto, vários discursos de responsabilização familiar se difundiram, inclusive o do presidente do Brasil, que recomendava às famílias que cuidassem dos seus idosos e dos demais membros e que não jogassem a responsabilidade sobre o Estado. A exigência de medidas sanitárias para evitar contágios e mortalidade também contavam com esta responsabilização familiar: que mantivesse o isolamento e distanciamento social, tanto no âmbito público quanto doméstico, sem observância das condições de moradia e do transporte público; e práticas de higiene pessoal e nas residências, embora sem saneamento básico adequado e sem recursos para aquisição de materiais essenciais.
Essas expectativas sobre a família expressam dimensões históricas da proteção social no país, marcadas pelo familismo, e desde os anos de 1990, com o fenômeno mais recente denominado de neofamilismo, diretamente relacionado à inserção da família na agenda pública, impulsionado por movimentos reformistas e programas de reformas neoliberais. Nesta lógica, a política social passou a se ancorar na parceria com a família para efetivar a proteção social de crianças, adolescentes, idosos, mulheres, dentre outros. Nos anos subsequentes, a maioria das políticas sociais foram formuladas com base na ideia da centralidade na família, o que expressa as contradições e interpenetrações destes dois projetos.
Mas, como se caracteriza as condições de vida e trabalho das famílias brasileiras, antes e depois da covid-19, especialmente as mais pobres? Estas famílias têm condições de ser fonte de sobrevivência, cuidado e proteção social de seus membros? Elas teriam condições de garantir o isolamento e o distanciamento social necessário para evitar a disseminação da doença?
Assim, o objetivo deste artigo é problematizar as tendências familistas e neofamilistas das políticas sociais brasileiras, de modo a desnudar os projetos ideo-políticos que lhes dão sustentáculos, ao trazê-las para a cena pública. Estas tendências nos levam a refletir sobre a capacidade da aposta na família como fonte “natural” de proteção social frente ao cenário de precarização das condições de vida e de trabalho da maioria das famílias brasileiras. Com a pandemia, a situação concreta das famílias foi agravada, o que nos permite questionar e refutar a responsabilização familiar como estratégia de prevenção de doenças e de proteção social.
Para compreender as expectativas sociais em torno do trabalho social com famílias na contemporaneidade, reiterado pelas políticas públicas de caráter social, é necessário destacar seu aspecto contraditório, as perspectivas de avanço sobre as formas tradicionais de intervenção social associada à permanência de traços conservadores. É preciso apreender o processo histórico de penetração das questões que envolvem as famílias na agenda pública, primeiro passo para que elas se tornem objeto de formulação de políticas públicas. Trata-se da primeira etapa do ciclo de uma política pública, quando a família ganha espaço na agenda pública, e as suas demandas são transformadas em expressões da questão social, trazidas pelo debate posto por dois projetos distintos nas políticas públicas: o projeto reformista; . o projeto neoliberal. Ambos se cruzam e tensionam, apesar de diferentes nas intenções e concepções de justiça social, equidade, papel do Estado, de políticas públicas, da sociedade civil, dentre outros.
O primeiro projeto, o reformista, ocorreu no decorrer da década de 1980, entre as forças sociais e movimentos que lutavam pela redemocratização do Estado brasileiro e pela mudança no padrão de intervenção social das políticas sociais. Uma das bandeiras de lutas era pelo fim da institucionalização de pessoas, do trato dos problemas sociais em instituições segregadoras, onde os sujeitos eram isolados da família e da comunidade. Nestas instituições, as pessoas eram segregadas por motivos diversos, por vulnerabilidades no campo da saúde mental, por velhice ou por outras fragilidades. Era um padrão de proteção que garantia um direito social, mas ao mesmo tempo castrava o direito civil do sujeito institucionalizado, a participação da família e da sociedade. Portanto, naquele contexto a luta era pela proteção social enquanto direito de cidadania e dever do Estado, em que justiça social deveria ser complementada por políticas públicas focalizadas para não reproduzir as desigualdades sociais.
No projeto reformista, vale destacar alguns movimentos. O movimento de Reforma Psiquiátrica lutou pelo fim dos manicômios e por um trato humano com dignidade e cidadania para as pessoas com transtorno mental, além de propor o acesso universal à saúde e com foco na proteção social primária, de caráter preventivo de promoção, com o trato da saúde e dos doentes em seus domicílios e suas comunidades. O movimento em torno da proteção social de crianças e adolescentes pleiteava o fim das instituições coercitivas, fechadas e disciplinadoras, nas quais as famílias eram visitas e compreendidas como promotoras dos problemas vivenciados por suas crianças e adolescentes. Este padrão de intervenção social era denunciado com argumentos de que ele trazia malefícios ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, como déficits de aprendizagem, rebeldia, ausência de laços afetivos e de vínculos com a família de origem, reincidências de atos infracionais, fugas, maus tratos, dentre outras denúncias. O movimento em torno da proteção às pessoas idosas também promoveu debates perpassados por ideais de mudanças no modelo de intervenção social, onde os serviços continuariam a ser ofertados pelo Estado, na condição de direitos, mas, numa nova perspectiva: a oferta de serviços diurnos (com retorno à noite para a família), com equipes interdisciplinares de referência, abertos à comunidade e com a definição de estratégias de parceria com a família.
O eixo principal do projeto reformista era a luta pela mudança no padrão de proteção social, a partir da confluência de propostas construídas e consensuadas pelos movimentos, por um novo modelo de proteção: com políticas públicas de cariz universalizante, mesmo quando eram focalizadas em determinados grupos; descentralizadas, para se tornar mais próximo do cidadão e de suas necessidades; com participação popular de caráter deliberativo, no que se refere à fiscalização e à formulação coletiva das políticas sociais. Este projeto foi incorporado em larga escala pela Constituição Federal de 1988 e se transformou no projeto democrático popular, em constante tensionamento com o projeto neoliberal, desde os anos de 1990.
O segundo projeto, o neoliberal, ganha força nos anos 1980 como saída para a crise do capital na segunda metade dos anos 1970, que ocorreu nos países de capitalismo avançado, como Estados Unidos da América, Reino Unido, especialmente a Inglaterra, e o Chile, com a ditadura Pinochet. Esse Projeto se difunde como política macroeconômica e social imposta pelo Consenso de Washigton, através do FMI e do Banco Mundial, no processo de renegociação das dívidas dos países Terceiro Mundo, em processo de desenvolvimento. De modo semelhante, no período pós crise do capital de 2008, do capital financeiro imobiliário nos EUA, que atingiu diversos países do mundo, o neoliberalismo se coloca como a única saída para a continuidade do capitalismo, como uma superestrutura do modelo de acumulação flexível, globalizado, financeirizado e neoliberal, o que Harvey (1982) denomina de nova regulação.
Vale ressaltar que um dos ataques mais ferozes do neoliberalismo tem sido ao Estado social ou Estado de Bem-Estar Social. As críticas neoliberais têm argumentos diversos: os custos do Estado, inviável em contexto de crise fiscal; a relação de baixa eficácia e efetividade das políticas no enfrentamento dos problemas sociais; a burocracia extensa e enorme massa de trabalhadores com altos salários. As críticas neoliberais atingem o Estado não apenas na esfera econômica e administrativa, mas sobremaneira, nas políticas sociais, no campo da ideologia e da moral, pois elas são acusadas de: gerar o ócio e a preguiça nos usuários, a falta de dedicação ao trabalho e de esforço para vencer na vida; destruir as responsabilidades familiares com seus entes, como crianças, adolescentes, pessoas idosas e com deficiência; de não valorizar o mérito, não dar margem de escolha; e de encolher a concorrência na oferta de serviços sociais.
Segundo Dardot e Laval (2016), gradativamente, ofensivas ideológicas e estratégias de coerção e coesão são utilizadas visando a adesão dos segmentos sociais ao individualismo, à privatização, à mercantilização e ao familismo, como formas mais econômicas e efetivas de enfrentamento das expressões da questão social, como as contrarreformas das políticas sociais (previdência social, trabalhista, lei da terceirização). São “reformas” que obrigam os indivíduos a governarem a si mesmo sob a pressão da competição e segundo os princípios do cálculo maximizador e da lógica de valorização do capital. Assim, os neoliberais difundem um novo modelo de intervenção social, descentralizado e compartilhado, no qual a sociedade civil - com organizações não governamentais, famílias, associações comunitárias, entidades confessionais, dentre outros - e o mercado são parceiros que fazem e são considerados agentes naturais da proteção social, cabendo ao Estado atender apenas aos mais pobres dentre os pobres.
Para o projeto neoliberal, este modelo de intervenção social descentralizado, misto e plural é mais econômico, visto que reduz o gasto público. Nesta lógica, as políticas sociais de formato mix público/privado devem difundir a “pedagogia da responsabilização” e da “gestão do risco social” diante das circunstâncias e de vulnerabilidades diversas, pois entendem que os indivíduos e as famílias devem gerir os riscos da existência, do nascimento à morte.
Para os neoliberais a solução para as demandas por proteção social é a reativação da responsabilidade individual e familiar, a supressão das políticas universalizantes, a recuperação da solidariedade entre parentes da família extensa, de vizinhos, de empresários, de organizações de caráter filantrópico ou caritativo, dentre outras formas de ajuda informal. Essa lógica neoliberal danifica a social-democracia como exemplo de proteção social, como a solidariedade intraclasse trabalhadora, mas também amplia a individualização e mercantiliza serviços sociais das políticas públicas, que perde o seu caráter de bens públicos coletivos e essenciais.
Esse projeto neoliberal tem avançado no Brasil desde os anos de 1990 e durante as três últimas décadas vem tensionando e transfigurando os direitos sociais instituídos na Constituição Federal, através de várias emendas constitucionais. A instituição normativa do Estado social democrático de direitos no país foi considerada um empecilho para a governabilidade no período pós 1988, marcadamente nos governos da Nova República, com Fernando Collor, Itamar Franco, e, principalmente, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, pois avançou numa confluência neoliberal perversa, de modo que ressignificou conceitos fundamentais como cidadania, políticas públicas, participação popular, dentre outros. Este projeto demanda um novo modelo de intervenção social, que traz a família para o centro das políticas sociais, numa relação de parceria que distribui responsabilidades sem necessariamente garantir meios e serviços que lhe auxiliem nas funções e tarefas atribuídas.
Atualmente, como destaca Brown (2020), as forças conservadoras fazem apelos mais diretos à moralidade tradicional, como a família tradicional, a ordem e aos bons costumes - da masculinidade branca, heterossexual e cristã, normas e enclaves raciais -, a defesa do livre mercado, às liberdades individuais, mas articulando às ideias do patriotismo e da cristandade.
No Brasil, no período pós anos de 1990, as políticas de seguridade social foram regulamentadas com leis orgânicas específicas (Saúde, Previdência e Assistência Social) e desde então vêm sofrendo cortes, tentativas de desmontes e de restrições no acesso. A Lei Orgânica da Saúde teve o capítulo sobre participação popular vetado. A Lei Orgânica da Assistência Social, depois de aprovada no Congresso Nacional, apesar das manobras para alterar o texto original, foi vetada na íntegra pelo presidente Itamar Franco, e somente em 1993, após interferência do Ministério Público Federal, foi promulgada.
Todavia, o Sistema Único de Saúde foi implementado e, no âmbito da atenção básica de saúde, foi criado o Programa Saúde da Família, que acabou por direcionar seu foco principal para os grupos mais vulneráveis. Entretanto, o programa instituiu ações sanitárias no meio familiar, levando em conta a história e dinâmica das famílias, que deveriam ser atendidas e acompanhadas pelas equipes de profissionais de saúde, desde as consultas até as internações, no ambiente dos seus domicílios. Depois, o Programa passou a ser denominado Estratégia Saúde da Família (ESF), devido a importância da prevenção, da promoção e do tratamento dos problemas de saúde dos sujeitos, mas deveria envolver a participação das famílias nos atendimentos e nas orientações, conforme as suas necessidades e as dos pacientes.
Entretanto, o avanço do projeto neoliberal, da gestão gerencial e tecnocrática vem alterando as definições do ESF e restringindo o atendimento do médico ao espaço da unidade de saúde, que atende por quantidade de individuais, sem condições de tempo para considerar a realidade da família e do território, o que causa impedimento ao atendimento no domicílio. Por sua vez, os/as enfermeiros/as atendem e formam grupos de acordo com a situação de saúde: de hipertensos, diabéticos, cardiopatas, de gravidez na adolescência, mas quase sempre o coletivo é formado a partir da doença e não da família, porém, sem atendimento no domicílio. Os agentes comunitários, com nível de conhecimento de menor complexidade na área da atenção básica de saúde, são os profissionais que, de fato, realizam as visitas domiciliares e são a possibilidade de ligação da unidade de saúde com as famílias e os territórios.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), assim como as deliberações do CONANDA, vêm alterando a forma de intervenção social com o público, tornando o acolhimento institucional uma medida de proteção excepcional e provisória, com estrutura menor e público reduzido, no território de moradia destes ou mais próximo possível. As novas regras incluem o acompanhamento às famílias de origem das crianças e adolescentes acolhidas, quando por motivo de violação de direitos foram retirados do seu núcleo familiar, mas sempre na perspectiva do retorno à convivência familiar e comunitária. Adolescentes que cometem atos infracionais leves são atendidos nos CREAS -, após determinação judicial, para cumprir medidas socioeducativas de liberdade assistida ou de prestação de serviços à comunidade -, com a participação das famílias e elaboração de um plano de acompanhamento familiar.
A Política de Assistência Social, desde 1998, apresenta o princípio da “centralidade na família para a concepção e implementação dos benefícios, programas e projetos” no texto da primeira Política Nacional. Em 2004, a segunda Política Nacional de Assistência Social (PNAS) dividiu a proteção social da assistência em dois níveis, a básica e a especial, o que levou a um reordenamento institucional e o início da implantação de equipamentos sociais descentralizados, como os CRAS e os CREAS, e, depois, os Centro Pop. Esta Política Nacional também indicou a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), formalmente instituído em 2005, e a definição de eixos estruturantes do SUAS, dos quais destacamos a matricialidade sociofamiliar, primeiro texto sobre uma concepção de família e indicativos para o trabalho social com família no âmbito da Política de Assistência Social.
Em 2009, a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais organizou e padronizou os serviços dos dois níveis de proteção social, mas todos eles têm como referência a matricialidade sociofamiliar e devem desenvolver o trabalho social com famílias. Na proteção social básica, o Serviço de Atendimento Integral à Família (PAIF) foi definido como principal e prioritário, de modo que os demais serviços são referenciados a ele. Do mesmo modo, na proteção social especial de média complexidade, o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI) também foi definido como principal e prioritário. Na proteção social especial de alta complexidade, ocorreu um reordenamento do acolhimento institucional visando garantir o direito à convivência familiar e comunitária.
Apesar do avanço dos movimentos em torno da defesa da política pública de assistência social, a inclusão da família nesta política não superou as experiências mundialmente difundidas por organismos humanitários. Também não superou as pressões das reformas neoliberais, responsáveis pelas contradições do modelo misto de proteção e do novo modo de incluir famílias nas políticas sociais e na assistência social. Como destaca Teixeira (2017), na Política de Assistência Social, a família é entendida numa dualidade: ora como sujeito de proteção social, o agente que deve garantir a proteção, assistência, cuidados e sobrevivência de seus membros independentes das adversidades sociais, dificuldades e ausência de vínculos; ora como sujeito de direitos, a ter suas necessidades atendidas, como público de atendimentos e acompanhamentos para casos mais graves de vulnerabilidade e riscos sociais.
Fruto dos embates entre defensores da política pública e do projeto neoliberal, foi difundida a ideia de que não se faz uma política pública sem parcerias, sem os mix público/privado. Esse entendimento garantiu às organizações de assistência social o estatuto de implementadoras da política e constitutivas do SUAS, no mesmo patamar das organizações governamentais. Do mesmo modo, estão as redes socioassistenciais de prestadores de serviços socioassistenciais, desde que atendam ao regramento posto pelas normativas da Política de Assistência Social. Essa contradição na inserção da família na política é nitidamente observada nos objetivos do PAIF e do PAEFI, ou seja: fortalecer e potencializar as funções protetivas das famílias, fortalecer vínculos, gerar autonomia das famílias e seu empoderamento.
Apesar desta perspectiva, a noção de centralidade na família contribuiu para romper com o atendimento individualizado e segmentalizado nos serviços, que era dissociado do grupo familiar. A família passou a ser incluída no acompanhamento, embora com durações variáveis, conforme as necessidades do grupo familiar. O trabalho social com famílias avançou na perspectiva dos direitos sociais, mas não rompeu com o familismo e fortalece o neofamilismo, ao buscar parcerias com as famílias para reforçar seus papéis protetivos, que sobrecarregam as mulheres nos papéis de cuidadoras, educadoras e socializadoras, mantendo a tradicional divisão sexual do trabalho. Como exemplo desta tendência, citamos o serviço socioassistencial Família Acolhedora, na proteção social de alta complexidade da Política de Assistência Social.
Com o Estatuto da Criança e do Adolescentes (1990) o Brasil tem uma das legislações mais avançadas e inovadoras do mundo, no que diz respeito à proteção da infância e da adolescência. O princípio da convivência familiar e comunitária é um direito previsto para crianças e adolescentes na legislação dos países parceiros da América Latina e Europa. Entre os países latino-americanos, o Brasil foi o primeiro a ter uma lei baseada na doutrina da proteção integral, pois o ECA foi regulado em 1990, a legislação Peruana foi em 2000 e a Uruguaia, em 2004. Importa destacar que a legislação brasileira, com a Política Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (2006) e a Lei de Adoção (2009), reconhece, portanto, a convivência familiar de crianças e adolescentes em quatro tipos circunstanciais de famílias, sendo elas: a de origem, a extensa, a acolhedora e a substituta.
Com o ECA, novos órgãos foram criados para conceder suporte e garantir a efetivação da cidadania das crianças e adolescentes, considerando a perspectiva da rede parceira, como o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar. Além disso, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Justiça, no uso de suas atribuições legais, atuam diretamente na garantia de direitos, pois integram o Sistema de Garantia de Direitos (SGD[1]) de crianças e adolescentes, no qual estão as organizações da rede do Serviço de Acolhimento.
Está em vigor uma nova concepção e novas resoluções e orientações acerca das situações que envolvem a necessidade do acolhimento de crianças e adolescentes, e não mais de abrigar. A mudança de nomenclatura é um dos aspectos significativos desse processo, pois expressa a inovação no conteúdo e significado do acolhimento no âmbito da proteção integral. Os Serviços de Acolhimento Institucional fazem parte da proteção social especial de alta complexidade do SUAS e suas metodologias e procedimentos de intervenção se contrapõem à lógica da cultura da institucionalização, do rótulo de meninos e meninas em situação irregular. O Serviço Família Acolhedora também é uma das formas de Acolhimento Institucional, que, sob medida de proteção, (Art. 98, ECA), acolhe crianças e adolescente em situações de violação de direitos em residências de Famílias Acolhedoras previamente cadastradas.
O Serviço Família Acolhedora caracteriza-se por ser provisório e excepcional e a permanência da criança/adolescente na Família acontece até que seja possível o retorno à sua família de origem (nuclear ou extensa) ou, diante da impossibilidade desse, o encaminhamento para a Família Substituta (BRASIL, 1990). Apesar de o acolhimento ser um espaço familiar diferente da família de origem, ressaltamos que o Família Acolhedora não se confunde com a adoção, que é definitiva. A sua diferença consiste em ser uma modalidade alternativa ao Acolhimento Institucional, um acolhimento temporário em um ambiente humanizado e acolhedor, de uma outra família, com o entendimento de que ela terá maior possibilidade de dar continuidade ao processo de desenvolvimento humano, cognitivo e afetivo de crianças e adolescentes. Portanto, há uma visão idílica de família, idealizada, como se nela não houvesse contradições, além da supervalorização deste espaço para a proteção social.
A partir da Lei 12.010 de 2009, o Acolhimento Familiar em Famílias Acolhedoras passou a ter prioridade sobre o Acolhimento Institucional (Art. 34, ECA), sobretudo de crianças que estão na Primeira Infância (Lei 13.257 de 2016). Nesta nova estratégia de acolhimento é ofertado o acompanhamento individualizado em um ambiente familiar diferenciado do original, para que possa ocorrer o acompanhamento da família de origem até o momento em que a mesma tenha condições de ter seus filhos novamente sob sua guarda.
Essa experiência de serviços é comum em países como EUA, com longa tradição liberal de terceirizar a proteção social, especialmente das famílias mais pobres, visando a redução de custos com os serviços institucionalizantes. Experiências similares ao Família Acolhedora são difundidas no contexto de avanço das reformas neoliberais, com base no receituário da austeridade fiscal, corte de gastos públicos, privatização, refilantropização e do voluntariado. São serviços que terceirizam o cuidado em família de crianças e adolescentes afastados da família de origem, como medida de proteção social integral. São justificadas com o discurso da solidariedade, do voluntariado, da responsabilidade de terceiros, da parceria na garantia do bem-estar social, de modo que acaba por justificar e camuflar o familismo.
Sem dúvidas, o serviço Famílias Acolhedoras contribui para a redução da cultura da institucionalização, possibilita a criação de vínculos, oferece ambiente familiar, possibilita a experimentação de uma convivência familiar e comunitária, e pode garantir a proteção integral. Entretanto, o mesmo serviço reforça a terceirização do cuidado, as parcerias e a solidariedade, pois solicita e reforça a responsabilidade de outras famílias com a proteção social de crianças e adolescentes, como uma nova atribuição, marcada pela relação de colaboracionismo que favorece a desresponsabilização estatal com a proteção social na oferta de serviços.
Conforme as orientações técnicas do Serviço, a quantidade de acolhidos por família acolhedora deve ser mínima. Deve ser acolhida apenas uma criança/adolescente por família, exceto em grupos de irmãos, o que reafirma a atenção e intervenção personalizada gerando possibilidades de maior sucesso na superação da violação do direito que motivou o acolhimento. Mas, carecem de estudos sobre os benefícios ou resultados reais para a vida das crianças, num espaço de acolhimento que pode gerar vínculos temporários.
Embora o acolhimento aconteça em residências de famílias acolhedoras previamente cadastradas, existem parâmetros normativos e orientações técnicas para que as crianças e adolescentes possam ser acolhidas pelas Famílias Acolhedoras. Tanto os acolhidos, quanto as famílias acolhedoras e as famílias de origem são acompanhadas por uma equipe institucional multiprofissional. O objetivo consiste em acompanhar a situação da criança/adolescente, a partir das demandas apresentadas, para que o acolhimento seja temporário, e assim, ocorra a reinserção familiar.
Desse modo, o colaboracionismo, a solidariedade direta, o voluntariado e a parceria estão substituindo gradativamente a intervenção estatal direta, que passa apenas a regular e coordenar, mas a execução efetiva do serviço fica sob a responsabilidade das famílias acolhedoras, na condição de famílias solidárias. A linguagem da garantia dos direitos sociais deixa de ser responsabilidade do Estado, para ser dos indivíduos e das famílias.
O familismo, típico da política social brasileira, continua em vigor e assume dimensões novas denominadas de neofamilismo, embora transmutado de parceria com as famílias, com o discurso da participação, da autonomia, do impulso ao empoderamento, da solidariedade intergeracional, do apelo ao voluntariado e a outras estratégias colaboracionistas. Porém, a família não é um espartilho que pode ser puxado ainda mais, na crença de sua capacidade de criar estratégias de sobrevivência, cuidados e proteção. Desde 2015, as famílias brasileiras, especialmente as mais pobres, têm suas condições de vida agravadas e baixa capacidade de resposta às estratégias de prevenção contra a Covid-19, pelas condições objetivas de vida e trabalho, pois são as mais atingidas pela doença e com maiores índices de mortalidade.
Assim questionamos: Quais as condições de vida e trabalho das famílias brasileiras, especialmente os mais pobres que trabalham na informalidade, no trabalho doméstico, por conta própria, antes e durante a pandemia por Covid-19? O que suas condições de moradia, acesso à água tratada, de higiene, quantidade de pessoas por domicílio nos diz sobre sua capacidade de prevenção da doença? Quais os desafios do trabalho com famílias no contexto de acirramento da pobreza, da miséria, da fome, desemprego, isolamento e distanciamento social posto pelas medidas de segurança no enfrentamento da Covid-19?
A condição de pobreza e de extrema pobreza das famílias brasileiras pode ser explicada por variados determinantes, mas no geral está diretamente vinculada às condições de acesso ao trabalho e à renda resultante do trabalho. De acordo com os indicadores do IBGE (2020), antes da pandemia, no final de 2019, do total das pessoas em idade de trabalhar, 11,0% estavam desocupadas, mas de todo o país a situação foi mais grave no Nordeste, pois eram 13,6% de desocupadas. No Brasil, no contexto pandêmico e no final de 2020, o percentual de pessoas em idade de trabalhar que estavam desocupadas foi agravado em todas as grandes regiões, atingindo 13,9% como percentual geral. Porém, a região Nordeste continuou com o maior percentual na taxa de desocupação do país, com 17,2%. Ao analisar a taxa de desocupação no Brasil, por sexo, os homens perderam menos trabalho do que as mulheres, pois 11,9% deles estavam desocupados, enquanto as mulheres atingiram um percentual de 16,4% de desocupação, ou seja, sem trabalho, quer tenha sido remunerado ou não.
Para o IBGE (2020), o termo desocupação[2] diz respeito à condição das pessoas que, em idade de trabalhar, não estão trabalhando. Desde o ano de 2015, o Instituto classifica como ocupadas as pessoas que, na semana da pesquisa, trabalharam pelo menos uma hora completa em trabalho remunerado em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios (moradia, alimentação, roupas, treinamento etc.). Desse modo, a condição de ocupação não está limitada às atividades laborais que são pagas com um valor monetário, na forma de salário, como no geral consideramos as pessoas empregadas. Para o IBGE (2020), também são consideradas ocupadas as pessoas que desempenham um trabalho de ajuda a parentes, do mesmo domicílio ou não, na execução de uma atividade econômica, embora sem remuneração direta.
Com o propósito de compreender a realidade das famílias mais empobrecidas, antes e durante a pandemia em curso, apresentamos neste trabalho informações sobre as condições de trabalho e renda monetária adquiridos a partir dele, visto que são a base do orçamento familiar para custeio das despesas domésticas. Para o IBGE, a posição das pessoas na condição de ocupação é definida com base em quatro modalidades[3], mas consideramos duas mais significativas: os trabalhadores empregados, que no ano de 2020 atingiu um percentual de 66,1%; e os trabalhadores por conta própria, que no mesmo ano alcançou um percentual de 27%. Porém, dentre todas as grandes regiões do Brasil, o Norte (32,3%) e o Nordeste (31,0%) estavam com percentuais de trabalhadores por conta própria mais elevadas. No sentido inverso, os trabalhadores empregados da região Norte (58,6%) e do Nordeste (62,4%) apresentam os mais baixos percentuais de todo o país.
Os trabalhadores por conta própria, também denominados de autônomos, não têm uma única forma de produção e inserção no mundo do trabalho, pois são diversas e heterogêneos. A maioria desses trabalhadores podem ser considerados informais, pois apenas 20,1% têm registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), e 30,1% contribuem com a Previdência Social, como segurados autônomos. De acordo com o IBGE (IBGE, SIS, 2020), o trabalhador por conta própria é a “pessoa que trabalhava explorando o seu próprio empreendimento, sozinha ou com sócio, sem ter empregado e contando, ou não, com a ajuda de trabalhador familiar auxiliar”. Os trabalhadores por conta própria não são empregados de carteira assinada, nem empregadores. Na maioria das situações, desenvolvem trabalhos informais avulsos, os denominados bicos, sem vinculação formal, numa condição de instabilidade de contratação de seu trabalho, por períodos curtos e irregulares, sem segurança de renda fixa.
No final de 2020, dentre as pessoas ocupadas do Brasil, estavam na condição de empregados apenas 66,1% dos homens e mulheres em idade de trabalhar. Entretanto, os empregadores representavam 4,6% das pessoas ocupadas na condição oposta: de possibilitar o emprego de outras pessoas. Para o IBGE (2020), o percentual restante não diz respeito à taxa de desemprego no país, mas às outras duas modalidades de ocupação, a saber: os trabalhadores por conta própria (27,0%), que no geral trabalham na informalidade; e os trabalhadores familiares auxiliares (2,4%), que desenvolvem tarefas laborais, embora sem rendimento direto. Estes dois últimos tipos de trabalhadores somam um percentual de 29,4%. Numa hipótese otimista, de que a metade dos trabalhadores por conta própria consegue uma renda satisfatória, somamos à outra metade (13,5%) com os trabalhadores familiares auxiliares (2,4%) e adicionamos o percentual de desocupados (13,9%) chegaremos a um total de 29,8%. Portanto, entendemos que este percentual expressa a taxa de desemprego no país.
Os trabalhadores empregados são classificados pelo IBGE (2020), de acordo com o espaço de trabalho, em três diferentes categorias: os empregados no setor privado; os trabalhadores domésticos; e os empregados do setor público, incluindo os militares e os estatutários. Em 2019, o setor privado representava 71,7% dos empregados, mas com pandemia e ao final de 2020, ocorreu uma queda neste percentual e chegou a 70,0%. Entretanto, 25,0% desses trabalhadores empregados no setor privado não tinham carteira assinada, de modo que também estavam na informalidade. Porém, a renda dos trabalhadores do setor privado, com carteira assinada e a do setor público, permaneceu quase estável.
Ao analisar o impacto da pandemia da Covid-19 no mercado de trabalho, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com base na PNAD Contínua, informou que os trabalhadores por conta própria foram os mais prejudicados em termos de queda de rendimento no ano de 2020. Eles receberam apenas 76% da renda habitual no segundo trimestre de 2020 e, no quarto trimestre, atingiram 90%. Os empregados no setor privado na condição de informais por não ter carteira de trabalho assinada, receberam 87% da renda habitual no segundo trimestre e 96% no quarto trimestre de 2020. Porém, ao final de 2020, a renda caiu inclusive entre os empregados do setor privado com carteira (-1,4%) e os do setor público (-0,2%), mas para os trabalhadores por conta própria chegou a 6,7% de redução.
Importa destacar que a definição de informalidade utilizada na Síntese dos Indicadores sociais do IBGE (2020) é recomendada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e inclui cinco modalidades de posição na ocupação: empregado no setor privado e no setor público sem carteira de trabalho assinada; trabalhador doméstico sem carteira de trabalho assinada; trabalhador por conta própria sem CNPJ e não contribuinte com a Previdência Social; empregador não contribuinte; e trabalhador familiar auxiliar.
Durante o ano de 2019, os trabalhadores domésticos representavam 10,0% do conjunto dos empregados. Com a pandemia e ao final de 2020, muitos trabalhadores domésticos perderam seus empregos, pois esse percentual caiu para 8,6%. Porém, a situação desses trabalhadores é mais grave, pois 73,9% deles não tinham carteira assinada, trabalhavam na informalidade, sem garantias dos direitos previdenciários e sem acesso ao seguro-desemprego. De acordo com o IBGE, mesmo antes da pandemia e ao final de 2019, o nível de renda de 25,6% dos trabalhadores domésticos, estava na condição de pobreza.
O terceiro tipo de empregados são trabalhadores no setor público. Durante o ano de 2019, o trabalhador identificado como servidor público representou um percentual de 18,3% de todos os empregados. A partir do contexto da pandemia e ao final de 2020 o número de servidores cresceu, principalmente pela ampliação da oferta de vagas na área da saúde pública, atingindo o percentual de 21,4%. Do total dos servidores públicos, a maioria ou 71,2% são militares e estatutários. Porém, a outra parte (29,6%) desses empregados têm outras formas de contratos do trabalho, mas apenas 9,8% têm carteira de trabalho assinada. Segundo o IBGE, ao final de 2020, a renda dos trabalhadores do setor público não sofreu redução significativa.
Outra dimensão da precarização das condições de vida das famílias, antes e durante a pandemia em curso diz respeito às condições de abastecimento de água e de moradia. O acesso regular à água para suprir as necessidades básicas das pessoas é compreendido como um dos principais problemas mundiais, principalmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil, de grandes regiões metropolitanas e de extensa periferia, com adensamento populacional e elevado nível de pobreza. A dificuldade de as pessoas acessar água potável motivou a definição do sexto Objetivo do Desenvolvimento Sustentável (ODS)[4] na Agenda 2030 da ONU. O abastecimento adequado de água, em conjunto com outros serviços básicos, como saneamento básico e coleta de lixo, repercutem em benefícios diversos e indicam prática de hábitos higiênicos que possibilitam o controle e a prevenção de doenças, a exemplo das urgentes e necessárias medidas de prevenção contra a contaminação pela Covid-19.
O IBGE disponibilizou o documento Indicadores de Moradia, no contexto da Pré-pandemia da Covid-19, no início de 2021, a partir da PNAD Contínua de 2019. Segundo as informações do instituto, 62,2% da população brasileira tem melhores condições de cumprir as recomendações das autoridades sanitárias, no que diz respeito às medidas de prevenção à Covid-19, porque dispõe de água oriunda de rede geral de distribuição, com abastecimento diário e com estrutura de armazenamento em seu domicílio. Numa situação intermediária, estavam 22,0 % das famílias que residem em domicílios abastecidos pela rede geral, porém sem abastecimento diário (22,4%) ou estrutura de armazenamento. Numa situação difícil, estavam as famílias que residiam em domicílios com canalização interna, porém o abastecimento era por outra forma, que não pela rede geral (11,9%), visto que era por meios de soluções alternativas de abastecimento. Em situação ainda pior, estavam 3,4% das famílias, pois residiam em domicílios que não eram ligados à rede geral de abastecimento de água, de modo que não tinham canalização de água em nenhum dos cômodos do domicílio.
Entre as Grande Regiões do país, o Norte (29,6%) e o Nordeste (41,1%) apresentaram os menores percentuais de domicílios abastecidos pela rede geral de distribuição de água, com abastecimento diário e estrutura para armazenamento. Entretanto, essas mesmas regiões apresentaram os percentuais mais elevados na precarização do abastecimento de água, por não dispor da rede geral e usar outras formas de acesso à água, com ou sem canalização interna nos domicílios. Nesta condição, estavam as famílias residentes em domicílios do Norte (41,8%), mas a situação mais grave foi em Rondônia (55,5%) e no Amapá (45,7%). Essas formas de precarização no acesso à água atingiram 20,9% das famílias do Nordeste. No Maranhão, essas limitações atingiram os domicílios de 30,8 % das famílias, mas na grande São Luís este percentual foi reduzido para 23,9% dos domicílios.
As estruturas dos domicílios também indicam informações sobre as condições de as famílias prevenirem a contaminação ou de facilitar a disseminação do COVID-19. O instituto denomina de aglomerado subnormal as formas de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia, públicos ou privados, para fins de habitação em áreas urbanas, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais, como saneamento básico, rede de água e de energia elétrica (IBGE, 2020). Esses aglomerados são conhecidos como favelas, palafitas, ocupações, mocambo, periferias, dentre outros. Têm uma densidade de edificações extremamente elevada, em terrenos acidentados, com habitações precárias e de espaços reduzidos. No geral, as famílias que moram em habitações situadas nestas áreas vivem em condições socioeconômicas precarizadas.
De acordo com a estimativa do IBGE (2020), no ano de 2019, no Brasil havia 5.127.747 de domicílios ocupados em 13.151 aglomerados subnormais. Essas comunidades estavam localizadas em 734 municípios, em todos os estados do país. Entre os estados brasileiros, o Amazonas (34,59%) tem a maior proporção de domicílios em aglomerados subnormais. Em seguida vem o Espírito Santo (26,10%), o Amapá (21,58%), Pará (19,68%) e o Rio de Janeiro (12,63%). Em São Paulo, 7,09% dos domicílios estão nessas localidades. O município de Vitória do Jari, no Amapá, tem 74% dos domicílios localizados em aglomerados subnormais. Belém (55,5%) e Manaus (53,3%) têm mais da metade dos domicílios ocupados em aglomerados subnormais. Em Salvador (41,8%), a proporção desses domicílios é menor.
Buscando entender as condições de as famílias atenderem às recomendações sanitárias para prevenção da Covid-19, como o distanciamento social, apresentamos algumas informações sobre as condições de moradia, mais precisamente sobre o adensamento domiciliar, ou seja, sobre o número de moradores por domicílio e de pessoas por dormitório nestes domicílios. No Brasil, em 2019, os domicílios com maior adensamento familiar, com 6 moradores ou mais, eram o local de residência de 9,8% das famílias. A Região Norte tinha o maior percentual de adensamento, atingindo 13,2% dos domicílios familiares. Ao contrário, a Região Sul, apresentou a menor proporção, com 2,3% dos domicílios. O estado brasileiro que apresentou maior proporção de famílias residindo em domicílios com 6 ou mais pessoas, foi o Amapá (32,5%), com a região metropolitana de sua capital Macapá (32,4%).
Outra recomendação de saúde pública para a prevenção da contaminação pela Covid-19 diz respeito aos hábitos de higiene. Por isso, a PNAD Contínua definiu outra variável para compreender as inadequações nos domicílios: a ausência de banheiro de uso exclusivo dos moradores, ou seja, instalações sanitárias para higiene no cotidiano não compartilhado com moradores de outros domicílios. Em 2019, do total das famílias brasileiras, 2,6% residiam em domicílios (5,4 milhões de pessoas) sem banheiro de uso exclusivo. As famílias em situação de pobreza (com rendimento domiciliar per capita inferior a US$ 5,50 PPC por dia), essa proporção de domicílios sem banheiro de uso exclusivo foi maior, pois atingiu 8,1% das famílias.
As condições econômicas e sociais das famílias brasileiras são profundamente desiguais em várias dimensões, mas são demarcadas pela inserção no mundo do trabalho, e, sobretudo, pelo fosso na diferenciação dos rendimentos. Nas famílias brasileiras, o nível de pobreza não se explica pela demografia: não é o tamanho da família nem as taxas elevadas de fecundidade que fazem as famílias serem mais pobres. Se fosse ao contrário, a desigualdade social entre as famílias brasileiras seria menos profunda e devastadora. Segundo Medeiros (2004, p.16), no Brasil, o papel da composição familiar e da organização da família para o trabalho não produz diferença entre a renda das famílias, pois a diferença de renda advindas do trabalho constitui a principal explicação da desigualdade entre as famílias ricas e as mais empobrecidas, ou seja, para avaliar as condições de pobreza e de desigualdade social.
Durante as duas primeiras décadas do Século XXI, a maioria das famílias brasileiras não experimentaram um padrão de vida digna. Entretanto, entre os anos de 2001 e 2011 ocorreu uma melhora na renda média das famílias e um recuo expressivo das taxas de pobreza e de extrema pobreza, mas, a partir de 2014, com a recessão econômica, o número de famílias nestas condições aumentou. De acordo com o IBGE (2020), no final de 2019, a condição de pobreza atingiu 24,7% % das famílias brasileiras. A situação de extrema pobreza alcançou 6,5% dessas famílias, caracterizada pela dificuldade de acesso ao trabalho e pelos limites de renda. Entretanto, 70% dessas famílias, que estavam abaixo das linhas de pobreza, eram de cor preta ou parda. As famílias chefiadas por mulheres pretas ou pardas foram mais afetadas pela pobreza, pois eram 39,8% dos extremamente pobres e 38,1% dos pobres.
Conforme tabela abaixo, a desigualdade nas condições de renda aparece com mais evidência na Região Nordeste e no Estado do Maranhão, principalmente quando comparada à Região Sudeste e a Sul. No ano de 2019, no Nordeste, 23,7% das famílias sobreviviam sem nenhuma renda ou com até ¼ do salário-mínimo, como renda per capita, ou seja, em condição extrema pobreza. Na situação de pobreza, com até ½ salário-mínimo, estavam 25,2% das famílias. Somados esses dados de pobreza e de extrema pobreza estão nestas condições 48,9% das famílias nordestinas. Em 2019, dentre as grandes regiões brasileiras, as famílias do Nordeste sobreviveram com os maiores índices de indigência e de pobreza do país. Também neste ano, o Maranhão apresentou os piores índices de renda do país e da região: 58,5% das famílias viviam com apenas de ¼ ou até ½ salário-mínimo, ou seja: 32,0% das famílias estavam na linha de extrema pobreza e 26,5% na de pobreza. Com renda de até um salário-mínimo, estava um percentual menor, 25,5% das famílias maranhenses.
A desigualdade social entre as famílias brasileiras é muito mais expressiva devido as diferenças entre os rendimentos e as condições sociais entre os centros urbanos e suas regiões periféricas. Na Região Norte, apenas 1,7 das famílias recebiam mais de 5 salários-mínimos. No Nordeste, apenas 2,0% as famílias nordestinas e 0,7% das maranhenses estavam em 2019, na faixa maior de renda, com mais de 5 salários, enquanto no Sudeste, 5,6 de famílias recebiam mais de 5 salários-mínimos. O fosso maior da desigualdade de renda no país é observado, quando comparamos as informações acima com as do Distrito Federal, pois apresenta os maiores índices de renda per capita de todo o Brasil. Portanto, a distribuição de renda no país é profundamente desigual, expressando o acirramento do fosso social entre a maioria das famílias pobres e extremamente pobres e a minoria das famílias ricas.
Conforme o acima exposto, a precarização das condições de vida das famílias brasileiras foi mais agravada no contexto da pandemia. Essa situação tem imposto limites para a proteção familiar em dois aspectos: na provisão material para o sustento da família, no que se refere ao atendimento das necessidades básicas mais essenciais; e no que diz respeito à construção de referência familiar para os integrantes mais vulnerabilizados na medida em que dificulta, e em muitos casos impede uma convivência familiar mais participativa entre as gerações, entre pais, mães, seus filhos e idosos. Desde o período anterior à pandemia, a precarização das condições de vida tem exigido de homens e mulheres adultos uma dedicação de tempo muito maior à luta pela sobrevivência do que à convivência familiar.
A discussão sobre o agravamento das condições sociais de vida das famílias brasileiras permite compreender o retrato da pobreza, da desigualdade social, da limitação de renda e redução de oportunidades para que as famílias mais pobres vivam com dignidade. Demonstra os limites e dificuldades que as famílias enfrentam para garantir a sobrevivência dos seus integrantes, dentro dos parâmetros de uma vida digna. Desse modo, comprova a ampliação das demandas familiares por proteção social do Estado, em caráter de urgência nas várias políticas sociais, de: saúde, habitação, educação, trabalho, saneamento e de assistência social. Porém, a precarização das condições de vida das famílias também denuncia a quase ausência de políticas governamentais voltadas para a inserção no mercado de trabalho, que possibilitaria às pessoas da família em condições de trabalhar, mais oportunidades de acesso à renda para satisfação das necessidades familiares, sem precisar recorrer aos benefícios socioassistenciais.
Apesar da precarização das condições sociais de vida das famílias extremamente pobres e pobres, cada vez mais as políticas sociais brasileiras desenham, utopicamente, um trabalho social com família idealista, baseado na parceria, através do qual as famílias são chamadas a colaborar com os serviços públicos estatais e com outras famílias, embora também precisem da proteção social do Estado. Parece que as famílias estão cada vez mais valorizadas pelas políticas sociais, pois elas são convidadas para participar e colaborar na construção de alternativas sobre seus problemas e dificuldades, como num processo harmônico de parceria. Entretanto, esta aparente valorização da família está subjugada à perspectiva neoliberal, incorporada pelas políticas familistas, que induzem as famílias a assumir responsabilidades e contribuir com a redução dos custos do Estado com a proteção social. Assim, as políticas sociais familistas mantêm esse cuidado no âmbito privado da família e como atribuição das mulheres.
De modo geral, o trabalho social com famílias desenvolvido pelas políticas sociais, e particularmente, pela Política de Assistência Social, ainda não rompeu com as expectativas sociais sobre as tradicionais funções da família na sociedade. Reproduz a ideia de que a família é a primeira instância de proteção social, de que ela deve assumir atribuições de proteção e cuidados no núcleo familiar, na família extensa e com outras famílias da comunidade. Motiva a família para firmar compromissos de mudar comportamentos de risco, a partir da difusão da “pedagogia da responsabilização familiar”, como um trabalho ético-político e moral na promoção de uma reforma moral da família pobre, fundada no aconselhamento profissional.