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RACISMO, FOME E POLÍTICA um diálogo sobre África e América na conjuntura da pandemia
RACISM, HUNGER AND POLITICS: a dialogue on Africa and America in the context of the pandemic
RACISMO, FOME E POLÍTICA um diálogo sobre África e América na conjuntura da pandemia
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 603-622, 2022
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 14 Febrero 2022
Aprobación: 29 Abril 2022
Resumo: O artigo discute o atual momento sócio-político na América Latina e na África, no contexto da pandemia da covid-19 e da ocorrência de alguns retrocessos civilizatórios. Destaca que as sociedades desses continentes, em particular, são marcadas pelo racismo estrutural e pela negação dos direitos humanos fundamentais, como o acesso aos alimentos, para a maioria da população, notadamente para os povos originários e para aqueles cujos ancestrais foram desterrados do continente africano e submetidos à escravidão, para garantir a espoliação dos recursos naturais desta parte do mundo e alimentar a ascensão do capitalismo como sistema global.
Palavras-chave: América Latina, África, fome, racismo.
Abstract: The current sociopolitical moment in Latin America and Africa is discussed, under the pressing situation of covid-19 pandemic and the occurrence of some setbacks in civilizational achievements. It must be remarked that those societies are tainted by structural racism and habitual negation of basic human rights, such as access to nourishment for most of the people, notably regarding original populations of the Americas and the descendants of those who were forced unto slave labor, all of this motivated by the spoliation of natural resources from this part of the world, in order to fuel capitalism as it ascended to become a global system.
Keywords: Latin America, Africa, racism.
1 INTRODUÇÃO
A pandemia de covid-19 instaurou-se em um contexto em que forças políticas retrógradas vêm buscando suprimir algumas conquistas civilizatórias. Ao se discutir o atual momento sócio-político na América Latina e na África, no contexto da pandemia da covid-19, põe-se em relevo o fato de que as sociedades desses continentes, em particular, são marcadas pelo “racismo estrutural” e pela negação dos direitos humanos fundamentais, como o acesso aos alimentos, para a maioria da população, notadamente para os povos originários e para aqueles cujos ancestrais foram desterrados do continente africano e submetidos à escravidão.
A expressão “racismo estrutural”, se um dia conseguiu explicar, por exemplo, a indissociabilidade entre a realidade opressora da pessoa negra e o comportamento opressor do branco, ao que se observa hoje, não raro, tem servido para uma compreensão diametralmente oposta.
O efetivo enfrentamento do racismo estrutural é, necessariamente, um questionamento da “normalidade” presente – normalidade essa que se exemplifica tanto no olhar vigilante sobre uma mulher preta parar diante da vitrine de uma loja qualquer, quanto nas discrepâncias referentes ao tratamento das situações de fome nos países da periferia do capitalismo; tanto na truculência da abordagem policial a moradores pretos das periferias urbanas, quanto na espoliação que o colonizador/imperialista faz dos recursos da mãe-terra dos povos originários.
É essa “normalidade” que instigou a percepção dos próprios organismos das Nações Unidas, a ponto de destacarem que continuamos vivendo em “uma realidade humilhante” (FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO, 2021, p.8). No mais recente relatório sobre a situação da segurança alimentar da população mundial, está estimado que, ao longo de 2020, o primeiro ano da pandemia, cerca de 2,37 bilhões de pessoas não tiveram acesso à alimentação adequada. Dessas pessoas, quase 928 milhões se encontravam em situação de insegurança alimentar grave, o que significa que elas estão submetidas à fome. Na África estão 346,6 milhões de pessoas e 92,8 milhões na região América Latina e Caribe.
Se, por um lado, esses números indicam a dimensão do desafio humanitário de combater a fome, por outro lado, a situação se mostra muito mais complexa à medida que se observa esse é um cenário em que avançam forças políticas ultraconservadoras, cujos representantes são herdeiros em linha reta de um passado escravocrata, que erigiu o capitalismo colonial e imperialista, usurpando os recursos naturais e drenando a energia humana dos povos, sobretudo no chamado “novo mundo” e na África.
O debate do racismo estrutural é aqui colocado, bem como são discutidas as circunstâncias do avanço da fome e da supressão de direitos, no contexto da pandemia na África e na América Latina, com destaque para a experiência da Bolívia.
2 A ESTRUTURA RACISTA DO RACISMO ESTRUTURAL: qualificando o debate
No livro O que é racismo estrutural, o professor Sílvio Almeida enfatiza que “o racismo é sempre estrutural”, “ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade” (ALMEIDA, 2019, p. 15). Não há nada disposto à interpretação; ao invés disso, a afirmação direta é que o racismo, por si mesmo e como um todo, . estrutural.
Entretanto, eventos racistas têm sido desculpados anedoticamente com frases como “devemos lembrar que o racismo é estrutural”, “mais um exemplo de racismo estrutural”, entres outras frases corriqueiras, cujo sentido é classificar um tipo de racismo como “racismo estrutural”. Dessa maneira, esse posicionamento errôneo tanto despersonaliza o racista, quanto polui a discussão política a respeito do significado do racismo. O racista é o indivíduo que se locupleta da violência econômica presente contra o negro e em favor do branco, estabelecida no processo histórico da colonização. O racismo, por sua vez, é como vamos chamar o momento presente desse mesmo processo histórico, que marca a “normalidade” das nossas vidas: “O racismo é a manifestação do normal de uma sociedade, [este] fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea” (ALMEIDA, 2019, p. 15-16). Portanto, o problema no uso corriqueiro da expressão “racismo estrutural” está na desassociação do racismo com a estrutura, usando de uma linguagem patologizante que afasta a expressão “racismo estrutural” da sua função precípua: uma denúncia da normalidade como uma violência racista.
Superando a fraseologia infértil, é preciso explicitar as consequências concretas e políticas da postura antirracista, ou seja, que o enfrentamento direto ao racismo estrutural de fato é necessariamente um questionamento da “normalidade” presente.
O propósito primordial deste texto é requalificar o debate do “racismo estrutural” como análise do processo histórico que constrói essa estrutura racista. Significa dizer que o significado do racismo precisa ser retirado do plano da abstração apolítica em que foi colocado e, em lugar disso, utilizado como referencial científico e político para a reconstrução da sociedade. No plano específico, procura-se, de forma articulada, discutir o racismo como a “normalidade” presente, ou seja, uma manifestação do status quo que não pode ser reduzido a um evento ou a uma patologia de ordem pessoal ou social; ressaltar a relação dialética entre o modelo político e econômico com a superestrutura social, de modo a explicitar que o racismo (como compreensão ideológica hegemônica) é indissociável a estrutura (o capitalismo e suas formas jurídicas); e, por fim, apontar um caminho de desenvolvimento social que procure abolir o racismo, com foco nas necessárias inferências lógicas da compreensão histórica quanto ao caráter estrutural do racismo.
2.1 Decifrar a produção e a reprodução social do racismo exige um aporte teórico
A perspectiva teórica aqui requer a superação do essencialismo racial, que se trata da redução da humanidade e da capacidade de objetivismo científico por parte da pessoa negra, inclusive de seus pesquisadores. Grada Kilomba descreve o essencialismo como um processo de identificação absoluta, “qual uma pessoa é vista meramente como uma ‘raça’”, de modo a determinar o negrocomo algo desprovido de contexto histórico ou social (KILOMBA, 2019, p. 174). A rota de correção exige uma contextualização histórica – ou historicização – da compreensão racial e de seus indivíduos, de forma a superar o determinismo sobre os indivíduos racializados - no sentido de que nossa compreensão de mundo enquanto pessoa negra não possui uma característica essencial de análise, mas dialética. Estamos inclusos em uma dinâmica de forças – uma dinâmica racial – que, pelo caminhar da história, da economia e da política, nos fez negros. É necessário, então, que seja superada a compreensão subjetivante do racismo. Este é um fenômeno social, e “aquelas/es que o enfrentam são sempre confrontadas/os com a mensagem que suas experiências são decorrentes da sua própria sensibilidade excessiva e, portanto, são de sua própria responsabilidade” (KILOMBA, 2019, p. 138).
A questão aqui é entender que, por estarmos na dinâmica racial do lado dos oprimidos, temos na produção científica um desafio tão grande quanto mantermo-nos atentos à rigidez característica da ciência: temos uma “contramotivação” estrutural à nossa produção, que é frequentemente adjetivada como “demasiadamente política”, “ativista”, “engajada”, “opiniosa”, “não-científica”. É esse fenômeno que chamamos de subjetivante, quando na verdade é a nossa posição marginal que nos garante uma visão objetiva sobre o racismo.
A margem, esse espaço periférico, funciona epistemologicamente como um “espaço de abertura radical” (HOOKS, 1989, p. 149), porque se trata de um lugar de possibilidade e revolução social. Estar à margem significa estar na posição ótima, onde nossos interesses materiais não entram em conflito com nossos interesses de pesquisa, pelo contrário, posto que estes não correspondem com a manutenção do status quo. Portanto, nossa perspectiva de pesquisador negro buscará produzir conhecimento objetivo quanto ao racismo, superando-se essencialismos vulgares que reproduzem a desumanização dos indivíduos racializados, compreendendo a prática como critério de verdade e o materialismo-histórico dialético como a única ferramenta capaz de compreender o caráter estrutural do racismo.
É comum a sociedades de diferentes épocas imaginarem que possuem absoluta liberdade de pensamento. Esse fenômeno se dá como consequência da compreensão errônea da história e seu percurso. Esta imaginação de liberdade plena é, ela mesma, algo determinado pelas condições objetivas da conjuntura em questão: “Os homens fazem sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011, p. 25).
Nosso pensamento não é livre, mas uma consequência das nossas circunstâncias materiais. Não há fatalismo nesta constatação, mas uma perspectiva científica da construção da história. Significa dizer que há de se conhecer os átomos, os tijolos, as partículas materiais que compõem a conjuntura presente, para que se possam construir soluções igualmente científicas para nossos problemas sociais.
Nossa busca é marcada por esta tarefa inovadora de superar o tradicionalismo determinado pelo percurso histórico traçado até o ponto presente; soluções criativas nos aguardam do outro lado das condições objetivas impostas, da lógica econômica imposta, da realidade imposta: “a tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos” (MARX, 2011, p. 25). Condições objetivas, nesse contexto, referem-se à materialidade da existência. Trabalho, moradia, acesso a bens e serviços, formas de sustento da vida as quais chamamos de necessidades materiais e as relações jurídicas que as englobam: direito à propriedade para alguns, dever de trabalho para outros. O indivíduo viverá sob o regime de uma superestrutura de sentimentos, ilusões, modos de pensar e visões da vida distintos e configurados de modo peculiar, que se constrói sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais da existência (MARX, 2011, p. 60). Sua vida, seu pensamento, sua liberdade… tudo isso estará dialeticamente determinado por esta superestrutura, porque ela é a determinação do normal de uma dada sociedade.
Não se está sugerindo que a superestrutura congela fatalmente uma sociedade, e sim que esta engessa seu desenvolvimento social em favor à manutenção do status quo. É por essa razão que não há lógica na “conscientização” como ferramenta de enfrentamento ao racismo, porque este já é o produto do normal. O racismo é produzido pela normalidade da vida, porque corresponde à superestrutura derivada das nossas condições sociais de existência e forma de propriedade. Assim, determina a compreensão de mundo de seus indivíduos, que, via de regra, agirão de acordo com essa determinação estrutural. Ciclicamente, serão agentes da reprodução do racismono momento em que corresponderem às condições sociais da existência. É a produção e reprodução social do racismo, em nosso país ou em qualquer outra sociedade de classe.
Compreendendo a forma estrutural em que o racismo se relaciona com a estrutura política, econômica e social que chamamos de capitalismo, é possível compreender a relação entre um modo de produção e seu aspecto ideológico. Sendo um sistema de produção que se origina na Europa, o capitalismo carrega consigo a mesma superestrutura europeia, o mesmo vocabulário de tradições que comprimem o cérebro dos vivos: “a característica mais marcante do capitalismo é sem sombra de dúvidas a emergência do racismo como uma leniência profundamente enraizada e difundida no pensamento europeu” (RODNEY, 2018, p. 103). Para Rodney, esse enraizamento do pensamento racista é fruto de uma construção histórica determinada pela escravização imposta aos povos negros pelos europeus. Vivemos hoje a continuidade desse processo histórico, posto que em muitos lugares do globo ainda não se deu uma ruptura radical com a trajetória iniciada por esse modo de produção baseado na exploração máxima do trabalhador. “Nenhum povo pode escravizar outro por séculos sem sair disto com uma noção de superioridade; e em sendo a cor da pele e outros traços físicos dessas outras pessoas de notável diferença, é inevitável que o preconceito venha a tomar uma forma racista” (RODNEY, 2018, p. 103).
A dialética da relação entre pensamento individual e superestrutura é a de produção e reprodução. O racista reproduz o racismo porque faz sentido ser racista na sociedade em que vive. Não se trata simplesmente de um “pacto”, um “acordo secreto”, seja ele consciente ou inconsciente, mas de uma expressão da normalidade, posto que o racismo é produto dessa normalidade estrutural. Por conseguinte, a superação do racismo não se resume a campanhas de conscientização, porque a consciência do indivíduo é determinada pela superestrutura, que comprime sua criatividade e limita sua vida com uma lógica de funcionamento que, em si, é racista. Superar o racismo exige uma compreensão mais coletiva do problema: requer buscar o rompimento com a lógica do racismo, compreendendo que a raiz da reprodução social do racismo não é o branco enquanto indivíduo, mas o branco enquanto sistema de produção.
2.2 Racismo como lógica econômica
Em tempos de denúncias vazias contra o racismo estrutural, sem que se questione a própria estrutura, observa-se um contorcionismo cada vez mais elástico nos argumentos e nos demais eufemismos encomendados pela grande mídia e grandes corporações. Isto porque, hoje, carregar a pecha de “empreendimento racista” pode implicar considerável perda de dividendos. O desafio do capital passa a ser a defesa de um antirracismo de mercado, um “antirracismo” que tem como objetivo precípuo não o enfrentamento do racismo na sua raiz, mas a garantia comercial e tabular de que seu investimento não será esbulhado pela pecha de “racista”.
Diretamente ao ponto, o antirracismo de mercado não passa de uma confusão premeditada, um enturvar da límpida relação dialética entre o capital e a manutenção do racismo como normalidade da vida. Normalidade porque há um cálculo econômico que motiva atitudes que buscam o lucro e, consequentemente, reproduzem o racismo. Um exemplo bom desse cálculo e sua relação com problemas sistêmicos está explicitado na obra O Capital:
Na Inglaterra, ocasionalmente ainda se utilizam, em vez de cavalos, mulheres para puxar etc., os barcos nos canais, porque o trabalho exigido para a produção de cavalos e máquinas é uma quantidade matematicamente dada, ao passo que o exigido para manutenção das mulheres da população excedente está abaixo de qualquer cálculo (MARX, 2013, p. 467).
No exemplo da Inglaterra vitoriana, a opressão sistêmica baseada em gênero é reforçada por motivações puramente econômicas: é mais barato manter uma mulher pobre que manter um cavalo. O machismo e o patriarcado encarnados nesse raciocínio violento não depende do ódio contra a mulher, e sim da dura realidade de que um cavalo demanda mais investimento econômico - obviamente, uma sociedade que possibilita este tipo de raciocínio está construindo uma cultura de desprezo à vida da mulher, uma superestrutura de sexismo. Da mesma forma, uma opressão sistêmica baseada em raça não precisa ser um “plano maligno” de indivíduos brancos contra pessoas negras. A mais horrenda das formas de violência já causada aos negros, a escravidão, não foi motivada pelo racismo, antes foi determinada por interesses econômicos.
Ocasionalmente, é erroneamente defendido que os europeus escravizaram os africanos por razões racistas. Produtores agrícolas e mineradores europeus escravizaram africanos por razões econômicas, para que sua força de trabalho pudesse ser explorada. De fato, teria sido impossível abrir caminhos no Mundo Novo e usá-lo como um gerador constante de riquezas, não fosse a mão-de-obra africana [...]. Tendo se tornado absolutamente dependente do labor africano, europeus dentro e fora de seu continente concluíram ser necessário racionalizar a exploração, também, em termos racistas (RODNEY, 2018, p. 103).
Rodney atesta a incongruência no pensamento que antecipa o racismo como algo que precede a campanha de invasão da África e o sequestro sistemático de africanos para submetê-los à escravização. Há, primeiro, uma necessidade material para a expansão desse modelo econômico. Em decorrência do suprimento criminoso dessa necessidade material econômica, surge a necessidade material política, a justificação para a atrocidade flagrante do escravismo. A galinha nasce primeiro que o ovo. E a partir disto, o ciclo se inicia. A escravização do trabalhador negro abre caminho para o percurso da história:
A descoberta de ouro e prata nas Américas, a extirpação, escravização, e o esgotamento de minas de populações aborígenes, a transformação de África em um viveiro comercial para a caça de peles negras deu sinal para um amanhecer róseo da era da produção capitalista (MARX apud RODNEY, 2018, p. 98).
A racionalização da exploração do negro não deixou de ser uma necessidade material política do sistema capitalista. Porém, a compreensão racista dessa exploração também não é estática; os motivos pseudocientíficos do século XVI não são iguais à pseudociência do século XIX, e nenhum deles serve para a realidade observável do século XX e dos dias atuais. Grada Kilomba (2019) destaca que o racismo preserva o colonialismo de ontem na superestrutura da sociedade de hoje. A memória colonialé uma tradição que comprime nossos cérebros. É um lembrar que não se origina no consciente ou inconsciente, mas no imaginário coletivo, na superestrutura construída pelas condições materiais objetivas. É a resposta à necessidade material política que a estrutura tem de justificar seu flagrante delito, indubitavelmente observável: os negros trabalham mais e ganham menos. Alguns trabalham muito mais, e não ganham nada. E os bilionários são todos brancos.
3 O COMBATE À FOME NA PANDEMIA SOB ESTRUTURAS SOCIAIS RACISTAS
Mais do que evidenciar que as situações de fome crônica permanecem entre nós ao longo duas primeiras décadas do século XXI, a ocorrência da pandemia da covid-19 contribui para ampliar as desigualdades de acesso à riqueza e agravar a extrema pobreza entre grande parte da população mundial. Na percepção dos próprios organismos das Nações Unidas, continuamos vivendo em “uma realidade humilhante” (FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO, 2021, p.8)[1]. No mais recente relatório sobre a situação da segurança alimentar da população mundial, está estimado que, ao longo de 2020, o primeiro ano da pandemia, cerca de 2,37 bilhões de pessoas não tiveram acesso a alimentação adequada, o que representa um acréscimo de 320 milhões em relação ao ano anterior; Dessas pessoas, quase 928 milhões se encontravam em situação de insegurança alimentar grave, um acréscimo de 148 milhões de pessoas em relação ao que fora estimado para o ano 2019 (FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO, 2021, p.16). O maior contingente de pessoas em insegurança alimentar grave está na Ásia, num total de 471,1 milhões; na África estão 346,6 milhões de pessoas e na América estão 95,9 milhões, sendo que 92,8 milhões apenas na América Latina e Caribe. Quando somamos as pessoas que se encontram em insegurança alimentar moderada, as cifras aumentam muito mais: atingem 1.198,7 milhões na Ásia, 798,8 milhões na África e 296,1 milhões nas Américas.
Esses números indicam a dimensão do desafio de combater a fome. A preocupação deveria se tornar ainda mais urgente diante de um cenário em que avançam, em algumas partes do mundo, forças políticas ultraconservadoras, cujos representantes são herdeiros em linha reta de um passado escravocrata, que erigiu o capitalismo colonial e imperialista, usurpando os recursos naturais e drenando a energia humana dos povos, sobretudo no chamado “novo mundo” e na África. No atual contexto de mundialização do capital (globalização), tendo por suporte ideológico das ações a concepção neoliberal, as situações de insegurança alimentar acentuam-se com as práticas do livre comércio, que os países desenvolvidos impõem aos demais, sob controle das grandes corporações da indústria alimentícia.
No presente texto destaca-se que, no combate à fome antes da pandemia, a ação de organismos supranacionais e de governos locais vinha assumindo uma função compensatória às contradições do livre mercado. Porém, esses avanços estão ameaçados pela ascensão de setores políticos conservadores em alguns países, especialmente na América Latina.
3.1 Como avança a insegurança alimentar na pandemia
Conforme já se mencionou, em termos absolutos, o maior número de pessoas em insegurança alimentar grave no ano de 2020 encontra-se no continente asiático (471,1 milhões), seguindo-se a África (346,6 milhões), a América (95,9 milhões), a Europa (12,8 milhões) e a Oceania (1,1 milhão). Os organismos da ONU costumam estratificar esses continentes de acordo com as áreas de maior ocorrência de fome. Assim, os números da América do Norte (3,1 milhões), excluído o México, são apresentados juntamente com os da Europa (12,8 milhões), destacando-se aqui a maior ocorrência nos países do Leste Europeu (6,3 milhões). No continente americano são apresentados os números da América Latina e do Caribe (92,8 milhões), destacando-se a ocorrência na América do Sul (55,6 milhões). A África é apresentada em duas regiões principais: Norte da África (23,4 milhões) e África Subsaariana (323,2 milhões), sendo destacadas as sub-regiões do Leste da África (127,9 milhões) e Oeste da África (115,7 milhões). No continente asiático (471,1 milhões) a concentração está na sub-região do Sul da Ásia (386,8 milhões). Reunidas, as grandes áreas que apresentam maior contingente populacional em insegurança alimentar grave, Sul da Ásia (386,8 milhões), África Subsaariana (323,2 milhões) e América Latina & Caribe (92,8 milhões), observa-se que essas regiões concentram 76,7% das pessoas submetidas a essa situação em 2020.
Nesse ano, a média de prevalência da insegurança alimentar grave foi estimada em 11,9% da população mundial (FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO, 2021, p.43). No entanto, quando são observadas as grandes áreas de ocorrência, vêm à tona as nuances da “realidade humilhante” indicada nos recentes relatórios dos organismos da ONU e que indicam as desigualdades existentes não apenas dentro de cada país, mas entre os países e as regiões do mundo. O maior percentual em relação à população total encontra-se na África Subsaariana, onde cerca de 29,5% estão nessa condição. Embora a região da América Latina e Caribe apresente a segunda pior situação, com 14,2% da população em situação de grave insegurança alimentar, esse percentual alcança 39,2% na sub-região do Caribe. Isso aponta o Caribe como a situação mais preocupante entre as sub-regiões, com uma parcela bastante superior, por exemplo, aos 35,8% encontrados no Centro da África e aos 19,9% presentes no Sul da Ásia - ainda que os números absolutos sejam bem diversos: 17 milhões no Caribe, 64,3 milhões no Centro da África 386,8 milhões no Sul da Ásia.
Em um comparativo com o ano anterior ao início da pandemia, 2019, o quadro que se observa é o que segue. Naquele ano, a média mundial de incidência de insegurança alimentar grave era de 10,1%, tendo ocorrido um aumento de 1,8 ponto percentual em 2020. Na África Subsaariana eram 24,9% e houve um crescimento de 4,6 pontos percentuais.[2] Na América Latina e no Caribe eram 10,1%, sofrendo um acréscimo de 4,1 pontos percentuais. Na sub-região do Sul da Ásia eram 18,3%, havendo 1,6 ponto percentual de aumento.
Quando se incluem a esses números os da segurança alimentar moderada, a situação se amplia em escala muito acentuada. Em números absolutos, 2.368,2 milhões se encontravam em insegurança alimentar grave ou moderada em 2020, com aumento de 318,3 milhões de pessoas em relação a 2019 (2.049,9 milhões), tendo a prevalência aumentado de 26,6% para 30,4%. Na Ásia, com 1.198,7 de pessoas (25,8%), houve uma expansão de 155,5 milhões sobre o ano anterior quando eram 1.043,2 milhões e representavam 22,7% da população. Desse acréscimo, 128,4 milhões estão na sub-região do Sul da Ásia. Na África Subsaariana estão 724,4 milhões (66,2%), com 85,6 milhões a mais que em 2019, quando eram 638,8 milhões (59,9%). Na região América Latina e Caribe, o número passou de 207 milhões em 2019 (31,9%) para 267,2 milhões (40,9%), em 2020, acrescendo assim 60,2 milhões de pessoas em insegurança alimentar. Na Europa, eram 57,4 milhões (7,7%), passando em 2020 para 69,5 milhões (9,3%), com um acréscimo de 12,1 milhões de pessoas. A Oceania tinha 5,7 milhões em 2019 (13,6%), sendo a única região em que houve redução (600 mil), passando para 5,1 milhões (12%) o número de pessoas em insegurança alimentar grave ou moderada em 2020. (FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO, 2021, p. 43-44).
O citado relatório dos organismos da ONU disponibiliza a recente evolução da prevalência nos diversos países, comparando os períodos de 2014-2016 e 2018-2020. A seguir, vamos focar o olhar para alguns países, selecionados nos dois continentes onde tem sido mais acentuado o percentual da população submetida à insegurança alimentar, tanto na forma grave como na forma moderada. Na África, o caso de Burkina Faso é o que apresenta maior variação entre os países selecionados naquele continente. A prevalência de insegurança alimentar, somadas às formas grave e moderada, elevou-se de 41,8% para 47,9%, tendo um aumento de 15%, porém a forma grave aprofundou-se acentuadamente, passando de 10% para 15,4% da população, o que representa uma piora de 54% na situação do país. O segundo caso a destacar é o Quênia. A insegurança alimentar evoluiu-se de 53% para 68,5% da população, tendo um aumento de 29%. Chama atenção o elevado percentual no momento inicial, o que se torna ainda mais preocupante diante do aprofundamento da prevalência da forma grave, que se elevou em 49%, passando de uma parcela de 17,3% para 25,7% da população do país.
Em outros países a prevalência ficou estabilizada, porém subiu o percentual relativo à forma grave da insegurança alimentar. Foi essa a situação, por exemplo, da República do Congo, da Etiópia e da Guiné, onde a variação da insegurança alimentar grave ou moderada foi 8%, menos de 1% e 2%, respectivamente. O nível grave de insegurança alimentar, entretanto, subiu 21%, 13% e 12% nesses países, de um ano para o outro. Chama atenção também o fato que, no Congo e na Guiné, uma a cada duas pessoas encontra-se nessa situação. Em Serra Leoa, por sua vez, a prevalência permaneceu estável nos dois níveis, variando 7% no geral, mas apenas 1% no nível grave de insegurança alimentar, que atinge aproximadamente 1/3 da população. Entre os países selecionados, Sudão do Sul, Zimbábue e Senegal representam casos de redução na prevalência de insegurança alimentar, sobretudo no nível grave. No Sudão do Sul a diminuição foi 5% nesse nível, o que permitiu também uma redução de menos de 1%, porém foi o único país dos selecionados a obter no percentual geral. Preocupa, no entanto, o elevado ponto de partida: 84,8% da população submetida à insegurança alimentar grave ou moderada, sendo que três a cada cinco pessoas enfrentam a insegurança alimentar grave. No Zimbábue, ainda que tenha a situação tenha piorado em 8% no geral, houve redução de 9% no nível de insegurança alimentar grave, que ainda atinge um terço da população. No Senegal também ocorreu uma piora no nível geral (4%), porém foi onde se observou o avanço mais expressivo de redução no nível grave de incidência da insegurança alimentar, 44%, baixando de 24,5% para 13,6% a parcela de sua população submetida a essa situação.
Nos países selecionados da América Latina, a trajetória da insegurança alimentar exige atenção ainda mais especial. Em todos, o agravamento da situação entre 2019 e 2020 é alarmante. No Chile foi onde menos se agravou a prevalência no nível grave, que subiu 48%, mas a prevalência de insegurança alimentar grave ou moderada aumentou 66%, sendo o segundo maior crescimento. Por sua vez, no Brasil e no Peru a incidência nesse nível aumentou 28%, no entanto, no nível grave subiu 84% e 94%, respectivamente. No Equador, o percentual no nível grave ou moderado cresceu 58%, enquanto no nível grave elevou-se em 93%. O caso da Argentina é o mais alarmante entre todos. Em apenas um ano, o país viu a parcela de sua população em insegurança alimentar grave ou moderada passar de 19,2% para 35,8%, com um aumento de 86%. Pior ainda foi agravamento no nível de insegurança alimentar grave, onde o aumento foi de incríveis 117%, saltando de 5,8% para 12,6% da população.
Existem alguns estudos recentes que traçam um panorama da situação mundial da insegurança alimentar destacando as experiências de alguns países nos diferentes continentes, a exemplo de Boero et al (2021). Particularmente, no Brasil, encontra-se disponível um levantamento específico sobre o impacto da pandemia na segurança alimentar da população[3]. A pesquisa considerou os níveis de insegurança alimentar leve, quando é revelada a preocupação com a obtenção dos alimentos e/ou quando sua qualidade já está comprometida; insegurança alimentar moderada, quando está disponível uma quantidade restrita de alimentos, e insegurança alimentar grave, quando há privação no consumo de alimentos e fome. Pela estimativa do inquérito, no ano de 2020, foi de 20,5% (43,4 milhões de pessoas) o percentual da população que se encontrava em situação de insegurança alimentar grave ou moderada, sendo que 9,0% (19,1 milhões de pessoas) enfrentaram a insegurança alimentar grave. Chama atenção que, entre a população que reside na zona rural, é maior a prevalência segurança alimentar grave, 12%, o que corresponde a aproximadamente 3,7 milhões de pessoas.
Comparativamente ao ano de 2018, o inquérito revelou uma piora bastante acentuada na situação do país. Naquele ano, 63,3% da população se caracterizava como estando em segurança alimentar (esse número já representava uma queda significativa em relação ao ano de 2010, quando eram 77,1%), enquanto os que se encontravam em insegurança alimentar 20,7%, após terem sido 12,6% em 2013. Em 2020, o percentual de 9,0% em insegurança alimentar grave representa o mesmo patamar do início do século (9,5% em 2004), após caído para 4,2% em 2013 e depois subido para 5,8% em 2018. (REDE PENSSAN, 2021, p. 48).
O advento da pandemia da covid-19 seria suficiente para explicar essa situação tão preocupante? Em que medida esse evento causou esse agravamento tão acentuado na prevalência de insegurança alimentar no mundo? Não há resposta fácil para tais perguntas, ainda que algumas narrativas procurem esse caminho para tentar explicar a conjuntura atual.
3.2 A pandemia e os obstáculos ao combate à fome
Não há dúvida que a pandemia afetou fortemente o acesso aos alimentos, sobretudo ao atingir a renda das famílias no mundo inteiro. Os eventos extremos relacionados às mudanças climáticas certamente impactam as possibilidades de acesso aos alimentos. Além disso, situações pontuais de conflitos armados ou de disputa pela terra produzem efeitos negativos que podem se transformar em crises de proporções gigantescas. Não se pode duvidar que todos esses fenômenos contribuem para agravar a situação da fome mundial, e a atual pandemia, obviamente, insere-se entre lista desses eventos.
No entanto, um olhar breve sobre as duas décadas do século XXI passadas até a chegada da pandemia, permite notar que o momento atual talvez tenha contribuído para deixar mais escancaradas as contradições do capitalismo. Levando em conta que, especialmente, a partir da segunda metade do século passado, os avanços tecnológicos incorporados à agricultura elevaram a produtividade do setor, deduz-se que o potencial da produção garantiria o atendimento das necessidades alimentares da população mundial. A disponibilidade física da produção não parece constituir embaraço para o combate à fome.
Como se pode aprender nos bons manuais de Economia, a riqueza disponível para determinada sociedade em um dado momento histórico depende, por um lado, da capacidade produtiva dessa sociedade e, por outro lado, das relações de produção, que garantem o acesso dos indivíduos à riqueza gerada. Assim, a questão a ser enfrentada passa pelo controle da produção e da distribuição, que condiciona o acesso e a destinação daquilo que é produzido no mundo, como preconizava Josué de Castro (CASTRO, 1954) em sua incansável batalha pela transformação das condições sociais que reproduzem fome entre os homens.
Observando os casos selecionados no item anterior, podem ser destacados alguns elementos úteis para uma compreensão, ainda que parcial, do drama vivido naqueles países. Na era moderna, a história do continente africano é marcada, de início, pela drenagem de seu potencial humano no contexto do colonialismo europeu, para dar suporte à expansão do capitalismo, e, nos dias atuais, pela espoliação dos recursos naturais operada por grandes corporações transnacionais. Ao longo de mais de três séculos, milhões de seres humanos foram arrancados da África para serem consumidos nos processos de exploração nas colônias no “novo mundo”. É difícil avaliar com precisão qual foi o impacto dessa enorme subtração de braços e de mentes, para a continuidade e prosperidade das sociedades africanas. Assim, talvez não deva nos causar espanto que, hoje, sejam desumanas as condições materiais em que vive parte da população do continente, com a prevalência de insegurança alimentar grave ou moderada em cerca de 70% dos moradores do Zimbábue e do Quênia, 85% dos moradores Serra Leoa e do Sudão do Sul ou nove em cada dez moradores da República do Congo.
Os países latino-americanos, por seu turno, não tiveram melhor sorte - ou talvez, deva dizer, não tiveram menos azar. Os invasores colonialistas, para operar a pilhagem dos metais preciosos da terra, optaram por tentar dizimar as populações nativas. Ainda que não tenham conseguido êxito total, seus sucessores, escravocratas, trataram de moldar as estruturas das sociedades de modo a reproduzir a dominação pela exploração, pela humilhação e pela invisibilização, tanto dos povos originários quanto dos descendentes dos africanos que foram aqui escravizados, trazidos à força nos assim chamados “navios negreiros” - e pretensamente sob a bênção do deus dos cristãos.[4]
Em parte dos países da América houve avanços no combate à fome, no bojo de compromissos assumidos em âmbito internacional. Nesse contexto, no Brasil, por exemplo, foi que apareceram os maiores resultados de um intenso movimento da sociedade civil de combate à pobreza e de busca de um ambiente social, econômico e político propício à construção da segurança alimentar. A partir da pressão social, o Estado buscou estruturar os instrumentos de políticas públicas para superação da fome, articulando a rede de proteção social com políticas de estímulo à agricultura familiar. Ao lado da política de transferência de renda, o fortalecimento da agricultura familiar, através de financiamento, adequação tecnológica e comercialização da produção via compras públicas, propiciou maior disponibilidade e facilitou o acesso aos alimentos.
Assim, quando se observa a prevalência da insegurança alimentar nos países selecionados, com exceção do Peru, percebe-se que apresentavam um percentual de até 20% da população em insegurança alimentar grave ou moderada, relativamente ao ano de 2019. No nível de insegurança alimentar grave, novamente excetuando-se o Peru, os demais países apresentavam percentuais de 1,9% (Brasil) a 6% (Equador). No entanto, o que é alarmante é o salto que esses países apresentaram, um ano depois. Diferentemente dos casos examinados no continente africano - cujas taxas de variação da prevalência no nível grave oscilaram entre, nos casos para cima, entre 12% e 54%, e nos casos para baixo, entre 0,5% e 44% -, o que se observa nos países da América Latina é um agravamento muito acentuado dessas taxas. A variação menos elevada ocorreu no Chile, de 48% em relação a 2019. Os demais países apresentaram variação de 84% (Brasil), passando por 93% (Equador), 94% (Peru) e atingindo 117%, na Argentina. O que se pode encontrar de elemento comum na história recente desses países, que possa indicar um caminho explicativo?
Em particular na segunda década do século XXI, o continente americano e algumas outras áreas no planeta vêm assistindo a um movimento de ascensão de forças conservadoras e comprometidas, prioritariamente, com interesses privatistas, com a desregulamentação da economia e com o chamado livre mercado. Em particular, no caso da América Latina, dada sua trágica herança colonialista, isso equivale a dizer que as frações das elites de tradição escravocrata lograram alcançar posições do poder político, através do velho e recorrente artifício de golpes. Assim, buscam solapar as frágeis conquistas constitucionais e democráticas dos povos da região. Esse fenômeno, tal qual na década de 1960, é o que se vê em processo, em países como Argentina, Brasil, Venezuela, Equador e Bolívia. Efeitos desse movimento, ao que parece, se fazem sentir nos dados sobre acesso da população aos alimentos, cujo controle é crucial para a dominação de classe.
4 RACISMO E INSEGURANÇA ALIMENTAR APÓS O GOLPE DA OEA NA BOLÍVIA
Após três semanas de violentos protestos, a extrema direita boliviana conseguiu a cumplicidade do alto comando militar e policial e, apoiada em um 'relatório' denunciando 'irregularidades', forjado pela OEA, consumou, em 2019, o golpe contra o governo do Estado Plurinacional da Bolívia democraticamente eleito. O relatório de Almagro (secretário-geral da OEA) foi apoiado pelos representantes da União Europeia, por toda a direita boliviana, pela cúpula da Igreja Católica, pela direita internacional então liderada por Donald Trump, e, como convém a este tipo de golpe, por toda a imprensa corporativa. A queda de Evo Morales criou uma deliberada confusão institucional, o que permitiu que, ilegalmente e violando todos os procedimentos, a coalizão da direita nacional e internacional conseguisse impor a política de extrema direita, Jeanine Añez, como presidente de fato do país. O governo de Añez resistiu apenas onze meses, sendo derrotado nas eleições de outubro de 2020, que o governo de fato foi obrigado a realizar, diante da pressão popular duramente reprimida.
Durante a curta interrupção da democracia plurinacional boliviana, o governo neoliberal de Añez causou estragos na economia do país, com medidas de austeridade que buscaram reverter os ganhos sociais obtidos durante o governo do Movimento pelo Socialismo (MAS). Essas medidas revelaram uma política caracterizada pelo profundo racismo que permeia a classe capitalista desse país. A pandemia de Covid-19 evidenciou os efeitos desastrosos da combinação do neoliberalismo com a pandemia e o racismo do governo Añez, especialmente sobre a vida das maiorias indígenas, cuja precariedade se transformou em fome devido à grande importância econômica do setor informal da economia, do qual fazem parte majoritariamente.
4.1 O Estado plurinacional e a inclusão das nações indígenas
A chegada de Evo Morales ao governo, em 2006, levou à promulgação da Constituição que instituiu o Estado Plurinacional da Bolívia, em 2009, o que significou um enorme passo para a eliminação da exclusão de fato e/ou discriminação por motivos étnicos. Assim, o artigo 5º da nova Constituição reconhece 36 nações e o mesmo número de línguas oficiais. A natureza inclusiva dessa Constituição é tal que reconhece e concede status de nação, incluindo status oficial de sua língua, aos grupos étnicos independentemente do seu tamanho, a exemplo dos Guarasugwe, que são apenas 31 indivíduos.[5] Além disso, a constituição se baseia em uma concepção de Estado totalmente superior a seus antecessores, passando do modelo neoliberal para a busca do Bem Viver, consagrado em seu Art.8:
O Estado assume e promove como princípios ético-morais da sociedade plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (não seja preguiçoso, não seja mentiroso ou ladrão), suma qamaña (viva bem), ñandereko (vida harmoniosa), teko kavi (vida boa), ivi maraei (terra sem mal) e qhapaj ñan (caminho ou vida nobre). Viver Bem é viver em harmonia entre homens e mulheres, com a Mãe Terra, Pachamama, com os Apus, Achachilas, com os animais, plantas e todos os seres vivos.
Em outras palavras, intentando resolver a 'questão indígena' com um golpe mortal no racismo arraigado e institucionalizado da outrora Bolívia oficial, o movimento operário e camponês, com o movimento indígena e seus aliados naturais, os pobres da cidade e o campo, precisou refundar o Estado com base em princípios constitucionais e culturais altamente progressistas. Isso busca edificar um Estado que oriente a sociedade na direção de eliminar a discriminação que tem sido central na Bolívia por 500 anos. O processo não foi fácil, pois enfrentou violenta resistência das oligarquias bolivianas que, com o vigoroso apoio dos Estados Unidos e seus aliados regionais e globais, desencadeou em 2008 uma forte tentativa separatista na chamada Media Luna (Departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando).
4.2 Das conquistas do Estado plurinacional ao desmonte neoliberal
Uma vez derrotado o separatismo, o MAS deu início a um processo de transformação de extraordinário alcance socioeconômico e de soberania nacional, cujos resultados podem ser traduzidos nos indicadores a seguir:
O PIB do país evoluiu de US$ 9,5 bilhões, em 2005, para US$ 40 bilhões. em 2013, o que representa uma média anual de 4,6%, a maior da região desde 2006; A Bolívia teve um superávit fiscal em 2006 pela primeira vez em sua história; e em 2018 tinha US$ 8,9 bilhões em reservas internacionais; A poupança interna no período 2006-2018 passou de US$ 4,3 milhões para US$ 27,1 bilhões; A dívida externa caiu de 61%, em 2004, para 23% do PIB, em 2018; A pobreza extrema foi reduzida de 38% (2006) para 16% (2018); A mortalidade infantil caiu 56%; Os “bônus” sociais beneficiaram mais de 50% da população; O fim do sistema de latifúndio levou à redistribuição de quase um milhão de hectares de terra para famílias camponesas; O número de centros de saúde passou de 2.870 para 3.902, e 49 novos hospitais bem equipados foram construídos pelo Estado com os mais modernos recursos tecnológicos da medicina. A saúde pública é gratuita; Com a colaboração de médicos cubanos, a Operação Milagre realizou mais de 3 milhões de consultas oftalmológicas e 742 mil cirurgias, que devolveu a visão a muitos bolivianos (Añez expulsou os médicos cubanos); Em 2020, a água potável chegou a 9,7 milhões dos 11 milhões de habitantes; O analfabetismo, com o método cubano “Sim, Eu Posso”, foi erradicado em 2014. Em 2005 apenas 18% dos parlamentares eram mulheres, em 2018 elas já eram a maioria de 51%.
Não por acaso, em 2018, o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano Mundial classificou, pela primeira vez, a Bolívia como "país de alto desenvolvimento humano"; O MAS-IPSP de Morales afirmou a soberania nacional eliminando a interferência estrangeira (EUA) ao expulsar de organizações como DEA, USAID e CIA, além do próprio embaixador dos EUA.[6]
A popularidade do MAS e, em particular, de Morales, foi inquestionável ao longo desse período, tendo vencido as eleições de 2005 com 53%, indo a 64% em 2009 e 61% em 2014. A Assembleia Legislativa Plurinacional, em 2016, promoveu um referendo constitucional que permitiria a Morales se candidatar outra vez à presidência, mas o pleito foi rejeitado, por pequena margem (51% a 48%). Esse ano em que se dá a derrota do referendo constitucional, é um momento de pico da ofensiva dos Estados Unidos contra os governos progressistas na América Latina. Os EUA lograram derrubar Manuel Zelaya em Honduras em 2009; estiveram envolvidos na tentativa de golpe contra Rafael Correa, no Equador, em 2010; também desempenharam papel importante no golpe 'constitucional' contra Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012, e na cassação de Dilma Rousseff, em 2016.
A decisão de impedir a qualquer custo a reeleição de Morales teve a mesma lógica da decisão que levou à crise que culminou com a derrubada de Dilma Rouseff no Brasil: permitir que uma força democrática se reeleja significaria a eleição de Lula em 2018 e sua quase certa reeleição em 2022. Ou seja, a direita seria privada das rédeas do governo de 2002 a 2026. No caso da Bolívia, significaria um governo do MAS até 2025 e, provavelmente, até 2030, ou seja, a direita ficaria sem o controle do governo nesse período. Por trás do argumento falacioso da direita (corrupção no Brasil, democracia na Bolívia) atua a mão sinistra dos Estados Unidos, que tanto quer eliminar a afirmação da soberania nacional pela América Latina, destruindo governos progressistas e a ameaça do bom exemplo, quanto quer, ao mesmo tempo, reimpor seus interesses através do neoliberalismo, que Bolsonaro no Brasil e Añez na Bolívia exemplificam perfeitamente.
O “governo de fato” de Añez foi marcado pela austeridade neoliberal, visando reverter o papel de investidor/interventor do Estado que se destacou durante os 14 anos da gestão de Evo Morales. Demissão em massa de funcionários públicos, redução dos gastos do Estado, expulsão dos médicos cubanos literalmente no dia seguinte ao golpe, tudo exatamente quando a pandemia assolava o país. A resposta de Añez às demandas do povo por mais recursos para combater os estragos causados pela pandemia, foi a brutal repressão.[7] Ao final do primeiro ano da pandemia de covid-19, na Bolívia, o número de pobres aumentou em cerca de 2 milhões de pessoas, o desemprego subiu de 4,3% para 9,6% - e isso num país onde o setor informal da economia atingiu 80% e a economia encolheu em 10% do PIB. Como se bem sabe, no setor informal vive-se um dia a pós dia; se se trabalha, se consegue comer. Ou seja, a combinação dos efeitos negativos da pandemia e as políticas de Añez fizeram com que 1,7 milhão de bolivianos não conseguissem cobrir os custos da cesta básica, portanto, passaram fome.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação que se configura na atual conjuntura mundial provocou manifestação de assombro nos próprios organismos das Nações Unidas, que a caracterizaram como “uma realidade humilhante”. A pandemia da covid-19 não somente evidenciou a existência da fome no mundo, além de contribuir para ampliar as desigualdades de acesso à riqueza e agravar a extrema pobreza, mas, sobretudo, ajudou a desnudar algumas das contradições não contornáveis do sistema capitalista, manifestas nos esquemas de reprodução do racismo estrutural.
Destacou-se a necessidade de qualificar o debate de “racismo estrutural”, em particular no Brasil, o que exige compreensão de “raça” é um conceito inter-relacional, ou seja, só tem sentido quando contextualizado em determinada dialética. “Se, em um dado momento da sua história, [o negro] foi levado a se questionar se era ou não um homem, é que lhe contestavam sua humanidade” (FANON, 2008, p. 94). Ora, somos negros porque nascemos numa realidade que tem um passado marcado pela escravidão dos povos africanos. Somos negros porque esta é a tradição que acompanha o modo de produção no qual nascemos, e se apresenta como uma violência, uma “ferida do presente” que “ainda é a ferida do passado e vice-versa; o passado e o presente entrelaçam-se como resultado” (KILOMBA, 2019, p. 158).
Superar o racismo significa, necessariamente, romper com as formas do passado que insistem em se manter no presente. O racismo não se trata de uma patologia social, mas da espinha dorsal da normalidade dos nossos dias. Superar o racismo é construir uma nova normalidade, uma nova racionalidade, uma nova forma de ser.
Ainda que seja necessário reconhecer a imprescindibilidade de um esforço mundial para combater a fome, é preciso ter clareza que, sob uma estrutura social racista, a questão essencial não é envidar mais ou menos esforços. A interrupção da trajetória de êxitos no combate à fome na América Latina, por exemplo, coincide com a mencionada ascensão de forças políticas reacionárias na região. O alinhamento político dessas forças sugere um óbvio retorno a antigas posições dos governos locais, associadas e submissas aos interesses imperialistas, que buscam prosseguir a espoliação dos recursos naturais da região. Nas sociedades da região, a fome tem endereço e tem cor: a periferia das cidades, as regiões rurais empobrecidas, e os povos originários e os descendentes dos que foram escravizados. Isso significa a marca do racismo estrutural. Significa a manifestação de uma necessidade vital para as sociedades de classe baseadas em privilégio e que, o tempo todo, produzem e reproduzem mecanismos que bloqueiam a mobilidade social das pessoas que não sejam herdeiras dos colonizadores escravocratas.
Nessas circunstâncias, de fato, o que se vislumbra é “uma realidade humilhante”, mas sua superação não dependerá apenas de esforços dos organismos das Nações Unidas. Dependerá de se construir uma nova forma de existir. Uma “nova forma de existir” significa radicalidade e determinação para mudar as estruturas, “determinação que é uma parte integral no processo de desenvolvimento” (RODNEY, 2018, p. 34). A ciência servirá de bússola na busca desta nova destinação para a espécie humana. A premissa trazida pelo racismo estrutural, que compreende que todo o racismo é estrutural, aponta para o Capitalismo como esta estrutura. A superação do racismo, pois, será concomitante à superação deste sistema político, econômico e social que nos comprime o cérebro coletivo.
REFERÊNCIAS
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BOERO, V et al. Access to food in 2020 - results of twenty national surveys using the food insecurity experience scale (FIES). Rome, 2021. Disponível em: http://www.fao.org/documents/card/ru/c/cb5623en/. Acesso em: 23 ago. 2021.
CASTRO, J. A. Geopolítica da fome: ensaio sobre os problemas de alimentação e de população no mundo. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1954.
FANON, F. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FAO; IFAD; UNICEF; WFP; WHO. The state of food security and nutrition in the world 2021 - transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Rome, FAO, 2021. Disponível em https://www. http://www.fao.org/publications/sofi/2021/en/. Acesso em 15 ago. 2021.
GOMES, L. Escravidão – v. 2: da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2021.
HOOKS, B. Talking back: thinking feminist, talking black. Boston: South End Press, 1989.
KILOMBA, G. Memórias da plantação.Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, K. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1.
REDE PENSSAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, 2021. Disponível em: http://www.olheparaafome.com.br. Acesso em: 20 ago. 2021.
RODNEY, W. How Europe underdeveloped Africa. London: Verso, 2018.
Notas