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POLÍTICAS PÚBLICAS E PANDEMIA regressão social, financiamento e implicações para a educação pública e para a saúde
PUBLIC POLICIES AND PANDEMIC: social regression, funding and implications for public education and health
POLÍTICAS PÚBLICAS E PANDEMIA regressão social, financiamento e implicações para a educação pública e para a saúde
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 564-583, 2022
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 14 Febrero 2022
Aprobación: 29 Abril 2022
Resumo: O artigo tem como objetivo analisar o processo regressivo das políticas sociais no contexto da pandemia do corona vírus e do conjunto de medidas de ajustes fiscais de caráter ultraliberal do governo Bolsonaro. Para tanto, os autores concentram suas análises no trabalho remoto, nas condições de trabalho e suas repercussões na saúde dos professores na educação superior pública e no financiamento da educação básica, com foco especial para as ações de assistência financeira do governo federal aos entes federados subnacionais. Destaca as implicações da pandemia no contexto do projeto do capital para a educação em contraposição ao projeto de defesa da educação pública como direito humano. As reflexões apresentadas no texto são construídas a partir de pesquisas exploratórias bibliográfica e documental e do acúmulo de debates e análises no campo da ação política dos autores em defesa da educação pública.
Palavras-chave: Educação Pública, financiamento da educação, pandemia.
Abstract: The paper aims to analyze the regressive process of social policies in the context of the coronavirus pandemic and the set of fiscal adjustment measures of ultraliberal character of the Bolsonaro government. To this end, the authors focus their analyzes on remote work, working conditions and their repercussions on the health of teachers in public higher education and on the financing of basic education, with a special focus on the federal government's financial assistance actions to entities subnational federates, considering the implications of the pandemic in the context of the capital project for education as opposed to the project of defense of public education as a human right. The reflections presented in the text are built from exploratory bibliographical and documentary research and from the accumulation of debates and analyzes in the field of political action by the authors in defense of public education.
Keywords: Public Education, education financing, pandemic.
1 INTRODUÇÃO
Passados um ano e cinco meses do início da pandemia do novo coronavírus (SARS-COV), que deu origem à COVID-19, é necessário reconhecer e identificar os efeitos desse processo na sociabilidade capitalista e seus rebatimentos na área da educação superior pública. Em todas as suas dimensões, a organização social capitalista impactou e foi impactada pelas imposições e limitações pandêmicas, repercutindo na política, na economia, no mundo do trabalho, na cultura, nas diferentes formas de violência, na saúde, na educação e em todas as demais áreas da existência humana. As múltiplas determinações da crise sanitária encontraram-se com as múltiplas determinações da crise estrutural do capital e acabaram por revelar, como afirma Mészáros (2011, p. 51), que “a sociedade “afluente” transformou-se na sociedade de efluência asfixiante”.
Vale ressaltar que a crise pandêmica alia-se, ou mesmo é originada, na própria crise orgânica capitalista que, entre outras coisas, trata de forma devastadora a apropriação da natureza, dada a necessidade de acumulação. Se já era evidente na atual fase do capitalismo monopolista, de acumulação flexível com predomínio do capital financeiro, a necessidade de reconfiguração das funções do Estado, com impactos no conjunto das políticas públicas, a expansão da pandemia explicitou a absoluta necessidade de configurar a vida humana em subsunção real aos preceitos e demandas do capital de acumulação e centralização de lucros.
Tais crises, como expressões do modo de produção capitalista na atualidade, têm uma causa comum: a concentração cada vez mais intensa de capital industrial e financeiro, em forma “de posse de ativos patrimoniais que comandam a apropriação sobre uma grande escala de riquezas criadas por outrem; uma economia explicitamente orientada para os objetivos únicos de rentabilidade e de competitividade e nas quais somente as demandas monetárias solventes são reconhecidas.” (CHESNAIS, 2001, p. 2).
A globalização da covid-19 e as diferentes formas como os Estados nacionais administram a pandemia é também a expressão da globalização do capital e de como o Estado capitalista distribui espacialmente a ciência e a tecnologia, em comum acordo com o fluxo de capitais no mundo globalizado. Portanto, a pandemia do corona vírus não criou, por si só, uma crise, como anunciado por diversas vezes pelo presidente Bolsonaro e também pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. O que se tem com a pandemia é a expressão mais evidente das contradições de classe e da ação do Estado capitalista na manutenção das relações de produção do capital, ou nas palavras de Harvey (2011, p.16), o princípio de que “o poder do Estado deve proteger as instituições financeiras a todo custo”, o que significa em contextos de crise (ou fora deles) “privatizar os lucros e socializar os riscos; salvar os bancos e colocar os sacrifícios nas pessoas.”
Essa conjuntura intensificada de desigualdade capitalista ganha relevo no projeto do capital para as políticas públicas, que no Brasil tem seu marco regressivo contemporâneo intensificado a partir de 2016, com o golpe parlamentar-midiático-jurídico que acelerou a retirada de direitos e construiu bases para a ascensão da extrema direita com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Assim, o projeto do capital em sua perspectiva neoliberal, nos diferentes governos brasileiros desde a década de 1990, ganha novos contornos e impacta a sociabilidade ao implementar a Emenda Constitucional nº 95/2016, que impõe teto de investimento nas políticas públicas e um conjunto de contrarreformas (trabalhista, da previdência, ensino médio, etc), que retiram direitos da classe trabalhadora, e ao se articular com uma perspectiva neofascista.
O financiamento da educação no Brasil vem sendo objeto de intensos debates e disputas na última década. A garantia constitucional de recursos financeiros vinculados à educação, oriundos da receita de impostos, do salário-educação e dos royalties do petróleo não tem se mostrado suficiente para a garantia do direito à educação com qualidade e equidade. Após um curto período de aumento, o gasto com educação vem apresentando queda contínua, tanto na educação básica quanto superior.
Não bastasse essa brutal realidade, tem-se que enfrentar no Brasil a necropolítica (MBEMBE, 2018) do governo federal, fundamentada no negacionismo, na negligência com a saúde pública, no fundamentalismo religioso e na imensa quantidade de notícias falsas propagadas pelas mídias sociais, que contribuem para o aumento no número de mortes e dificultam o controle da pandemia. A mais grave crise sanitária dos últimos cem anos tem aumentado a ansiedade, o medo e o sentimento de incerteza na população de um modo geral (ORNELL et al, 2020).
O projeto de educação pública, gratuita, laica, socialmente referenciada, antipatriarcal, antimachista, antilgbtfóbica e anticapacitista, construído pelo movimento docente, está cada vez mais imprensado por duas dimensões da ordem do capital que se comunicam, se retroalimentam e, mais, são complementares: por um lado, uma educação mercantilizada, pautada na certificação em larga escala, prioritariamente privada, com a manutenção de pequenos centros de referência – esses públicos – para a produção técnica do conhecimento; e, por outro lado, um mercado de trabalho absolutamente em transformação, precarizado, uberizado e mediado pela tecnologia, seja na produção e execução presencial, seja no trabalho remoto.
O mercado de trabalho, tradicionalmente estudado a partir dos rebatimentos no setor privado, deve ser compreendido como elemento propulsor de uma nova racionalidade, também para o setor público. O que a acumulação flexível e, em especial, a denominada indústria 4.0, nascida na Alemanha no início do século XXI, têm impulsionado está além do escopo das análises acumuladas da lógica produtiva capitalista em sua versão neoliberal (ANTUNES, 2020).
Assim, consolida-se o eixo – mercadorização da vida, geração de lucros, retração de direitos sociais – o qual combina diferentes formas de exploração que, embora aparentem ser antagônicas, compõem uma mesma lógica produtiva de obtenção incessante de mais valor. Na atual fase de crise do capitalismo, essas formas passam, necessariamente, pela apropriação privada do fundo público e pela mercantilização dos direitos sociais. No Brasil e em outros lugares do mundo, um elemento deve ser incorporado a esse cenário, a ascensão da extrema direita na política.
Partindo dos elementos conjunturais e estruturais do capitalismo na contemporaneidade, o presente artigo traçará reflexões sobre o impacto da pandemia - que serve de laboratório para o projeto do capital para a educação superior no Brasil - e sua relação com o ensino remoto emergencial, o financiamento da educação pública e a saúde dos docentes, considerando as condições de vida e de trabalho dos docentes e o projeto de (re)estruturação da educação superior pública a partir das demandas do capitalismo de plataforma por um outro modelo de Universidade pública.
2 O FINANCIAMENTO DA EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA PANDEMIA
Em contextos de crise, os investimentos em educação pública são afetados duplamente: pela queda nas receitas, já que os recursos advêm dos tributos que estão diretamente ligados ao desenvolvimento da economia; e pela retirada de recursos das políticas públicas para serem investidos em políticas de salvamento da economia (leia-se do mercado).
No Brasil, após um breve período de experimentação de aumento de investimentos na educação pública, compartilhado com o aumento da transferência de recursos para o setor privado, desde 2016 tem-se queda contínua no investimento em educação, especialmente no que se refere aos gastos do governo federal.
As medidas de ajustes fiscais citadas anteriormente têm repercutido em cortes no orçamento destinado à educação. Dados da Auditoria Cidadã da Dívida mostram que em 2015, os gastos federais em educação correspondiam a 3,91% do orçamento. Esse percentual diminuiu drasticamente em 2020, chegando a 2,49% do total do orçamento federal executado. Diante de cortes tão drásticos nos recursos destinados à educação, nos perguntamos em que ações tais cortes se fizeram mais presentes. Na tentativa de responder, ainda que nos limites deste texto, a essa questão, nos debruçamos de forma mais detalhada às despesas do governo federal com educação.
Em conformidade com o que estabelece a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/1996, compete à União (logo sob a responsabilidade do governo federal) manter o seu sistema de ensino, coordenar a política nacional de educação e prestar assistência técnica e financeira aos estados, ao DF e aos municípios. Isto indica que o governo federal deve investir recursos na educação básica (em forma de transferências aos demais entes e nas escolas de educação básica que integram seu sistema, a exemplo das escolas de aplicação as IES), na educação profissional e na educação superior (nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e nas Universidades Federais). Além dessas áreas, a União deve assegurar despesas com ações de coordenação da educação nacional, a exemplo das ações do INEP e do CNE. O Gráfico a seguir mostra, em valores reais, o total das despesas do governo federal com educação no período de 2017 a 2020.
O gráfico 1 mostra uma diminuição progressiva das despesas com educação por parte do governo federal. De 2017 a 2020, a queda nos investimentos representou 36,38 bilhões de reais a menos do governo federal em educação. Esse valor é superior ao total de recursos investidos em educação profissional e educação básica por meio de transferências aos governos subnacionais no ano de 2017.
Observando as despesas por níveis, pode-se constatar que houve queda tanto na educação superior, com um corte de mais de 2,72 bilhões em relação a 2017, quanto nas transferências para a oferta de educação básica, que recebeu 2,82 bilhões a menos que o ano de 2017. Por outro lado, houve um aumento na educação profissional de 11% no mesmo período, coerente com as prioridades propagadas pelo Ministério da Educação.
Deve-se destacar também que, além de ter ocorrido cortes contínuos de recursos financeiros do governo federal para a educação, uma parte significativa dos recursos tem sido alocados por meio de emendas parlamentares orçamentárias, colocando-se a educação como moeda de troca no jogo político-partidário que envolve executivo federal, legislativo federal e o executivo estadual e municipal. No ano de 2019, os recursos de emendas parlamentares foram equivalentes a 531,38 milhões das despesas com educação. Esse valor aumentou de forma assustadora no ano de 2020, passando para 3,18 bilhões de reais. Desse total, 2,14 bilhões foram destinados à educação básica, 696 milhões foram destinados à educação superior e 340,8 milhões foram para a educação profissional.
Observa-se, assim, que o governo federal tem utilizado parte significativa do orçamento da educação para compor os acordos que tem feito com parlamentares em troca de apoio para a aprovação de suas medidas de retirada de direito e de privatização dos serviços públicos, bem como para evitar os processos de investigação contra seu governo. Chama atenção a destinação de grande volume de recursos financeiros para as universidades e os institutos federais, que são instituições do próprio sistema federal de ensino, as quais não necessitariam, a rigor, compor seus orçamentos pela via das emendas parlamentares. Isto apenas reafirma o uso dos recursos públicos para fins particulares de negociações políticas envolvendo o executivo e o legislativo federal.
Em tempos de pandemia, com a necessidade de reestruturação das formas de oferta de ensino e da garantia das condições de segurança sanitária é esperado maior aporte de recursos financeiros do governo federal, na sua ação de assistência técnica e financeira aos entes federados subnacionais para a garantia da oferta de educação básica. Desse modo, buscamos, no quadro a seguir, observar como se comportou no ano de 2020 essa ação do governo federal.
AÇÃO | 2015 | 2020 | 2020-2015 |
Programa de construção de Quadras Poliesportivas | 356.928.846,97 | 29.312.492,78 | -327.616.354,19 |
Manutenção de Novas Turmas de Educação Infantil | 65.613.777,41 | 27.210.468,15 | -38.403.309,26 |
Programa de Trabalho Anual | 115.146.467,94 | 9.864.432,55 | -105.282.035,39 |
Programa Dinheiro Direto na Escola | 1.741.335.430,08 | 841.327.631,36 | -900.007.798,72 |
Ensino Médio Inovador, Mais Cultura na Escola, Atleta na Escola, Escola sustentável | 111.851.855,50 | 876.634.810,37 | 764.782.954,87 |
Programa Brasil Carinhoso | 7.961.535,55 | 7.961.535,55 | |
Plano de Ação Articulada | 1.130.868.398,19 | 726.447.829,58 | -404.420.568,61 |
Programa Proinfância | 267.094.614,19 | 116.968.529,28 | -150.126.084,91 |
PRONATEC | 2.334.335.219,90 | -2.334.335.219,90 | |
Programa Nacional de Inclusão de Jovens - PROJOVEM | 163.794.917,75 | -163.794.917,75 | |
Programa de Reestruturação da rede física pública Ensino Fundamental | 148.500,00 | -148.500,00 | |
Programa de Reestruturação da rede física pública Ensino Médio | 1.237.354,95 | -1.237.354,95 | |
Água e esgotamento Sanitário, Escola do Campo, Escola acessível e PDE ESCOLA | 42.329.350,00 | -42.329.350,00 | |
Brasil Alfabetizado | 122.798.968,42 | -122.798.968,42 | |
Programa de Apoio ao Sistema de Ensino para atendimento da EJA | 18.333.868,47 | -18.333.868,47 | |
Programa Nacional de Alfabetização na idade certa - PNAIC | 199.944.565,00 | -199.944.565,00 | |
Pagamento de mantenedoras privadas que ofertam cursos técnicos de forma concomitante | 93.626,10 | 93.626,10 | |
Bolsas para apoio a implementação à BNCC | 12.175.275,00 | 12.175.275,00 | |
Transferência Direta para Redes públicas estaduais ofertarem Cursos Técnicos de Nível Médio | 7.658.183,75 | 7.658.183,75 | |
Transferência para apoiar a ampliação de ensino médio em tempo integral | 156.311.095,43 | 156.311.095,43 | |
TOTAL | 6.671.762.134,77 | 2.811.965.909,90 | -3.859.796.224,87 |
Tomando-se como referência o ano de 2015, último ano em que a política de assistência técnica do governo federal esteve, de fato, sob as regras do Plano de Desenvolvimento da Educação, os dados do quadro permitem identificar um corte na ordem de 3,86 bilhões nessa política. Observando-se os valores transferidos por meio de emendas parlamentares para a educação básica (2,14 bilhões), identificamos que a maior parte dos recursos da assistência federal foi realizada por essa via. Os números evidenciam claramente que o governo federal não fez nenhum esforço de prestar assistência aos demais governos para garantir condições e insumos para amenizar os impactos da pandemia na garantia do direito à educação. Ao contrário, houve diminuição de recursos, inclusive em relação ao ano de 2019. Observando-se os diversos programas e ações, não se identifica nenhuma ação especificamente voltada para a garantia de insumos para aulas remotas ou mesmo para adaptações do ensino, a exemplo de impressão de material didático específico.
Observa-se que houve diminuição drástica de recursos em quase todos os programas, com apenas duas exceções, que foram o programa Brasil Carinhoso e as ações voltadas para o ensino médio inovador. No corte de recursos, chama atenção o valor de mais de 900 milhões a menos no Programa Dinheiro Direto na Escola, programa que é utilizado para transferência de recursos para as escolas fazerem pequenos serviços e adquirirem material didático e materiais de higiene e limpeza, que poderiam ter sido potencializados no contexto da pandemia. Cabe destacar que um total de oito programas deixaram de ser operacionalizados no ano de 2020, entre eles programas com foco em atendimento a segmentos sociais historicamente marcados pela exclusão educacional, a exemplo do Projovem, do atendimento à EJA, do Brasil alfabetizado e Escolas do campo. Por outro lado, observa-se quatro novas ações que foram objeto de transferência de recursos do governo federal, todas com foco nas políticas prioritárias do governo – o novo ensino médio, BNCC e ensino técnico, o que demonstra que em plena pandemia o governo federal aproveitou para influenciar estados e municípios na adoção de suas políticas.
Após tentar, sem sucesso, incorporar a cota-parte federal do salário-educação nos recursos da complementação da União ao Fundeb[1], observa-se que a partir da obrigatoriedade de aumento de sua complementação ao Fundeb conforme a determinação da Lei nº14.113, de 25 de dezembro de 2020, que aprovou o novo Fundeb, o governo federal vem diminuindo drasticamente as transferências voluntárias a título de assistência técnica e financeira aos entes federados subnacionais.
O corte de recursos para a educação por parte do governo federal se mostra preocupante no contexto da pandemia, uma vez que é o governo federal que dispõe de mais recursos e que pode (e deve) ampliar os investimentos em educação no contexto em que se encontra a sociedade brasileira, na perspectiva de diminuir as desigualdades educacionais. Estudos de organismos internacionais e nacionais, mesmo aqueles comprometidos com as políticas neoliberais, mostram que o cenário futuro é de aumento das desigualdades em termos de financiamento da educação, tanto as desigualdades verticais quanto as horizontais, pois a pandemia pode afetar não somente o volume de recursos financeiros destinados à educação, mas também a sua distribuição em um país marcado por grande desigualdade na disponibilidade de recursos.
Com a pandemia, as escolas precisaram suspender as aulas presenciais e adotar estratégias de ensino a distância, sejam elas mediadas por tecnologias de comunicação ou por recebimento de atividades em casa. Tais estratégias exigiram a reorganização das formas de planejamento, execução e avaliação de ensino. Encontrar as soluções para a oferta não presencial de ensino foi um grande desafio na maioria das escolas brasileira, nas quais persistem condições precárias, especialmente nas escolas localizadas nas áreas rurais. Dados do Censo Escolar de 2020 nos fornecem uma ideia do tamanho desse desafio: somente 74% das escolas públicas brasileiras dispõem de internet, sendo que nas áreas rurais esse percentual cai para 45%; além disso, nas áreas rurais internet só está Disponível em:55% dos domicílios, indicando que a adoção do ensino remoto não se apresenta como uma solução viável para uma grande quantidade de alunos brasileiros. Por outro lado, as precárias condições das escolas também limitam a organização e produção de material didático diferenciado para ser entregues nas casas dos estudantes. Os dados do Censo de 2020 mostram que apenas 62% das escolas públicas possuem impressoras e 36% possuem máquina copiadora, sendo que nas áreas rurais esses percentuais são, respectivamente, 42% e 18%.
Essa situação tem colocado o ônus das soluções sobre os ombros de professores que, coletiva ou individualmente, têm arcado com diversos custos para garantir alguma atividade de ensino aos seus estudantes durante a pandemia, enquanto os governos não apresentaram nenhuma iniciativa contundente de aumento de investimento na direção de garantia do direito à educação. Pelos dados mostrados, o que se tem se evidenciado é a ideia de fazer mais com menos, na direção das proposições que já haviam sido feitas pelo Banco Mundial em 2017, no Documento Um ajuste Justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil, no qual, em um capítulo dedicado à educação, intitulado Gastar Mais ou Melhor? Eficiência e Equidade da Educação Pública, sugere um conjunto de medidas de diminuição dos gastos com educação, na perspectiva de diminuir o equivalente a 1% do PIB, curiosamente o mesmo percentual de recursos públicos que tem sido destinado ao setor privado. (BANCO MUNDIAL, 2017)
Na contramão dessas condições, a transferência de recursos para setores privados continua em pleno vapor. No ano de 2020, as transferências para instituições privadas de ensino superior por meio do FIES corresponderam a 9,6 bilhões, valor três vezes mais que o total transferido para estados, municípios e DF a título de assistência técnica e financeira.
3 APROFUNDAMENTO DO PROJETO DO CAPITAL PARA A EDUCAÇÃO PÚBLICA SUPERIOR: o ERE e o futuro das Universidades públicas
Tendo como referências os estudos e reflexões acumulados sobre o projeto do capital para a educação na América Latina, como apontam Lima (2007), Squissard (2008), Farage e Gonçalves (2019), entre outros, e considerando as dimensões impostas pelo ensino remoto emergencial para as Universidades neste momento de excepcionalidade, é possível fazer algumas inferências.
Como um mal necessário, o ensino remoto emergencial (ERE), um rebaixamento do já precário ensino à distância (EaD), figurou-se como única alternativa para a continuidade dos processos de ensino-aprendizagem no momento excepcional da pandemia. Sua imposição se deu independente da garantia da qualidade, das condições objetivas e subjetivas de professores e estudantes e do acesso à sua mediação: internet, equipamentos e bibliografia. Nesse processo de refuncionalização de conteúdos – precarizados em sua maioria –, e de invisibilização do fazer docente – em alguns casos sua real substituição por máquinas, como no mercado das faculdades privadas –, aprofundou-se a tendência em curso de uma educação terciária.
Nesse processo, gerou-se de um lado: i) adoecimento docente; ii) incorporação pelos docentes de tarefas administrativas antes realizadas por técnicos administrativos; iii) sobrecarga de trabalho (acúmulo de tarefas no e do trabalho e domésticas, sobreposição de reuniões, disponibilidade sem limites para o trabalho); iv) fim da separação entre espaço da casa e espaço do trabalho; v) estruturação do espaço domiciliar para o trabalho sem investimento público; vi) controle do tempo e dos conteúdos trabalhados nas atividades síncronas, uma vez que as plataformas não garantem segurança e sigilo; vii) dificuldade para a organização dos trabalhadores da educação, entre outros. Vários desses pontos, já presentes no ensino superior público, são também base de estruturação da chamada indústria 4.0 no processo de reestruturação do mundo do trabalho privado, que pouco a pouco se espraia no setor público.
Por outro lado, sob a ótica das instituições de ensino e também do projeto do capital para a educação, gera-se: i) ‘economia’ de gastos com a estrutura das instituições, saneando déficits de várias universidades; ii) justificativa para a redução de recursos públicos para a educação pública; iii) apropriação do fundo público, agora através das plataformas privadas usadas para a mediação da educação e pelos convênios e contratos com empresas de telefonia para acesso à internet firmados pelas instituições de ensino públicas; iv) justificativa para a implantação de um ensino híbrido após o período da pandemia; e v) disseminação de um modelo de ensino, remoto, que se pretende intensificar no período pós-pandêmico, e para o qual é necessário um certo apassivamento cultural.
Assim, articulando alguns dos efeitos gerados por esse processo e considerando as contrarreformas, que já haviam sido realizadas, de retirada de direitos do funcionalismo público e de precarização da educação presencial, forja-se uma desestruturação por dentro da educação superior pública, que acaba por alterar a forma ser-essência da educação, que se pretende dialógica, coletiva e crítica.
Entendemos que a forma ser-essência da educação pública, reconhecida como direito social, é aquela que tem uma contribuição real para a leitura de mundo das classes subalternas, como afirmou Paulo Freire (2004, 2005), que contribua para desvelar e perceber as contradições das relações sociais, a partir de uma prática dialógica e coletiva. Como afirma Gramsci (2000), uma educação que contribua para uma visão de mundo autônoma, que seja capaz de fazer do trabalhador “uma pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (FARAGE; COSTA; SILVA, 2021. p. 234-235).
Assim, nesta análise, entre os muitos elementos a serem considerados que fortalecem o projeto do capital para a educação e fragilizam sua forma ser-essência, é necessário destacar alguns aspectos do período excepcional da pandemia que se configuram como laboratório para o por vir.
A primeira questão é considerar que as bases para a implementação do ensino remoto, mesmo em sua forma emergencial, estão na denominada Educação à Distância (EaD), sem, contudo, equiparar-se a ela o EaD, estabelecido pelo decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017, prevê pressupostos para a sua execução que o ERE não incorpora, por exemplo, a preparação dos docentes para tal modalidade de ensino. Também deve ser observado que a perspectiva de uma educação mediada por tecnologias tem como um dos seus objetivos e justificativas o aligeiramento da educação e a certificação em larga escala, já apontadas pelo Processo de Bolonha[2] no final da década de 1990. Ambas, educação mediada por tecnologia e aligeiramento e certificação em larga escala, compõem o projeto de mercantilização da educação.
O segundo aspecto a ser observado é que a defesa do projeto de educação do capital encontra reverberação no interior das instituições de ensino públicas. Ou seja, a capilaridade do projeto do capital tem aderência na burguesia nacional, mas também em parte da comunidade acadêmica, incluindo uma parcela significativa dos gestores. Com isso, identifica-se que o projeto de educação contra-hegemônico defendido e construído por aqueles e aquelas que defendem uma educação pública, gratuita, laica, socialmente referenciada, antimachista, antirracista, antissexista, anticapacitista e antilgbtfobica, não é um consenso no interior das instituições públicas. E mais, que não ser um consenso está longe de ser um projeto de ‘comunista’, como arrogam os defensores da anticiência, protofascistas, integrantes da denominada ala ideológica do governo federal. Uma das expressões de adesão a tal projeto são os reitores e reitoras nomeados para 21 Universidades Federais, que não figuravam em primeiro lugar na consulta pública realizada com a comunidade acadêmica, caracterizando uma nomeação intervencionista, esses gestores assumem o projeto do Ministério da Educação e a perspectiva ideológica do presidente da república, como suas referências na gestão universitária.
O terceiro aspecto a ser considerado é que a educação superior, não sendo uma dimensão autônoma da vida social, mas, ao contrário, formatada pelas disputas inerentes à sociedade de classes, é impactada pelo desenvolvimento capitalista e pelas transformações no mundo do trabalho. Portanto, considerando a crise orgânica da fase capitalista monopolista, em sua organização neoliberal, as exigências para a formação universitária também são impactadas. Assim, para um mundo do trabalho reconfigurado e flexibilizado, inerente ao capitalismo de plataforma, como afirma Antunes (2018), não há exigência para uma formação complexa da força de trabalho.
O quarto elemento está relacionado à refuncionalização do Estado, compreendida como uma exigência da atual fase de desenvolvimento capitalista imbricada em sua crise orgânica, que vem dificultando a retomada dos lucros como no período anterior à década de 1970. A crise impõe uma reconfiguração do Estado no sentido de ampliar as formas de apropriação privada do fundo público; na desresponsabilização do Estado com políticas públicas para o conjunto da população; na mercantilização dos direitos sociais; no recrudescimento do conservadorismo com a expansão das formas coercitivas de dominação da população, a exemplo do uso da força armada na contenção social; da ampliação avassaladora dos militares na gestão de órgãos e instituições públicas e da intervenção federal na nomeação de gestores nas instituições de ensino federal. Certamente o projeto de contrarreforma administrativa explicitado na PEC 32/2020 condensa todos esses elementos da refuncionalização do Estado, apontando para uma profunda contrarreforma estrutural da organização societária, caso seja aprovada.
O quinto elemento está relacionado à necessária reprodução ideológica da ordem e do modus operandi da sociabilidade capitalista, que busca incessantemente naturalizar a desumanização, a pobreza, a fome, a desigualdade e as injustiças sociais próprias do capitalismo. Para tal busca avançar, em especial a partir da eleição de Bolsonaro, em uma agenda regressiva no que tange aos aspectos culturais e sociais da vida, como a criminalização da pobreza, a invisibilização das diferenças de gênero, a repulsa às diferenças de orientação sexual, a marginalização racial e étnica, a valorização do fundamentalismo religioso, a incitação do ódio e a desvalorização da ciência. Entre os muitos projetos que expressam essa dimensão, podemos elencar os sucessivos cortes de verbas públicas para a educação e a ciência pública; a tentativa de aprovação dos diferentes projetos ‘escola sem partido’; os projetos para a educação domiciliar; a contrarreforma do ensino médio; a nova base nacional comum curricular (BNCC), entre outros.
Partindo desses cinco aspectos, que são absolutamente interligados, entre tantos outros que poderiam ser destacados, faz-se necessário questionar e desvendar as demandas contemporâneas para a formação universitária pública. As implicações para a formação no ensino superior passam pelas demandas para a própria instituição universitária como constructo de sociabilidade na contemporaneidade. Pensar os desafios da Universidade pública hoje pressupõe analisar as transformações em curso e a aceleração do projeto mercantilizador do capital para a educação pública no período da pandemia.
Assim, consideramos desafiador refletir sobre os seguintes elementos do projeto de formação que foram impactados com a pandemia e o ERE: i) o estágio como elemento curricular formativo para algumas áreas; ii) as defasagens no processo de ensino-aprendizado derivadas de uma grade curricular mediada pela tecnologia de forma absolutamente improvisada, como tem ocorrido no ERE; iii) a dependência tecnológica das instituições públicas aos grandes conglomerados de comunicação; e iv) os desafios ao retorno presencial ainda em um momento sanitário de incertezas.
Evidenciou-se no período do ERE a impossibilidade de transposição das grades curriculares, da maior parte dos cursos, para a modalidade remota. Em sua maioria exigiram adaptações que, na maior parte das vezes, reverberou em perdas, como a limitação de acesso a bibliografias; impossibilidade de determinadas vivências práticas, como metodologias do processo de ensino-aprendizagem; redução das ‘aulas’ a palestras e/ou lives e/ou vídeos gravados. Reconhecer as perdas é fator preponderante para que as instituições de ensino elaborem formas de ‘compensar’ as defasagens no período pós-pandemia.
É mister reconhecer que a dependência tecnológica dos conglomerados de comunicação é uma limitação à autonomia das instituições de ensino e até mesmo à devida garantia de sigilo e privacidade das ‘aulas’ ministradas via plataformas. Fundamental seria que as instituições públicas de ensino tivessem elaborado uma plataforma pública e livre, de acesso gratuito e universal, sem uso de dados móveis privados, como elemento estruturante para o acesso público às atividades síncronas e assíncronas que passaram a dominar o universo acadêmico.
Por fim, destaca-se que o movimento docente iniciou de forma tardia os debates para o retorno presencial das atividades de ensino-pesquisa-extensão e a necessária estruturação para a garantia de um retorno seguro, o que implica, necessariamente, em mais recursos públicos e não cortes orçamentários como o governo federal fez, mais uma vez, para 2022.
4 PANDEMIA E SAÚDE DOCENTE NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR PÚBLICAS
A pandemia da COVID-19 trouxe alterações significativas no modo de vida da espécie humana no planeta Terra, com repercussões sociais, sanitárias, políticas e econômicas. Em apenas 3 meses, o novo coronavírus, causador da doença, disseminou-se para 160 países, já matou milhões de pessoas, sobrecarregou os sistemas de saúde e expôs a vulnerabilidade dos seres humanos na relação cada vez mais predatória com o meio ambiente.
Apenas nesse século, o mundo já enfrentou diversas pandemias virais, a saber: Síndrome Respiratória Aguda Grave - SARS (2002-2003), H1N1 (2009-2010), vírus Ebola (2013-2016), Síndrome Respiratória do Médio Oriente - MERS (2012) e agora a COVID-19. O modo de produção capitalista associado à crise estrutural do capitalismo tem criado condições ideais para o surgimento dessas e de tantas outras doenças, na medida em que destrói a natureza, desmonta a rede de proteção social e do trabalho.
Diversos campos da ciência têm buscado estudar esse fenômeno, desde aspectos biológicos sobre a origem do vírus, sua evolução e maneiras de combatê-lo até aspectos relacionados a uma nova sociabilidade, que se estabeleceu com o distanciamento social, e suas repercussões no mundo do trabalho. Constata-se que no Brasil um grande contingente de trabalhadores não conseguiu, por diversos condicionantes socioeconômicos e políticos, acesso a medidas básicas de prevenção da doença e continuam expostos ao adoecimento em transportes públicos superlotados e ambientes de trabalho insalubres.
As primeiras medidas sanitárias decretadas em vários países incluíram o uso de máscara, o distanciamento social, a higienização das mãos e o fechamento de espaços que promovem aglomeração de pessoas, dentre eles o fechamento das instituições de ensino. Em decorrências dessas medidas, estabeleceu-se o home office e o ensino remoto emergencial como práticas correntes. Diversos estudos têm buscado investigar as consequências de tais mudanças no mundo do trabalho e nos sistemas educacionais.
Analisar os possíveis impactos da pandemia de COVID-19 na saúde dos docentes de IES públicas no Brasil requer uma abordagem preliminar das condições concretas da saúde docente no período anterior à pandemia do novo coronavírus e as suas inter-relações com as contrarreformas do Estado brasileiro, no contexto do capitalismo internacional. Os serviços públicos, por consequência, têm sido alvos dessas políticas através da suspensão de concursos públicos, ampliação das terceirizações e parcerias público-privadas, introdução de “novos modelos de gestão”, como na saúde por meio das Organizações Sociais (OS), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) e congêneres nos estados.
As mudanças implementadas no sistema educacional, principalmente do nível superior, têm buscado colocar as IES públicas a serviço das empresas e desresponsabilizar o Estado do seu financiamento, política que poderá ser aprofundada caso o programa Future-se, proposto pelo governo federal (FARAGE; GONÇALVES FILHO, 2019), seja aprovado. Tais transformações têm rebatimentos sobre o trabalho docente que também sofre metamorfoses e precarização através da ampliação da carga horária em sala de aula, aumento da relação aluno/professor, baixa remuneração, incorporação de novas tecnologias informacionais à prática docente, aumento do produtivismo acadêmico, principalmente a pressão por publicação de artigos científicos e orientações, busca por patentes e projetos para captação de recursos, todos fatores implicados no processo de adoecimento docente. Conforme Forattini e Lucena (2015, p. 34):
À docência de nível superior em uma IFES são atribuídas as atividades de ensino, pesquisa e extensão, além de funções administrativas. Cada um desses segmentos é composto de um conjunto de atividades altamente complexas que exigem atualizações constante do docente, tanto genéricas quanto específicas. Da pressão constante sobre o docente, advinda dos processos de qualificação, carreira, geração de resultados, do convívio com discentes que apresentam os mais variados níveis de cognição, da obediência às políticas públicas de ensino que privilegiam a burocracia e, principalmente, da carga de trabalho excessiva e sem reconhecimento ou recompensas, advém um significativo impacto em sua estrutura psíquica.
As pesquisas sobre as repercussões do trabalho na saúde de docentes têm demonstrado queixas relacionadas tanto à saúde física quanto mental. Fontana e Pinheiro (2010) detectaram que a dor está entre as principais queixas físicas de professores universitários pesquisados: lombalgia (26%), cefaleia (19,3%), artralgias (16,1%), cervicalgia (16,1%) e dor nos membros inferiores (13%), problemas que as pesquisadoras atribuem aos longos períodos em pé e às tensões. Em pesquisa de Lima (2016), 44,64% dos docentes de diversas IES públicas responderam que têm problemas de saúde, dentre eles: problemas respiratórios (9,4%); problemas ósseos (16%); Diabetes e Hipertensão (21,3%) e ansiedade, fobias, depressão e doenças psicossomáticas em geral (12%). No Brasil, os docentes ocupam o segundo lugar na categoria das doenças ocupacionais e têm duas vezes mais chances de desenvolver estresse, depressão e ansiedade que as demais profissões (BATISTA et al, 2019).
Outro aspecto relevante a ser considerado no contexto do adoecimento docente é a questão de gênero no trabalho. Hoffmann et al (2017) analisaram os indicadores críticos de adoecimento no trabalho segundo a percepção dos docentes da Universidade Federal de Santa Maria e detectaram que as mulheres avaliaram o custo cognitivo em nível mais grave e maior sofrimento com o fator esgotamento profissional, sendo mais impactadas pelos sentimentos de desvalorização, injustiça, desqualificação entre outros. Os autores concluem que:
A situação desfavorável percebida pelas mulheres pode ser decorrente da perspectiva da consolidação da mulher no mercado de trabalho e o aumento da competitividade entre elas mesmas e com os homens. Nesse sentido, infere-se a elas a sobrecarga da conciliação entre vida doméstica e profissional, que são atributos agravantes no processo de sofrimento e adoecimento no trabalho. Dessa forma, o papel do gênero deve ser considerado enquanto elemento que promove distinção na percepção, avaliação e gestão dos aspectos que envolvem o trabalho e a vulnerabilidade aos riscos de adoecimento (HOFFMANN et al, 2017, p. 17).
O aumento do nível de exigências e da carga horária no trabalho, além de tensionamentos nas relações interpessoais no trabalho foi implicado como fatores predisponentes para o surgimento de neuroses, depressão, ansiedade, distúrbios do sono, alterações do comportamento e do humor, podendo até levar à síndrome de Burnout (CARAN et al, 2011).
A síndrome de Burnout ou síndrome do esgotamento profissional tem sido detectada com mais frequência na categoria docente e é definida como um tipo de resposta prolongada aos estressores emocionais e interpessoais crônicos no ambiente de trabalho. É uma síndrome do trabalho, originada na discrepância da percepção individual entre esforço e consequência, influenciada por fatores individuais, organizacionais e sociais. O indivíduo sente-se aprisionado a um trabalho que não pode suportar ao mesmo tempo em que não pode abandoná-lo. O trabalhador arma, inconscientemente, uma retirada psicológica, um modo de desistir do trabalho apesar de continuar no posto (CODO; VASQUES- MENEZES, 1999).
Tal Síndrome é constituída de três dimensões que são independentes: exaustão emocional, despersonalização e baixa realização profissional e vem acompanhada de sintomas físicos, psíquicos, comportamentais e defensivos (CODO; VASQUES- MENEZES, 1999).
A exaustão emocional é a redução de recursos emocionais individuais, além da diminuição da energia e entusiasmo. É considerada a primeira característica da síndrome e ocorre principalmente devido à sobrecarga de conflitos pessoais nas relações interpessoais. A despersonalização é caracterizada pela instabilidade emocional do profissional, que passa a lidar com colegas de trabalho de maneira fria e impessoal. Já a redução da realização pessoal revela autoavaliação negativa associada à infelicidade e, normalmente, a pessoa está infeliz ou insatisfeita com seu desenvolvimento profissional (MASLACH et al., 2001).
Os diversos estudos realizados antes da pandemia de COVID-19 já demonstravam um quadro muito preocupante em relação ao adoecimento docente nas IES públicas e ações preventivas precisam ser adotadas, incluindo, além de medidas concretas de melhoria das condições de trabalho, remuneração justa e carreira estruturada, a inversão da lógica produtivista contida na reconfiguração do mundo do trabalho e no projeto do capital para a educação.
O conhecimento científico, por outro lado, tem contribuído sobremaneira para derrotar o novo coronavírus. De forma célere para os padrões estabelecidos, foi possível fazer o sequenciamento genético do vírus, elaborar vacinas para prevenir a infecção e estabelecer medidas para a minorar disseminação da doença, como distanciamento social, o uso de máscaras e a higienização das mãos. Entretanto, o acesso a essas conquistas encontra barreira no caráter mercantil e concentrador que conforma historicamente a produção científica e tecnológica no mundo. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 75% das vacinas são administradas em 10 países (ANDREW, 2021).
Se todas as pessoas estão suscetíveis à contaminação e ao adoecimento pela COVID-19, as condições de enfrentamento da pandemia são desiguais para os diferentes grupos populacionais. No que tange à educação, a baixa inclusão digital, principalmente dos estratos mais pauperizados da população, que não dispõem de ferramentas tecnológicas e acesso à internet de qualidade, impediu que uma parcela significativa de estudantes pudesse participar efetivamente das dinâmicas pedagógicas não presenciais. As medidas que poderiam atenuar tais desigualdades, como o fornecimento de computadores e outros equipamentos de tecnologia e comunicação (TICs), assim como a garantia de acesso à internet tardaram em ser implementadas e o foram numa proporção muito aquém do necessário (SALDAÑA, 2020).
Pesquisa realizada na Universidade Federal de Minas Gerais apontou que 53% dos 15 mil professores pesquisados, em todas as regiões do país, de redes municipais, estaduais e federais, não tiveram nenhum tipo de formação para o uso de mídias digitais para a docência. A pesquisa detectou ainda que 17% dos pesquisados não possuem os meios necessários para desenvolver tais atividades (GESTRADO, 2020).
Outro obstáculo é a falta de formação docente para utilização das tecnologias digitais, situação que pode funcionar como mais um fator de estresse laboral. O fazer docente pressupõe tempo para o planejamento das atividades didático-pedagógicas e para capacitação. A grande maioria dos professores não teve tempo suficiente de preparação para atender às novas demandas pedagógicas trazidas pela pandemia, tais como, o entendimento sobre o funcionamento de uma sala de aula virtual, como e quais recursos podem ser usados para compor a aula e como criar um ambiente de aprendizagem minimamente estimulante (ARRUDA, 2020).
Estudo de Santos (2020), sobre o impacto da pandemia no ensino on line em Portugal, apontou um empobrecimento da comunicação, reduzida a monólogos digitais, e da troca de experiências entre professores e alunos. Em relação aos aspectos comunicacionais, Santos, Silva e Belmonte (2021, p.12), destacam: “A ausência da interação e da relação interpessoal natural e física, face a face, bem como a ação de desativar câmera e áudio em videoconferências, consolida a lógica unidirecional do ensino e aumenta ainda mais a percepção dos professores de estarem falando sozinhos”.
Para além do preparo técnico docente e do acesso às TICs, a quarentena durante a pandemia trouxe um desafio adicional que é o rompimento dos limites entre a vida pessoal e profissional dos docentes. O ambiente domiciliar, antes destinado ao repouso, tornou-se a sala de aula. As redes sociais, como whatsapp, instagram, facebook, antes de uso particular, passaram a ser ferramentas de contato profissional e de interação professor-aluno, que em muitos casos ultrapassam a carga horária de trabalho docente para que sejam sanadas dúvidas de alunos. A ampliação dessa demanda de trabalho extraclasse e a invasão dos espaços pessoais têm trazido sobrecargas psicológicas aos docentes.
Diante do retorno das atividades presencias e/ou híbridas (presenciais e a distância), cabe destacar dois aspectos para reflexão. Primeiro, o indicativo de que ampliação da carga horária das atividades não-presenciais se estabeleça como o “novo normal” em um período pós-pandemia, assim como o home office. Segundo, os riscos para a saúde pública do retorno presencial sem que a pandemia esteja controlada.
Diante disso, sistemas de saúde e governos não podem confiar na imunidade de rebanho natural como um método de controle definitivo da pandemia (Wu, 2020). O meio mais seguro e ético de atingi-la e mantê-la é através da vacinação, desde que feita rapidamente, de modo a evitar tanto o surgimento de variantes do vírus, decorrente de sua proliferação descontrolada, quanto um grande número de mortes.
5 CONCLUSÃO
Os elementos abordados no presente artigo buscam problematizar questões do cotidiano da educação pública de forma a subsidiar debates e reflexões que contribuam para os enfrentamentos que a comunidade acadêmica e o conjunto da sociedade devem fazer em defesa da educação pública de qualidade.
No contexto da pandemia, com a diminuição das receitas disponíveis, exige-se dos governos, especialmente do governo federal, maior investimento em educação. Desse modo, caberia ao governo federal (foco deste estudo) pensar estrategicamente na distribuição e alocação de recursos pra o setor público, diminuir a transferência de recursos para o setor privado, para emendas parlamentares e associar os recursos a programa e ações claramente direcionados para a garantia das condições de oferta da educação em um contexto adverso como o que vem sendo enfrentado desde o início de 2020.
Os estudos e reflexões preliminares sobre os efeitos da pandemia na saúde de docentes nas IES públicas têm apontado para a ampliação dos fatores de risco já previamente implicados no adoecimento docente, que abrangem aspectos biopsicossociais. A piora das condições materiais, a precarização do trabalho, a invasão da vida privada, a ampliação da carga horária de trabalho e a desmotivação podem impactar negativamente na saúde física e mental destes profissionais, que já estava comprometida mesmo antes do surgimento da COVID-19.
Não há educação de qualidade sem professores capacitados, motivados e com meios adequados para o exercício profissional. Novas pesquisas são necessárias para aprofundar os estudos sobre financiamento da educação, educação mediada por tecnologia e adoecimento docente; ao mesmo tempo, medidas preventivas governamentais e institucionais devem ser implementadas.
Mudar os rumos desse caminho é possível, mas depende do grau de mobilização da classe trabalhadora, da capacidade de construção de unidade de ação que, dialogando com a vida real dos trabalhadores, em especial os mais pauperizados, impulsione o reconhecimento de que a educação é um bem público e uma conquista e, por isso, deve ser por todos defendida. Só assim poderemos gritar e reivindicar que a vida deve estar acima dos lucros.
REFERÊNCIAS
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Notas