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POLÍTICAS PÚBLICAS EM TEMPOS CONSERVADORES reflexões à luz do cotidiano e da subalternidade
Adriana Ramos; Amanda Guazzelli; Emilie Faedo Della Giustina;
Adriana Ramos; Amanda Guazzelli; Emilie Faedo Della Giustina; Janaína Albuquerque de Camargo
POLÍTICAS PÚBLICAS EM TEMPOS CONSERVADORES reflexões à luz do cotidiano e da subalternidade
PUBLIC POLICIES IN CONSERVATIVE TIMES: reflections from everyday life and subalternity
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 584-602, 2022
Universidade Federal do Maranhão
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Resumo: Este texto procura apresentar, de maneira meramente introdutória, uma discussão acerca das políticas públicas na contemporaneidade, assumindo como pressuposto de análise que sua efetivação se dá no cotidiano das classes sociais subalternas e conformada por traços conservadores. Compreende que é no cotidiano que se objetivam, em condições históricas e socialmente determinadas, as relações sociais entre os sujeitos e, portanto, entre as classes – entre os subalternos, grupos sociais constituídos que estão sujeitos a formas de direção política e social impostas pelas classes dominantes. Conclui que essa luta se expressa no cotidiano, que é carregado de determinações históricas e sociais, espaço para a conquista da hegemonia, de um determinado grupo sobre o outro, onde se constrói e se consolida a ordem instituída, mas também onde a ela se resiste.

Palavras-chave: políticas públicas, conservadorismo, cotidiano, subalternidade.

Abstract: This text seeks to present, in a introductory way, a discussion about contemporary public policies, assuming as a presupposition of analysis that their effectiveness takes place in the daily life of subaltern social classes and are shaped by conservative traits. We understand that it's in everyday life that, in historically and socially determined conditions, social relations between subjects and, therefore, between classes are objectified - between subalterns, constituted social groups that are subject to forms of political and social direction imposed by dominant classes. This struggle is expressed in everyday life, which is loaded with historical and social determinations, a space for the conquest of hegemony, of a certain group over another, where the established order is built and consolidated, but also where it is resisted.

Keywords: public policy, conservatism, everyday, subalternity.

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POLÍTICAS PÚBLICAS EM TEMPOS CONSERVADORES reflexões à luz do cotidiano e da subalternidade

PUBLIC POLICIES IN CONSERVATIVE TIMES: reflections from everyday life and subalternity

Adriana Ramos
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Brasil
Amanda Guazzelli
Universidade Federal do Fluminense - UFF, Brasil
Emilie Faedo Della Giustina
Universidade Federal Fluminense - UFF, Brasil
Janaína Albuquerque de Camargo
Universidade Federal Fluminense - UFF, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 584-602, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 12 Febrero 2022

Aprobación: 14 Marzo 2022

1 INTRODUÇÃO

Considera-se que a pandemia da covid-19 adquire contornos muito particulares no Brasil no que tange às estratégias adotadas para seu enfrentamento, via políticas que, deliberadamente, escolhem pelo “deixe morrer”, seus sujeitos – resguardadas as devidas particularidades de ordens distintas que envolvem uma situação pandêmica – são a própria encarnação de múltiplas formas de opressão, enfeixadas todas elas pela condição da classe a que pertencem: as classes sociais subalternas.

Um prosseguimento que busca elaborar um sintético registro de algumas das exigências analíticas, sobretudo à luz de Heller (1991, 2000), pode contribuir para a apreensão das necessidades típicas da história do tempo e do espaço em que são (re)produzidas no âmbito do cotidiano como o “reino da necessidade”, segundo as lições de Marx.

Nesse sentido, o texto pretende apresentar uma reflexão acerca das políticas públicas a partir de um viés bastante preciso, ou seja, pela articulação entre a vida cotidiana – considerada em seu estatuto ontológico na relação com a história –, o conservadorismo, que assume várias formas na contemporaneidade então expressas e reproduzidas no cotidiano, e a subalternidade, considerada em face da hegemonia e, portanto, dos tensionamentos entre as classes. Assim, o significado contraditório das políticas públicas como mecanismo de reprodução da força de trabalho, mas também como incorporação por parte do Estado brasileiro de algumas das demandas da classe trabalhadora é aqui pensado a partir da referida articulação, uma vez que o cotidiano no qual se efetivam tais políticas é também tanto o âmbito privilegiado da reprodução do conservadorismo, quanto da subalternidade.

Políticas (estas) que expressam, no cotidiano prenhe de conservadorismo, as relações de subalternidade e a hegemonia de uma determinada classe sobre a outra, ou seja, das elites brasileiras dirigentes sobre os subalternos que são direcionados pelos interesses corporativistas dessas elites, derivando daí diversos elementos.

Nas linhas seguintes buscamos refletir sobre o estatuto ontológico da vida cotidiana com vistas à compreensão de que, sendo ela o âmbito da continuidade da vida em condições históricas e socialmente determinadas, passam por ela, necessariamente, as formas de exploração, alienação, as lutas de classes e as configurações assumidas pelas mesmas, seja na experimentação da dominação ou do seu exercício, das ideologias tecidas no seio desses processos – notadamente o conservadorismo –, das respostas institucionais a eles, entre tantos outros.

Nesse sentido, partindo da compreensão de que o estatuto ontológico da vida cotidiana implica na sua ineliminável historicidade, avançamos nas reflexões sobre os contornos conservadores constitutivos da vida social na atualidade, especialmente na realidade brasileira. Aqui é preciso destacar, inicialmente, que os limites deste artigo não permitem uma abordagem ampla das mediações contidas entre cotidiano e conservadorismo, no entanto, se refletimos que a apreensão histórica da vida cotidiana exige o desvelo das formas de reprodução do conservadorismo nesse âmbito da vida, procuramos ao menos registrar os esforços a serem empreendidos na pesquisa do cotidiano.

2 COTIDIANO: premissa teórico-metodológica e aproximações à sua configuração no tempo presente

Embora pareça óbvia a afirmação de que a vida cotidiana e a história estejam ontologicamente implicadas, posto que não há história sem cotidiano e não há cotidiano do qual não brote a história, vale a pena um apontamento inicial aqui, tão somente ocasional, no intuito de grifar o peso da história como componente constitutivo das premissas teórico-metodológicas atinentes a uma leitura marxista do cotidiano. Em fases distintas da obra lukácsiana, o filósofo húngaro apresenta duas (entre tantas outras) afirmações acerca do cotidiano que despontam por dentro do tratamento de temas precisos e distintos: a estética e a ideologia, nos limites dessas linhas tão somente citadas com vistas a chegarmos no apontamento que queremos. Ao estabelecer algumas bases introdutórias de sua Estética, Lukács afirma que os reflexos científico e estético “[...] nascem das necessidades da vida cotidiana, tem que dar respostas aos seus problemas [...]” (LUKÁCS, 1965, p. 35 – livre tradução). Assim, também, ao examinar o significado da ideologia, nosso autor afirma que “[...] toda ideologia possui o seu ser-propriamente-assim social: ela tem sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade. [...]” (LUKÁCS, 2013, p. 465), sendo que o “hic et nunc do ser-propriamente-assim” ou, o que é o mesmo, a “ontologia cotidiana do período” (LUKÁCS, 2013) é situada como a origem da ideologia.

Na imprescindível Sociologia da vida cotidiana de Heller (1991) comparece uma concepção da vida cotidiana extremamente fecunda – uma chave de leitura que exige a apreensão de sua inerente historicidade, qual seja: “a vida cotidiana é o conjunto de atividades que caracterizam a reprodução dos homens particulares, os quais, por sua vez, criam a possibilidade da reprodução social” (HELLER, 1991, p. 19 – livre tradução – grifos nossos). Vale acrescentar que tal conjunto de atividades movimenta (e é movimentada!) justamente a própria estrutura da vida cotidiana em suas características ontológicas fundamentais, como a heterogeneidade, a espontaneidade, a analogia, entre outras (HELLER, 2000).

Eis então o apontamento antes referido: tanto os instigantes exames de Lukács (1965, 2013) sobre o cotidiano, quanto as fecundas investigações de Heller (1991, 2000) sobre o tema, convergem explícita e candidamente para sua ineliminável condição histórica. É, pois, assim, que numa tal abordagem do cotidiano suas análises permanecem obrigatórias e necessariamente atadas à apreensão da história – daí, desatadas, esvai-se o ser social então (re)produzido no cotidiano e que também dele resulta.

Na primeira delas, cuja passagem textual citamos há pouco, constam, ao menos três elementos da maior relevância: (1) o cotidiano se define pelas atividades que marcam a (re)produção dos sujeitos em sua singularidade, o que implica nos (2) conteúdos e determinações histórico-sociais de tais atividades num dado tempo e espaço, assim como na definição/substância dinâmica da própria singularidade, cuja realização torna possível (3) a (re)produção social. Não à toa escrevemos antes que aqui se situa uma fecunda chave de leitura, afinal de contas ela contém, literalmente, a abertura para múltiplas determinações e nexos; de toda maneira, sugerimos que seu cerne reside exatamente na vinculação ontológica entre singularidade e genericidade, ou, ainda, na (re)produção social como um processo tornado possível pela (re)produção dos sujeitos singulares, afinal “para reproduzir a sociedade é necessário que os homens particulares se reproduzam a si mesmos como homens particulares” (HELLER, 1991, p. 27 – livre tradução).

Nos limites dessas linhas, compete-nos grifar a singularidade e a genericidade como dimensões ontológicas do ser social que guardam articulações de natureza eminentemente histórico-social das quais se conforma o cotidiano, evidenciando-se ainda a vinculação entre “pequeno mundo” (ou “ambiente imediato”) e “grande mundo”: “[...] na vida cotidiana o particular se reproduz a si mesmo e a seu mundo (o ‘pequeno mundo’) diretamente e o conjunto da sociedade (o ‘grande mundo’) de modo indireto” (HELLER, 1991, p. 27 – livre tradução). As consequências que daqui despontam contribuem para uma compreensão mais nítida dos três elementos destacados na medida exata em que a (re)produção do sujeito singular é tanto a (re)produção do “pequeno mundo” onde se situa e, portanto, de atividades que o constituem, ou seja, o cotidiano mesmo, quanto expressão de um momento da (re)produção do “grande mundo”[1].

Esse processo, cujo motor parece estar nos conteúdos e nas condições sociais precisas nas quais aquelas atividades são determinadas, supõe, portanto, a assimilação do “pequeno mundo” como assimilação de dadas relações sociais (HELLER, 2000), o que se evidencia desde a realização de atividades que marcam a (re)produção dos sujeitos singulares – incluindo sobretudo o trabalho sem o qual não se viabiliza a continuidade da vida –, até a manipulação de coisas que manifestam usos e costumes também constitutivos daquilo que Heller (1991) nomeou como objetivações genéricas em si[2] constituintes, por excelência, do cotidiano.

Essa assimilação se dá pela heterogeneidade, uma vez que, conforme nos ensina Heller (2000), no cotidiano realizamos atividades portadoras de conteúdos e significação diversos e variáveis (do trabalho à vida privada, passando pelo lazer, pelo descanso, etc.), mas se dá também pela espontaneidade, posto que “o ritmo fixo, a repetição, a rigorosa regularidade da vida cotidiana [...] não estão absolutamente em contradição com essa espontaneidade; ao contrário, implicam-se mutuamente” (HELLER, 2000, p. 43). Por isso mesmo, aquela assimilação dá-se ainda pela analogia e pela ultrageneralização que permitem aos sujeitos singulares agirem orientados pela adoção de parâmetros, esquemas, referências já conhecidos e experimentados. Eis aqui a segunda tese desenvolvida por Heller (2000): as características da estrutura ontológica da vida cotidiana.

Ou seja, é pelo processo de (re)produção dos sujeitos singulares sustentado pelo desenvolvimento de atividades então constitutivas da vida cotidiana que as características de sua estrutura são simultaneamente reproduzidas – daí a explicitação cristalina do estatuto ontológico da vida cotidiana extraída da articulação das teses (e suas consequências!) cruciais. Neste sentido, as características fundantes de sua estrutura então reproduzidas nas atividades que marcam a reprodução dos sujeitos singulares parecem (ambas, a estrutura e a reprodução) nos autorizar a uma compreensão do cotidiano como aliança entre condição de existência e forma social de vida: a produção e reprodução da existência é, pois, fundamentalmente, produção e reprodução da vida cotidiana, mas o é em condições, circunstâncias e determinações necessariamente histórico-sociais prenhes ainda de particularidades fincadas num dado tempo e espaço. Assim, a apreensão da história impõe-se como exigência teórica permanente porque o ser que a constrói e nela atua é tanto seu produtor quanto seu produto – donde a “ontologia cotidiana do período” (LUKÁCS, 2013) como fonte da fabricação das necessidades, incluindo aquelas cujas respostas exigem a ultrapassagem do cotidiano.

No caso da sociedade brasileira, as formas históricas de exercício da dominação, mas também de concretização da resistência e rebeldia, assim como aquelas respostas institucionais são especialmente tecidas pelo conservadorismo, cujas marcas selam desde o Estado brasileiro, até a instantaneidade implicada no “pequeno mundo”. Nos debrucemos então num daqueles que nos parece ser um dos eixos articulares da vida nacional: o conservadorismo.

3 CONSERVADORISMO: significação histórica e particularidades no cotidiano da sociedade brasileira contemporânea

Compreender os conceitos básicos sobre o conservadorismo na sua origem e como se processa seu desenvolvimento sócio-histórico é fundamental. Partindo desse pressuposto, outro objetivo é reconhecer determinados elementos presentes, sobretudo na sociedade brasileira, de que o conservadorismo vem assumindo “novas expressões”, tendencialmente no conjunto das políticas sociais[3] – conforme veremos adiante.

O pensamento conservador tem na figura de Edmund Burke o seu maior representante e fundador quando da escrita de “Reflexões sobre a Revolução na França”, publicado em 1790. O conservadorismo, em sua veia clássica (ESCORSIM NETTO, 2011), expressa inicialmente uma resposta reativa, uma reação contrária a um rompimento com o passado, numa proposta restauradora e antiburguesa. Ou seja, tem como fundamento uma referência política e ideológica antirrevolucionária frente aos movimentos revolucionários ocorridos na França. Portanto, o que marcará esse pensamento conservador clássico será uma aversão severa a qualquer tipo de modificação na ordem social. Burke, frente às modificações introduzidas pela burguesia, à época, revolucionária, defenderá a manutenção das instituições políticas e as estruturas sociais existentes anteriores a este período, mais especificamente aquelas que se referem às produzidas pela aristocracia feudal.

Para o autor, “[...] esse tipo insurrecional de revolução é tomado de maneira unilateral, como momento de decadência e degradação, no qual a ordem estabelecida é destruída e as tradições, rebaixadas” (SOUZA, 2016, p. 363). Nesse sentido, é um extremo defensor da propriedade privada, dos privilégios da nobreza, da Igreja e de seu poder político e da manutenção da família como base moral da sociedade. Neste primeiro momento de surgimento do pensamento conservador, podemos caracterizá-lo como uma forma de resistência às mudanças progressistas, e que evoca a continuidade do passado, pois valores, tradições e princípios, na concepção conservadora, não podem ser destruídos, sobretudo de forma violenta e abrupta como, para Burke, assim o fazia a burguesia. Nesse sentido, “[...] o pensamento conservador é uma expressão cultural [...] particular de um tempo e um espaço sócio-histórico muito preciso: o tempo e o espaço da configuração da sociedade burguesa [...]” (ESCORSIM NETTO, 2011, p. 40-41 – grifos da autora).

No seu desenvolvimento sócio-histórico, também expressará uma negação a todos os princípios que a cultura da modernidade traz, como fundantes da sociedade capitalista burguesa: a razão, a liberdade, a igualdade. “Com essa operação reificada, o conservantista elabora mais um pilar duradouro do conservadorismo: a negação da razão e a entronização de uma concepção pragmática, imediatista, de ação e pensamento” (SOUZA, 2016, p. 369). Neste escopo também reside a compreensão de que as desigualdades sociais são parte constitutiva da ordem natural das coisas, já estabelecida e sem possibilidade de mudanças, naturalizando-as no conjunto das relações sociais e, portanto, especialmente no âmbito da vida cotidiana.

Mas, assim como a sociedade se modifica na sua processualidade histórica, o conservadorismo também se transmuta. Notadamente, a partir da Revolução de 1848, a burguesia carece de fundamentações que justifiquem sua existência e manutenção no poder. É neste bojo que as Ciências Sociais emergem e são construídas como uma referência científica que explica e justifica a presença da burguesia no poder. Elas se configuram como o substrato ídeo-político e teórico da sociedade burguesa, reafirmando a “[...] vinculação histórico-genética entre o pensamento conservador e as ciências sociais [...]” (ESCORSIM NETTO, 2011, p. 17). Neste momento, a burguesia, clara e processualmente, deixa seu cariz revolucionário, construindo e consolidando seu caráter conservador, sendo então convertida como classe dominante, hegemônica em relação à subalternidade.

O aprofundamento das relações sociais no cotidiano da sociedade burguesa, e as contradições e antagonismos que lhe são constituintes, solicitou estudos e elaborações acerca do pensamento conservador por outros autores, mas sua essência continuou a mesma no sentido de manutenção do instituído e de valores que não são compatíveis com os avanços da modernidade, dentre eles a democracia alcançada em grande parte do mundo contemporâneo. Com o desenvolvimento sócio-histórico do pensamento conservador[4] pode-se dizer que na atualidade “a característica mais imediata do conservadorismo contemporâneo [...] consiste em que ele não se apresenta como conservadorismo e, portanto, oculta e escamoteia sua raiz e conteúdos conservadores” (ESCORSIM NETTO, 2011, p. 16).

No processo de formação sócio-histórica brasileira, o conservadorismo esteve sempre presente: desde as elites agrícolas, latifundiárias através da cultura escravagista, das práticas do coronelismo, de onde deriva o dito: “você sabe com quem está falando? ”, do voto de cabresto, até a constituição da insípida burguesia nacional parasitária, através do nepotismo, clientelismo, assistencialismo, práticas de corrupção, “revoluções pelo alto”, desapreço pela democracia e desprezo pelas classes populares em suas lutas singulares e coletivas. Nesse contexto, o Brasil contém elementos determinantes, se desenvolvendo, então, como um país de capitalismo periférico dependente, demonstrando uma subalternidade ao grande capital. Portanto, a composição da sociedade brasileira, não diferentemente das demais, é organicamente vinculada ao conservadorismo e vem processualmente acompanhando suas mudanças, ainda que ele se altere no campo das aparências[5].

Essa atualização do pensamento conservador não aboliu sua essência, mas o revigorou, até porque ele é funcional à lógica capitalista e à reprodução do capital, por isso apologético do livre mercado, forjando formas diferenciadas de responder às questões contemporâneas, subsidiado numa perspectiva moralista, sem a compreensão da totalidade das relações sociais e suas contradições. Isso contribui para o processo de ocultamento das determinações socioeconômicas que as constituem. Ainda incorporou o braço coercitivo do Estado numa perspectiva de criminalização das expressões da questão social, nas contradições entre a ideologia da guerra contra a concepção de direitos humanos (BARROCO, 2015), trazendo no seu bojo a militarização da vida cotidiana, com soluções punitivas, sobretudo para os segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora, os subalternos.

Assim, o campo dos direitos e das conquistas sociais dos trabalhadores é duramente atacado, pelo processo de precarização do trabalho e perda de direitos. A esse pensamento “remodelado” atualmente ainda se agregam valores racistas, individualistas, preconceituosos, sexistas, homofóbicos, marcados por uma intolerância com o diferente, um avanço do fundamentalismo religioso, o que assume um retrocesso substantivo nas sociedades democráticas. Outro fenômeno do pensamento conservador é a valorização da reprodução do senso comum, sem uma perspectiva crítica, a incorporação do irracionalismo e a desestorização dos fenômenos sociais. Tais questões apresentam desdobramentos na realidade brasileira que certamente trazem impacto para o conjunto das políticas públicas.

Especialmente a partir dos anos 2016, a sociedade brasileira atravessa um período de expressivas modificações no âmbito econômico, político e social. Após treze anos dos governos petistas, esse período é findo, como denomina Behring (2018) com um “golpe de novo tipo” que se reverbera numa ofensiva reacionária e conservadora, um recuo democrático, ou seja, segundo Paula, (2020, p. 243): “[...] o estopim da atual crise brasileira deu-se com o golpe de 2016 que afastou a ex-presidente Dilma Rousseff. [...]. Esta é direcionada na contramão dos interesses das classes trabalhadoras brasileiras, rompendo com um possível pacto de coalização entre elas”.

O impeachment de Dilma Roussef, ainda que tivesse no seu direcionamento político uma aliança com os interesses do capital, representou a derrota da “esquerda” e o renascimento das perspectivas do conservadorismo, que supostamente estavam “adormecidas” ou lateralizadas em nosso país, representando um atentado à democracia brasileira. Com o governo ilegítimo de Michel Temer, que se engendra na sociedade brasileira a partir de um conjunto de proposições que tendem ao que se denomina “nova direita”, inaugura-se uma nova conjuntura. Um dos elementos constitutivos dessa “nova direita” é a crença em teorias conspiratórias, “[...] já que, por excelência, nega ou obscurece o conflito social. A política, nesse pensamento, é apresentada como mera manipulação orquestrada por ‘forças subterrâneas’ de ‘subversivos’, ‘comunistas’ [...]” (HOEVELER, 2016, p.80). A elevação dessa “nova direita”, revela que “o avanço do pensamento conservador e reacionário na atualidade questiona valores básicos do Estado democrático de direito, buscando construir uma nova política funcional à sociabilidade do capital [...]” (DEGENSZAJN; PAZ; YAZBEK, 2019, p. 8). No campo político, a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, é sua expressão maior.

O governo de Bolsonaro, aliançado com uma elite burguesa avessa aos avanços sociais, intolerante e preconceituosa, se sustenta num extremo liberalismo econômico (FONTES, 2019), ou seja, num ultraneoliberalismo articulado às forças políticas autocráticas. No aspecto ideológico, existe um “anticomunismo primário” (FONTES, 2019), que homogeniza o conjunto das forças sociais de esquerda, que reduz suas diversas formas e expressões a um mesmo lugar. Portanto, assiste-se na sociedade brasileira, um apelo a determinados valores e princípios muito ao gosto de tendências conservadoras que esvaziam os conteúdos políticos, em troca da construção das verdades a partir da empiria, ratificando uma irracionalidade baseada no “obscurantismo da razão”, enfatizando uma postura negacionista, anticientífica.

No âmbito econômico, retrocedem em massa os direitos sociais e trabalhistas, e assiste-se, conforme Paula, (2020, p. 243) “[...] ao aumento exponencial do desemprego, do subemprego, do trabalho intermitente e do processo de ‘uberização’ do trabalho”. Neste escopo, acentua-se a pauta de privatização e o desfinanciamento das políticas sociais. Isto caracteriza um aprofundamento do ajuste fiscal já em curso e uma exponenciação da contrarreforma do Estado. Tais processos se respaldam em ações que se tornam favorecedoras dos interesses dos capitais internacionais aliados ao empresariado nacional. Também representam as pautas normativas das instituições multilaterais como o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Estas estão em sintonia com o atendimento dos interesses das organizações financeiras aliadas aos setores modernos internacionais e ao agronegócio.

O ascenso de Bolsonaro ao poder marca uma extrema direita que, na realidade, se vincula a uma tendência mundial, quando se analisa a totalidade de processos de governos internacionais que avançam nessa mesma perspectiva, também de extrema direita. Na esfera política apresentam-se tendências ao autoritarismo, a pouca afeição às perspectivas democráticas e, portanto, à participação popular, ratificando o histórico horror que as classes dominantes brasileiras têm da participação das massas na política. Nas palavras de Demier (2016), vive-se uma “democracia blindada”, na qual o governo se intitula democrático, mas é impermeável às demandas da classe trabalhadora e governa a partir dos interesses corporativos de determinados grupos políticos. Exemplo desse movimento é a existência no Congresso Nacional da bancada "BBB": a bancada evangélica (da Bíblia), a armamentista (da bala) e a dos ruralistas (do boi). Somado a isso, tem-se a presença de uma vinculação com o fundamentalismo religioso. Estes processos, em sua totalidade e contradições, marcados por expressões contemporâneas de um conservadorismo, constituído por um “[...] pensamento antidemocrático, antipopular e antiprogressista [...]” (ESCORSIM NETTO, 2011, p.15), caracterizam uma “nova onda conservadora” que trará impactos para as políticas sociais.

Assim, a vida cotidiana tem na reificação um dos seus condicionantes históricos mais fundamentais, posto que, ao garantir aquela presença no conjunto da vida em sociedade, garante a própria preservação de múltiplas formas de dominação e sua assimilação pela via da espontaneidade tão típica da vida cotidiana. Seu inerente componente de classe evidencia-se, assim, desde o “pequeno mundo” por meio da imediaticidade que lhe é própria e que citamos há pouco, até mesmo à sua gênese no “grande mundo” – desta articulação saltam, portanto, não somente as expressões cotidianas das formas de dominação constitutivas da nossa brasilidade e embaladas pela reificação tipicamente capitalista, mas também os meandros das relações sociais em que são produzidas e de onde partem.

Na particularização deste cotidiano, impregnado de conservadorismo, se reproduz a subalternidade e, também, se disputa a hegemonia; é nele que as respostas institucionais às sequelas da questão social se realizam – especialmente aqui citadas as políticas sociais.

4 SUBALTERNIDADE E HEGEMONIA: interlocuções teóricas e mediações históricas

O conceito de “subalternidade” tem no pensamento gramsciano um significativo desenvolvimento e, juntamente à noção de hegemonia, possibilita pensar criticamente relações sociais do cotidiano e, mais além, os caminhos para emancipação dos subalternos.

Gramsci desenvolve, nos Cadernos do Cárcere, um novo conceito de classes ou grupos sociais subalternos, o qual não se trata de mera alegoria para a noção marxiana de “classe trabalhadora” ou “proletariado”, mas uma nova contribuição ao desenvolvimento do pensamento marxista.

A noção de classes ou grupos sociais subalternos é utilizada, então, para caracterizar grupos sociais sujeitos, imersos no cotidiano, a formas de comando e direção política e social impostos por outras classes, dominantes ou dirigentes. Sendo assim, subalternos são aqueles que, como diz o título do Caderno 25, vivem “às margens da história”, a parte da sociedade que sofre o domínio (econômico-político-militar-cultural) dos hegemônicos-dominantes (BARATTA, 2011). Mais especificamente, os desprovidos de discurso próprio, de programa autônomo de classe (para si).

Sendo a subalternidade entendida também como condição e processo de desenvolvimento subjetivo, “[...] de subjetivação política centrada na experiência da subordinação”, o que inclui “[...] combinações de aceitação relativa e de resistência, espontaneidade e consciência” (MODONESI, 2017, p. 105), decorre a fundamental importância de se conhecer e elaborar uma “história integral” das manifestações pulsantes e latentes dos subalternos.

Os termos subalterna/subalterno/subalternas/subalternos os quais podem, de forma abreviada, ser agrupados sob a rubrica de “subalternidade”, são utilizados por Gramsci de variados modos.

A expressão “subalternos” aparece já no Caderno 1, contudo, utilizado no âmbito de textos de argumento militar, como metáfora. Sua ocorrência nesse Caderno é de “oficiais subalternos do exército”, aos quais Gramsci compara os intelectuais de massa de que está tratando. Há ainda algumas outras ocorrências pouco significativas do termo até que, no Caderno 3, § 14 aparece pela primeira vez a expressão “classes sociais subalternas”, no plural. É retomada, em segunda redação, no Caderno 25, § 2, sob o título de “Critérios metodológicos”, em maio de 1934, nos quais o autor estabelece algumas das perspectivas fundamentais que se tornam determinantes para sua pesquisa sobre esse tema. Dentre elas evidenciam-se as considerações específicas à historiografia das classes subalternas, o que ele designa como a necessidade de uma “história integral”, que leve em conta também e, sobretudo, a história das classes subalternas.

Explicita-se aqui a importância política de se fazer a história das classes subalternas, a qual é, “necessariamente desagregada e episódica”, justamente em função de que ainda quando se rebelam, as classes subalternas “sofrem a iniciativa da classe dominante”, de modo que “todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral”.

Relacionado a essas questões, o que está demonstrando o autor é a importância fundamental de estudo dessa realidade diferenciada das classes subalternas – partindo de sua existência objetiva – a qual por vezes é desprovida de autoconhecimento político, o que acaba por se manifestar em diversos níveis de politização e organização. Ele instaura uma forte relação entre reconhecimento histórico e teoria política, no sentido de que este se torna preparatório à própria possibilidade de ação política (LIGUORI, 2011).

Conforme discorre no Caderno 27, em suas “observações sobre o folclore”, o que acontece e se produz no mundo “molecular” dos subalternos, ou no “pequeno mundo” nas palavras de Heller (1991), as lutas locais e nacionais, o senso comum, a cultura, a linguagem, a religião dos “simples”, as superstições, o “espírito popular criativo”, os levantes populares das regiões marginalizadas – são todos elementos aos quais dedica grande atenção. O faz ciente da fragmentação e ambivalências desse universo, mas, considerando suas iniciativas de “valor inestimável”.

Do que se destaca a importância fundamental de saber que as classes subalternas se rebelam e que constituem núcleos de autonomia com relação às classes dominantes os quais, ainda que não rompam imediatamente com a subordinação, mesmo que em “estado de defesa alarmada”, devem ser estudados e significativamente valorizados no âmbito de uma “história integral”.

Acerca do sentido político do conceito de subalternidade em Gramsci, esta pode ser pensada a partir da contextualização do desenvolvimento da noção de subalternidade juntamente ao conceito de Estado Integral.

A noção gramsciana de relações dialéticas reciprocamente constitutivas entre sociedade civil e sociedade política, que analisa a extensão e eficácia reais do Estado moderno no curso da formação social, conceitua este como uma relação sociopolítica complexa de inclusão: articulação das diversas formas de racionalidade sintetizadas no conceito de sociedade política às práticas associativas externas e às dimensões consideradas “não políticas” da vida social – concebidas pela tradição liberal como “sociedade civil”.

A hegemonia, neste contexto, é concebida como a prática de constituição material do tipo de poder específico do Estado moderno, que atravessa os dois grandes “planos” superestruturais: o da "sociedade civil", relacionada aos organismos chamados "privados" e o da "sociedade política ou Estado"; os quais correspondem, respectivamente, à "[...]função de 'hegemonia' que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado (GRAMSCI, 2017, p. 17).

A inovadora e complexa teoria do Estado elaborada por Gramsci compreende o estatuto particular das classes subalternas e considera que assim permanecem enquanto estiverem limitadas à sociedade civil, enquanto não “se tornam Estado”.

A sociedade civil, longe de ser o terreno da liberdade imaginado ainda hoje pelos liberais, é, portanto, a modalidade de racionalidade característica dos subalternos desagregados. Os quais continuamente sofrem as intervenções da sociedade política, que os interpela como “matéria prima” subalterna para suas operações diretivas (THOMAS, 2015).

Nesse ínterim, a subalternidade em Gramsci é produzida ativamente na relação hegemônica que constitui o Estado moderno, sendo um produto da especificidade do projeto hegemônico burguês.

Para que possa constituir-se enquanto tal, o Estado moderno depende do subalterno. O que significa que, estruturalmente, deve produzir e reproduzir alguns grupos sociais como subalternos, destinados para garantir sua própria continuidade. O que permite compreender os subalternos não como excluídos, em sentido abstrato, mas, ativamente integrados ao sistema de poder hegemônico, ainda que de uma forma passiva.

Desse modo, a subalternidade é compreendida como produto ativo da relação hegemônica que constitui o Estado moderno, como “força material dinâmica do Estado Integral” (THOMAS, 2015, p. 93). Se há hegemonia, pressupõe-se que haja subalternos.

E, a superação de tal condição, no desenvolvimento do pensamento gramsciano, não ocorre por meio de uma simples decisão da vontade, ou de uma “espontânea” atuação das massas; sua superação ocorrerá somente através de um trabalho paciente de construção de uma nova ordem social alternativa, na qual os grupos sociais subalternos progressivamente se tornem conscientes e praticantes de sua capacidade de autodireção e autonomia – ou seja, por meio de um projeto hegemônico (THOMAS, 2015).

Embrenhar-se pelo âmbito da subalternidade, nas suas relações não hegemônicas (econômicas, sociais, culturais, políticas, de raça, gênero, etc.) possibilita trazer à tona a autenticidade de relações humanas que a dominação hegemônica violentamente sufoca. Seja pela coerção ou pelo consenso (este, lembre-se, sempre ideologicamente forjado e imposto). E, justamente por não serem hegemônicas, tais manifestações são “desagregadas e episódicas”. Isso é um fato, não um desvalor, trata-se de uma questão política, conforme destaca Baratta (2011).

É significativo destacar que Gramsci, ao falar de classes ou grupo sociais subalternos, compreende tanto grupos mais ou menos desagregados e marginalizados, quanto o proletariado de fábrica, os camponeses sardos, os operários turinenses. O autor mantém explorados e oprimidos juntos num sentido mais abrangente do que as categorias marxistas tradicionais. E, talvez seja esse um dos elementos mais significativos que fizeram a categoria de “subalterno” tomar um crescente uso e sucesso nos países da periferia do capitalismo, nos quais as contradições capital/trabalho se complexificam em muitas determinações, muitas distantes das da subalternidade salarial. Portanto, é o subalterno, com sua potencialidade, que constituirá o público alvo das políticas sociais, que podem servir tanto para a manutenção da força de trabalho, mas também como expressão de luta política do subalterno. Desta forma, podemos identificar um caráter contraditório na implementação dessas políticas que se expressam num contexto atual de extremo conservadorismo. Daí deriva a necessidade de entendermos essa relação.

5 REFLEXÕES ACERCA DO COTIDIAN, CONSERVADORISMO E SUBALTERNIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A compreensão sobre as políticas públicas precisa ser articulada ao processo de produção e reprodução social no capitalismo, ao movimento contraditório de luta das classes sociais e ao papel do Estado na regulação da relação entre capital e trabalho. As desigualdades estruturais que nascem de tal relação, oriundas dos processos de superexploração do trabalho pelo capital, são enfrentadas por políticas públicas estatais que, embora possam contemplar algumas demandas legítimas da classe trabalhadora, não eliminam as desigualdades do modo de produção capitalista.

No caso brasileiro, é preciso levar em consideração as particularidades política, social e econômica da constituição das classes e do capitalismo no Brasil, que possuem o caráter de dependência (FERNANDES, 2005) em relação aos países de capitalismo central; a marca histórica da precarização da classe trabalhadora (ANTUNES, 2018); o racismo em nossas relações sociais; e o “patrimonialismo como fundamento das relações entre público e privado, com o uso indiscriminado do poder público estatal pelas classes dominantes no Brasil para atingir os interesses privados de setores da burguesia brasileira, além das históricas práticas clientelistas em tal contexto” (SCHMIDT, 2015, p. 33).

Tais traços históricos incidem no processo de implementação das políticas públicas no Brasil, de modo que, tardiamente, frente às lutas dos movimentos sociais, temos a configuração de um sistema de proteção social, com a Constituição Federal de 1988, que institui a seguridade social pública, formada pelas políticas de saúde, previdência e assistência social e garante no Artigo 6º os demais direitos sociais à população.

Por outro lado, o Estado brasileiro, orientado pela perspectiva neoliberal, tem, historicamente, promovido medidas a favor do capital financeiro e concentrado sua intervenção em políticas públicas focalizadas no combate à pobreza extrema. Assistimos, desde os anos 1990, o desmonte das políticas públicas, com o desinvestimento social agravado nos últimos governos, deixando grande parte da população brasileira sem o atendimento mínimo de suas necessidades. Em tal cenário, práticas conservadoras reatualizam-se no âmbito das políticas públicas e é preciso considerá-las no processo mais geral de luta de classes.

Consideramos que a presença de novas formas do pensamento conservador na sociedade brasileira se desdobrou no conjunto das políticas sociais em “[...] elementos de precarização dos serviços públicos, focalização nas situações de pobreza extrema, descentralização político-administrativa da gestão, privatização de setores públicos[...] [e um] processo de refilantropização da política pública” (KELLER, 2019, p.173). Esses impactos se expressam, dentre tantos outros, em alguns elementos que consideramos abaixo, a saber: a moralização da questão social, a naturalização da barbárie, a defesa exacerbada da família e as incidências neopentecostais.

A defesa exacerbada da família vem marcando de forma sólida e explícita o atual governo que claramente defende essa instituição aos moldes tradicionais, sem reconhecer a dinâmica de arranjos familiares que hoje temos na sociedade brasileira. A concepção é que a família, tão ao gosto conservador, se constitui como a base da sociedade, como o pilar onde valores são repassados de gerações a gerações garantindo a preservação das tradições. Em meio a essa discussão podemos identificar que a família exerce um papel fundamental na política de assistência social, na medida em que ela é responsabilizada pelos seus membros. E aquela que não tiver “capacidade” para cuidar de seus familiares, necessita da intervenção do Estado. Concepção essa que ignora completamente os avanços sobre a definição contemporânea de família e retira do poder público, outras responsabilidades que são direitos para a população, para a classe trabalhadora. Na realidade, a retração no campo dos direitos e os ataques sucessivos são expressões do conservadorismo que se reacendem na sociedade brasileira.

No caso brasileiro, as medidas, orientadas pelo ideário neoliberal e influenciadas pelas agências internacionais capitalistas, envolveram alguns processos, dos quais ressaltamos: a prioridade da intervenção estatal em prol do capital financeiro; a flexibilização dos direitos trabalhistas, operando a precarização das condições de trabalho e a desmobilização da classe trabalhadora; a atuação estatal focalizada no combate à pobreza (extrema), e o não investimento nas políticas públicas universais; o repasse da responsabilidade do Estado em executar as políticas públicas, transferindo tal atribuição às organizações da sociedade civil, inclusive destinando recursos públicos para esta finalidade. (SCHMIDT, 2015, p. 316-317).

Além disso, verificamos nos dois últimos governos (Temer e Bolsonaro), um conjunto de contrarreformas (BEHRING, 2008) que afetam sobremaneira as potencialidades protetivas das políticas públicas. Tais medidas incidem negativamente nas condições de vida da classe trabalhadora brasileira, que, se anteriormente já convivia com a precarização, sendo superexplorada, tem a cada dia seus direitos diminuídos, em prol do capital financeirizado. Frente a tal cenário, assistimos a um contínuo crescimento das demandas desta classe por atendimento nas políticas públicas, que não consegue ser contemplada, em virtude da falta de investimento estatal neste campo.

Acentuam-se, assim, as estratégias ultraneoliberais para a retomada do crescimento econômico, sendo que “O ultraneoliberalismo não pode ser pensado, no Brasil, fora das determinações que radicam a própria escalada conservadora, sendo, portanto, dimensões do movimento da classe dominante para garantir condições de gestão da crise do capital no âmbito do capitalismo dependente brasileiro ” (MAURIEL et al., 2020, p. 15).

Em um cenário de crise em vários campos societários – político, econômico e social – a pandemia gera uma crise sanitária, que se associa medularmente às demais, pois se articula à crise estrutural do capitalismo. Os efeitos dessa conjuntura no Brasil são devastadores para a classe trabalhadora, pois, a “superexploração da força de trabalho, além de aumentar o desemprego, ampliou enormemente a informalidade, a terceirização e a flexibilização da força de trabalho” (ANTUNES, 2018, p. 56, grifo do autor) e tais processos são acentuados em momentos de crise do capital.

Frente ao agravamento das expressões da questão social, as políticas públicas se apresentam como possibilidades históricas de garantia de direitos da classe trabalhadora. No contexto apresentado, observamos a necessidade urgente de fortalecimento dos espaços de lutas das políticas públicas, como os Conselhos, Conferências e Fóruns, de modo a articular as demais políticas públicas que se vinculam à seguridade social, tendo em vista a intersetorialidade, de modo a conjugar os diferentes atores sociais e as pautas políticas para o enfrentamento deste cenário destrutivo no âmbito da proteção social brasileira.

Compreendemos que os enfrentamentos são coletivos e dos sujeitos sociais históricos que transformam a realidade em constante construção, pois, conforme afirma Marx (2008, p. 47): “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, ao contrário, é o ser social que determina sua consciência”. Por isso, a partir do entendimento das políticas públicas como possibilidades históricas de garantia de direitos do conjunto das classes subalternas no Brasil, precisamos ocupar os espaços coletivos de lutas, no cotidiano, como formas de resistência à dominação hegemônica do capital e do conservadorismo que a alimenta.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trato moralizador das expressões da questão social identifica as mazelas sociais, produzidas nas relações contraditórias do capitalismo, como de foro individual, ou seja, o indivíduo é o responsável por estar vivendo em condições de pobreza, desempregado e sem acesso digno à moradia, dentre outros direitos. Em nenhum momento se questiona o próprio sistema capitalista que produz essa questão social em suas mais diversas formas. Essa apreensão das desigualdades sociais por um prisma individual, fragiliza a luta coletiva da classe trabalhadora, subalternizada nos seus estratos mais pauperizados, pois são esses que experienciam, no cotidiano, as condições indignas de sobrevivência.

Dessa forma, identifica-se que a resistência para o pensamento conservador deve cada vez mais ser incentivada, das formas possíveis de existir nessa sociedade marcada por um grande retrocesso no campo democrático e progressista.

Verifica-se um ataque do conservadorismo ao campo dos direitos sociais arduamente conquistados pelas lutas da classe trabalhadora nos seus heterogêneos segmentos. Portanto, o que podemos indicar é que há uma necessidade premente de pensarmos estratégias coletivas de enfrentamento ao que está posto, pois não atinge os indivíduos somente na esfera singular, mas sobretudo coletiva. Essa consciência precisa ser estimulada para que possamos fortalecer o campo da luta. Luta por uma sociedade que garanta uma saúde de qualidade e não a mercadorização dos direitos, luta pela garantia de uma educação pública laica, gratuita e de qualidade, luta por uma política de assistência social que trabalhe na lógica do direito e não do assistencialismo, ranço desse passado conservador, mas que no momento se apresenta de outra forma. Nesse sentido, é mais do que necessário resistir aos ataques constantes que as classes subalternas vêm sofrendo, que certamente as fragiliza, mas que não retira o seu papel na história como sujeito revolucionário.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
[1] Nem de longe isto equivale à tomada de um homem singular como representante da genericidade humana: “Também enquanto indivíduo [...] é o homem um ser genérico, já que é produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano; mas o representante do humano-genérico não é jamais um homem sozinho, mas sempre a integração [...] cuja parte consciente é o homem e na qual se forma sua ‘consciência de nós’” (HELLER, 2000, p. 21).
[2] “Esta esfera de objetivações genéricas em si é a resultante de atividades humanas [...]. Seus três momentos, distintos mas de existência unitária, são: primeiro, os utensílios e os produtos; segundo, os usos; terceiro, a linguagem” (HELLER, 1991, p. 228 – grifos no original).
[3] Ainda que a discussão acerca do trabalho profissional não se ponha no âmbito das reflexões desenvolvidas nessas páginas, cabe destacar que as políticas sociais podem ser consideradas como instrumentos pelos quais o assistente social “operacionaliza”, como outros profissionais, seu trabalho.
[4] Que não desenvolveremos aqui pela natureza do trabalho, mas que apresenta autores expressivos como Durkheim, Tocqueville, Nisbet, dentre outros.
[5] Segundo Barroco, (2015, p. 624-625): “Para enfrentar ideologicamente as tensões sociais decorrentes da ofensiva neoliberal, no contexto da crise mundial do capitalismo dos anos 1970, o conservadorismo se reatualizou, incorporando princípios econômicos do neoliberalismo, sem abrir mão do seu ideário e do seu modo específico de compreender a realidade. O neoconservadorismo apresenta-se, então, como forma dominante de apologia conservadora da ordem capitalista, combatendo o Estado social e os direitos sociais, almejando uma sociedade sem restrições ao mercado, reservando ao Estado a função coercitiva de reprimir violentamente todas as formas de contestação à ordem social e aos costumes tradicionais”.
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