Mesas temáticas coordenadas
TERRITÓRIO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO COTIDIANO DO CAPITALISMO PERIFÉRICO
TERRITORY AND PUBLIC POLICIES IN THE DAILY LIFE OF PERIPHERAL CAPITALISM
TERRITÓRIO E POLÍTICAS PÚBLICAS NO COTIDIANO DO CAPITALISMO PERIFÉRICO
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 641-659, 2022
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 12 Febrero 2022
Aprobación: 14 Marzo 2022
Resumo: Este artigo objetiva refletir as conexões e mediações inerentes às categorias território usado e políticas públicas no contexto do capitalismo periférico, elegendo a escala do cotidiano como ponto de partida para as diferentes e articuladas problematizações em relação a territórios periféricos, políticas públicas e suas repercussões no contexto pandêmico, abordando também a realidade enfrentada no âmbito dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs). Destaca a periferia como espaço territorial relacional, socialmente construído sob as lógicas do processo de produção e reprodução do capitalismo periférico, analisando as contradições e as potências das experiências de classe nestes territórios. Percorre a reflexão em torno das densidades da realidade e suscita a produção de novos conhecimentos no âmbito das políticas públicas, tendo como ponto de partida testemunhos de luta pela sobrevivência presentes nos territórios das cidades, considerando os impactos da pandemia da COVID-19. Discute os sentidos políticos dos IFs, a partir do cotidiano das ações de ensino, pesquisa e extensão e sua articulação com os territórios de vivência. Tece reflexões a partir das experiências cotidianas de trabalho do assistente social no IF - São Paulo - Campus Jacareí, desvendando alguns aspectos presentes na realidade desse espaço sócio ocupacional e dos sujeitos da ação profissional em tempos de “capitalismo pandêmico”.
Palavras-chave: Territórios, cotidiano, território de vivências, pandemia, Instituto Federal de Educação, educação profissional e Tecnológica, sentidos políticos.
Abstract: This article aims to reflect on the connections and mediations inherent in the categories used territory and public policies in the context of peripheral capitalism, electing the scale of everyday life as a starting point for different and articulated problematizations in relation to peripheral territories, public policies and their repercussions in the pandemic context, also addressing the reality faced in the Federal Institutes of Education, Science and Technology (IFs). It highlights the periphery as a relational territorial space, socially constructed under the logics of the process of production and reproduction of peripheral capitalism, analyzing the contradictions and potentials of class experiences in these territories. It walks through the reflection around the densities of reality and raises the production of new knowledge in the scope of public policies, having as starting point testimonies of struggle for survival present in the territories of the cities, considering the impacts of the pandemic of COVID-19. It discusses the political meanings of the IFs, based on the daily actions of teaching, research and extension and their articulation with the territories where they live. It makes reflections based on the daily work experiences of social workers in the IF-São Paulo - Jacareí Campus, unveiling some aspects present in the reality of this sociooccupational space and the subjects of professional action in times of "pandemic capitalism".
Keywords: Territories, everyday life, territory of experiences, pandemic, Federal Institute of Education, professional and Technological education, political senses.
1 INTRODUÇÃO
Refletir sobre territórios e políticas públicas no contexto do capitalismo periférico exige sucessivas aproximações com as mediações do real. Neste processo, a escala do cotidiano é ponto de partida para as diferentes e articuladas problematizações deste ensaio, que tece relações entre territórios periféricos, políticas públicas e suas repercussões no contexto pandêmico, abordando também a realidade enfrentada no âmbito dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs).
Problematiza a categoria periferia como espaço territorial, relacional, socialmente construído sob as lógicas do processo de produção e reprodução do capitalismo periférico, que marca as estruturas e os modos de produção dos matizes da sociedade brasileira. Destaca que os territórios periféricos centram-se não sob a lógica de exceção da produção dos espaços urbanos, mas constituem elementos próprios e metabólicos da produção do espaço sob os vértices da economia capitalista. Analisa as contradições e as potências das experiências de classe no processo de construção, identidade e reprodução desses espaços.
Também trata do desafio em se decifrar a realidade e produzir novos conhecimentos no âmbito das políticas públicas, tendo como ponto de partida testemunhos de luta pela sobrevivência presentes nos territórios das cidades, considerando inclusive os impactos da pandemia da COVID-19. Ao eleger como eixo norteador os “territórios de vivência”, tem como referência o cotidiano destes territórios enquanto perspectiva de análise para o deciframento da multiplicidade de agentes e agenciamentos sociais neles atuantes, em que se constroem relações de convívio, associações e conflitos de interesses, acordos e códigos de sobrevivência. Neste cotidiano marcado por lutas, lutos, resistência, dores, conquistas e sofrimentos, e aparentemente apartado do Estado diante das evidências de precariedade e desigualdade social, também se pode evidenciar suas contrafaces enquanto territórios de (sobre) vivência.
Destaca, também, o(s) sentido(s) político(s) dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), a partir do cotidiano das ações de ensino, pesquisa e extensão e sua articulação com os territórios de vivência. Compreende-se que os IFs têm centralidade na materialização da Política de Educação Profissional e Tecnológica (EPT), estando presente em todas as unidades federativas do país, fruto de investimentos sociais, econômicos e políticos das políticas voltadas à EPT. Seus campus expressam ações a partir de uma formação integral, de modo a contribuir para o desenvolvimento social, político, econômico e cultural dos territórios, bem como para os arranjos produtivos regionais e locais. Foi possível constatar os sentidos políticos dos IFs ao promover uma formação integral, embora suas ações estejam atravessadas por lacunas e desafios, sobretudo no âmbito de sua articulação cotidiana com os territórios de vivência em que se encontram inseridos.
Tece reflexões teórico-críticas a partir da experiência cotidiana de trabalho como assistente social no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) Campus Jacareí, desvendando alguns aspectos presentes na realidade desse espaço sócio ocupacional e dos sujeitos da ação profissional em tempos de “capitalismo pandêmico”. A partir das contradições e potencialidades observadas e compreendidas no contexto do trabalho e ensino remotos, evidenciam-se as determinações do mundo do trabalho na pandemia, a precarização das condições de vida da população, e a persistência e o recrudescimento das desigualdades sociais, educacionais e territoriais. Ao cotidiano profissional já tão permeado por importantes desafios, os tempos de pandemia recolocam outros a serem trilhados entre “territórios de vivência” e “trajetórias quebradas”, certamente uma construção coletiva por novos conhecimentos.
2 O LUGAR DE UMA CLASSE: territórios periféricos
Cabe destacar que a luta de classes e os seus antagonismos marcam historicamente a produção do espaço e a sociedade de classes delineia de forma direta a segregação residencial (CORRÊA, 2013). Em outras palavras, a sociedade classista diferencia os espaços urbanos em termos de sua distribuição residencial e vivencial, e as classes sociais constituem um dos conteúdos essenciais do processo de segregação e exclusão do esquadrinhamento urbano. “A primeira força de produção do espaço na sociedade capitalista é a própria divisão de classes, a dos proprietários dos meios de produção e daqueles que têm apenas a força de trabalho para vender” (CORRÊA, 2013, p. 41).
A segregação do espaço urbano emerge a partir da localização diferenciada das classes sociais. Quanto mais intenso o processo de acumulação do capital, mais avançados se verificam os processos de segregação espacial, de periferização das cidades, sobretudo, das metrópoles.
A produção dos espaços periféricos das cidades é traçada por uma lógica imposta e induzida de segregação que não é um fenômeno recente, mas histórico e inerente às forças do modo de produção capitalista.
Friedrich Engels (1975), em sua obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, publicada em 1845, já denunciava as transformações que ocorriam na cidade de Manchester na Inglaterra, na qual se formava uma área residencial deteriorada ocupada pelos trabalhadores que serviam às recém-instaladas indústrias. Engels aponta as grandes transformações ocorridas nas cidades inglesas em detrimento da produção, com as classes mediatizando a produção dos espaços urbanos. De acordo com as nuances e os interesses econômicos, verificam-se a espacialização política, a segregação residencial, e a definição do lugar de cada classe.
As mediações das classes sociais nos territórios urbanos se constituem de mediações políticas; a segregação residencial, social, de acesso a direitos é expressão dessa lógica político-econômica que impõe aos sujeitos sociais a forçosa expulsão de certos espaços da cidade e a imposição sem alternativas dos lugares de vida, tipo de habitação. Assim, a periferia é uma construção antagônica no jogo de forças da produção do espaço urbano, é o lugar definido para as classes trabalhadoras, para os pobres e subalternos da cidade.
Nas periferias estão centrados os loteamentos populares em que se destacam as autoconstruções, as precárias moradias autoconstruídas, conjuntos habitacionais populares, favelas onde residem as camadas mais baixas da classe trabalhadora. As precárias condições de vida coexistem com as distâncias físicas e sociais em relação à cidade, com os custos dos deslocamentos cotidianos para o trabalho e acesso aos serviços da cidade.
As periferias são espaços de vida da classe trabalhadora, lugar em que se entrelaçam heterogêneos contextos e trajetórias de vida, lugar da coexistência, da multiplicidade que compõe as classes que vivem do trabalho. Pode-se considerá-las como um mosaico social e relacional, que na realidade social brasileira contêm marcas expressivas do passado colonial que atravessam seu cotidiano, nas formas de repressão, nas estruturas e intensidades de exploração e .espoliação urbana”, tal como define Lúcio Kowarick (1993, p. 71):
Colocado no âmbito das lutas sociais, o processo de espoliação urbana, entendido enquanto uma forma de extorquir as camadas populares do acesso aos serviços de consumo coletivo, assume seu pleno sentido: extorsão significa impedir ou tirar de alguém algo a que, por alguma razão de caráter social tem direito.
A diferenciação de espaços na sociedade classista se movimenta por mediações políticas e econômicas, um jogo de forças e conflitos desencadeados na esteira da cena pública, na disputa pelas lógicas da cidade. Essas disputas incidem na lógica da vida dos sujeitos sociais, nas trajetórias de parcela das classes trabalhadoras que vivenciam cotidianamente a divisão territorial do trabalho, as dificuldades e a extorsão de acesso aos direitos civis, sociais, políticos, ambientais e sanitários.
Milton Santos (2009, p. 89) considera que há uma relação mútua entre desigualdade social e a desigualdade espacial, na qual a periferia compõe também a lógica da divisão social do trabalho: .é desse modo que a periferia participaria do funcionamento dos custos de reprodução no centro, caracterizando a troca desigual”. Os espaços periféricos das cidades se inserem em contextos maiores de produção, estando prescritos na lógica da divisão territorial do trabalho e das classes, compõem o processo de exploração e expropriação.
Nesta perspectiva, é possível considerar que a realidade social brasileira é fortemente marcada pelo traço de economia periférica, dinamizando-se na produção como estrato periférico da economia mundial. Isso revela que a própria realidade social do país se insere no jogo desigual de forças, no processo de exploração intensa e rígida do trabalho, compondo uma sociedade desigual e combinada que também baliza a própria produção dos espaços territoriais.
A marca periférica que constitui a produção, exploração e extração do mais-valor na sociedade brasileira não se restringe ao aspecto da economia, mas também e por isso se espraia para as relações sociais mais amplas da sociedade; funde-se com um modo de vida tipicamente periférico que edifica as condições de acesso, as precariedades que forjam jeitos, as formas de sociabilidade em meio a intensos processos de exploração e espoliação da vida.
Com isso se ressalta que a periferia não é apenas um espaço localizado de segregação social, econômica e política dos locais mais pobres das cidades, mas é um dos traços constitutivos da dinâmica da vida social, econômica e política da sociedade brasileira. É um dos traços da formação social do país que se presentifica de modo latente nos contextos urbanos. As periferias são heranças e desdobramentos do processo de escravização, é a colonização ainda em curso e presente na realidade cotidiana da sociedade brasileira.
Contudo, embora a periferia possa ser a síntese de um processo de formação social desigual, é preciso considerar a sua pluralidade em relação e extensão, uma vez que os territórios periféricos são espaços heterogêneos e de coexistência de precariedades e de forças, de tempos e ritmos distintos que se conjugam na produção de territorialidades periféricas.
Neste sentido, a periferia se constitui território da classe trabalhadora, porque as abriga e contém suas formas de vida, suas experiências comuns. São lugares onde a classe trabalhadora tece a vida em comum nas tramas e na relação com a cidade desigual, forjando vivências, modos de vida, reúnem elementos objetivos, subjetivos, formas de sociabilidade, de festejo, de morar, de conviver, de organizar esteticamente sua cultura em linguagens, estilos, vestimentas próprias.
Lugares que também reúnem de modo heterogêneo trabalhos precários, convivência entre ilegalidades, igrejas evangélicas, o baile funk, os encontros de rap, a coexistência de variados ritmos de música como samba, pagode, sertanejo, forró e outros que ecoam nos carros e nas caixinhas de som.
Todas essas condições, situações e envergaduras da vida cotidiana da população mais pobre compõem um mosaico relacional dos territórios periféricos, que se tornam lugar de uma classe que se forma e é formada nas tramas de seu fazer no cotidiano da história. A periferia se compõe e é constituída em condições históricas baseadas em processos socioeconômicos, mas também de socialização dos sujeitos, das famílias nos territórios, na formação de costumes que se entrelaçam no âmbito do vivido, compondo as experiências de classe na inter-relação com as questões raciais e de gênero, compondo as novas feições e dobraduras da classe trabalhadora hoje.
É um “espaço social, geográfico. e, acrescentamos, de classe, com o qual se defrontam as dobraduras do cotidiano; espaço saturado de experiências, de ações de ordem prática para a produção e reprodução da vida em meio às exclusões, desigualdades, mas também é potência de criação, de resistência, de enfretamento das durezas da vida não como se quer, mas como se pode. A experiência da classe trabalhadora no contexto urbano passa hoje necessariamente pela experiência periférica.
3 POLÍTICAS PÚBLICAS E TERRITÓRIOS DE (SOBRE) VIVÊNCIA: luta, luto e resistência
No contexto pandêmico da COVID-19, o campo da proteção social, envolvendo as políticas de saúde, de assistência social e de educação no Brasil, sem dúvida, tem sido o mais diretamente afetado pelo “desgoverno” federal, e seus constantes ataques contra a ciência e medidas preventivas, cujas atitudes se aproximam terrivelmente do que Achille Mbembe (2018) tem denominado de “necropolítica”: “as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resistência, sacrifício e terror” (MBEMBE, 2018, p.71).
Pretendemos percorrer por algumas trilhas apontadas neste complexo cenário de incertezas e de afrontamento contra a própria vida envolvendo o Estado e “suas margens” (VEENA DAS, 2008), na direção da construção coletiva de novos conhecimentos. Para tanto, enquanto escala privilegiada de análise, as reflexões remetem aos “territórios de vivência”, os espaços em que se reside e se circula, em que se estabelecem vínculos relacionais com a diversidade de agentes e agenciamentos presentes no cotidiano de vida.
Entendemos que é neste cotidiano, em sua configuração de “espaço banal” (SANTOS, 1996), em que a multiplicidade de vivências e experiências se entrecruzam, que se torna possível um ponto de partida para a compreensão do contexto em que se encontram as incertezas referidas inicialmente. A noção de “espaço banal”, na perspectiva de Milton Santos opõe-se à noção de rede, no sentido de que este “espaço banal” configuraria o espaço de todos ou todo o espaço, sendo as redes parte deste todo.
A ideia de espaço banal, mais do que nunca, deve ser levantada em oposição à noção que atualmente ganha terreno nas disciplinas territoriais: a noção de rede. As redes constituem uma noção nova que, de alguma maneira, justifica a expressão da verticalidade. Mas, além das redes, antes das redes, apesar das redes, depois das redes, com as redes, há o espaço banal, o espaço de todos, todo o espaço, porque as redes constituem apenas uma parte do espaço e o espaço de alguns (SANTOS, 1996, p.16).
Dessa forma, o desafio posto à política pública a todo tempo, e em especial, no contexto de uma crise pandêmica-social é conseguir chegar a esta escala do “banal”, onde a vida de fato acontece, um caminho que se faz para além dos dispositivos burocráticos e legais, de cadastros, documentos e relatórios, que compõem a rotina de atendimento às demandas das cidadãs e dos cidadãos de uma cidade.
Os testemunhos da dor e do sofrimento que perpassam as vidas vitimizadas pela violência nas cidades brasileiras encontram-se subsumidas nas estatísticas de homicídios, feminicídios, suicídios: são mães e pais que perderam suas filhas e filhos, são crianças, adolescentes, famílias que perderam suas mães e seus pais, é um país inteiro que perde potências de vida. É a mesma cena de barbárie e violência que se encontra sob os dados de mortes pela COVID-19, mortes solitárias, lutos solitários de um genocídio em massa.
O que é testemunhar o crime inerente à regra social, que consigna a singularidade do ser ao esquecimento eterno, mediante uma descida à vida cotidiana – não simplesmente articular a perda sob um gesto dramático de desafio, mas habitar o mundo, ou habitá-lo novamente, num gesto de luto? É nesse contexto que se pode identificar o olho não como o órgão que vê, mas o órgão que chora (DAS, 2020).
O que é testemunhar o crime inerente à regra social, que consigna a singularidade do ser ao esquecimento eterno, mediante uma descida à vida cotidiana – não simplesmente articular a perda sob um gesto dramático de desafio, mas habitar o mundo, ou habitá-lo novamente, num gesto de luto? É nesse contexto que se pode identificar o olho não como o órgão que vê, mas o órgão que chora (DAS, 2020).
Este cenário remete à introdução do livro “Olhos D’Água” (2016) de Conceição Evaristo, que vai trazer à tona seu olhar (que chora) sobre esta mesma realidade, que se escreve, porém, sob a perspectiva de quem a vivenciou de perto, que chega sob os signos do sofrimento e da dor.
A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo (todos têm). Mas um contexto desfavorável, um cenário de discriminações, as estatísticas que demonstram pobreza, baixa escolaridade, subempregos, violações de direitos humanos, traduzem histórias de dor. Quem não vê? (EVARISTO, 2016, p.9).
É sobre estes testemunhos, em que diferenças de perspectiva de descrição dos mesmos cenários que perpassam pelos territórios em seu cotidiano, “pelo órgão que chora”, que se encontram fios de histórias a serem decifradas, vivências a serem compreendidas como ponto de partida.
A ausência do Estado ou sua precária presença nos territórios periféricos, além de reproduzir continuamente a desigualdade socioterritorial no interior das próprias cidades, deixam evidente seu proposital distanciamento em relação à escala de vivência de suas moradoras e moradores, de suas demandas. Uma forma de ação política de invisibilidade dos territórios periféricos e, ao mesmo tempo, uma estratégia ora excludente, ora focalista e clientelista, totalmente esvaziada de sentido público.
Dessa forma, o distanciamento do Estado em relação ao cotidiano de vivência se configura como uma estratégia política de esvaziamento do sentido público de sua responsabilidade, bem como de homogeneização de respostas, quando estas existem frente às demandas diversas e desiguais que estes territórios periféricos apresentam. Tal estratégia, por sua vez, dá margem não apenas às ações solidárias e ou clientelistas de organizações sociais ligadas ao campo da filantropia, da religião ou mesmo do crime, mas também às intervenções do mercado financeirizado, que chega nestes territórios oferecendo vantagens de empréstimos, cartões de crédito, prometendo uma formalidade a uma população acostumada a “sobreviver na adversidade”, na informalidade, na ilegalidade como bem retrata Daniel Hirata (2018).
Dessa forma, a escala dos “territórios de vivência” enquanto perspectiva de análise e ponto de partida para a construção de novos conhecimentos, pressupõe enfrentar o desafio de não somente decifrar o que o ocorre no cotidiano destes territórios, mas principalmente de (re) conhecer a multiplicidade de agentes que ali vivem e circulam nas relações estabelecidas com a própria atuação estatal com seus diversos dispositivos legais, e que se expressam em “fatos, eventos, situações, arranjos, acordos” (HIRATA, p. 75, 2018).
É nesse contexto multifacetado e cotidiano construído “à margem do Estado” que se encontra também as possibilidades de se (re) pensar a gestão pública e mesmo as estratégias de pesquisas, diagnósticos e planos socioterritoriais. Quanto mais se adentrar por esta escala de análise, conseguindo estabelecer sentidos relacionais entre a diversidade de práticas, incluso o agenciamento estatal, talvez se encontrem pistas para a produção de novos conhecimentos, como lembra Veena Das, ao tratar do poder estabelecido pelo Estado e sua governança, a partir de “suas escritas”.
Assim, se o signo escrito se desprende do contexto por causa dos aspectos contraditórios de sua legibilidade e iterabilidade, isso significa que, uma vez que o Estado institui formas de governança por meio de tecnologias de escrita, ele simultaneamente institui as possibilidades de falsificação, imitação e as performances miméticas de seu poder. Isso, por sua vez, traz todo o domínio de equívocos e desculpas por parte do Estado para o âmbito do público. Uma das observações metodológicas que se segue disso é que, para estudar o Estado, precisamos deslocar o olhar dos lugares óbvios em que se espera que o poder resida para as margens e recessos da vida cotidiana em que tais equívocos se tornam observáveis (DAS, 2020).
A proposta de Veena Das é o deslocamento dos “lugares óbvios” para as “margens e recessos da vida cotidiana”, em que o próprio Estado ao instituir seus dispositivos legais por meio da escrita, simultaneamente acaba por instituir “possibilidades de falsificação, imitação e as performances miméticas de seu poder”. É nesse campo cunhado por velhas e renovadas estratégias de sobrevivência das populações mais afetadas pela desigualdade social, e sob a regência do próprio Estado, que se encontram evidências para se construir outras perspectivas de análise, mais próximas ao cotidiano de vivência.
4 O(S) SENTIDO(S) POLÍTICO(S) DOS INSTITUTOS FEDERAIS EM MOVIMENTO E SUA ARTICULAÇÃO NOS TERRITÓRIOS DE VIVÊNCIA[1]
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia foram criados em 2008, em meio às políticas governamentais implementadas pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, de modo a construir mudanças na Política de Educação Profissional e Tecnológica do país. Entretanto, apesar da introdução de novas perspectivas e concepções, os IFs não são instituições “novas”, pois são fruto do desenvolvimento histórico das Escolas de Aprendizes e Artífices e, ao longo do processo de formação social do Brasil, recebeu outras denominações, como as Escolas Técnicas Federais e os Centros Federais de Educação Tecnológica.
As concepções e diretrizes dos IFs direcionam seu objetivo de promover o acesso à Educação Profissional pública e de qualidade, abarcando na mesma instituição diferentes níveis e modalidades de ensino e propiciando uma formação integral, além de contribuir para o desenvolvimento dos arranjos produtivos regionais e locais. Entendemos que tal formação integral deve propiciar o acesso, a permanência e o êxito em ações de ensino, pesquisa e extensão que dialoguem com uma perspectiva crítica, de modo a potencializar o desenvolvimento omnilateral dos sujeitos nas diferentes dimensões que o constituem, já que compreendemos a Educação como parte ontológica e constitutiva do ser social.
Pacheco (2011, p. 13) afirma que os IFs se configuram, em termos de proposta político-pedagógica, como um modelo institucional inovador, sustentando “um conceito de educação profissional e tecnológica sem similar em nenhum outro país”. Um conceito que abarca a verticalidade de níveis e modalidades de ensino, oferecendo cursos técnicos (a maioria articulados ao Ensino Médio), cursos de graduação (licenciaturas, tecnológicas e bacharelados) e pós-graduação (especializações, mestrados e doutorados). Assim, a interlocutora de pesquisa designada de Ametista, analisa que:
O Instituto Federal [...] é uma instituição muito completa. Para mim, eles são ricos, pela forma como eles foram configurados. É uma instituição de ensino, que atende diversas modalidades, então ele atende desde o PROEJA, do curso de Ensino Médio Integrado, cursos técnicos, curso superior de tecnologia, de pós-graduação, de mestrado, enfim... [...] é difícil você ter uma instituição no Brasil que uma pessoa possa ter o acesso, entrar na instituição e percorrer todos esses caminhos... E acho que no sentido da cidadania, no sentido de levar o acesso à educação para as comunidades mais vulnerabilizadas, de desenvolvimento de regiões empobrecidas, eu acho que o Instituto é muito, como eu posso dizer, é privilegiado, nesse sentido, a gente tem as universidades focadas só nos cursos de graduação, cursos superiores, enfim. Mas os Institutos não, a gente tem a oportunidade de conviver com diversos níveis do ensino e os docentes também, as suas experiências são para trabalhar desde pessoas com baixa escolaridade, até o mais alto nível, então a gente transita por todas essas modalidades. Então eu considero que o Instituto é um modelo, a sua concepção é rica, eu acho que vai ao encontro do que a sociedade precisa, e ele ainda está nesse processo de entender o seu papel (SILVA, 2021).
Dessa maneira, compreendemos a Educação Profissional e Tecnológica como uma política pública comprometida com a garantia da igualdade e equidade social, acessível a todos, com a articulação de políticas setoriais que promovam impactos no universo em que se insere. Isso significa dizer que, enquanto política pública, os IFs se expressam em território nacional e desempenham o papel de agentes colaboradores na estruturação de outras políticas públicas para a região, devendo manter uma relação direta com o Poder Público e as comunidades locais, na perspectiva de inclusão social e na configuração de um projeto que tenha como lugar comum o território, estabelecendo um projeto mais amplo para a Educação Pública que supere a subordinação ao poder econômico e intervenha na realidade com o objetivo de resgatar a cidadania e a transformação social.
Tais reflexões nos impulsionam a pensar sobre os sentidos políticos da presença do IFSP nos territórios em que se inserem, pois não basta uma direção territorializada de distribuição e instalação de campus, mas os vínculos que cada campus constrói com o lugar, com o cotidiano vivenciado entre os diferentes e diversos agentes e os agenciamentos que criam seu contexto. A essa escala de gestão da política pública, Koga (2015) denomina “territórios de vivência”. Pensar os territórios de vivência dos Institutos Federais está em conformidade com seus sentidos políticos, pois se trata da construção de interconexões com os agentes socioterritoriais, com os movimentos sociais e seus sujeitos coletivos, com os espaços das cidades que mobilizam e articulam a Educação Profissional e Tecnológica ofertada nessas instituições.
Entende-se que o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo está inserido em territórios heterogêneos e diversos e há uma multiplicidade de realidades que se aproximam de sua realidade institucional, o que implica em potencialidades das ações de ensino, pesquisa e extensão que se desenvolvem no cotidiano da instituição.
Consideramos que os Institutos Federais possuem sentidos políticos fundamentais à garantia da Educação Profissional e Tecnológica no país, pois se constituem como instituições inovadoras, com a materialização de ensino, pesquisa e extensão a partir de direcionamentos éticos, técnicos, teóricos, políticos, culturais e econômicos na medida em que tensionam o diálogo interno e indicam contribuições ao território onde se encontram.
Parafraseando Ney Teixeira Almeida (2019), no prefácio do livro Serviço Social e Educação Profissional e Tecnológica, é preciso afirmar, sobretudo na conjuntura atual, que a Educação contempla uma dimensão política, o que implica compreender as pluralidades e o sentido social de práticas pedagógicas. É fundamental reafirmar que a Educação se constrói cotidianamente, permeada por contradições e disputas.
Em relação às contradições e disputas, cabe reafirmar que a EPT esteve atrelada a contextos históricos atravessados por embates nas esferas política, econômica, social ou ideológica, que se constituem em marcas de sua trajetória institucional. Importa ressaltar, ainda, que a investida neoliberal tem adentrado o cotidiano da política de Educação no Brasil, encontrando terreno propício para seu desenvolvimento devido à matriz patrimonialista, autoritária e hierárquica presente na sociedade brasileira, enquanto “mito fundador”.
No que tange à articulação com o território, os elementos indicam a necessidade de ampliar as ações, sobretudo ao considerar a solidificação do tripé que compõe os Institutos Federais. As entrevistadas na pesquisa observaram que há uma articulação do Instituto Federal, enquanto uma instituição educacional, com os agentes institucionais e não institucionais da cidade e com a Educação Profissional e Tecnológica ofertada nos câmpus, todavia, é preciso refletir sobre a efetividade desse arranjo estabelecido.
Há heterogeneidade nas construções com o espaço da cidade, com os sujeitos coletivos e com setores vinculados ao mundo do capital, e essas diferenças se expressam nas relações estabelecidas com a realidade local. No âmbito dos câmpus pesquisados, alguns construíram relações de vinculação e articulação com os agentes institucionais e não institucionais locais, enquanto outros câmpus possuem vínculos “muito sutis”, conforme expressão utilizada por Ametista (SILVA, 2021).
Além disso, embora haja uma pontualidade das ações no que se refere ao diálogo com os arranjos produtivos locais e com a efetividade das ações para a promoção do enfrentamento das desigualdades sociais locais e regionais dos territórios, verifica-se que ações desenvolvidas têm alcançado um espaço importante no que tange à oferta de ensino, pesquisa e extensão, pois promovem mecanismos que contribuem para o início de reflexões e articulações, como apontado pelas entrevistadas.
Compreendemos que a desigualdade social é um processo inerente às relações sociais capitalistas e que as expressões da questão social materializadas no cotidiano requerem intervenções para além de atribuir à política pública de Educação Profissional e Tecnológica a responsabilidade em erradicar ou minimizar as consequências dessa desigualdade. No entanto, é significativa a contribuição da EPT para transformar realidades sociais.
Desse modo, há reflexões acerca das ações de ensino, pesquisa e extensão como efetivas no cotidiano do câmpus, ao mesmo tempo em que se expressam fragilidades. Cabe afirmar também os significados que as ações – realizadas para dentro e além de seus muros – têm desenhado no cotidiano dos Institutos Federais, pois a presença de cada IF no território faz parte de uma história que envolve a população local, especialmente quando se trata de uma conquista coletiva, de “uma comunidade que brigou muito para o Instituto acontecer” (SILVA, 2021).
A partir das falas das entrevistadas, entendemos que os sentidos políticos dos Institutos Federais se correlacionam na possibilidade efetiva de um espaço que promova o acesso, a permanência e o êxito dos estudantes a ações de ensino, pesquisa e extensão pautadas por valores éticos, críticos e humanos que possibilitam a vivência de uma educação ontológica, plural, crítica, reflexiva, omnilateral.
As ações desenvolvidas têm permitido a formação de adolescentes, jovens e adultos da classe trabalhadora a partir de uma inserção crítica, voltada ao mundo do trabalho, mas que não se esgota apenas nessa possibilidade. Embora tenham lacunas, as ações promovidas balizam a construção integral do sujeito. Portanto, são urgentes as construções institucionais que afiancem os valores normativos e institucionais dos Institutos Federais.
5 EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE CAPITALISMO PANDÊMICO: um conclame às reflexões a partir do cotidiano e dos territórios de vivência dos sujeitos
Os desafios historicamente vivenciados por assistentes sociais no cotidiano profissional em seus diversos espaços sócio-ocupacionais acentuaram-se no contexto da pandemia da Covid-19, momento histórico muito significativo e desafiador, e que tem sido hegemonicamente compreendido nas narrativas que coadunam com o Projeto Ético-Político da profissão como uma crise sanitária, uma crise social e uma crise política sem precedentes, que na realidade são agravadas e têm suas determinações mais amplas na crise do capital.
Se o panorama mundial por si só já é desafiador, na particularidade brasileira os retrocessos econômicos, sociais, culturais e políticos têm suas raízes na formação sócio-histórica do país, tendo sido pouco enfrentados em suas bases. No bojo desses retrocessos, no âmbito educacional evidencia-se o desmonte dos lugares da ciência e da razão, um retrocesso civilizatório assistido e vivenciado pela sociedade brasileira como um todo e, em especial, pelos sujeitos envolvidos diretamente com a política de educação – tais como os estudantes e os trabalhadores da área.
Nesse sentido, num país onde a educação nunca foi concebida como um direito social de fato, apesar da previsão legal, são inúmeros os desafios colocados à defesa de um projeto de educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, e que impactam justamente no cotidiano de vida da sociedade brasileira, já historicamente marcada pelas desigualdades sociais.
Com a pandemia, os trabalhadores da educação, dentre os quais o/a profissional de Serviço Social, vivenciaram significativas alterações no seu processo de trabalho, especialmente no que diz respeito à incorporação do trabalho remoto. Em relação ao público alvo a quem o trabalho do/da assistente social é direcionado – os/as estudantes da classe trabalhadora – novas (e antigas) questões que envolvem o direito à educação – acesso, permanência e qualidade – foram evidenciadas no cotidiano de vida dos sujeitos e, consequentemente, no cotidiano do exercício profissional, e trouxeram a necessidade de (re)pensar as ações que materializam o trabalho na área – o que não é tarefa fácil nem esgotável.
Para Antunes (2020), a crise econômica somada à explosão da pandemia do coronavírus, compreendidas em sua inter-relação, têm gerado impactos e consequências profundas no mundo do trabalho, para a “classe-que-vive-do-trabalho”. As consequências de âmbito social são ainda mais perversas na situação brasileira, devido à experiência histórica de formas intensas de exploração e de precarização do trabalho.
A humanidade encontra-se na era do “capital pandêmico” num verdadeiro “fogo cruzado”, nos termos de Antunes (2020). A pandemia é, de fato, global, mas seus impactos são vivenciados de diferentes formas e em diferentes proporções a depender das condições de desenvolvimento dos países e das condições de vida da população. Para Harvey (2020, apud ANTUNES, 2020) a Covid-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, gênero e raça, ocultados no discurso de “estamos juntos nesta guerra”.
A partir da compreensão histórico-crítica dessa realidade, buscamos identificar - para desvendar - alguns elementos presentes no cotidiano de vida dos/as estudantes do IFSP Campus Jacareí, na ocasião da crise pandêmica - um cenário ainda mais desafiador para o acesso e à permanência escolar, que constituem historicamente eixos de ação do Serviço Social nesse espaço sócio-ocupacional. Importa salientar os impactos na garantia do direito à educação, considerado direito humano e social fruto das conquistas civilizatórias que datam do surgimento do Estado Moderno.
Embora o reconhecimento de seus muitos limites na ordem do capital, a educação é aqui compreendida no bojo da emancipação política e no horizonte da emancipação humana. Como já abordado, muitas das expressões da questão social são preexistentes à pandemia, mas esta corroborou para agravar e/ou escancarar muitas delas. De uma certa maneira, ela evidenciou as desigualdades presentes nas relações sociais – condição de classe, gênero e raça, bem como as desigualdades educacionais e territoriais.
Os impactos da pandemia, então, são considerados mais graves às mulheres, por alguns motivos. Um deles é que as mulheres, na sua grande maioria, acumulam o trabalho na esfera reprodutiva em suas jornadas. Antes da pandemia, mulheres já gastavam o dobro de horas semanais que homens em atividades de cuidados com pessoas e com a casa (IBGE, 2018). Ainda considerando a questão de gênero, de 70 a 80% da população trans no Brasil já abandonou alguma vez na vida os estudos.
O não acesso e a evasão escolar de adolescentes e jovens no Brasil são expressões da questão social. No contexto pandêmico muitos dos adolescentes não frequentaram as atividades do ensino remoto, devido a ‘trabalho’, ‘ajuda em casa’. Trabalho este nas condições apontadas por Antunes (2020) – precarizados, intermitentes, informais, dessa forma desprovidos de regulação social e direitos trabalhistas. A necessidade pela sobrevivência, então, se impõe à necessidade humana pela educação.
O homem enquanto ser social responde às suas necessidades criando novas necessidades, configurando um processo contínuo de criação de novas alternativas e necessidades. A práxis é entendida como um conjunto de objetivações criadas pelo trabalho em seu sentido ontológico, que ampliam a liberdade, a consciência, a sociabilidade. A medida do gênero humano e do indivíduo – ‘o indivíduo enquanto ser social’ - é a riqueza das suas objetivações. Nesse sentido, compreende-se que no contexto do ensino remoto tem-se um prejuízo na apropriação da riqueza humana com um recorte classista, de gênero e de raça.
Embora os estudantes estivessem no cumprimento do ensino remoto em atenção às recomendações sanitárias de isolamento social no início da pandemia, muitos desses estudantes-trabalhadores e/ou seus responsáveis familiares ficaram sem condições de cumprir essa recomendação, devido à necessidade de sair de casa para trabalhar. Antunes (2020) caracteriza a ocupação de trabalho no contexto pós 2008-2009, por mais precarizada que seja, um “privilégio da servidão”. No contexto pandêmico, contrasta com a luta pela preservação da vida - direito humano inalienável.
A ausência de local apropriado para estudo na própria residência e a densidade populacional nas casas dos estudantes revelam a falta de privacidade, de condições de estudo e a utilização simultânea dos espaços, de equipamentos e de recursos tecnológicos (quando os têm).
No que diz respeito ao acesso às tecnologias digitais, a ausência de equipamentos tecnológicos como computador ou a necessidade de compartilhá-lo com outros membros da família e o não acesso à internet constituíram-se como desafios ao acesso e à permanência escolar. Nesse sentido, evidencia-se que as tecnologias da informação se configuram como condições necessárias para acessar direitos sociais como a educação e, quiçá, devem ser compreendidas também como um direito social.
Considera-se que esses são alguns elementos da realidade social que precisam ser melhor qualificados, e que são importantes para a compreensão da realidade dos estudantes no contexto pandêmico. Tais questões nos incitam a buscar desvendar os modos de vida dos sujeitos estudantes-trabalhadores, suas trajetórias de vida em busca do acesso e da permanência escolar, em interface com seus “territórios de vivência”.
Nesse sentido é importante valorizar o “chão” do trabalho profissional, que oportuniza, por exemplo, a observação participante e a realização de entrevistas com os sujeitos. Procedimentos esses metodológicos e instrumentais técnicos – de trabalho e de pesquisa - que também sofreram consequências no contexto pandêmico. A experiência de trabalho foi vivenciada a partir da incorporação do trabalho remoto e da prevalência do uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs).
Antunes (2020) alerta que o trabalho remoto se mostra como uma modalidade que terá crescimento na fase pós-pandemia, em praticamente todos os ramos em que puderem ser implantados. O desafio de defesa de condições éticas e técnicas de trabalho, em que prevaleçam as possibilidades reais de vínculo com os sujeitos e de aproximação aos seus modos de vida, está presente no contexto pandêmico e acena continuidade num futuro próximo. Pois, acredita-se que o trabalho presencial é insubstituível, já que a modalidade remota impacta algo fundamental – a mediação da linguagem no trabalho profissional, o vínculo, o “entre-vistas”, à proximidade ao cotidiano dos sujeitos.
Ademais, no contexto pandêmico os estudantes se afastam do espaço físico escolar – com riscos desse afastamento se estender ao processo de ensino como um todo, e concentram-se em seus territórios de vivência, com suas lutas e seus lutos.
Nesse sentido, faz-se necessária a incorporação do que Koga e Ramos (2011) denominam “território vivo e vivido”, evidenciando os aspectos coletivo e público a se fortalecer nas mediações das ações cotidianas desenvolvidas no âmbito da política pública. Dessa maneira, uma possibilidade é (re)conhecer as trajetórias de vida dos sujeitos, denominados “usuários” das políticas públicas, sendo que relevantes estudos têm sido feitos tomando como referência a história de vida e a análise de trajetórias (Ibidem, 2011).
Nesse percurso de reflexão, aproximamos de uma noção central: a de vida cotidiana.
Como mostra Henri Lefebvre no conjunto de sua obra, mas também Agnes Heller em vários de seus livros, não ignorar a vida cotidiana é o ponto de partida para decifrar sociologicamente o possível. Decifrá-lo na trama que enreda o repetitivo nos desafios e possibilidades do que não se repete, da História que na própria vida cotidiana propõe e define a práxis criativa que a transforma [...] (MARTINS, 2015, p.12-13).
É, pois, na vida cotidiana, que o espaço vivido se realiza. Essas – e tantas outras – são questões latentes no cotidiano pandêmico de trabalho na educação profissional e tecnológica, demandantes de uma reflexão sistemática para uma ação comprometida com os valores ético-político profissionais.
6 CONCLUSÃO
Há de se considerar que a experiência da classe trabalhadora residente em periferias passa também pela lógica de segregação espacial e residencial, que se materializa nas condições de vida, mas também na expropriação de seu tempo quando gasto nos grandes deslocamentos para o acesso à cidade. A periferia se constitui território da classe trabalhadora, porque as abriga e contém suas formas de vida, suas experiências comuns.
Nas tramas do cotidiano se evidenciam “as dobras do legal-ilegal, formal-informal”, que desafiam o trabalho profissional a chegar mais próximo desta escala de vivência. Na perspectiva de Veena Das (2020) trata-se da escala do “ordinário”, ao qual a autora utiliza o verbo “descer” para dele se aproximar, o que poderia supor um deslocamento do alto para baixo, mas também da superfície para o interior desse mundo “ordinário”.
Dessa forma, os “territórios de vivência” emergem no contexto institucional, e de forma muito específica, no cotidiano profissional das/os assistentes sociais que atuam neste campo. É nesta escala do cotidiano profissional vivenciado no âmbito da instituição que chegam os números miúdos vivenciados pela população em seus territórios.
Em face dessas dobraduras do cotidiano e do contexto social, econômico, político e cultural do tempo presente que o Projeto Ético-Político do Serviço Social impõe um rigoroso domínio teórico-metodológico, bem como a adoção de uma postura investigativa com vistas a apreender as tendências do desenvolvimento histórico. Nesse sentido, encontra-se o desafio central para o/a assistente social:
[...] fazer a crítica dos fundamentos da cotidianidade tanto daquela em que ele se encontra inserido quanto a do cotidiano dos sujeitos sociais a quem presta serviços, o que significa examinar os fundamentos, analisá-los, reconhecê-los, para transcendê-los (GUERRA, 2007, p.16).
A partir das aproximações reflexivas à realidade cotidiana, vislumbra-se a hipótese de que muitas das trajetórias dos sujeitos estudantes são “quebradas” em seu curso, sendo que no contexto atual a crise do capital pandêmico pode ser mais uma “quebra”, como tem lembrado Tiaraju D’Andrea (2020), ao referir-se aos estudantes das periferias das cidades brasileiras, e podem remeter à realidade aqui relatada e vivenciada por estudantes da educação profissional e tecnológica.
Trajetórias quebradas, pois, permeadas de improvisos, dificuldades e obstáculos: o estudo conciliado com o trabalho, o ônibus lotado, a falta de dinheiro, a casa barulhenta, a dificuldade de acesso à internet, o cansaço físico. Trajetórias quebradas, porque muitas quebram no meio do caminho; enlouquecem com a frieza da universidade, com a percepção de estarem anos-luz atrasados, com a falta dos pares da mesma cor de pele, da mesma classe social e da mesma quebrada em uma sala de aula; enlouquecem ao perceber que a estrutura do ensino superior não foi feita para os pobres. (D’ANDREA, 2020, p.33 – grifos do autor).
Compreende-se que as narrativas dos sujeitos - um “mergulho na realidade”, a aproximação à vida cotidiana – enquanto um deslocamento de perspectiva de análise e de exercício profissional serão essenciais nessa busca, nesse caminho. Ao cotidiano profissional vivenciado no âmbito da educação profissional e tecnológica já tão permeado por importantes desafios, os tempos de pandemia recolocam outros a serem trilhados entre “territórios de vivência” e “trajetórias quebradas”, certamente uma construção coletiva por novos conhecimentos.
Neste cotidiano da luta pela sobrevivência, voltamos ao tema de Christian Dunker (2020): somos todos principiantes em contextos pandêmicos. Há que se buscar construir novos conhecimentos, na travessia dos chãos em que o real acontece, como já dizia Riobaldo, em trecho de Grandes Sertões Veredas, de Guimarães Rosa:
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (ROSA, 2019, p. 32).
Em tempos de pandemia e de necropolítica, certamente “viver nem não é muito perigoso?”
REFERÊNCIAS
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Notas