Mesas temáticas coordenadas

TRABALHO, LUTAS SOCIAIS E RESISTÊNCIAS NA AMÉRICA LATINA

WORK, SOCIAL STRUGGLES AND RESISTANCE IN LATIN AMERICA

Cláudia Alves Durans
Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Brasil
Juan Pablo Sierra Tapiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Brasil
Walter Mauricio Gallego Medina
Universidad Nacional de Colombia - UNAL, Colombia
Wagner Miqueias Félix Damasceno
Universidade de Campinas - UNICAMP, Brasil

TRABALHO, LUTAS SOCIAIS E RESISTÊNCIAS NA AMÉRICA LATINA

Revista de Políticas Públicas, vol. 26, Esp., pp. 677-696, 2022

Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 14 Febrero 2022

Aprobación: 29 Abril 2022

Resumo: Este artigo, fruto de uma Mesa coordenada apresentada na Joinp 2021, composta por 2 docentes colombianos e 2 brasileiros, busca discutir a atualidade do sistema capitalista e sua relação destrutiva com a natureza, que produz consequências dramáticas como doenças, epidemias e a pandemia da covid-19, tendo consequências profundas para a economia, na concentração e acumulação de riquezas e de aumento da pobreza, assim como, nas lutas de classes em várias partes do mundo, em especial na América do Sul. Traz uma análise da pequena mineração de ouro na Colômbia que representa 80% da produção anual de ouro e é marcada por relações de informalidade e "ilegalidade" típicas da estrutura econômica e política do país, condição que a torna uma expressão de trabalho vulnerável a ser capturada por capitais clandestinos, usurários e criminosos, que se encarregam de financiar e / ou extorquir as etapas da cadeia de valor, (extração, lucro e comercialização) e toda a complexidade e múltiplas sutilezas para encobrir a “ilegalidade” do ouro, lavar dinheiro e dar continuidade à rota de comércio internacional. Apresenta também aportes para entender el Paro Nacional de 2021 en Colombia, “como expresión de la crisis capitalista" e uma aproximação à maior mobilização social realizada nesse país durante o século XXI, entendido esse protesto como uma expressão da crise capitalista, na sua face mais imediata (na pandemia do Coronavírus COVID-19). Analisa ainda as lutas antirracistas na atualidade através do fenômeno recente que são as derrubadas das estátuas nos EUA e América Latina pelos movimentos sociais.

Palavras-chave: Capitalismo, trabalho, mineração, lutas sociais, pandemia, Capitalismo, trabalho, mineração, lutas sociais, pandemia.

Abstract: This article is the result of a coordinated panel presented at Joinp 2021, composed of 2 Colombian and 2 Brazilian professors, seeks to discuss the current situation of the capitalist system and its destructive relationship with nature, which produces dramatic consequences such as diseases, epidemics and the covid pandemic. -19, with profound consequences for the economy, in the concentration and accumulation of wealth and an increase in poverty, as well as in class struggles in various parts of the world, especially in South America. It brings an analysis of the small gold mining in Colombia that represents 80% of the annual production of gold and is marked by relations of informality and "illegality" typical of the economic and political structure of the country, a condition that makes it an expression of work vulnerable to being captured by clandestine capital, usurers and criminals, who are responsible for financing and / or extorting the stages of the value chain, (extraction, profit and commercialization) and all the complexity and multiple subtleties to cover up the “illegality” of gold, laundering money and continue the international trade route. It also presents Contributions to understand the National Paro of 2021 in Colombia, as an expression of the capitalist crisis" presents an approach to the greatest social mobilization carried out in that country during the 21st century, understanding this protest as an expression of the capitalist crisis, both in its most (in the Coronavirus COVID-19 pandemic) It also analyzes the anti-racist struggles today through the recent phenomenon that are the toppling of statues in the USA and Latin America by social movements.

1 CRISE CAPITALISTA E PANDEMIA

Caracterizamos que a forma atual sob a qual ocorre produção e reprodução da vida humana, ou seja, a forma capitalista, está em crise. Analisamos que as crises são inerentes ao capitalismo, por suas contradições e características essenciais: produção coletiva e apropriação privada; existência de classes sociais com interesses antagônicos; propriedade privada dos meios de produção; trabalho não pago, apropriado pelos capitalistas; regime de assalariamento que cobre apenas o custo da força de trabalho; opressão a serviço da exploração; centralização e concentração da riqueza; anarquia na produção; produção mundial; protecionismo para os países imperialistas e livre-cambismo para os semicoloniais, entre outros.

O capitalismo desde a sua gênese necessita inventar e reinventar formas de exploração e subordinação de classe, no sentido de enfrentar as suas contradições que são insolúveis. Para Marx, “o capital é um produto coletivo e só pode ser posto em movimento pelos esforços combinados de muitos membros, em última análise, pela atividade combinada de todos os membros da sociedade”. (Marx e Engels, 1998, p.52). Nesse sentido, é impossível ao capital desenvolver-se sem o trabalho do proletariado, ou seja, sem o seu antagônico, mais ainda, esse desenvolvimento pressupõe a concentração de riquezas nas mãos dos capitalistas e a concentração da miséria para as classes destituídas da propriedade dos meios de produção.

Todas as sociedades anteriores à capitalista enfrentaram crises que eram detonadas, em geral, por fenômenos da natureza, por epidemias, guerras, ou seja, fenômenos externos à economia, e eram crises de subprodução, já que eram sociedades que enfrentavam a escassez. Já no modo de produção capitalista as crises são de superprodução. A incorporação da ciência e da tecnologia cada vez mais avançada na produção aumenta a capacidade humana de produzir mercadorias.

A burguesia, com a sua dominação de classe, que conta apenas com um século existência, criou forças produtivas mais abundantes e mais grandiosas que todas as gerações passadas tomadas em conjunto. A domesticação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, os caminhos de ferro, os telégrafos elétricos, o arroteamento de continentes inteiros, a regularização dos rios, populações inteiras brotando da terra – qual dos séculos passados pôde sequer suspeitar que semelhantes forças produtivas dormitassem no seio do trabalho social? (Marx e Engels, 1998).

Como afirma Marx e Engels no Manifesto Comunista, as crises são resultado de excesso de civilização:

As relações burguesas de produção e de troca, as relações burguesas de propriedade, toda esta sociedade burguesa moderna, que fez surgir tão poderosos meios de produção e de troca, assemelha-se ao mago que já não é capaz de dominar as potências infernais que desencadeou. Há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é mais do que a história das forças produtivas modernas contra as atuais relações de produção, contra as relações de produção que condicionam a existência da burguesia e a sua dominação. Basta mencionar as crises comerciais que, com o seu retorno periódico ameaçam, cada vez mais, a existência de toda a sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma parte considerável dos produtos já criados, mas ainda uma grande parte das próprias forças produtivas já existentes. Durante as crises, abate-se sobre a sociedade uma epidemia que, em qualquer época anterior pareceria absurda – a epidemia da superprodução. A sociedade encontra-se subitamente retrotraída a um estado de barbárie momentânea: dir-se-ia que a fome, que uma guerra devastadora mundial a privaram de todos os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados.

E tudo isto porquê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de vida, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas de que dispõe não servem já o desenvolvimento da civilização burguesa e das relações de produção burguesas; pelo contrário, tornaram-se demasiado poderosas para estas relações, que constituem um obstáculo ao seu desenvolvimento; e todas as vezes que as forças produtivas sociais vencem este obstáculo, precipitam na desordem toda a sociedade burguesa e ameaçam a existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conter as riquezas criadas no seu seio. Como é que a burguesia vence estas crises? Por um lado, destruindo pela violência uma grande quantidade de forças produtivas, por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que conduz isto? A preparar crises mais gerais e mais violentas e a diminuir os meios de preveni-las.

Nesse sentido, as crises de superprodução revelam que as relações de propriedade e de produção capitalistas são entraves ao desenvolvimento das forças produtivas. Na época analisada por Marx (1998, p. 45), vários mecanismos eram utilizados para diminuir os efeitos das crises, inclusive a desvalorização ou destruição de forças produtivas e a conquista de novos mercados. Evidentemente que não resolvia e ainda potencializava novas crises. No capitalismo contemporâneo, mundo globalizado, onde a conquista de mercados completamente novos não é mais possível, os capitalistas buscam agora a racionalização dos mercados existentes, potencializando a sua capacidade de realização, sem necessariamente implicar o crescimento do número de consumidores, mas por um alargamento horizontal dos mercados.

Lênin (1977), analisando o quadro da economia mundial capitalista nas suas relações internacionais, às vésperas da primeira guerra imperialista mundial, sustentando-se nos estudos de Marx acerca das leis do surgimento, desenvolvimento e decadência do capitalismo, destaca seus traços constitutivos: 1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na economia; 2) fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação baseada nesse ‘capital financeiro’ da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitais, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.

O imperialismo é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes. (LÊNIN, 1977, p. 642).

Dezenas de milhões de cadáveres e mutilados, vítimas da guerra – essa guerra feita para decidir que grupo de bandoleiros financeiros, o inglês ou o alemão, devia receber uma maior parte do saque -, e depois estes dois ‘tratados de paz’ (Brest-Litovsk e Versalhes), abrem os olhos, com uma rapidez até agora desconhecida, a milhões e dezenas de milhões de homens atemorizados, oprimidos, iludidos e enganados pela burguesia. Em conseqüência da ruína mundial, fruto da guerra, cresce, pois, a crise revolucionária mundial, que, por mais longas e duras que sejam as vicissitudes que atravesse, não poderá, terminar senão com a revolução proletária e sua vitória. (LÊNIN, 1977, p. 583).

Em 1915, no contexto da 2ª Grande Guerra, Rosa Luxemburgo diante dos horrores da guerra imperialista denunciou o caráter do imperialismo e a necessidade do proletariado mundial enfrentá-lo e construir outra sociabilidade.

Encontramo-nos hoje, tal como profetizou Engels há uma geração, diante da terrível opção: ou triunfa o imperialismo, provocando a destruição de toda a cultura e, como na Roma Antiga, o despovoamento, a desolação, a degeneração, um imenso cemitério, ou triunfa o socialismo, ou seja, a luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo, os seus métodos, as suas guerras. Tal é o dilema da história universal, a sua alternativa de ferro, a sua balança a oscilar no ponto de equilíbrio, aguardando a decisão do proletariado. (LUXEMBURGO, 1915 p. 6).

Analisando as crises capitalistas, no pós 1ª guerra mundial em “Imperialismo e a Crise Mundial, Trotsky destaca a dinâmica do sistema do capital que produz equilíbrios, rompimentos e restaurações, num movimento extremamente complexo. A partir da análise dos desdobramentos da 1ª guerra mundial, apontou a tendência de uma nova crise devido a contradições não resolvidas pela primeira guerra, cuja consequência poderia ser um novo grande conflito bélico mundial, como efetivamente ocorreu.

Com a guerra imperialista, entramos na época da revolução, isto é, a época em que os próprios pilares do equilíbrio capitalista estão sendo abalados e colapsando. O equilíbrio capitalista é um fenômeno extremamente complexo. O capitalismo produz esse equilíbrio, o rompe, restaura-o novamente para rompê-lo de novo, simultaneamente estendendo os limites de sua dominação. Na esfera econômica esses constantes rompimentos e restaurações do equilíbrio tomam a forma de crises e booms. Na esfera das relações inter-classes, o rompimento assume a forma de greves, locautes, luta revolucionária. Na esfera das relações inter-estados, o rompimento do equilíbrio significa guerra ou – em uma forma menos intensa – guerras tarifárias, guerra econômica ou bloqueios. O capitalismo assim assume um equilíbrio dinâmico, no qual sempre está no processo de ruptura ou restauração. Mas ao mesmo tempo esse equilíbrio tem um grande poder de resistência, cuja maior prova disso é o fato de que o mundo capitalista não foi derrubado até hoje. (TROTSKY, 2008, p. 10-11)

Esses revolucionários viveram e escreveram na época do 1ª grande conflito mundial, que produziu uma carnificina de 10 milhões de mortos. Os dados da 2ª grande guerra mundial mostram que foi ainda mais sangrenta: segundo estimativas, entre 50 a 85 milhões de mortos.

Assim que, entre crises e estabilidade, equilíbrios e desequilíbrios, o capitalismo contemporâneo se enredou numa contradição insolúvel, utilizando as palavras de Marx, que semelhante a um feiticeiro que conjurou gigantescos meios de produção e troca e perdeu o controle sobre os seus poderes infernais e pôs em movimento. Além de destruir milhares de vidas seja por guerras mundiais, ou regionais, seja pela fome e miséria, seja pela violência, enfrenta ainda uma grande contradição com a própria natureza, com a qual exerce uma relação destrutiva, colocando o próprio habitat do ser humano em risco, pela ganância e voluptuosidade pelo lucro.

Na contemporaneidade, pensamos que a sociedade humana sob o regime do capital entra em mais uma encruzilhada histórica, numa escala de destruição da natureza nunca antes vista e denunciada pelos cientistas e ambientalistas. Marx já apontava em O Capital a tendência da subordinação da agricultura à indústria, ou seja, que o aumento da produtividade agrícola estava diretamente subordinado ao desenvolvimento da produtividade da indústria que fornece em escala crescente os insumos à produção agrícola. O que verificamos hoje: industrialização excessiva da agricultura; produção de gado e aves em elevada potência e confinados; derrubada de florestas nativas; mineração extremamente predatória; utilização excessiva da produção de energia fóssil; pesca industrial predatória, etc.

Como analisa Rob Walace (2021):

Essas expansões estão interligadas por circuitos de capital e consumo. Os circuitos geram um volume crescente de comércio de animais vivos, produtos, alimentos processados e germoplasma. As áreas de monocultura em ascensão, são caracterizadas pelo declínio da diversidade de animais e plantações, à medida que as intervenções técnicas selecionam algumas variantes genéticas em detrimento de todas as outras. A diversidade também é perdida à medida que as empresas se consolidam. Essas mudanças impulsionadas pela economia, produziram profundos impactos em nossa ecologia e saúde pública.

A agricultura intensiva em grandes propriedades; o confinamento de aves, o gado em currais que concentram grandes populações de indivíduos; a mineração aberta etc. combinam-se com formas tradicionais ainda realizadas em grande parte dos países que são incorporados à produção para o mercado mundial. Essa mistura de atividades à margem das grandes florestas submetidas à exploração madeireira, é um criadouro de patógenos. Tudo isso está diretamente relacionado com o mundo urbano. (ROB WALLACE, 2021).

Aqui pode-se compreender a pandemia atual do coronavírus, a partir desse desequilíbrio na natureza levada a cabo pela intensa industrialização. Para Wallace, a covid 19 foi criada pelos homens, mas não dentro da teoria conspirativa anunciada por Trump e Bolsonaro de que foi criada pelos chineses. Mas, pela intensa destruição do metabolismo natural do planeta. A covid 19 tem seu percurso semelhante a gripes aviárias e suínas, que foram transmitidas a seres humanos. Makona Ebola, Febre Q, Zika, entre muitos outros — podem estar ligados à agricultura intensiva e outras formas de exploração da natureza como a indústria madeireira e mineração.

Nesse contexto, o capital expõe a sua face mais perversa durante a pandemia. Diante da queda da taxa de lucro dos capitalistas de vários setores, da quebra de médios e pequenos negócios, o setor da indústria farmacêutica que produz as vacinas é o setor que mais lucra na atualidade. A humanidade já viveu por exemplo a pandemia da gripe espanhola, que matou milhares de pessoas em todo o mundo. Na pandemia da covid 19 a descoberta das vacinas foi um feito extraordinário que, no entanto, é tratada como um negócio lucrativo e não como uma necessidade, um direito da humanidade. Assiste-se o privilégio de alguns países que já vacinaram até 70% de sua população e a grande maioria que sequer conseguem os imunizantes para os setores mais vulneráveis, os chamados grupos de risco.

O exemplo da Índia é emblemático: produz vacina para o mundo inteiro, no entanto, o mundo assistiu com a chamada variante Delta, o Rio Ganges se tornar um cemitério a céu aberto. O problema é que, mais uma vez, a propriedade privada serve de entrave para o bem estar da humanidade. Tratando a pandemia como um negócio, ao não garantir a vacinação de forma homogênea, dificilmente a humanidade derrotará o vírus da covid-19, e novas cepas poderão surgir, comprometendo o programa de imunização.

As consequências sociais são desastrosas. Houve o aumento da pobreza e da fome em nível mundial, as próprias agências do imperialismo como o Banco Mundial reconhecem que cerca de 811 milhões de pessoas enfrentaram a fome no primeiro ano da pandemia. Mais da metade de todas as pessoas enfrentando a fome (418 milhões) vive na Ásia; mais de um terço (282 milhões) na África; 60 milhões na América Latina e no Caribe. Na África, é desastroso, estima-se que 21% da população passam fome.

Relatório da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) de março de 2021 revela que:

A pobreza e a extrema pobreza alcançaram em 2020 na América Latina níveis que não foram observados nos últimos 12 e 20 anos, respectivamente, bem como uma piora dos índices de desigualdade na região e nas taxas de ocupação e participação no mercado de trabalho, sobretudo das mulheres, devido à pandemia da COVID-19 e apesar das medidas de proteção social emergenciais que os países adotaram para freá-la, informou hoje a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL).

De acordo com as novas projeções da CEPAL, como consequência da forte recessão econômica na região, que registrará uma queda do PIB de -7,7%, estima-se que em 2020 a taxa da extrema pobreza se situou em 12,5% e a taxa da pobreza atingiu 33,7% da população. Isso significa que o total de pessoas pobres chegou a 209 milhões no final de 2020, 22 milhões de pessoas a mais do que no ano anterior. Desse total, 78 milhões de pessoas estavam em situação de extrema pobreza, 8 milhões a mais do que em 2019.

O relatório registra ainda que os mais afetados são residentes em áreas rurais, crianças e adolescentes; indígenas e afrodescendentes; e na população com menores níveis educativos.

No Brasil, no início de 2021, segundo ano da pandemia, o desemprego atingiu 14,7%, ou seja, 14.805 milhões de pessoas, acrescente-se os 7 milhões de subocupados e 11,4 milhões perfazendo 33,2 milhões de pessoas fora do mercado de trabalho. 50% da população brasileira estão em situação de insegurança alimentar, ou seja, 116,8 milhões de pessoas passam fome e 20 milhões vivem de auxílios governamentais e da solidariedade de outros. (IBGE, 2021)

Por outro lado, segundo revista a Forbes, novo coronavírus elevou a riqueza total dos bilionários ao seu nível mais alto. Desde o início da pandemia, a riqueza total mantida por bilionários em todo o mundo aumentou 25%, para mais de US$ 10 trilhões. (REVISTA FORBES, 2020)

Evidentemente que o aprofundamento das desigualdades no contexto da pandemia refletirá nas lutas de classes, que já vinham num crescente desde a implantação dos planos neoliberais. Com essa situação dramática na qual foram jogadas as massas trabalhadoras, isso poderá também abrir processos de lutas, ainda que limitada por uma pandemia. Assim, no período recente, verificamos lutas no Norte da África, especialmente no Marrocos; registra-se resistência Palestina, contra o Estado de Israel que inclusive impedia a vacinação dos palestinos, além da ofensiva militar contra Jerusalém; intensificação das lutas na Índia; mobilizações contra golpe militar em Mianmar; manifestações na Bielorrúsia, na Polônia, com destaque para as mulheres na luta pela legalização do aborto; Merece aqui um maior destaque a situação política no EUA que, sob o governo de extrema direita de Donald Trump, acentuou a perseguição aos latinos, imigrantes e extrema violência com negros e negras. O assassinato de George Floyd, que alavancou uma convulsão social, e resultou na derrota de Trump e eleição do Biden.

Na América Latina assistimos a rebelião de massas na Colômbia contra a reforma administrativa do governo Duque, com o protagonismo da juventude. As intensas lutas e insurreições no Chile contra o governo de Piñera e seu planos neoliberais. Levante no Peru, que levou o professor Castillo, a derrotar Kieko Fujimore nas eleições presidenciais. Manifestações massivas no Paraguai contra o governo de Mario Abdo Benitez.

No Brasil, sob o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro com quase 600 mil mortos durante a pandemia, começam a ocorrer manifestações “Fora Bolsonaro”, com as denúncias de corrupção, ampliação da miséria, inflação dos alimentos, aumentos sucessivos no preço dos combustíveis, na conta de luz, etc., destruição sem precedentes do meio ambiente, além da pauta agressiva de retirada de direitos. Tudo isso tem levado a vida dos brasileiros a patamares insuportáveis. Esse movimento será capaz de alavancar mobilizações massivas?

2 A PARALISAÇÃO NACIONAL DE 2021 NA COLÔMBIA, COMO EXPRESSÃO DA CRISE CAPITALISTA

Los que mueren por la vida, no pueden llamarse muertos

Ali Primera

A Colômbia está experimentando um despertar cujo horizonte ainda está em disputa. A Paralisação nacional iniciada a 28 de Abril (28A) de 2021 é uma expressão da crise capitalista, e por um lado, forças empenhadas na construção da paz com justiça social, o que implica um processo de democratização política, social e econômica, e por outro lado, forças que procuram impor uma pacificação baseada na morte, no medo e no esquecimento, confrontam-se mutuamente. Não é possível estar no meio destas duas tendências, mas existem nuances e divergências dentro delas.

Esta Paralisação Nacional foi inicialmente convocada pelo Comitê de Paralisação Nacional (CPN) como um dia de mobilização principalmente contra a reforma fiscal regressiva promovida pelo governo nacional. A expectativa era de começar a ganhar cada vez mais força nos dias de mobilização que continuariam a ser chamados nas semanas e meses seguintes, contra o conjunto de políticas neoliberais que estavam na agenda do governo Duque (Uribe III), mas também em defesa da vida e do processo de paz. No entanto, o dia foi surpreendido pela participação maciça nas principais cidades do país, conseguindo uma paralisação com bloqueios de rua, comícios e marchas. Mas, o mais surpreendente foi que a mobilização continuou, primeiro em Cali e depois em várias outras cidades, e mais tarde em várias regiões houve também uma importante mobilização de camponeses, povos originários e povos negros.

Esta paralisação tem sido caracterizada por vários analistas como uma "explosão social", mas não é de modo algum um movimento espontâneo que surgiu do nada, pelo contrário, é uma expressão - a maior até agora - de uma experiência acumulada de lutas, que tem o seu precedente mais importante na paralisação cívica nacional de 21 de Novembro (21N) de 2019, na altura, a maior expressão de protesto social dos últimos 50 anos, cujas bandeiras foram precisamente: "contra o pacote neoliberal, pela vida e pela paz"[1].

Por outras palavras, pouco mais de um ano após o (mau) governo de Iván Duque Márquez, já havia uma pressão social muito forte devido às políticas de morte, que se expressavam em pelo menos três eixos principais inter-relacionados: i) a continuidade e o aprofundamento das políticas neoliberais de mercantilização dos direitos sociais, desmantelamento dos direitos laborais, privatização de entidades públicas, focalização da política social, entre outras; ii) o assassinato sistemático de líderes sociais, defensores dos direitos humanos e signatários do Acordo de Paz; iii) a não implementação do Acordo de Paz entre o Estado Colombiano e as FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo).

Contudo, é também importante notar que durante a última década, na Colômbia, houve um auge da mobilização social[2], que não pode ser compreendido de forma linear, mas que contém uma grande complexidade de acordo com os momentos em que teve lugar, direta ou indiretamente, atravessados pela luta pela paz com justiça social, em termos, por exemplo, do gasto público, a necessidade de ultrapassar as causas da origem e reprodução de uma guerra de mais de 50 anos, especialmente no que respeita à propriedade e uso da terra, a necessidade de confrontar eficazmente as estruturas mafiosas das economias ilegais, a necessidade de não tratar a oposição política e social como um "inimigo interno", a necessidade de reconstruir a verdade histórica como base para a não repetição, e a necessidade de justiça e reparação integral para as vítimas da guerra.

Em síntese, o que pretendemos mostrar é que, reconhecendo o momento sui generis que a Colômbia está a atravessar, não explodiu do nada, existe uma acumulação e continuidade de diversos processos de luta social e de classe, que se intensificou e que abre as possibilidades de um salto qualitativo no horizonte destas lutas.

Mas, por outro lado, é também necessário reconhecer o momento particular da paralisação que começou em 28A de 2021, uma vez que aparentemente as causas seriam as mesmas que as da paralisação de 21N de 2019. Aqui deve notar-se que certamente a pandemia da COVID-19, e as respostas erráticas e classistas do mau governo Duque (Uribe III), que continuou a favorecer os interesses do capital financeiro e não deu um apoio real aos cuidados e autocuidados em face da crise de saúde, agravando ainda mais a pauperização das classes trabalhadoras e o aumento da desigualdade social na Colômbia; além disso, durante a pandemia, os assassinatos sistemáticos de líderes sociais, defensores dos direitos humanos e signatários do Acordo de Paz continuaram[3], e pior ainda, a brutalidade e o abuso da força policial tornou-se cada vez mais evidente como uma das primeiras respostas às mobilizações sociais; isto levou a uma indignação social cada vez maior e a uma consciência antiuribista e antineoliberal, o que serviu de catalisador para a força e contundência da paralisação de 2021.

Dois elementos-chave neste processo são o protagonismo da juventude e da cidade como palco de luta. Historicamente, já houve uma participação muito importante de estudantes universitários na Colômbia, mas atualmente, os jovens trabalhadores dos bairros populares, muitos sem acesso ao ensino superior e/ou desempregados, cujas condições de vida em tempos de pandemia se agravaram, estão a desempenhar cada vez mais um papel de liderança. Foram os jovens das cidades que formaram a chamada Primeira Linha[4]. Contudo, é importante salientar que esta chamada Primeira Linha, durante a paralisação, especialmente nos pontos de bloqueio e nas reuniões de massa, constituiu de fato um complexo organizacional onde haveria aqueles que protegem com escudos, aqueles que confrontam principalmente com as pedras, aqueles que recolhem e organizam as pedras, bem como a missão médica e o apoio logístico e alimentar. Esta foi uma das experiências mais poderosas da paralisação, como expressão de encontro e solidariedade, onde a juventude, protagonista desta luta, foi abraçada nos bairros pelos habitantes, e especialmente pelas mulheres. Bloqueios e barricadas que permitiram a paralisação de cidades inteiras, parando parcialmente a circulação de mercadorias, bem como proporcionando condições para a autodefesa dos manifestantes; a cidade está a tornar-se cada vez mais uma cena fundamental de luta.

A resposta do Estado oligárquico-burguês colombiano e dos meios de comunicação social tem sido a estigmatização, a repressão brutal e a criminalização. O ódio de classe tem sido expresso de várias formas, e as ações ilegais e paramilitares para conter as manifestações têm sido legitimadas. Durante a paralisação, foram registradas 80 vítimas de violência homicida entre 28 de Abril e 23 de Julho, mais de 4.000 vítimas de violência pelas forças de segurança, centenas de feridos (incluindo 82 vítimas de agressões oculares), mais de 2.000 detenções arbitrárias, bem como pelo menos 28 vítimas de violência sexual pelas forças de segurança públicas, e 90 casos de assédio, agressão e detenção de membros da imprensa[5].

Em face de um cenário de desgaste, dada a recusa do governo nacional em abrir-se ao diálogo, e compreendendo que não haveria força e apoio para continuar a paralisação indefinidamente na forma como estava a decorrer, foi decidido que "a paralisação não vai parar, vai mudar", uma expressão que ganhou força em vários bloqueios e comícios de massas dois meses após o início da paralisação. Foi decidido reforçar os processos de organização e pedagogia nos próprios bairros, com pelo menos duas perspectivas de continuidade do processo: por um lado, continuar a realizar dias de mobilização para pressionar o mau governo, mas também para desgastar ainda mais o uribismo que, por sua vez, se espera que dê frutos nas eleições presidenciais e parlamentares de 2022.

A paralisação nacional mostrou uma força que nem sequer os trabalhadores da Colômbia tinham consciência que tinham, mostrou também que a brutalidade da repressão estatal (e para-estatal) não tem limites; por isso é necessário continuar a propor análises e propostas que possam ser mobilizadas entre as várias forças que apostaram na paralisação, mas o mais importante, talvez, é responder à necessidade de organização, é com instrumentos coletivos que nos organizamos para a luta, é na luta que apreendemos o movimento da realidade e que o podemos transformar.

Teremos de nos preparar para tomar as ruas com ainda mais força, reforçar os processos de solidariedade e acompanhamento internacionalista, e também para assumir a participação nos limites da democracia restrita na Colômbia, mas visando e tensionando para que o processo de democratização que implica caminhar para a paz com justiça social, nos permita um novo cenário para que a necessária superação do modo de produção e reprodução capitalista, através de uma estratégia socialista, seja também entendida, desejada e assumida de forma coletiva e massiva.

Sem voluntarismo, não estamos à beira de uma revolução socialista na Colômbia; e sem ingenuidade, não haverá paz com justiça social na Colômbia no modo de produção e reprodução capitalista; mas com toda a determinação para continuar a luta por uma nova Colômbia, por uma Pátria Grande, por uma Humanidade emancipada. A barbárie é capitalismo, pelo que é necessário ultrapassá-lo, no caso da Colômbia, a consciência antiuribista e antineoliberal implica alguns passos importantes nesse caminho, e claro, este processo não pode ser compreendido ou pensado isoladamente da conjuntura da Nossa América.

3 INFORMALIDADE, ILEGALIDADE E CRIMINALIDADE: particularidades na reprodução ampliada do capital na Colômbia - um olhar sobre a pequena mineração de ouro

O processo histórico de intervenções políticas e fluxos de capitais estrangeiros na América Latina, especialmente na Colômbia (impostos coloniais, dívida externa, neoliberalismo, privatizações, TLCs, extrativismo do grande capital etc.), deslocou setores nacionais da economia formal, em direção à constituição de nichos de economias clandestinas como o contrabando, a grilagem violenta e fraudulenta de terras, o narcotráfico e, recentemente, a mineração informal de ouro como linha para a reprodução ampliada mas desregulada do capital[6] em nossos territórios.

Esses fenômenos não são novos, Poveda Ramos (1981:48) e Botero María (2007:55) na Sierra (2019:52-53) identificaram práticas ilegais desde o final do século XVIII, como o contrabando de ouro em pó para o exterior, principalmente pela Inglaterra, mostrando que a reprodução ampliada e desregulada do capital é uma característica histórica na formação socioeconômica na Colômbia e na América Latina.

Na década de 1990, o Estado colombiano propôs a privatização do patrimônio público e, no início do século XXI, concentrou-se no investimento estrangeiro direto de grande capital com ênfase na mineração e nos recursos energéticos como motores do desenvolvimento e do crescimento econômico. A submissão fiel das diretrizes neoliberais trouxe grandes consequências para uma classe trabalhadora que naufraga em um país desindustrializado e reprimarizado. Em 2020, o Departamento Administrativo Nacional de Estatística (Dane) informou que a pobreza na Colômbia passou de 35,7% da população em 2019 para 42,5% em 2020, enquanto a informalidade do trabalho para janeiro de 2022 seria de 44,6%.

Nesse cenário, analisamos a participação da pequena mineração de ouro na Colômbia, que desde o século XXI, com o boom da mineração (2002-2013), cresceu em todo o território nacional de forma desregulada, sem relações salariais e sem títulos minerários, ou seja, sem subsunção[7] direta ao capital e ao mercado formal de trabalho, mas igualmente funcional na geração de mais-valia apropriada privadamente por terceiros na esfera do mercado por meio do financiamento e/ou extorsão de capitais criminosos, usurários e comerciais, particularizando modos de acumulação estendida em um capitalismo periférico e gangster como o colombiano.

O capitalismo gangster pode ser entendido como a configuração de Estados onde são tecidas redes mafiosas envolvendo poderes públicos em diferentes escalas para o controle de atividades ilícitas como tráfico de drogas, contrabando, especulação e concentração de terras (Tobón, 2019), onde o uso direto da violência é o foco de uma estratégia sistemática de desapropriação para acumulação de capital (Vega, 2012).

Com o boom da mineração (2002-2013), foram favorecidas não apenas as grandes empresas de capital que se tornaram as maiores concentradoras de títulos e hectares para a extração mineral, mas também um setor político e econômico local beneficiado por informações de primeira mão que se valeram das concessões de mineração para a especulação de terras menores, ou seja, um mercado de títulos que aprofundou a estrutura desigual de concentração fundiária na Colômbia e acelerou os conflitos por “escassez de terra” para pequenos garimpeiros informais.

Embora o Estado tenha tentado formalizar a mineração em pequena escala (Lei 141/1994, Lei 685/2001, Decreto 2390/2002, Lei 1382/2002, Decreto 480/2014), que contribui com 80% do ouro anual do país ( UNEP- MADS 2012:63), essas políticas são mais demagógicas do que reais, ao contrário de seus propósitos, há um crescimento desregulado dessa atividade e uma cooptação por setores criminosos (redutos do paramilitarismo, quadrilhas criminosas-BACRIM-, dissidentes de Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia-FARC-) que em aliança com servidores e forças públicas encontraram no ouro uma fonte de riqueza para financiar suas estruturas de guerra.

Com o intuito de controlar o comércio ilegal de ouro, o Estado implementou estratégias como o Cadastro Único de Comercialização (RUCOM)[8], que deve ser ratificado por todos os comerciantes de ouro (manual, pequena, média e grande mineração, usinas de beneficiamento, casas comerciais, e Comerciantes Internacionais), que devem comprovar a origem do metal em figuras autorizadas de acordo com as disposições do Código de Mineração vigente (Lei 685 de 2001); fora dessas figuras o ouro é considerado ilegal e sua comercialização é crime.

A pequena mineração informal de ouro está fora das figuras "legais" anteriores, sendo obrigada a registrar sua produção como mineração de subsistência, ou seja, garimpeiros que não possuem título minerário, mas possuem alvará do prefeito de sua jurisdição para produzir até 35 gramas de ouro por mês, essas cotas são amplamente utilizadas sem escrúpulos para legalizar o ouro; há até mortos e vivos registrados como garimpeiros que não sabem que a produção de ouro está sendo certificada em seu nome.

No entanto, essas transações fraudulentas dependem em grande parte do papel desempenhado pelos intermediários, que não são legalmente reconhecidos, mas desempenham um papel crucial na cadeia. Segundo Urán (2020), a princípio os pequenos mineradores vendem para fornecedores locais e estes vendem para intermediários,

Que possuem uma rede substancial de autoridades locais e servidores públicos que lhes fornecem uma lista de títulos mineiros que podem ser usados ​​para justificar os volumes de ouro produzidos. Em alguns casos, esses títulos são de propriedade de servidores públicos; em outros, os servidores públicos fornecem cópias dos títulos minerários aos intermediários. Muitas vezes, esses são títulos de áreas de mineração ociosas. Em muitos casos, os proprietários destas terras desconhecem que os seus títulos mineiros estão a ser utilizados para este fim. Os intermediários então vendem o ouro para a Comercializadora Internacional (CI), que é uma pessoa jurídica que compra ouro bruto, derrete e vende para refinarias no exterior. Para cada venda, um distribuidor internacional deve apresentar um relatório de compra e pagamento de royalties à Agência Nacional de Mineração e relatório de cobrança à Direcção Nacional de Impostos e Alfândegas.

A produção do pequeno garimpo, ao contrário do que se pensa, sempre busca se integrar à economia formal e contribuir com o pagamento de royalties como necessidade para entrar na legalidade; no fundo da questão, essas economias extrativistas paralelas, centralizam os lucros no sistema financeiro internacional, deixando as externalidades do processo como impacto ambiental, problemas de saúde e pobreza nos territórios locais.

4 LUTAS ANTIRRACISTAS E DERRUBADAS DE ESTÁTUAS NOS EUA E NA AMÉRICA LATINA: Revisionismo ou Reparação?

Aqui abordamos a derrubada de estátuas que evocam a memória da classe dominante nos Estados Unidos da América (EUA), na Colômbia e no Brasil, nos marcos das mobilizações populares após o assassinato de George Floyd, em maio de 2020. Adotamos uma abordagem marxista que vê nesses monumentos e estátuas a materialização da ideologia dominante, olhando-os sob “o ponto de vista dos vencidos” propugnado por Michel Löwy (2009) ao apoiar-se nas reflexões metodológicas de Walter Benjamin para quem “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura” (1987, p. 225).

O assassinato de George Floyd, em 25 de maio de 2020, foi o detonador de uma onda de protestos antirracistas nos EUA numa escala apenas vista na década de 1960. Floyd era um homem negro desempregado, de 46 anos, e foi assassinado por Derek Chauvin, um policial branco de Minneapollis que esmagou o pescoço de Floyd com seu joelho por cerca de nove minutos.

As imagens desse assassinato rapidamente correram o mundo, deflagrando levantes populares contra a violência policial e contra o racismo em várias regiões dos EUA, em meio à pandemia da COVID-19. No bojo destes levantes, surgiram ações contra monumentos associados ao racismo, como as estátuas de Jefferson Davis, em Richmond, no estado da Virgínia[9], líder do Exército do Estado Confederado, um agrupamento político de estados do Sul escravagista nos EUA, dissolvido no século em 1865 após sua derrota para o Norte na Guerra Civil Americana[10].

E, também, a retirada de estátuas que evocavam a memória de colonizadores, como Cristóvão Colombo, em São Francisco, Califórnia.

Na Europa, também ocorreram atos semelhantes. Em Bristol, no Reino Unido, os manifestantes derrubaram a estátua de Edward Colston e jogaram-na no rio. Colston foi um traficante de escravos, membro do Parlamento Britânico e responsável pela morte de mais de 19 mil negros nas Américas e Caribes. A estátua de Colston foi retirada da água e, segundo a Prefeitura de Bristol, será levada para um museu[11].

Na Bélgica, uma estátua de Leopoldo II foi tingida de vermelho, um busto “amordaçado” com uma faixa com os dizeres “não consigo respirar” – em alusão à frase proferida por George Floyd, estrangulado pelo policial em Minneapolis – e outra estátua incendiada. Leopoldo II, ex-monarca da Bélgica, foi responsável pela morte de milhões de africanos no século XIX, através da partilha da África e seu domínio sobre o Congo.

5 E NA AMÉRICA LATINA

No dia 28 de junho de 2021, aos gritos de “Colombo assassino”, manifestantes derrubaram a estátua do espanhol Cristóvão Colombo[12], localizada em frente à Igreja Nossa Senhora de Carmem, em Barranquilla. A ação era um desdobramento da onda de protestos populares que tomou conta da Colômbia, em abril deste ano, como resposta ao projeto de reforma tributária do presidente Ivan Duque. Uma reforma que, em linhas gerais, recaía pesadamente sobre os ombros da classe média e da classe trabalhadora e pobre colombiana.

No Brasil, o alvo foi a estátua de Manuel Borba Gato, bandeirante paulista que em suas expedições capturou, estuprou e assassinou negros e indígenas em boa parte do território da atual região sudeste do país. No dia 24 de julho, num dia nacional de lutas contra o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido), um pequeno grupo incendiou a estátua de Borba Gato, que fica na Zona Sul da cidade de São Paulo[13].

6 MONUMENTOS E IDEOLOGIAS

Para nós, esses atos são bastante progressivos e revelam um pequeno acerto de contas com a memória das classes dominantes. A ideologia dominante inscrita nos monumentos[14] de nosso tempo são, em sua maioria, patrimônio ideológico da burguesia. Afinal, como Marx e Engels afirmavam, a ideologia dominante em cada tempo é a ideologia da classe dominante.

Os monumentos não se erguem sozinhos, os patrimônios não são tombados[15] sozinhos e os acervos museológicos não são musealizados[16] sozinhos. Tudo isto ocorre por escolhas políticas que, em última instância, são determinadas por quem detém o poder político e econômico nesta sociedade capitalista.

A contestação aos monumentos e patrimônios que celebram a memória da classe dominante não surgiu agora. Mesmo em situações de relativa estabilidade social há ações contra bustos de ditadores, placas de ruas ou monumentos em praças públicas em memória da classe dominante.

Mas, o que assistimos após a rebelião negra nos EUA com o assassinato de George Floyd nos parece uma contestação qualitativa e quantitativamente diferente. Isso porque, a maior parte delas, não eram ações de pequenos grupos que – independente da justeza de suas intenções – agiram isoladamente. O que assistimos foram ações majoritárias de massas contra monumentos erigidos em louvor à memória da classe dominante, mas que estavam circunscritas em amplas lutas políticas e antirracistas[17].

7 CONCLUSÃO: por uma política de reparações

Mas se estas ações contra monumentos que evocam a memória racista da classe dominante são ações progressivas, é preciso reconhecer que elas apenas “arranham” a superfície do problema, pois essa luta “simbólica” precisa se inscrever numa luta política mais ampla por reparações históricas aos negros.

No Brasil, é preciso exigir a criação de um Museu federal destinado a recolher, organizar e expor os bens materiais e imateriais da cultura afro-brasileira, com abertura de concursos públicos para os quadros técnicos, administrativos e de serviços, com elaboração de um Plano Museológico com a participação das organizações dos trabalhadores e do movimento negro.

Uma luta simbólica antirracista precisa ter um caráter internacionalista, com uma exigência de restituição dos bens históricos, artísticos e culturais reivindicados pelos povos africanos e latino-americanos e que compõem o acervo dos museus dos países imperialistas. Mas para ir às últimas consequências, é preciso avançar num projeto de controle social e popular dos museus.

Pôr os museus e centros culturais a serviço dos explorados e oprimidos exige uma luta pelo controle do Estado. Exige uma luta pelo poder para controlar não só os museus, mas também, as bibliotecas, arquivos, cinemas etc e pô-los a serviço e usufruto da classe trabalhadora e do povo negro e pobre.

REFERÊNCIAS

CANTOR, Renan Vega (2012), Colombia: capitalismo Gansteril y despojo territorial. Disponível em:

CRUZ, Edwin. (2017). Caminando la palabra: movilizaciones sociales en Colombia (2010-2016). Ediciones Desde Abajo. Bogotá, 2017.

DE ZUBIRÍA-SAMPER, Sergio – LIBREROS-JIMENEZ GIOVANNI (2021). Crisis de hegemonía, subjetividades insurgentes y perspectivas. En: Revista Revista Izquierda. Edición Especial. 96 Disponivel em:https://revistaizquierda.com/secciones/Numero-96/izq-rev-96-revista-izquierda-96- mayo-2021-completa

LENINE, V.I. Obras escolhidas. Tomo I. Lisboa: Edições Avante!. 1977.

LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução. São Paulo: Editora Expressão Popular 1999.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Editorial Boitempo, 1998.

MARX, Karl (1959), Tomo I, El Capital. Crítica de la economía política. Fondo de Cultura Económica.

MARX, Karl (1971). El Capital. Libro I. Capítulo VI (inédito). Editorial, Siglo XXI.

RELATÓRIO CEPAL. https://www.cepal.org/pt-br/

Revista Forbes. https://forbes.com.br/negocios/2020/10

SIERRA-TAPIRO, Juan Pablo. (2019). Elementos para pensar Nuestra América en la contemporaneidad.En: Luchas sociales, sujetos colectivos y Trabajo Social en América Latina. Ed. Puka. Argentina. Disponível em: http://www.ts.ucr.ac.cr/binarios/libros/libros-000119.pdf

WALLACE, Rob. Planeta Fazenda. In: Le Monde Diplomatic. Abril 2021.

WALLACE, Rob. Coronavírus, a última herança do colonialismo. In: https://outraspalavras.net/terraeantropoceno/covid-ultima-heranca-do-colonialismo/ 23/03/2021

TOBÓN, Gilberto (2019). Estado Política y Economía en Colombia. Capitalismo Burocrático y Gansteril. Señal Editora.

TROTSKY, Leon. O imperialismo e a crise da economia mundial – textos sobre a crise de 1929. ed. José Luís e Rosa Sundermann. São Paulo, 2008.

TROTSKY, Leon. A Agonia mortal do capital e as tarefas da IV Internacional (Programa de Transição). In: Documentos de fundação da IV Internacional – Congresso de 1938. Ed. José Luís e Rosa Sundermann. São Paulo, 2008.

URÁN, Alexandra & M. E. Robles (2020) "Colombia: legal loopholes Behind Illegal Gold Trade" En: Global Gold Production Touching Ground. Boris Verbrugge y Sara Geenen (eds). Ginebra, Suiza. Editorial Palgrave Macmillan. Pp: 151-167

Notas

[1] Aqui destacamos especialmente as contribuições feitas na Edição Especial, 96, da Revista Izquierda, Maio de 2021 (https://revistaizquierda.com/secciones/Numero-96/izq-rev-96-revista- izquierda-96-mayo-2021-completa). Há também vários artigos no Periódico desde abajo - destacamos a sua edição especial, 280, dedicada a Cali como sucursal da resistência (https://www.desdeabajo.info/ediciones/itemlist/category/428-edicion-n-279.html) - e no Portal Rebelion.org. (https://rebelion.org/categoria/territorios/america-latina-y-caribe/colombia/) Há também alguns textos de agitação e análise no blogue Ta' Pensando (https://juantapiro.wordpress.com/).
[2] Para uma visão geral das mobilizações sociais na Colômbia entre 2010 e 2016, ver Cruz (2017).
[3] No seu conjunto, existem mais de 1.000 desde a assinatura do Acordo de Paz em 2016 (dos quais mais de 280 são signatários do Acordo), até o 28 de Agosto de 2021, o INDEPAZ registrou 84 líderes, defensores dos direitos humanos e signatários do Acordo assassinados durante esse ano.
[4] A Primeira Linha é uma forma de organização, aparentemente aprendida com a experiência do Chile nos últimos anos, e que está a começar a ser retomada na Colômbia em 2019, mas que está a expandir-se e a ganhar força e proeminência na greve de 2021. Consiste num grupo de autodefesa e proteção de manifestantes para repelir os ataques das forças públicas.
[5] Os relatórios do INDEPAZ e Temblores-ONG são fundamentais a este respeito.
6] A reprodução estendida significa que o capital inicia um novo ciclo com um aumento de valor em relação ao ciclo anterior (a acumulação é positiva: parte da mais-valia foi investida produtivamente). Mandel, Ernest (1982) Ou Late Capitalism. São Paulo, Abril Cultural, p 414. Você também pode rever Luxemburgo, Roxa (1984). À acumulação de capital. Contribuição ao Estudo Econômico do Imperialismo. Volume I. Abril S.A. Cultura, São Paulo. Capítulo VI.A Reprodução Estendida. Editora Vitor Civita, pág. 59
[7] A palavra subsunção refere-se a uma categoria clássica que auxilia a teoria do valor de Marx. De forma simples, o uso da palavra pode ser equiparado aos seguintes termos: submissão ou subordinação. No entanto, para não simplificar um debate interessante, sugere-se a leitura de: Marx, K. (1971:56). Livro I, Capítulo VI inédito. Resultados do processo de produção imediato. Século XXI, México; e leia Marx, K (1959: 426). Volume I, Capital. Crítica da economia política. Fundo de Cultura Econômica.
[8] O RUCOM é uma medida de controle que permite certificar pessoas físicas e jurídicas que comercializam, consomem ou processam minerais no território nacional, com o objetivo de dar maior transparência à atividade de comercialização mineral na Colômbia. O Cadastro Único de Comerciantes de Minerais RUCOM foi criado através do artigo 112 da Lei 1450 de 2011-Plano Nacional de Desenvolvimento 2010-2014 e ratificado com a Lei 1753 de 2015-Artigo 267- Plano Nacional de Desenvolvimento 2014-2018, para adotar medidas de controle para a comercialização de minerais no território nacional. O artigo 112 da Lei 1.450 foi regulamentado pelo Decreto 2.637 de 17 de dezembro de 2012, 0705 de 12 de abril de 2013 e 035 de 13 de janeiro de 2014, que foram revogados pelo Decreto 0276 de 17 de fevereiro de 2015, este último compilado no Decreto Regulamentar Único do Setor de Mineração e Energia 1.073 de 26 de maio de 2015 e modificado pelos Decretos 1.421 de 1º de setembro de 216 e 1.102 de 27 de junho de 2017.
[9] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/06/ativistas-derrubam-estatuas-confederadas-nos-eua-na-esteira-de-onda-revisionista.shtml. Acesso em: 23 jun. 2020.
[10] Segundo levantamento do Southern Poverty Law Center (SLPC) existem nos EUA 1741 símbolos públicos da Confederação. Dentre eles, existem 771 estátuas confederadas com uma disposição geográfica bastante definida: a esmagadora maioria está erigida na região Sul dos EUA, em estados como Virgínia, Texas, Geórgia, Alabama e Mississippi. Ver: https://www.splcenter.org/20190201/whose-heritage-public-symbols-confederacy. Acesso em 19 jun. 2020.
[11] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/06/ativistas-derrubam-estatuas-confederadas-nos-eua-na-esteira-de-onda-revisionista.shtml. Acesso em: 19 jun. 2020.
[12] Vale lembrar que a palavra “Colômbia” é uma derivação do nome do colonizador espanhol Colombo.
[13] Paulo Galo, uma das principais lideranças dos trabalhadores de aplicativos foi detido e preso por 14 dias e, com mais dois motoristas é réu em processo que tramita no Tribunal de Justiça de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/08/justica-determina-que-paulo-galo-seja-solto.shtml. Acesso em 14 ago. 2021.
[14] Françoise Choay
[15] “Tombar” é uma expressão designada para tornar algo um patrimônio material ou imaterial. A palavra é uma referência à Torre do Tombo, Arquivo Público de Portugal.
16] “Musealização” é o processo de atribuição de valor museológico a um objeto através da seleção, documentação e comunicação. Um objeto musealizado “perde” seu valor de uso e seu caráter unitário e “ganha” um valor simbólico, mais geral. Por exemplo, uma espingarda no Museu Histórico Nacional foi destituída do seu valor de uso, ninguém a utiliza para atirar. Em consequência, esta espingarda passa a representar mais do que apenas um determinado modelo específico de arma, podendo representar o conjunto das armas de fogo, representar uma época, ou uma classe social, de acordo com a intencionalidade daqueles que a expõem.
[17] Nos parece oportuna a descrição de Trotsky sobre outubro de 1917: “A velha Rússia desfaz-se em fumaça. A imprensa liberal recolhe as lamentações, os gemidos, a respeito da destruição dos jardins à inglesa, dos quadros pintados na época da servidão, das bibliotecas patrimoniais, dos partenons de Tambov, dos cavalos de corrida, das velhas gravuras, dos touros de raça. Os historiadores burgueses tentam lançar sobre os bolcheviques a responsabilidade de “vandalismo” dos camponeses ao exercerem represálias contra a “cultura” dos nobres. Na realidade o mujique russo acabava uma obra empreendida muitos séculos antes da aparição dos bolcheviques no mundo. Realizava ele seu papel histórico de progresso com os únicos meios que estavam a sua disposição: pela barbárie revolucionária ele extirpava a barbárie medieval. Aliás, nem ele próprio, nem seus antepassados, nem seus avós, conheceram, jamais, a clemência ou a indulgência” (2017b, p. 53).
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