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O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES EM TEMPOS DE PANDEMIA DA COVID-19(Coronavirus Disease) convergências e desafios
ADDRESSING VIOLENCE AGAINST WOMEN IN TIMES OF THE COVID-19 (Coronavirus[1] Disease) PANDEMIC: convergences and challenges
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 514-527, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Mesas temáticas coordenadas


Recepción: 14 Febrero 2022

Aprobación: 01 Julio 2022

Resumo: O presente trabalho analisa a questão da violência de gênero, enquanto uma violação de direitos humanos, com enfoque no incremento dos casos de violência contra as mulheres no contexto da crise pandêmica COVID-19, durante o período de isolamento social ocorrido no Brasil. Objetiva apontar os principais desafios ao combate da violência de gênero a serem superados pelo país em um contexto pandêmico, com fins ao efetivo cumprimento da Meta 5 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas. Adota uma abordagem direcionada à análise de conteúdo de discursos representativos de instituições governamentais, sob a forma de pesquisa bibliográfica e documental. Considera, como fontes, os dados empíricos disponibilizados pelas organizações internacionais, pela ONU Mulheres e pelo Instituto de Pesquisa Datafolha.

Palavras-chave: Direito Humanos, violência de gênero, COVID-19.

Abstract: The present work analyzes the issue of gender violence, as a violation of human rights, focusing on the increase in cases of violence against women in the context of the COVID-19 pandemic crisis, during the period of social isolation that occurred in Brazil. The objective is to point out the main challenges to the fight against gender violence to be overcome by the country in a pandemic context, in order to effectively comply with Goal 5 of the Sustainable Development Goals of the 2030 Agenda of the United Nations. The approach adopted is directed to the analysis of the content of representative speeches of governmental institutions, in the form of bibliographical and documental research. Empirical data provided by international organizations, UN Women and the Datafolha Research Institute are considered as sources.

Keywords: Human Rights, gender violence, COVID-19.

1 INTRODUÇÃO

O início do ano de 2020 foi assinalado pela crise sanitária decorrente da propagação da Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), cujo surto epidêmico foi mundialmente reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em declaração pública no dia de 30 de janeiro de 2020, como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional a ensejar um alto nível de alerta tanto dos Organismos Internacionais quanto dos Estados-parte (AQUINO, 2020), visando à cooperação e à observância ao princípio da solidariedade com o objetivo premente de interromper a propagação do vírus (OPAS; OMS, 2020b).

No Brasil, o reconhecimento formal do surto pandêmico da COVID-19 ocorreu no dia 07 de fevereiro de 2020, data em que entrou em vigor a Lei n.º 13.979/2020 (BRASIL, 2020b), determinando medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

Durante o ápice deste surto pandêmico, diversas medidas foram estipuladas por ocasião do reconhecimento do estado de calamidade pública, as quais objetivaram, de início, a regulamentar a imperiosa suspensão das atividades reputadas não essenciais e definir aquelas consideradas essenciais, no intuito de resguardar a saúde, a segurança e o atendimento primário à população, sobretudo, aquelas em situação de vulnerabilidade social.

Dentro desse contexto de crise pandêmica global da COVID-19 que está a assolar o mundo, já tendo matado aproximadamente 579.308 pessoas no Brasil, com números de casos girando em torno de 20.741.815 de pessoas infectadas (BRASIL, 2020d), e que está a exigir uma redefinição de comportamentos, valores, modos de trabalho, entre outros, o país tem se deparado com uma situação agravante: os inúmeros casos de violência contra as mulheres, resultando, inclusive, em diversos crimes de feminicídio.

Isso porque, a despeito da instituição da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres e da promulgação de diplomas internacionais e nacionais de proteção às mulheres, a violência doméstica e familiar adquiriu contornos ainda mais severos em virtude do isolamento social ocasionado pela crise pandêmica. Através da análise dos dados oficiais divulgados, observa-se que a pandemia seja no ano de 2020, seja no ano de 2021, impôs novos obstáculos ao enfrentamento desta problemática.

A partir disso, evidentemente, a problemática da violência contra as mulheres impõe a devida proteção estatal e a salvaguarda das garantias e dos direitos correlacionados, sendo o seu enfrentamento essencial para a garantia dos princípios democráticos e para a construção de uma sociedade igualitária.

Destarte, o presente trabalho adota como premissa a análise da situação de violência de gênero, gradativamente aumentada durante o cenário de pandemia sanitária, que evidencia um contexto de dominação masculina simbólica tão premente na sociedade brasileira e que impõe uma reflexão sobre as alternativas a serem buscadas e implementadas através de políticas públicas, em âmbito nacional, objetivando à diminuição dos casos de violência contra as mulheres, em direção ao atendimento/cumprimento da meta ODS-5 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.

A pesquisa em questão desenvolveu-se sob a técnica de coleta de dados, realizada por meio de pesquisa bibliográfica para fins de revisão da literatura, ressaltando-se a análise multidisciplinar e internacional do tema, com ênfase não só em noções jurídicas, mas também econômicas, sociais e políticas. Ademais, considerou-se como fontes os dados empíricos oficiais disponibilizados pela ONU Mulheres, pelo Fórum Nacional de Segurança Pública e Instituto de Pesquisa Datafolha.

2 A VULNERABILIDADE DAS MULHERES NO CONTEXTO DE CRISE PANDÊMICA

Segundo a diretora da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), Carissa F. Etienene (OPAS; OMS, 2020a), os efeitos da pandemia são profundamente sentidos por populações consideradas vulneráveis, dentre as quais se destacam as mulheres, os idosos, os afrodescendentes, as crianças e adolescentes, a população carcerária, entre outras, ao afirmar que: “Se quisermos retardar a propagação da pandemia e colocar nossa região [das Américas] no caminho da recuperação, precisamos proteger os grupos vulneráveis da Covid-19” (OPAS; OMS, 2020a).

Nesse aspecto, considera-se vulnerabilidade as “condiciones determinadas por factores o procesos físicos, sociales, económicos y ambientales que aumentam la susceptibilidad de una comunidad al impacto de amenazas” (MARCOS, 2020). O que significa dizer que em razão da situação de vulnerabilidade em que esses grupos estão inseridos, as suas condições de sobrevivência se encontram mais fragilizadas em razão de suas condições socioeconômicas.

A crise pandêmica da COVID-19 atinge diretamente os grupos vulneráveis, em especial, as mulheres, o que exige o fortalecimento das medidas efetivas de saúde pública para melhor atender essas populações e uma ampliação da proteção social e econômica, pois as más condições provenientes das desigualdades estruturais acabam por limitar o acesso a serviços [de saúde, de saneamento, de acesso à justiça, etc.] (AQUINO, 2020).

Segundo a Agência Brasil (2020), de 12 estados brasileiros analisados, observou-se um aumento exponencial do número de casos de feminicídio, com especial destaque ao Estado do Maranhão que experimentou um acréscimo na ordem percentual de 166,7% em números de casos, tendo em sua dianteira apenas o Estado do Acre, que vivenciou um crescimento no percentual de 300%, seguido pelo Estado do Mato Grosso, com uma variação de 150%. Ressaltando-se que houve um aumento no número de denúncias pelo 180 em todo o país, em torno de 17,9% em comparação ao ano passado - 2020.

Durante o mês de abril/2020, período em que muitos estados estavam a cumprir o isolamento social total, esse percentual mais que dobrou, chegando a 37,6%, de acordo com dados oficiais divulgados pelo Ministério da Economia, notadamente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (BRASIL, 2020c).

Tais levantamentos são confirmados pelo Fórum Nacional de Segurança Pública, que divulgou dados comparativos dos meses de março de 2019 e março de 2020 (período de início da pandemia), onde se constata que o número de casos de feminicídio aumentou em 46% em São Paulo, 67% no Acre e triplicou no Rio Grande do Norte.

Outrossim, dados disponibilizados pela ONU Mulheres (2020) revelam que países como Canadá, Alemanha, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos e França relataram um aumento de casos de violência durante os primeiros meses do surto pandêmico da COVID-19. Outros países como Singapura, Chile, Argentina e Austrália também apresentaram aumento de solicitações de ajuda em linhas telefônicas, com 33%, 30%, 25% e 40% a mais de ligações nesse período, respectivamente.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, por intermédio do Ministério da Saúde, afirmou, também, que no ano de 2020, em pesquisa realizada em 6 países latino-americanos, incluindo o Brasil, 60% a 76% das mulheres foram vítimas de violência de gênero em diferentes áreas da sua vida (BRASIL, 2020d).

Em 2021, por sua vez, foi publicado o Relatório de 2021 sobre igualdade de gênero na União Europeia (COMISSÃO EUROPEIA, 2021), pela Comissão Europeia, que registra um aumento exponencial da violência doméstica nos países europeus durante o período de confinamento, o que demonstra que a tendência do aumento dos casos de violência contra as mulheres é um gravame que assola diversos continentes no planeta, especialmente, durante a crise sanitária decorrente da pandemia da COVID-19.

Já no segundo semestre de 2021, dados disponibilizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Instituto de Pesquisa Datafolha, através do projeto “Visível e Invisível: A vitimização de mulheres no Brasil”, revelam que 01 em cada 04 brasileiras (24,4%) acima de 16 anos sofreu algum tipo de violência ou agressão durante a pandemia da COVID-19, tendo 48,8% das vítimas relatado que tais episódios ocorreram em ambiente doméstico. Outrossim, 73,5% da população brasileira demonstrou que acredita que a violência de gênero cresceu nesse período.

O gráfico abaixo demonstra os tipos de violência que as mulheres reconhecem ter sofrido, com base nos valores médios previstos na projeção populacional. Veja-se:

Tabela 1
Mulheres que sofreram algum tipo de violência ou agressão durante o contexto pandêmico

Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Instituto Datafolha. Pesquisa Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, edição 3, 2021.

Ademais, o Relatório divulgado pela Comissão Europeia (COMISSÃO EUROPEIA, 2021) traz um dado bastante expressivo no que diz respeito à participação das mulheres na linha de frente do combate ao coronavírus, ressaltando que 76% do pessoal de saúde são representados pelo gênero feminino e que essa porcentagem sobe para 86% nos casos de prestadores de cuidados pessoais nos serviços de saúde:

Com a pandemia, as pessoas que trabalham nestes setores viram um aumento sem precedentes da sua carga de trabalho, dos seus riscos para a saúde e dos desafios que encontram no equilíbrio entre a vida pessoal e profissional”, frisa o relatório. (COMISSÃO EUROPEIA, 2021).

Disso, tem-se que isolamento social a que muitas mulheres estão submetidas durante a pandemia enseja a banalização social da violência, pois gera a dificuldade daquelas qualificarem como violência os abusos, as agressões e as pressões sociais sofridas durante o período de pandemia, possibilitando cada vez mais o enraizamento do modelo patriarcal calcado na objetificação e no tratamento desigual da mulher em relação ao homem.

Assim, trata-se de uma violência de natureza simbólica que se reproduz, estabelecendo um ‘habitus’, legitimada que está nas próprias estruturas sociais de poder e que assegura a superioridade do ‘masculino’ em relação ao ‘feminino’. A respeito da reprodução habitual das condutas [violentas], assevera Bourdieu (1989): “a noção de habitus exprime, sobretudo, a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a ciência social se encerrou, a da consciência e do inconsciente, a do finalismo e do mecanicismo etc”.

No entendimento de Brandão, Alencar & Aquino (2018, p. 91):

[...] a violência contra a mulher possui fundamentos nas densas relações de poder no que concerne o gênero. Estas relações de poder são reproduzidas pelo aparato institucional, na sexualidade, etc. A ação de dominar a mulher acaba sendo encarada como característica precípua da masculinidade. Logo, o movimento de conjunturas históricas amalgamadas na sobreposição do homem sobre a mulher é o substrato para o surgimento de situações de violência contra a mulher.

Em outros termos, as discriminações contra as mulheres durante a crise pandêmica COVID-19 demonstram a necessidade de se promover uma análise sobre a cultura de violência existente em um modelo de dominação simbólica masculina que constitui barreira à efetivação dos direitos e das garantias legalmente reconhecidas, e que acabam por motivar graves violações de direitos [humanos] contra as mulheres.

A luta das mulheres compreende, portanto, o acesso adequado às condições normais. Com a crise pandêmica, essa luta se agrava e acaba por colocá-las em maior risco para contrair o vírus e sujeitos ativos da disseminação da COVID-19, além de estarem suscetíveis às situações de violência por decorrência do isolamento social.

3 O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES COMO MECANISMO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

A Constituição Federal de 1988, com a promessa de fundar uma modernidade democrática e pôr fim aos anos de governos militares, foi responsável por reconhecer a igual aplicação da lei para homens e mulheres, além de reconhecer o tratamento isonômico de gênero no próprio texto legal.

Inobstante, é imperioso ponderar que o reconhecimento da igualdade formal na Constituição não é suficiente para eliminar a discriminação contra a mulher. Nesse sentido, dispõe Fernandes (2015, p. 41):

A Constituição Federal de 1988, atenta aos movimentos de valorização da mulher, previu textualmente a igualdade de homens e mulheres em direitos e obrigações. E o reconhecimento dessa igualdade formal foi o primeiro passo, retirando do ordenamento diferenças discriminatórias. Contudo, a efetividade da igualdade exige algo mais.

Nesse contexto, a igualdade meramente formal, por si só, acaba por tornar-se discriminatória. É preciso considerar que homens e mulheres, embora sejam sujeitos de direitos iguais, são diferentes fisicamente, economicamente, biologicamente, socialmente, historicamente e economicamente. Dias (2007, p. 1) manifestou-se sobre o tema:

A aparente incompatibilidade dessas normas solve-se ao se constatar que a igualdade formal – igualdade de todos perante a lei – não conflita com o princípio da igualdade material, que é o direito à equiparação mediante a redução das diferenças sociais. Trata-se da consagração da máxima aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Marcar a diferença é o caminho para eliminá-la.

Barbosa (1999, p. 26), corrobora com as ideias apresentadas, como se vê:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.

Assim, necessário reforçar que o não enfrentamento à violência contra as mulheres impede o estabelecimento de uma igualdade verdadeiramente substancial, cuja consolidação é pressuposto para o desenvolvimento da democracia. Justifica-se, pois, a necessidade de enfrentar a problemática enquanto uma questão de direitos humanos.

Destarte, a Resolução nº 254/2018 do CNJ reconhece que é um dos objetivos da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres o estímulo à promoção de: “ações institucionais entre os integrantes do sistema de Justiça, para aplicação da legislação pátria e dos instrumentos jurídicos internacionais sobre direitos humanos e a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres” (BRASIL, 2018).

Nesse sentido, desde a adoção da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), desenvolveu-se uma nova área do Direito Internacional dos Direitos Humanos, com ênfase nos direitos humanos das mulheres (VÁSQUEZ, 2009, p. 37). Assim, vários foram os documentos normativos que, em âmbito internacional, apresentaram como objeto a proteção da mulher e o enfrentamento da violência[2], entre eles a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

No ano de 2015, na cidade de Nova York, os representantes dos cento e noventa e três Estados-membros da ONU reconheceram a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, como o maior desafio global e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável em suas três dimensões – econômica, social e ambiental.

O plano de ação da Agenda 2030 descreve dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas claras, integradas e indivisíveis, para a concretização dos direitos humanos e o alcance da igualdade de gênero e do empoderamento das mulheres e meninas, que devem ser implementadas até 2030, conforme a prioridade de cada nação e em um espírito de parceria global.

À vista disso, buscando a prosperidade e a paz universal com mais liberdade e com base no resultado de mais de dois anos de consulta pública intensiva e no envolvimento de países, partes interessadas e da sociedade civil, foi elaborado um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade, que descreve as medidas coletivas, urgentes e necessárias: a Agenda 2030 (ONU, 2015).

Tais metas são guiadas, entre outros, pelos propósitos e princípios da Declaração Universal de Direitos Humanos, da Carta das Nações Unidas, pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e resultados da Cúpula Mundial, que oferecem um panorama importante sobre a desigualdade no progresso verificado, sobretudo no continente africano, em países menos desenvolvidos, países sem litoral e em desenvolvimento e em pequenos Estados insulares em desenvolvimento, e, em particular, sobre os ODM relacionados à saúde materna, neonatal, infantil e à saúde reprodutiva.

Dentre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, ganham particular destaque aqueles relacionados à mulher e à saúde materna, neonatal, infantil e à saúde reprodutiva. Isso porque a efetivação da igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas serão de suma importância para o progresso em todos os demais ODS.

Não há que se falar em desenvolvimento sustentável em um contexto de desigualdades, violência, doença e sofrimento, pois o alcance do potencial humano está intrinsecamente conectado à garantia plena e universal de direitos humanos, dos direitos fundamentais e de oportunidades.

Contudo, múltiplas são as determinações do fenômeno de violência contra as mulheres e, para compreendê-lo, é preciso considerar que a sociedade brasileira repousa sobre o que Saffioti (2004, p. 49) chama de “tripé contraditório”, ou seja, as relações de gênero com primazia masculina, racismo contra o negro e relações de exploração-dominação de uma classe sobre outra, em detrimento dos menos privilegiados. Estes são fatores antidemocráticos e, segundo a autora, somente a igualdade social entre todos merece o título de democracia (SAFFIOTI, 2004).

Assim, a análise de questões de raça e cor é necessária à compreensão da violência de gênero, “uma vez que a maneira como as vulnerabilidades são vividas pelas mulheres variam fortemente de acordo com suas experiências singulares de vida e seus marcadores sociais” (NARDI; SILVEIRA; SPINDLER, 2014).

Não é à toa que, em relação ao perfil racial, os dados coletados pelo Instituto Datafolha e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021) demonstram que as mulheres pretas experimentaram níveis mais elevados de violência (28,3%) do que as pardas (24,6%) e as brancas (23,5%).

Diante da gravidade da problemática, que atinge o público feminino de países de todo o mundo, e impede a construção de um cenário global verdadeiramente igualitário e, por isso mesmo, democrático, é imperioso considerar a violência de gênero enquanto uma violação de direitos humanos das mulheres (ALENCAR; AQUINO, 2020).

Segundo a compreensão de Costa (2014, p 25), a violência de gênero, para além de uma questão local ou mesmo familiar, afeta todos os cidadãos, homens e mulheres, e também se encontra dentro de uma discussão de planificação internacional. O autor, então, conclui que “gênero é uma questão de direitos humanos, e assim deve ser tratado” (COSTA, 2014, p. 133).

Desta forma, entende-se que o avanço dos direitos humanos e, consequentemente, a sua compreensão serão fundamentais para implantar uma nova visão dos direitos da mulher em sociedade e, principalmente, alertar as soberanias a fortalecer este esforço com leis positivas que visem a promover a igualdade de gêneros em todos os setores da comunidade, quer no âmbito privado, quer no âmbito público. E isto inevitavelmente deverá passar por um processo legislativo forte, plasmado no discurso internacional dos direitos humanos, obtido nas conferências internacionais e nas declarações das Nações Unidas que reconhecem a mulher dotada de dignidade e que precisa ter seus direitos respeitados, de maneira a ver erradicada toda forma de discriminação. (COSTA, 2014, p. 132).

A importância da compreensão da violência enquanto problema global que atinge diretamente a eficácia dos direitos humanos é que, sob essa perspectiva, as mulheres passam a contar com uma última instância internacional de decisão, que se consubstancia em uma dupla proteção, nacional e global.

Assim, quando o direito interno não for suficiente, é possível que se acione o sistema internacional de justiça, cujo caráter vinculante de suas decisões pode garantir melhores condições de vida às vítimas, proporcionando-lhes segurança e bem-estar (COSTA, 2014, p. 329). Para além disso, essas decisões podem, inclusive, obrigar o Estado a implementar e cumprir políticas públicas de proteção às mulheres.

Finalmente, o que se observa é que a universalidade dos direitos humanos somente será concretizada, no cenário abordado por este trabalho, quando assegurado “[…] o acesso universal à saúde e seus determinantes econômicos”, considerada “[…] a proteção social para as pessoas mais vulneráveis” e, no que tange ao desenvolvimento econômico, “[…] a erradicação da pobreza e a conquista do desenvolvimento sustentável” (OPAS, 2020 [b], não paginado).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda no século passado, Simone de Beauvoir afirmou que basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. “Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida” (BEAUVOIR, 2009, p. 21).

O reconhecimento da necessidade de vigilância constante sobre os direitos das mulheres torna-se imperioso ante o processo de igualdade, o aperfeiçoamento das instituições e a atenção destas ao processo de transformação social e de adaptação, para que as políticas públicas decorrentes possam verdadeiramente contemplar os direitos humanos e as liberdades individuais.

Assim, nesse contexto social de crise sanitária decorrente da pandemia da COVID-19, destacam-se o aumento da prática de abusos e de casos de violência contra as mulheres, inclusive, aqueles que redundam em feminicídio, quantificado e qualificado através de repositórios de pesquisas que evidenciam a habitualidade de uma prática perversa que põe em cheque a efetivação dos direitos históricos e socialmente reconhecidos em favor das mulheres.

Nos dizeres de Ferreira et al. (2016, p. 58), a socialização dos gêneros, sobretudo na família, possibilita a permanência de mulheres em situação de violência, muito embora, não seja perceptível pelas mulheres e no círculo comunitário de convivência familiar, sendo imperioso o estabelecimento de políticas públicas tendentes à conscientização das nuances e das percepções que envolvem as diferenças de gênero.

Apesar dos grandes avanços normativos e legislativos em defesa das mulheres em situação de violência, a mera existência do arcabouço legal não é suficiente para garantir a efetivação dos direitos das mulheres, sendo necessária a concretização de ações de uma rede de apoio, no propósito de promover o devido acolhimento de mulheres em situação de violência, principalmente, no período de pandemia.

No entanto, em que pesem as evidências do aumento dos casos de violência contra as mulheres durante a crise sanitária, não se identificam ações contundentes baseadas em uma agenda governamental, no âmbito brasileiro, direcionadas exclusivamente ao estabelecimento de políticas públicas efetivas direcionadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres, seja através de campanhas de conscientização e/ou de ações de acolhimento de mulheres vítimas de violência, e que se encontram em situação de vulnerabilidade.

Toda essa problemática jurídico-social, então, sugere um repensar de novas alternativas ao enfrentamento da violência contra as mulheres na sociedade brasileira, reforçando a necessidade do apoio em conjunto da rede de proteção, no propósito uníssono de garantir os direitos e a erradicação desses casos de violência.

Recorre-se à Bourdieu (1989, p. 49) para explicar que a força do pré-construído está em que, achando-se inscrito ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, ele se apresenta com as aparências da evidência, que passa despercebido porque é encarado como perfeitamente natural. Assim, o autor sugere uma “conversão do olhar”, “dar novos olhos” a ideias já incorporadas como naturais. “E isso não é possível sem uma verdadeira conversão, uma metanoia, uma revolução mental, uma mudança de toda a visão do mundo social” (BOURDIEU, 1989, p. 49).

Sob essa perspectiva, verifica-se que, para efetivamente se vislumbrar a erradicação da violência contra as mulheres, é preciso repensar a formação dos magistrados no Brasil, que são responsáveis pela decisão final dos casos que a ele são submetidos. Destacam-se, assim, a inclusão de conteúdos relativos à equidade de gênero nos cursos de Direito e uma graduação mais crítica quanto à desigualdade entre homens e mulheres.

Para além disso, essa “conversão do olhar” precisa partir da sociedade como um todo, merecendo reforçar a importância de políticas públicas articuladas para uma conscientização social.

Por fim, é válido trazer à baila a compreensão de Costa (2014, p. 139), ao dizer que o processo de igualdade, pelo qual deve passar toda a sociedade, deve estar acompanhado do aperfeiçoamento das instituições, as quais necessitam estar atentas ao processo de transformação social, fazendo uma adaptação dessas mudanças dentro de um processo legislativo que contemple os direitos humanos e as liberdades individuais.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] A ONU Mulheres do Brasil elenca alguns dos instrumentos internacionais que orientam sua atuação no contexto nacional, quais sejam: a já citada CEDAW; a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim, adotados pelos governos na Conferência Mundial sobre a Mulher de 1995; A Resolução 1325 do Conselho de Segurança da ONU sobre Mulheres, Paz e Segurança (2000); a Declaração do Milênio e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que definiram um conjunto de metas para promover a igualdade de gênero entre 2000 a 2015 (ONU MULHERES, 2019).


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