Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
TERRITÓRIOS VIVOS DE CONFLITOS E RESISTÊNCIAS implicações para as Políticas Públicas
Aurora Amélia Brito de Miranda; Lília Penha Viana Silva; Maria Leidinalva Batista Miranda
Aurora Amélia Brito de Miranda; Lília Penha Viana Silva; Maria Leidinalva Batista Miranda
TERRITÓRIOS VIVOS DE CONFLITOS E RESISTÊNCIAS implicações para as Políticas Públicas
LIVING TERRITORIES OF CONFLICT AND RESISTANCE: implications for Public Policies
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 660-676, 2022
Universidade Federal do Maranhão
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: Apresentamos nesse trabalho o conceito de territórios vivos e usados de acordo com Santos(2011) e territórios existenciais Guattari (1992), conforme utilizamos na pesquisa “Cartografia da Vigilância Socioassistencial: uma experiência de pesquisa-ação no território do Baixo Parnaíba/MA” e os conflitos socioambientais que acontecem na região, analisados numa perspectiva crítica e de totalidade. A segunda seção discorre sobre os conceitos de território e descentralizados em relação às políticas públicas, com destaque para a Assistência Social e os desafios para a incorporação da concepção de território vivo/usado no cotidiano do trabalho desenvolvido pelas equipes nos equipamentos públicos territorializados. (Na) A terceira seção problematiza as relações de poder, a noção de resistência e sua necessária raiz ética, as quais a resistência está necessária e intimamente relacionada.

Palavras-chave: Territórios vivos, política de Assistência Social, relações de poder, resistência.

Abstract: we presente in this work the concept of living and used territories according to Santos (2011) and existential territories Guattarri (1992), as used in the research “Cartography of Social Assistance Surveillance: na action research experience in the territory of Baixo Parnaíba/MA”, and the sócio-environmental conflicts that take place in the region, analyzed in a critical and totality perspective. In the second session, we discussed the concepts of territory and decentralized in relation to public policies, with emphasis on Social Assistance and challenges for incorporating the concepto of living/used territotoru in the daily work carried out by teams in territorialized public facilities. In the third session, we problematize power relations, the notion of resistance and its necessary ethical root.

Keywords: Living territories, Social Assistance Policy, power relations, resistance.

Carátula del artículo

Mesas temáticas coordenadas

TERRITÓRIOS VIVOS DE CONFLITOS E RESISTÊNCIAS implicações para as Políticas Públicas

LIVING TERRITORIES OF CONFLICT AND RESISTANCE: implications for Public Policies

Aurora Amélia Brito de Miranda
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil
Lília Penha Viana Silva
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil
Maria Leidinalva Batista Miranda
Universdade Federadl do Maranhão - UFMA, Brasil
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 660-676, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 14 Febrero 2022

Aprobación: 31 Marzo 2022

1 INTRODUÇÃO

Vivemos numa situação dramática de vasto e profundo processo de dominação da natureza. E talvez, não haja no mundo, uma região tão significativa das contradições colocadas pelo desenvolvimento global como América Latina, e nela, a região Amazônica e o Cerrado brasileiro. É nessa região onde há o maior processo de expropriação dos trabalhadores rurais, camponeses e povos originários, que vivem uma relação secular com a natureza, mas são desterritorializados pelo que Teubal (2011) denomina de “agricultura sem agricultores”.

No final dos anos de 1970, com o neoliberalismo, os estados a partir de uma determinação dos organismos multilaterais, como Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), passam a atuar conforme determina o mercado. A partir desses processos, os trabalhadores passam a sofrer todas as situações de violência, expropriação, concentração fundiária, visando grandes monocultivos, pacotes tecnológicos que subjugam os agricultores com alto consumo de energia e insumos, inclusive o uso de agrotóxicos, sementes modificadas em laboratório -fábricas de grandes corporações – (como as sementes crioulas, cultivadas localmente), e não mais pelos próprios camponeses ou povos originários.

São também nessas regiões que historicamente detêm as maiores porcentagens de violência no campo, justamente nas mais recentes zonas de expansão da fronteira e de investimento do agronegócio. Essa situação de destruição da natureza, pilhagem do território e dos ecossistemas são apontadas como algumas das principais causas estruturais da origem de epidemias e sua acelerada dispersão em pandemias como a que está ocorrendo no mundo, - a cepa de coronavírus, SARS-COV-2, um vírus que ataca as vias respiratórias dos seres humanos, denominado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) de COVID 19.

E mesmo com toda essa situação, a legislação brasileira no que se refere à questão ambiental e fundiária nos últimos anos e, principalmente no atual governo, vem sendo flexibilizada para favorecer o capital nacional, e principalmente o capital das grandes corporações internacionais, aumentando assim, a destruição dos biomas, a concentração da propriedade rural, culminando com mais “terra devastada”, adoecimento, conflitos, insegurança alimentar e a crescente expulsão de centenas de trabalhadores rurais, povos e comunidades tradicionais para as periferias das grandes cidades.

Neste trabalho, inicialmente apresentamos o conceito de territórios vivos (SANTOS, 2011) e existenciais (GUATTARI, 1992), conforme utilizamos na “pesquisa Cartografia da Vigilância Socioassistencial: uma experiência de pesquisa-ação no território do Baixo-Parnaíba/MA”. A seguir discorremos sobre os conceitos de território e descentralização em relação às políticas públicas com destaque para a Assistência Social e os desafios para a incorporação da concepção de territórios vivos/usados no cotidiano do trabalho desenvolvido pelas equipes nos equipamentos públicos territorializados. Problematizamos ainda as relações de poder, a noção de resistência e sua necessária raiz ética.

Do debate sobre território, apreendemos diferentes contribuições, incorporando elementos para pensar as relações espaço-poder, passando pela ênfase na corporeidade, até aquelas que põem acento nos modos de viver, de relacionar, de afetar e ser afetado. Mas quais os reconhecimentos necessários à potencialização da resistência na imbricação de espaços e sujeitos? Como se relacionam nos territórios, poder e resistência? De que modo esta última pode produzir modos de viver e territorialidades novas? Para explorar tais questões, discutimos o poder disciplinar/biopoder, para, no âmbito dessas relações, problematizar os desafios da resistência, supondo-os enlaçados a partir e na produção de uma ética imanente. Partimos da premissa de que o espaço concreto de tais relações são territórios de disciplina e biopoder, aos quais a resistência está necessária e intimamente relacionada.

2 TERRITÓRIOS VIVOS E EXISTENCIAIS: o Baixo Parnaíba maranhense

O conceito de território apresenta várias abordagens, como a militar, a biológica, ou antropológica. Optamos pela abordagem antropológica, por conceber o território como uma conduta de todos os grupos humanos a defender seus territórios frente a invasões. Na geografia é onde esse conceito é utilizado de forma mais ampla, mas também em áreas como a Ciência Política (na referência ao Estado) e na Antropologia (na referência às sociedades tradicionais).

De acordo com Milton Santos (2011), o território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas, o território tem que ser entendido:

Como o território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. (SANTOS, 2011, p. 50).

O autor entende o território como fundamento do trabalho, lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida. Portanto, entendemos como territórios vivos. Santos (2011) compreende o território em si não como uma categoria de análise, mas como um território usado (itálico do próprio autor). A concepção de território como “fonte de recurso” ou como simples “apropriação da natureza” em sentido estrito é fortemente influenciada pela experiência territorial das sociedades mais tradicionais, em que o sustento é advindo dos recursos extraídos da terra. Na perspectiva ideal-simbólica, o território reforça sua dimensão enquanto representação, valor simbólico. Nesse sentido Bonnemaison e Cambrèzy (1996, p.10), afirmam: “O poder do laço territorial revela que o espaço está investido de valores não apenas materiais, mas, também, éticos, espirituais e afetivos. É assim, que o território cultural precede o território político e com ainda mais razão precede o espaço econômico”.

Ainda segundo Bonnemaison; Cambrezy (1996, p,13), esse poder do laço territorial denota os valores que envolvem o território, esses não são apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos.

A ligação que os povos e comunidades tradicionais estabelecem com seu espaço de vida é mais intensa, pois, além de um território provedor de recursos, o espaço é ocupado ou usado de forma mais intensa pela apropriação simbólico - religiosa. Pois os viventes, não são os únicos a ocupar o território. Conforme Bonnemaison; Cambrezy, a presença dos mortos marca o território com o signo do sagrado, pois o território não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas sobretudo ao ser.

Félix Guatarri (1992), apresenta sua compreensão de território existencial, não apenas como ponto em um mapa, estático e delimitado em si. O autor entende que o território existencial é uma localização espaço-temporal, que se define a partir de uma localização espacial que é configurada no tempo, em constante processo de construção. Ou seja, é um ambiente vivo, que está sempre sujeito a modificações, desvios e recriações de si mesmo, já que sempre se constitui na relação com outros territórios em movimentos.

O “território existencial é uma instância expressiva que se funda sobre uma relação matéria-forma, que extrai formas complexas a partir de uma matéria caótica”. (GUATTARI, 1992, p.44). Portanto, o território existe efetivamente em um espaço relacional, que é uma dimensão não identitária, pois é a dimensão das relações, onde não existe identidades, mas dinâmicas relacionais, assim, não se pode definir um sujeito isolado do outro, um objeto isolado do outro. Os sujeitos e populações são produzidos em um contexto, uma paisagem subjetiva, que é composta pelas condições sociais, econômicas, sanitárias, culturais que estão sempre numa relação processual, ou seja, em transformação e se relacionando. O que significa que a expressão nasce em um plano de relações e não de identidades de um sujeito ou território.

A ideia de território vivo e existencial é relevante porque nos permite pensar também o processo interventivo, não apenas junto a paisagens e figuras determinadas, mas junto a um processo em formação, uma dimensão não objetiva da realidade, o que torna mais complexo suas figuras, já que estas estão existindo numa relação entre elementos objetivos, não identificáveis, mas num complexo em constante transformação.

Assim, a intervenção na perspectiva do território vivo ou existencial não se efetiva de modo externo à realidade observada ou separada, muito pelo contrário, é uma intervenção participativa, engajada e comprometida em todos os processos do mapeamento, da cartografia. Pois entendemos que ao intervir numa perspectiva de território existencial, devemos levar em conta a legitimidade e a realidade de sua formação, como também a possibilidade da transformação desses território, uma vez que eles se constituem por modos de relação. E mais ainda, a nossa intervenção altera não só o território e a forma como dele vão advir, sujeitos e territórios, como também transforma os sujeitos da intervenção, já que este passa a constituir também o território. Pois ele (o território) é esta expressividade sempre provisória que a tudo capta, sensível e determinante na sua constituição.

O território do Baixo Parnaíba/MA abrange municípios que são dotados de singularidades e apresentam um grupo diverso, que são famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco e vulnerabilidade social, tais como aqueles que são reconhecidos como povos e comunidades tradicionais- PCTs, que possuem diferentes formas de organizações e de ocupação do território, o que gera embate frente ao avanço do capital e a financeirização no campo, uma vez que lutam pela sobrevivência e preservação de sua cultura e identidade.

O projeto de pesquisa ao qual se refere esse trabalho, está situado na mesorregião Leste Maranhense, com dezesseis municípios, destes, definimos os 10 municípios da região do Baixo Parnaíba, que encontram-se com o menor Índice de Desenvolvimento Humano: Araioses, Água doce do Maranhão, Belágua, Buriti, Brejo, São Benedito do Rio Preto, Milagres, Santa Quitéria, Santana do Maranhão e Tutóia. Nessa região vem ganhando destaque desde os anos 2000, mas em 2015 se institucionaliza, o Plano de Desenvolvimento Agropecuário Matopiba (PDA), conhecido também, como uma das últimas fronteiras agrícolas do mundo, com grandes impactos no bioma predominante, o Cerrado. Esse projeto abrange parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, onde o agronegócio vem concentrando a propriedade a cada ano, transformando esse bioma natural em uma grande lavoura de monocultura, nas quais destacam-se a soja e o eucalipto.

Embora oficialmente extinto em 2016, no governo do então presidente Temer, como uma medida de contenção de gastos, o PDA Matopiba na prática, é uma realidade, principalmente para os trabalhadores rurais e demais povos tradicionais que sentem na pele os impactos dos grandes projetos financiados em sua maioria com recursos públicos. O projeto MATOPIBA, constitui-se como o maior exemplo do outro traço da “acumulação por despossessão” apontado por Harvey (2004), como a pilhagem dos recursos naturais.

De acordo com a nota técnica da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), o território do Matopiba possui 31 microrregiões geográficas do IBGE, as quais compreendem 337 municípios, sendo que a área total do território é de 73 milhões de hectares. Reúne ainda 324.326 estabelecimentos agrícolas, os quais ocupam uma área de 33.929.100 hectares. Nesse território, há 46 unidades de conservação, ocupando uma área de 8.334.679 hectares, bem como 35 terras indígenas com área de 4.157.189 hectares e 781 projetos de assentamentos agrários e quilombolas, localizados numa área de 3.033.085 hectares num total de 13.967.920 hectares de áreas legalmente atribuídas, excluídas as sobreposições. (EMBRAPA. 2014).

A institucionalização do Matopiba como uma região geoeconômica, resultou de transformações que já vinham se operando no território de abrangência, há algumas décadas, transformações estas originadas, inicialmente pelo capital nacional, nos anos recentes, o capital estrangeiro tem se tornado dominante. Essa dinâmica se complexifica, uma vez que a relação Estado, território e o capital se metamorfoseia através das grandes corporações transnacionais com o respaldo do Estado. A alta dos preços das commodities nos mercados de futuro movimentou a ocupação de novas áreas. Foi assim que a produção de soja se expandiu e passou a ocupar terras devolutas de chapada, utilizadas secularmente por camponeses e pequenos produtores. Essas áreas de Cerrado, utilizadas de forma comunal pelos trabalhadores, antes de ser foco da especulação no mercado de terras, passam a ser apropriadas por custo muito baixo e depois preparadas para a venda. Pois, dessa forma, a terra torna-se um ativo financeiro e passa a mover a alta dos preços como negócio especulativo. (REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS, 2015).

Esse tipo de agricultura moderna se efetiva, geralmente, a partir da apropriação de terras públicas e dos camponeses, ocasionando a disputa pela apropriação das terras e, consequentemente, o surgimento de novos conflitos fundiários, os quais se ampliam com distintos graus de violência. Seja em relação ao ecossistemas, devido a práticas de manejo agrícola de forma intensiva e em larga escala, em que os estudiosos da área já falam em processos de desertificação; a ameaça ao desaparecimento das espécies vegetais e animais que já não estão presentes com a mesma frequência de antes, da vegetação original.

Uma outra situação decorrente desse tipo de agricultura, relaciona-se à contaminação de trabalhadores, pessoas e animais da região pela proliferação do uso de agrotóxicos, que atinge as comunidades, seja os trabalhadores que exercem atividades laborais, diretamente com os cultivos agrícolas, sem nenhum controle dos órgãos públicos, mas também os moradores e animais que habitam o entorno dos monocultivos. Um exemplo concreto dessa situação ocorreu já este ano (abril / 2021), no município de Buriti, quando grandes produtores de soja pulverizam agrotóxicos com avião, deixando diversas pessoas (inclusive crianças) e animais doentes. A técnica do Correntão[1] é uma outra prática que vem sendo denunciada em toda região pelo movimento sindical rural, por conta do extremo prejuízo causado à mata nativa e às populações que dela fazem uso para o seu bem viver. A essas situações, acrescenta-se a diminuição da produção de alimentos em contraposição ao aumento da produção de commodities do agronegócio, como soja e eucalipto, devido à centralização das terras nas mãos de grandes latifundiários da região. Esse impacto não se restringe somente ao campo econômico, mas afeta a segurança alimentar devido à escassez de produtos da cesta básica, disseminação de produtos industrializados e o envenenamento dos alimentos e águas da região.

Os conflitos socioambientais na região estão ligados a fatores como a instalação de grandes projetos produtivos ligados ao capital nacional e estrangeiro e a consequente expulsão de trabalhadores tradicionais de suas terras; desmatamento, crescimento do processo de grilagem. É importante ressaltar que a maioria dos conflitos estão relacionados à instalação de atividades produtivas relacionadas aos interesses do grande capital, com o apoio do Estado.

A seguir discorremos sobre os conceitos de território e descentralização em relação às políticas públicas, com destaque para a Assistência Social e os desafios para a incorporação da concepção de territórios vivos/usados no cotidiano do trabalho desenvolvido pelas equipes nos equipamentos públicos territorializados.

3 DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA E A TERRITORIALIZAÇÃO NA IMPLEMENTAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A descentralização político-administrativa é um dos princípios para a implementação das políticas públicas a partir da Constituição Federal de 1988, a qual definiu um novo pacto federativo entre as três esferas de governo (União, Estados e Municípios). Ao instituir o Município como ente federado autônomo, bem como, o responsável pela implementação das políticas públicas, os constituintes pretenderam aprofundar o nível de relação entre os implementadores da política pública e os usuários desses serviços, uma demanda histórica de oposição ao centralismo do governo federal, vigente durante todo o período anterior à Constituição de 1988. A divisão de competências entre os entes federados não exime nenhum deles da responsabilidade com a gestão, ao inverso, assegura que os três são responsáveis pela gestão da política pública, bem como pelo seu financiamento.

Para a incorporação desse novo pacto federativo para a implementação das políticas públicas era necessário a construção das bases cooperativas entre as esferas de governo, (ABRUCIO, et al,1999) com o tempo necessário para assegurar, em primeiro lugar a incorporação da concepção de política pública como direito dos munícipes e dever do estado. Em segundo lugar, a descentralização das ações e das condições de implementação, das esferas federais e estaduais para os municípios, com o repasse de equipamentos urbanos já existentes, recursos humanos com experiência no desenvolvimento das ações de assistência social, antes da Constituição Federal, além dos recursos financeiros necessários para assegurar que a instância local pudesse cumprir com a sua nova missão.

O que se realizou foi no sentido contrário, um processo acelerado de descentralização das políticas públicas, levado a cabo na década de 1990, sob o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, desenvolvido sob a pressão das orientações neoliberais para a redução dos gastos públicos com as políticas de corte social. A municipalização da Política de Assistência Social, por exemplo, foi imposta pelo governo federal com o discurso da impossibilidade constitucional de permanecer executando políticas públicas, posicionamento que foi seguido pela esfera estadual.

Não houve, assim, um período de transição em que as relações de colaboração entres as esferas que já executavam as políticas públicas e o novo ente federativo, para que no município, fossem construídas, tempo que este necessitava para compreender e ter condições de assumir suas novas competências e atribuições. Ao invés da construção conjunta das novas bases, o que se deu foi a desresponsabilização da esfera federal, principal ente implementador das políticas sociais no período anterior à Constituição Federal de 1988, e da esfera estadual, por consequência. Ambos repassaram as demandas para o município, sem a correspondente transferência das condições para assumir o atendimento destas.

Essa forma de descentralização acelerada e pautada em relações predatórias entre as três esferas de governo (ABRÚCIO et al,1999), por um lado, e as desigualdades econômicas que atravessam os municípios brasileiros, em sua maioria, além da não incorporação da concepção de direito de cidadania, com a continuidade da prevalência dos serviços públicos como ajuda a quem não pode comprá-los no mercado. Essa concepção tem se constituído em dificuldade para que a política de Assistência Social se consolide como política pública, depois de ser assegurada como dever do estado há mais de três décadas.

A base geográfica de atendimento das políticas públicas é o município, com suas diferenças internas, sua cultura e suas dificuldades de implementação que o dever constitucional lhe determina. Ganha destaque o grau de dependência de recursos e do apoio das demais esferas de governo. A maioria dos municípios brasileiros possui menos de 20.000 habitantes, baixo nível de desenvolvimento das atividades produtivas, depende dos recursos do Fundo de Participação Municipal (FPM), repassados pelo governo federal, destacando-se ainda os recursos financeiros transferidos por programas de transferência de renda, como: Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada e Previdência Social Rural, além das transferências para a Saúde e Educação.

Apontado como uma novidade no desenho do SUAS, Pereira (2010, p.194) identifica a presença dessa dimensão da territorialização em três períodos históricos: entre 1930 e 1945, no âmbito das relações de constituição da industrialização, no controle do trabalhador; [...] entre 1946 a 1980, períodos democráticos e de ditadura militar [..] e na contemporaneidade sob a ofensiva neoliberal.

A descentralização dos serviços públicos para o território em que os usuários residem pode ter grandes potencialidades, e vem sendo entendida de forma positiva pelos pesquisadores da área. Trata-se de uma dimensão potencialmente inovadora, pelo entendimento de território: como “espaço usado” (MILTON SANTOS, 2007), fruto de interações entre os homens, síntese de relações sociais; como possibilidade de superação da fragmentação das ações e serviços, organizados na lógica da territorialidade; como espaço onde se evidenciam as carências e necessidades sociais, mas também onde se forjam dialeticamente as resistências e as lutas coletivas (COUTO et. al., 2011, p. 41).

Sem negar a importância da territorialização, é preciso manter a vigilância para que, em nome de práticas modernizantes, não estejamos reiterando práticas conservadoras já vencidas no tempo. Assim, a concepção precisa ser amplamente socializadas com profissionais que se encontram nos territórios, desenvolvendo ações no interior dos serviços. Do desvelamento das questões que atravessam os conceitos utilizados no novo desenho da Política, vai depender que os serviços sejam desenvolvidos operando rupturas com o conservadorismo ou reeditando práticas pautadas nas conhecidas ações higienizadoras dos primórdios da Assistência Social no país (SILVA, 2021).

Da experiência de pesquisadoras vivenciada no Programa Nacional de Capacitação dos Trabalhadores do SUAS – CAPACITASUAS, no estado do Maranhão foi possível observar, pelos resultados preliminares da pesquisa “Trabalho e Trabalhadores no SUAS: perfil e processos de trabalho”, que a questão da territorialização da Assistência Social ainda é um tema pouco ou nada trabalhado, mesmo conceitualmente, principalmente por que a maioria dos municípios é de pequeno porte I e II, em que há apenas um CRAS que fica no centro da cidade e nem existe CREAS, o que faz com que a necessidade do debate da territorialização não atravesse o cotidiano do trabalho. Para as cidades de médio porte, grande porte e metrópole, principalmente as duas últimas, esse debate e apreensão do conceito de território como espaço de vivências e de oportunidades também não vem sendo trabalhado, restringindo-se à visão de “territórios de vulnerabilidades sociais”.

Assim, demanda relevante para o processo de implementação das políticas públicas, e a incorporação do conceito de território vivo, que ainda não aparece no discurso dos trabalhadores e trabalhadoras. O conhecimento acerca da vida que pulsa naquele espaço, ainda não foi produzido, ele se encontra envolto na aparência de que aquele território é apenas um lugar em que vivem pessoas vulneráveis com suas vulnerabilidades a que devemos atender, a partir do leque de serviços disponíveis. Para superar essa visão incompleta do real é preciso se aproximar dele e reconstruí-lo mediante mergulho profundo naquela realidade a partir da produção de conhecimento que, tomando por base os indicadores sociais oficiais, os supere mediante a elaboração de um diagnóstico, não apenas das vulnerabilidades a que aquela população está exposta, por sua condição de classe e de inserção no mercado. Esse diagnóstico deve mostrar a essência que se encontra subsumida na aparência.

É preciso desmistificar os mitos e preconceitos que nos impedem de ver o real concreto e nos encontrar com uma gama de potencialidades representadas por um conjunto de sujeitos individuais e coletivos que preenchem aquele território de vida, de movimento, de possibilidades concretas de articulação.

Uma segunda demanda para a territorialização é a realização da intersetorialidade das políticas públicas em execução no território. Uma postura investigativa acerca do território pode desvendar a presença de uma série de serviços públicos setoriais e as possibilidades de um trabalho intersetorial profícuo, uma vez que os mesmos usuários podem ser atendidos nos CRAS, CREAS, unidades de saúde, escolas, dentre outros. Esse trabalho intersetorial é também uma dívida que o processo de implementação das políticas públicas ainda não realizou, apesar de figurar como um dos princípios estruturantes a partir da Constituição Federal de 1988.

Nas falas dos sujeitos da pesquisa do CapacitaSUAS, a gestão das políticas públicas, não incorporou até o tempo presente, essa potencialidade que as políticas setoriais possuem, o que se observa é a negação da possibilidade das ações articuladas entre os setores, tendo um conjunto de fatores como determinantes, que vão desde a falta de recursos humanos na quantidade necessária, o que pode ser real, passando pela excessiva burocratização do serviço público e das dificuldades de um relacionamento institucionalizado, compartilhado, entendendo-se este último, como consequência, também, da ausência de investimentos na gestão pública e na construção das relações colaborativas entre as políticas setoriais, uma necessidade para a ação intersetorial.

Mesmo dentro de um mesmo território, as políticas setoriais são desenvolvidas de forma isolada, cada uma guardando para si suas dificuldades ou potencialidades, mantendo um muro invisível que as torna impermeáveis, tanto pelas demais políticas setoriais, quanto pelos usuários ou não usuários que vivenciam aquele território, estabelecendo relações meramente tecnicistas, sem que as equipes se permitam executar os serviços públicos como parte integrante do território.

A seguir problematizamos as relações de poder, a noção de resistência e sua necessária raiz ética em territórios vivos.

4 POR UMA ÉTICA DA RESISTÊNCIA EM TERRITÓRIOS VIVOS

A analítica do poder em Michel Foucault permite considerar que não estamos diante de uma coisa, menos ainda de algo circunscrito a uma instância opressora, fechada ou unidirecional. Não há poder como uma substância, mas relações de poder flexíveis, circulando no tecido social, sem titularidade, propriedade ou lugar fixo.

Nasce no século XIX, uma nova tecnologia de poder. É esse o ponto de partida do filósofo para diagnosticar um novo modo de exercício do poder que tem por objeto a “vida, desde o orgânico ao biológico”. Trata-se da biopolítica, que expressa uma forma de poder regulamentador da vida, acionando tecnologias, discursos e práticas segundo a lógica de fazer viver e deixar morrer (Foucault, 2010). Diferente do poder disciplinar, que toma o corpo para individualizar, docilizar, disciplinar e torná-lo produtivo, o biopoder toma como objeto a própria vida. O poder exercido pelo Estado Moderno, não é mais restritivo e produtivo apenas. Agora, é horizontalizado, incorpora a heterogeneidade da população, normalizando-a pela massificação e mais, sob armadilhas democráticas.

Se pelo poder disciplinar, o comando social se faz mediante uma rede difusa de dispositivos e mecanismo que produzem os costumes, os hábitos, na sociedade do controle os “mecanismos de comando se tornam cada vez mais “democráticos”, cada vez mais imanentes ao campo social, distribuídos por corpos e cérebros dos cidadãos (HARDT; NEGRI, 2010 p.42).

Na biopolítica, as relações de poder investem, econômica e politicamente sobre o corpo social dominando e assujeitando-o. Geram obediência, quando o supliciam e quando investem nele. O corpo só se torna força útil se é, ao mesmo tempo, corpo produtivo e corpo submisso. (FOUCAULT, 2009, p. 8). O controle, ao atuar sobre corporeidades, desenvolve uma tecnologia que aciona uma infinidade de estratégias e táticas assentadas sobre corpos e associação de corpos. Isso implica:

Um conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber. (Foucault, 2001 p.30).

Ao pensar o caráter regulamentador do biopoder, aliado ao produtivo da disciplina, o controle da sociedade é mobilizador. Uma vez disseminado, não se limita a embates com a lei. Atua criando a imagem do opositor. Produz discursos e mecanismos que definem o lugar da oposição, isto é, seu horizonte último é constituído pelos mecanismos por ele criados e assim, concede a “liberdade em suas modalidades”, sua lógica e termos através do aparato jurídico-político e isso permite que ela seja ora concedida, ora retirada. Das tecnologias do poder disciplinar à biopolítica, enfatizando suas minúcias, sua microfísica, sua presença extensiva e múltipla, a problematização de Foucault, acerca do poder, parte, na verdade, do acento na liberdade.

Onde há poder, há sempre resistência, ou seja, os dois lados da relação possuem capacidade de agir, o que sugere um entendimento de poder contrário de toda dualização de processos, sujeitos, instâncias ou lugares. Desse modo, “se é verdade que no centro de relações de poder e como condição permanente de sua existência, há uma “insubmissão” e liberdade essencialmente renitentes, não há relação de poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem invenção eventual” (FOUCAULT, 2004, p. 248).

Podemos então pensar condições de possibilidade da resistência, entendida como processual e feita de diferentes composições e lutas. É possível que ela tenha certo grau de potência a seu alcance na interação com os outros, na construção de estratégias, na definição de lugares a ocupar e na construção de pontos de convergência, enquanto dissensos ocorrem, pois são relações de poder em curso.

A resistência é um processo aberto e plural, podendo gestar-se nas estruturas e mecanismos dominantes. Não está assim, fora nem dentro, mas num intervalo entre os dois. Não está circunscrita ao Estado, nem se faz contra ele simplesmente. Trata-se de potência, antes que de poder (HARDT; NEGRI, 2010). Em termos desse deslocamento, é preciso considerar do que se nutre o poder.

E se ele depende não apenas do consentimento, como da produtividade social dos governados. O que emerge como força produtora do mundo não vem de um poder fixo, mas tem, em relação a ele, anterioridade. E por isso, resistir não é o mesmo que tomar um lugar à mesa via emancipação política, nem de tomar a própria mesa, trocando um exercício do poder por outro. Isso implicaria em apropriação e reiteração do idêntico, em outras mãos e sob outros termos, mas de igual modo, mando de uns sobre outros. (HARDT; NEGRI, 2010).

É inadiável portanto, forjar novas subjetividades, tomar a organização subjetiva da luta como condição prévia a que ela se dê, não um efeito posterior. E para isso, é preciso desorganizá-la, desestruturá-la, para tornar possível outra experimentação subjetiva. Isso exige resistência constante, auto crítica, marcada que é por rupturas processuais, cotidianas e cumulativas, mas nunca lineares. Falamos aqui de resistências no plural, que não têm um grande ou único momento, não são pré-definidas e podem reproduzir práticas de sujeição. O percurso produz novos modos de resistir. Longe de uma simples reação ao poder, a resistência tem primazia sobre ele e assim, sua dinâmica não tem a ver com simples negação, mas com a afirmação de sua força interna e singular.

Foucault (2003, p. 124) enfatiza a ideia de que “os centros difusos de poder não existem sem pontos de resistência que têm de alguma forma o primado''. Apesar disso, questiona a concepção tipicamente moderna do sujeito constituído da resistência e argumenta a favor de processos de subjetivação ou modos e não apenas em face, mas na produção do espaço/tempo das relações de poder em sua microfísica. Por isso, não cabe qualquer transcendência ou transferência e resistência, assim nos remete a formas-ensaios.

Cabe estudar a sujeição, as técnicas da fabricação do sujeito para abrir possíveis linhas de fuga. A resistência assim, mantém relação tensa, ambígua e problemática com o poder. Resistir é sempre um movimento sinuoso, com desvios, embates diretos e explícitos, outros mais silenciosos, quase imperceptíveis. Envolve recuos, mas isso não significa subjugar-se. É antes afastar se para realocar-se, recompor-se e ocupar outros lugares.

Resistir requer relacionar-se, dentro e fora de cada acontecimento, sem isolar-se em espaços ou modos defensivos e identitários, no que esse termo tende a fixar, a demarcar uma mera oposição. Trata-se de estabelecer elos, abrir-se para a multiplicidade de territórios onde a vida é cada vez mais normalizada. A resistência existe tanto mais quanto ela esteja, ali onde está o poder, sendo ela, portanto, como ele, múltipla e integrável a estratégias globais (FOUCAULT, 2004. p. 244).

Há uma diferença fundamental entre reação e resistência, entre “resistência passiva” e “resistência ativa”. Cabe priorizar o conteúdo afirmativo das lutas, em vez daquele puramente reativo, embora ambos estejam contidos na mesma relação. Não é fundamentalmente contra o poder que as lutas nascem. Mas, por outro lado, as relações de poder abrem um espaço no seio do qual as lutas se desenvolvem (FOUCAULT, 2004. p. 271).

A ética não é finalidade da resistência, mas condição dela, sob pena de que todas essas indicações até aqui, sejam mera carta de intenções, desconectada de como são e vivem efetivamente os sujeitos que resistem e lutam. A ética da resistência diz assim, de seu modo de caminhar, relacionar, para não se fechar em si mesma. É a possibilidade de construir-se na multiplicidade de experiências territorializadas, de não se deixar subjugar/controlar. Exercícios éticos de resistir são, pois, necessários enquanto se luta, produzindo novas subjetividades que não são e não tem quaisquer garantias de ser outras, posteriores a ela. É transformar-se em experiências ao mesmo tempo concretas, espaciais, imanentes e capazes de relacionar-se, ampliar se para conter em si, a infinidade de singularidades e a diversidade do mundo que recaem e compõem esses processos.

A partir do pensamento de Foucault (2001), essa remissão à ética para pensar a resistência, carrega uma dimensão do cuidado de si, que traz a noção de ensaio e experimentação do potencial de invenção por parte dos sujeitos, de seus próprios percursos, no governo de si. São assim, experiências práticas de liberdade que não podem ser uma concessão vinda do exterior ou de alguma entidade acima deles, já que não se faz por decreto, mesmo que tenha fim determinada dominação institucional. Mas qual a Ética necessária para saber como agir experimentando a potência da resistência em sua anterioridade relativamente ao poder? Supomos uma ética que coloca afeto contra afeto. Que em vez de opor vício e virtude, opõe atividade e passividade, alegria e tristeza, força e fraqueza do corpo e da mente (SPINOZA, 2012). Na consideração dessa oscilação, a ética é um esforço para perseverar na existência, a partir da experimentação da força própria ou potência de agir. Isso implica a constituição necessária de uma lógica própria da resistência, para além da mera oposição à lógica da dominação.

A ética assim, está vinculada a exercícios de efetivação de potências inexploradas e portanto, ancorada em territórios abertos à composição de corpos/ideias, entre conflitos e desvios. Não transitamos em linha reta da fraqueza para a força de agir/pensar, dado que tais tendencias nos habitam como parte da natureza que somos. Desse modo, são pequenos e incertos atos de passagem, que permitem a transformação contínua e a abertura para outros de nós, com o que está em nosso poder, sem quaisquer garantias, resistir às regulamentações e normalização acionadas pela biopolítica.

A condição para a consideração e mobilização de uma necessária raiz ética dos processos de resistência, é operar o deslocamento da moral para a ética, da prescrição para a experimentação, das lutas nos territórios vivos, em tentativas sujeitas a erros, tão próprios da condição humana.

O ponto central de encontro entre a ética e a resistência indaga: como podemos agir? Essa é uma pergunta que se faz continuamente, cuja resposta nunca é definitiva ou una, mas inédita e plural. Os afetos são a base da vida, mas nem por isso estamos a ele inexoravelmente submetidos. A resistência pode expressar exatamente esse desejo de liberdade em ato, e é precisamente esse o sentido de aludirmos a uma ética prática nos territórios de viver.

5 CONCLUSÃO

Apresentamos o conceito de territórios vivos (SANTOS, 2011) e existenciais (GUATTARI,1992) a partir dos estudos realizados na “pesquisa Cartografia da Vigilância Socioassistencial: uma experiência de pesquisa-ação no território do Baixo Parnaíba/MA”. E o projeto MATOPIBA como o maior exemplo da pilhagem dos recursos naturais e do crescente processo de expropriação dos trabalhadores no campo e nas pequenas cidades. Esses grandes projetos reproduz um padrão de acumulação que tem, na exportação de bens primários seu fundamento, alterando e dilapidando os territórios, além de promoverem toda sorte de impactos sobre os povos tradicionais, como expulsão dos pequenos produtores rurais, indígenas, quebradeiras de coco e quilombolas de suas terras, devido a variados processos como grilagem e outras formas de expropriação; desmatamento do Cerrado - que entre outros danos, causa a seca dos rios, uso de trabalho análogo à escravidão, uso de agrotóxicos, que contamina a natureza e os trabalhadores, o que revela o caráter subalterno, periférico e dependente das relações que são estabelecidas nesses territórios.

É preciso refletir sobre os desafios a enfrentar no processo de implementação das políticas públicas de forma territorializado, para que a possibilidade de relação com o território supere o mero conceito geográfico, regional e os serviços públicos, sejam encarados como parte dos territórios. O primeiro desafio diz respeito à concepção que embasa o trabalho desenvolvido nos equipamentos públicos. Realmente concebe-se os serviços ofertados pelo viés do direito? A resposta é fundamental pois dela dependerá a forma como se desenvolverão as ações, desde a recepção da pessoa que chega, o interesse pela demanda trazida até as buscas de formas de respostas e encaminhamentos possíveis, interna ou externamente.

Outro desafio é desvendar o conceito de território, buscar debater as diversas concepções existentes, bem como os interesses a que o seu uso pode estar vinculado, analisando as possibilidades que o uso do conceito pode contribuir para fazer avançar as políticas públicas nos territórios vivos. Além desse desvelamento crítico do que não se encontra explícito nas políticas, é fundamental para orientar o trabalho social na implementação dos serviços e programas, é necessário enfrentar o que, contraditoriamente, pode ser potencialidade no conhecimento e reconhecimento do território, mediante a qualificação dos usuários dos serviços públicos como trabalhadores que compõem a vida daquele território, suas potencialidades e que representam um conjunto de saberes relevantes, que necessitam de reconhecimento. E para tanto, necessitam de resistência.

E não há dúvida de que a resistência requer uma ética. Mas é preciso particularizar. De que ética estamos falando? De uma reflexão prática, imanente e não dual, ou seja, que não separa corpo/mente; afeto/razão. Esse é um caminho tão fecundo, quanto inexplorado para pensar os desafios da resistência/re-existência no tempo presente e que ganha importância pela unidade potência de agir/potência do pensamento. Trata-se de uma ética experiencial e desvinculada do dever ser e crítica de toda moralização da vida.

A resistência em territórios vivos é ato de experimentação de potências, que pode mobilizar afetos, sabendo que por eles oscilamos e sabendo que o biopoder investe neles em demasia. Nessas relações, reconhecer os afetos na base das interações políticas é um primeiro passo no enfrentamento dos desafios da resistência. Um segundo é não tentar refreá-los ou anulá-los através da consciência, mas compreendê-los racionalmente, o que também é afeto, o mais potente deles. Cumpre exercitar a criação de novos modos de subjetivação, o que implica novos modos de afetar, novas linguagens, na invenção de outras relações de cada corpo (individual ou coletivo), consigo mesmo e com outros. Numa palavra, contínua produção de uma ética e estética da existência, que só pode ser vivida no presente, onde se faz/desfaz/refaz continuamente.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
ABRÚCIO, Fernando Luiz; COSTA, Valeriano Mendes Ferreira. Reforma do Estado e o Contexto Federativo Brasileiro. Centro de Estudos Konrad – Adenauer. Pesquisas, n. 12. São Paulo, 1999.
BONNEMAISON, J. e CAMBREZY, L. Le lien territorial: entre frontières et identités. Géographies et Cultures (Le Territoire) n. 20 (inverno). Paris, L’ HarmattanCNRS, 1996.
COUTO, Berenice Rojas. Assistência social em Debate: Direito ou Assistencialização? In: O Trabalho do Assistente social no SUAS: seminário nacional/Conselho Federal de Serviço Social – Gestão Atitude Crítica para Avançar na Luta. Brasília: CFESS, 2011.
FOUCAULT. M. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Ditos e escritos V: Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2004.
FOUCAULT. M. Vigiar e punir: O nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009.
GUATTARI Felix. CAOSMOSE: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed.34. 1992.
HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo, Loyola. 2004.
HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão. Guerra e democracia na era do império. Tradução de Clóvis Marques. São Paulo: Record, 2005.
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO E PECUÁRIA. (Brasília, DF). EMBRAPA. 2014. Espaço Temático. Disponível em: https://www.embrapa.br/tema-matopiba. Acesso em: 28 jul. 2021.
PEREIRA. Tatiana Dahmer. Política Nacional de Assistência Social e território: enigmas do caminho. Revista Katálisis. Florianópolis v. 13 n. 2 p. 191-200 jul./dez. 2010.
REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS. Imobiliárias agrícolas transnacionais e a especulação com terras na região do MATOPIBA. Editora outras expressões. São Paulo. 2018. www.social.org.br. Acesso em: 10 ago. 2021.
SANTOS. Milton. O dinheiro e o território. In: Milton Santos [et al.] (orgs.) Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011.
SILVA, Lília Penha Viana. Rupturas e continuidades da assistência social: da benemerência ao direito. São Luís: EDUFMA, 2021.
SPINOZA. B. Ética. Belo Horizonte. Autêntica. 2012.
Notas
Notas
[1]. Correntão é uma técnica de desmatamento controversa que possibilita a rápida retirada da vegetação nativa por meio da utilização de grandes correntes presas a tratores, em geral um par de grandes tratores que tencionam a corrente arrastando-a na direção da vegetação para derrubar tudo e “limpar” a área para plantio.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por Redalyc