Artigos - Dossiê Temático
Recepción: 25 Julio 2022
Aprobación: 01 Noviembre 2022
DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v26n2p472-492
Resumo: Os anos 2010 representaram uma nova década perdida para a economia latino-americana, que apresentou seu pior desempenho desde a crise da dívida nos anos 1980. A instabilidade política resultante foi propícia para a popularização de movimentos e lideranças associadas a uma visão conservadora de liberalismo. Colecionando sucessivas vitórias eleitorais, os governos da Onda Conservadora estabeleceram uma nova ordem liberal na região, acomodando as demandas das elites empresariais e suprimindo direitos trabalhistas e políticas sociais. O presente artigo propõe uma interpretação para este fenômeno político à luz da Teoria das Estruturas Sociais de Acumulação (Social Structure of Accumulation Theory). Essa tradição propõe um debate institucional crítico no âmbito da economia política, destacando o papel das relações de classe nos arranjos sociopolíticos que amparam os processos de acumulação e crescimento. Sob este referencial, é possível compreender a Onda Conservadora como um movimento neoliberal regressivo que objetiva uma maior dominação do capital sobre o processo de trabalho.
Palavras-chave: América Latina, neoliberalismo, acumulação, crises.
Abstract: The 2010s represented a new lost decade for the Latin American economy, given its worst performance since the 1980s debt crisis. The resulting political instability favored the popularization of movements and leaders associated with a conservative view of liberalism. Collecting successive electoral victories, the Conservative Wave governments established a new liberal order in the region, accommodating the demands of business elites and suppressing labor rights and social policies. This article proposes an interpretation for this political phenomenon in the light of the Social Structure of Accumulation Theory. This theoretical tradition proposes a critical institutional debate within the scope of political economy, highlighting the role of class relations in the socio-political arrangements that support the processes of accumulation and economic growth. Under this framework, it is possible to understand the Conservative Wave as a regressive neoliberal movement that aims at a greater domination of capital over the labor process.
Keywords: Latin America, neoliberalism, accumulation, crisis.
1 INTRODUÇÃO
A América Latina enfrenta o presente desafio de se reestruturar após uma nova década perdida. O esgotamento da trajetória de crescimento iniciada nos anos 2000, impulsionada pela alta nos preços das commodities primárias, engendrou um quadro de estagnação econômica e instabilidade política na maior parte do continente. Neste contexto de crise, movimentos e lideranças alinhados a uma visão conservadora de liberalismo ganharam expressividade no cenário político regional, logrando êxito em sucessivos processos eleitorais.
Os governos da Onda Conservadora possuem uma orientação comum de política econômica, priorizando o ajuste fiscal e os estímulos à oferta em detrimento dos gastos sociais e políticas de incentivo à demanda que caracterizaram o ciclo de expansão anterior. Visando a retomada do crescimento a partir do resgate da confiança dos investidores externos, se estabeleceu uma agenda centrada no controle de gastos públicos e execução de reformas trabalhistas e previdenciárias. Sucedendo a guinada à esquerda dos anos 2000, optou-se pelo aprofundamento do modelo “liberal-periférico” de inserção internacional, acompanhado por uma retórica conservadora direcionada contra grupos historicamente alinhados a governos progressistas, como sindicatos e movimentos sociais.
O presente artigo propõe uma interpretação para este fenômeno político na tradição da Teoria das Estruturas Sociais de Acumulação (Social Structure of Accumulation Theory). Esta vertente teórica destaca a lucratividade e a acumulação de capital como principais determinantes dos processos de mudança institucional, centralizando o conflito distributivo entre capital e trabalho. A partir deste referencial, é possível incorporar relações de classe à análise econômica, visando construir uma interpretação para as recentes transformações institucionais na América Latina e suas implicações para as políticas públicas.
A seção 2 apresenta o marco teórico do presente artigo a partir de uma breve revisão das ideias e conceitos da EESA. A seção 3 contextualiza a construção e a maturação do padrão de acumulação neoliberal na América Latina. A seção 4 propõe uma interpretação das mudanças institucionais que caracterizam a Onda Conservadora à luz do referencial proposto. Por fim, a conclusão sintetiza a discussão apresentada e sugere encaminhamentos para a continuidade desta agenda de pesquisa.
2 A ESCOLA DAS ESTRUTURAS SOCIAIS DE ACUMULAÇÃO
Concebida no crepúsculo da “Era de Ouro” do capitalismo, a Escola das Estruturas Sociais de Acumulação (EESA) propõe, no âmbito da economia política, uma análise centrada nas instituições que amparam o processo de acumulação de capital em uma economia de mercado. Esta vertente teórica guarda semelhanças com outras abordagens institucionalistas heterodoxas, como a corrente Vebleniana e a Escola Francesa da Regulação, dada a percepção de que os interesses privados das elites econômicas determinam o sentido das grandes mudanças institucionais (KOTZ, 1994).
Os primeiros escritos da EESA se dedicaram a investigar relação entre os ciclos de longo prazo da economia norte-americana (ondas longas), e as múltiplas transformações institucionais associadas a este processo histórico. Neste primeiro momento, a Escola focalizou temas como a estagflação dos anos 1970 e suas origens; a deterioração das relações de trabalho; e a nova ordem neoliberal do governo Reagan. Posteriormente, a escola expande sua análise para outras economias, adequando seus conceitos e premissas à realidade do subdesenvolvimento e às novas relações de produção e dependência do capitalismo global (MELLO FILHO, 2022).
Por definição, Estruturas Sociais de Acumulação (ESA) são o conjunto dos arranjos institucionais que que garantem estabilidade ao processo de acumulação de capital e proporcionam crescimento econômico sustentado. De maneira periódica, a incidência de crises compromete a expansão de uma economia, sendo necessária a construção de uma nova ESA capaz de reestabelecer a lucratividade empresarial e um novo padrão de crescimento. Dessa forma, a tradição da ESA propõe uma teoria dual dedicada ao estudo das diferentes fases e variações do capitalismo, bem como das crises cíclicas que perturbam a ordem sistêmica (MCDONOUGH; MCMAHON; KOTZ, 2021, p. 1-2).
Na literatura econômica, instituições são comumente definidas como as “regras do jogo”, condicionando as interações entre agentes em uma economia de mercado (NORTH, 1971). Na tradição da EESA, os arranjos institucionais são determinantes – em primeiro plano – do desempenho de uma economia capitalista em seu processo de reprodução ampliada. Uma estrutura de acumulação pode ser do tipo liberal, regulada ou mista, mas deve invariavelmente garantir condições estáveis para a realização do lucro empresarial (WOLFSON; KOTZ, 2010).
De acordo com Wolfson e Kotz (2010), uma estrutura social de acumulação compreende diferentes instâncias de mediação institucional. Uma ESA deve atuar de modo a mitigar o conflito distributivo entre capital e trabalho, fonte de instabilidade recorrente em uma sociedade capitalista. As tensões de classe podem ser neutralizadas a partir de uma série de mecanismos institucionais que vão desde a implementação de programas sociais e políticas de valorização salarial, até a utilização do aparelho de repressão do Estado e ascensão de lideranças autoritárias.
De forma análoga, uma ESA deve mediar a concorrência intercapitalista, acomodando os interesses das diferentes frações do capital. O papel do Estado na economia é definidor neste sentido. O sistema político, a orientação ideológica do bloco no poder, a opção por uma estratégia ativa ou passiva de intervenção, e a base de apoio do projeto de governo são determinantes na viabilidade de um dado padrão de acumulação. A esses fatores, somam-se as questões de natureza cultural. Tomando como exemplo a recente ascensão da extrema-direita global, é possível destacar o nacionalismo, o conservadorismo e o ressurgimento de um sentimento “anticomunista” datado dos tempos de Guerra Fria como elementos culturais condicionantes dos arranjos institucionais no capitalismo contemporâneo (KOTZ; MCDONOUGH, 2010; KOTZ; BASU, 2019).
A EESA incorpora elementos do pensamento marxista, keynesiano, schumpeteriano e do institucionalismo americano clássico, frequentemente estabelecendo diálogo com estudos empíricos nestas vertentes. Seguindo esta tradição, a seção seguinte apresenta uma narrativa histórica do neoliberalismo na América Latina.
3 A CONSTRUÇÃO DA ESA NEOLIBERAL NA AMÉRICA LATINA: do autoritarismo de mercado à Onda Rosa
Estudos na tradição da EESA consideram que a integração heterogênea de múltiplas nações a um processo global de acumulação deu origem à primeira Estrutura Social de Acumulação mundial. O caráter transnacional das relações de produção é determinante nas transformações institucionais que caracterizam a construção da ESA neoliberal. A captura do aparelho estatal em favor de interesses privados e integrados ao capital transnacional introduz um novo modelo de governança pública e organização social. Destaca-se, neste âmbito, o desmonte do Estado de bem-estar social em favor de uma abordagem estritamente focalizada para a execução de políticas públicas, e a modernização das relações de trabalho a partir da “flexibilização” de garantias trabalhistas e previdenciárias (NARDONE; MCDONOUGH, 2010; FELDMAN, 2021).
O Brasil foi um dos últimos países do continente a adotar uma orientação neoliberal de política econômica, já no período de sua redemocratização.[1] A experiência brasileira destoa de países como Chile, Argentina e Bolívia, nos quais essa agenda esteve primordialmente associada a regimes ditatoriais. Convém, portanto, destacar a delimitação entre “neoliberalismo autoritário” e “neoliberalismo democrático” apresentada em Nercesian e Mendoza (2021) para caracterizar momentos distintos deste padrão de acumulação na América Latina. É possível definir a “Onda Conservadora” como um movimento de reaproximação das ideias e políticas da vertente autoritária do neoliberalismo.
A seção 3.1 analisa as duas primeiras ondas de expansão do neoliberalismo na América Latina, contextualizando as pré-condições que permitiram a implantação da primeira ESA transnacional na região.[2] O novo padrão de acumulação alcança estabilidade apenas nos anos 2000, através da orientação social dos governos da Onda Rosa, sobre a qual se debruça a seção 3.2.
3.1 A primeira e a segunda onda de expansão do neoliberalismo na América Latina
À América Latina foi imposta a condição de laboratório do neoliberalismo enquanto modelo de governança pública. A agenda de reformas implementada nos regimes de Pinochet no Chile (1973-1990) e Videla na Argentina (1976-1981) contou com amplo apoio de organizações multilaterais e intelectuais do primeiro mundo, proporcionando uma ruptura precoce com o modelo de industrialização por substituição de importações, em favor de um “Estado subsidiário” que atribui primazia à liberdade de mercado em detrimento das liberdades individuais (PÁEZ, 2017).
O “tratamento de choque” aplicado à economia chilena rapidamente afastou o país da orientação social-desenvolvimentista proposta pelo governo deposto. O regime Pinochet optou por uma estratégia de estabilização elaborada por economistas de notável formação ortodoxa, promovendo um corte abrupto nos gastos do governo e avançando um extenso plano de privatizações. As reformas previdenciárias e o modelo de privatização do sistema universal de saúde exerceram grande influência na formulação de políticas públicas de outros países da região (ROJO, 2019; OLIVEIRA; MACHADO; HEIN, 2019; RESENDE, 2021).[3]
A década de 80 representa um período de transição e crise na América Latina. O elevado endividamento das economias da região fez cessar os grandes fluxos de capital estrangeiro que sustentavam o modelo de desenvolvimento guiado pelo Estado. O quadro de recessão econômica e inflação elevada comprometeu a legitimidade de regimes políticos autoritários em países como Brasil, Bolívia, Uruguai, Chile e Argentina. O contexto de crise, associado ao surgimento de movimentos populares e organizações trabalhistas, catalisou o processo de abertura política nestes países, dando margem para a adoção de novas estratégias de desenvolvimento e retomada do crescimento.
Ao longo dos anos 80, a agenda neoliberal conquista gradual projeção entre governantes e formuladores de políticas públicas no continente. Amplamente disseminado por organizações financeiras internacionais, o diagnóstico liberal associava a crise latino-americana à indisciplina fiscal e ao baixo grau de liberdade econômica dos países da região. Nesta visão, o modelo de substituição de importações teria promovido o sobredimensionamento da máquina pública, fomentando empresas estatais ineficientes operando sob um marco regulatório protecionista e restritivo à entrada de investimentos estrangeiros (BRESSER-PEREIRA, 1991; MARTINS, 2015).
O ano de 1989 pode ser considerado um marco na consolidação do ideário político neoliberal e sua estratégia de desenvolvimento na América Latina. Instituído pelos Estados Unidos, o Plano Brady renegociou dívidas e cedeu novos empréstimos aos países da região, condicionando o repasse de recursos à adoção de medidas de austeridade fiscal e abertura comercial. Em novembro do mesmo ano, economistas do FMI, Banco Mundial e Tesouro americano formularam uma cartilha com recomendações de política econômica para nações subdesenvolvidas, conhecida como Consenso de Washington, que passa a ser imposta como requisito para a obtenção de crédito externo.[4]
A adesão ao ideário neoliberal foi determinante no ajustamento das economias latino-americanas ao novo contexto de globalização do capital no mundo pós-soviético. O antigo modelo de desenvolvimento guiado pelo Estado deu lugar a um padrão subordinado de inserção internacional, pautado na liberalização comercial e financeira, privatização de ativos públicos e importação de bens de consumo duráveis. A política econômica se volta para a contenção do processo inflacionário, abandonando metas de crescimento e geração de emprego (PÁEZ, 2017). Apesar do êxito parcial na estabilização de preços, o modelo “liberal-periférico” instituiu novas formas de dependência na periferia do capitalismo, fortalecendo a dominância do capital financeiro no processo de acumulação.[5]
Com as reformas dos anos 1990, as economias da região se tornaram mais vulneráveis à volatilidade cíclica dos fluxos de capital estrangeiro. Ao longo da década, a estabilidade temporária deu lugar a crises cambiais no México (1994), Brasil (1999), Argentina (2001) e outros países. Altas taxas de desemprego associadas ao baixo crescimento suscitaram controvérsias quanto à efetividade da cartilha neoliberal.[6] Na virada do milênio, em um contexto onde um crescente sentimento antiglobalização inflamava movimentos e protestos ao redor do mundo, a busca por uma alternativa à ordem neoliberal na América Latina promoveu sucessivas vitórias eleitorais para partidos de esquerda no continente, em um momento histórico conhecido como Onda Rosa (Pink Tide).
3.2 A Onda Rosa: conciliação de classes e reparação aos excluídos
A Onda Rosa latino-americana dos anos 2000 é tema de um extenso debate acadêmico dedicado à investigação da natureza deste fenômeno político. Parte da literatura interpreta este movimento como um ponto de ruptura com o neoliberalismo, devido ao maior ativismo estatal e orientação social dos governos deste período, incluindo estudos na tradição da EESA, vide Kotz e McDonough (2010).
Em trabalho mais recente, Feldman (2021) avalia a hipótese de que a experiência da Onda Rosa teria resultado na construção de uma ESA própria, regionalizada e reativa ao neoliberalismo. O autor estabelece um meio-termo entre o diagnóstico inicial de Kotz e McDonough (2010) e estudos mais recentes que compreendem a erosão deste ciclo político. Enfatizando o caráter insubordinado de iniciativas como a ALBA e a PetroCaribe, Feldman (2021, p. 127) conclui que o enfrentamento ao neoliberalismo não implicaria, necessariamente, uma ruptura com o capitalismo globalizado e seu padrão transnacional de acumulação, validando parcialmente a hipótese levantada.
Esta posição teórica contrasta com outra vertente da literatura acadêmica, não vinculada a EESA, que entende que este contexto histórico denota uma versão mais “humana” e “social” do neoliberalismo periférico. A Onda Rosa é caracterizada por uma reparação aos excluídos da modernidade globalizada do capitalismo tardio, sem romper os arranjos institucionais estabelecidos pela ordem neoliberal. A crise dos anos 2010 e o subsequente recrudescimento do neoliberalismo conservador seriam indicativos dos limites da “mudança dentro da ordem” promovida por este ciclo político (LOUREIRO, 2019).
Por definição, uma estrutura social de acumulação compreende os arranjos institucionais que proporcionam um processo estável de crescimento e acumulação de capital. Para este fim, é necessário neutralizar potenciais fontes de instabilidade, em particular o conflito distributivo entre capital e trabalho ((MCDONOUGH; MCMAHON; KOTZ, 2021). Uma interpretação coerente com a tradição da EESA deve, portanto, compreender o fenômeno da Onda Rosa como a maturação da estrutura social de acumulação neoliberal na América Latina. O acordo capital-trabalho firmado pelos governos deste período, associado a condições externas favoráveis, garantiu estabilidade e crescimento econômico dentro dos arranjos institucionais introduzidos pelo neoliberalismo.[7]
Sob um contexto de alta liquidez internacional, câmbio estável e forte demanda por exportações de commodities primárias, os governos da Onda Rosa lograram êxito na recuperação da economia da região, que viveu sua melhor década em termos de crescimento desde os anos 1970. Em todo o continente, observou-se a implementação e expansão de políticas públicas voltadas para os segmentos mais necessitados da população, além de maior geração de emprego e ampliação de investimentos nas áreas de saúde e educação. Neste contexto, a classe trabalhadora latino-americana pôde, após décadas de regimes ditatoriais, desfrutar da redemocratização e gozar de inclusão social, distribuição de renda, e participação ativa na sociedade de consumo (LOUREIRO, 2019).
A ampliação de políticas sociais comum aos governos da Onda Rosa tornou-se possível mediante a acomodação das demandas das elites nacionais. Favorecidos pela elevada liquidez externa, taxas de juros competitivas e maior demanda por crédito pessoal, bancos e instituições financeiras desfrutaram de grandes margens de lucro no período, mesmo em países que implantaram marcos regulatórios mais rígidos para o setor, como Equador e Bolívia (CLARK; GARCIA, 2019; FARTHING, 2019). No Brasil, o lucro líquido do sistema bancário triplicou entre 2003 e 2007 (ERBER, 2011, p 42).
As atividades agroindustriais e de extração mineral também foram destaque no período. Entre 1999 e 2013, a participação das commodities primárias na pauta exportadora latino-americana passou de 41% para 53% (LOUREIRO, 2018, p. 39). O desempenho recorde do setor intensificou tendências de reprimarização e perda de relevância dos segmentos industriais nas economias do continente. A prevalência do neoextrativismo na vanguarda da acumulação de capital tornou a região mais vulnerável e a dependente de uma demanda externa por bens primários que perde força nos anos 2010, provocando o colapso desse ciclo de expansão (KATZ, 2015).
A crise mundial de 2007-2008 provocou uma queda abrupta nos preços das commodities. O ciclo experimenta uma breve recuperação impulsionada pela demanda do mercado chinês, que se esgota ao longo da década seguinte. Como resultado, a América Latina assumiu uma rápida trajetória de desaceleração econômica, decaindo de um patamar de 6% de crescimento anual em 2010 para apenas 0,5% no ano de 2015 (CEPAL, 2015).
Bizberg (2021) argumenta que, paradoxalmente, os efeitos do fim do ciclo foram mais severos em países de forte mercado interno, e com menor grau de dependência da exportação de commodities como Brasil e Argentina. O autor atribui este resultado à fragilidade das coalizões políticas nestes países, que se mostraram incapazes de sustentar um projeto de desenvolvimento de longo prazo.[8] Em economias mais dependentes do extrativismo, os efeitos foram mistos, variando entre uma moderada desaceleração econômica (Bolívia, Peru), estagnação (Chile, Uruguai) e recessão (Equador, Venezuela).
Estudos para a economia brasileira na tradição clássico-marxista fornecem suporte empírico para a análise das transformações institucionais durante a ascensão e declínio da Onda Rosa. As estimativas de Marquetti, Hoff e Miebach (2020) fornecem uma dimensão os efeitos virtuosos do acordo capital-trabalho sobre o padrão de acumulação nas gestões do PT. Entre 2003 e 2007, observa-se uma elevação simultânea da parcela dos salários na renda nacional e da taxa de lucro líquido na economia, em um padrão de crescimento com distribuição de renda que se esgota após a crise financeira global.
Martins e Rugitsky (2021) apontam o fenômeno do “esmagamento de lucros” (profit-squeeze) como um componente central da queda no desempenho da economia brasileira nos anos 2010.[9] Em um contexto de lucratividade declinante, a política de valorização dos salários reais acima da produtividade do trabalho impôs um alto custo ao capital. As menores margens de lucro representam a base material para o acirramento das tensões de classe e o amplo apoio do empresariado a projetos políticos conservadores.
Em resumo, as políticas sociais dos governos da Onda Rosa, bem como a conjuntura externa favorável, foram determinantes para a estabilização do modelo liberal-periférico instituído nos anos 1990. Frente ao esgotamento deste padrão de acumulação, a mobilização das elites nacionais pleiteou o retorno a um estágio anterior de neoliberalismo. Em lugar do aprofundamento das políticas distributivas e investimentos públicos em áreas estratégicas, deu-se início a um processo de desmonte dos Estados nacionais e seus mecanismos de intervenção.
4 CRISE E GUINADA À DIREITA: a onda conservadora na América Latina
O caráter gradual do renascimento da direita conservadora em toda a América Latina não permite estabelecer um marco temporal único para o início deste fenômeno político. Convém destacar alguns movimentos que foram “divisores de águas” em seus respectivos países, tais como: os golpes de Estado em Honduras (2009) e Paraguai (2012), o governo Molina na Guatemala, a eleição de Maurício Macri na Argentina, o golpe parlamentar de 2016 no Brasil, o pleito eleitoral entre Pedro Pablo Kuczynski e Keiko Fujimori no Peru, o segundo mandato de Sebastian Piñera no Chile, a retomada do “Uribismo” na Colômbia, e o golpe de Estado na Bolívia em 2019.
O contexto político e econômico da ascensão das direitas latino-americanas possui notável singularidade em relação aos levantes conservadores em outras nações. Em países como Itália, Grécia e Hungria, organizações emergentes da direita radical adotaram uma retórica de contestação à ordem neoliberal, em especial às políticas de austeridade fiscal adotadas após a crise financeira global de 2007-2008. Utilizando discursos de ódio direcionados a trabalhadores imigrantes ou minorias étnicas, a extrema-direita europeia foi alçada ao posto de alternativa política viável ao neoliberalismo (LÖWY, 2015; COOPER, 2019).
De forma contrária, a Onda Conservadora está associada a um projeto de aprofundamento do padrão de acumulação neoliberal e sua agenda de reformas estruturais. Sua ascensão ocorre no contexto do esgotamento das condições que permitiram conciliar crescimento econômico e distribuição de renda nos anos 2000, e da subsequente crise de popularidade dos governos de centro-esquerda do período. Este fenômeno político se configurou como uma oportunidade histórica de validação do ideário neoliberal perante a sociedade, amparando-se no surgimento de lideranças carismáticas de direita, que frequentemente assumem uma retórica ofensiva direcionada às minorias, movimentos sociais e povos indígenas (BIROLI et al., 2020).
Os fatores que proporcionaram a ascensão da direita conservadora na América Latina estão relacionados tanto à conjuntura internacional, quanto a questões do âmbito regional. No plano global, a crise financeira de 2007-2008 engendrou uma crise de representatividade das democracias liberais, a partir da qual emergiram nomes como Donald Trump, Viktor Orbán e Narendra Modi. No plano regional, a desaceleração econômica dos anos 2010 estabeleceu as condições necessárias para que as burguesias nacionais construíssem acordos em favor de uma nova ordem liberal, pautada na reorientação do papel do Estado e na reversão das políticas que consagraram os governos da Onda Rosa (BIROLI et al., 2020; FELDMAN, 2021).
Como resultado, o giro à direita posiciona a América Latina em um estágio anterior do neoliberalismo, no qual a estabilidade sistêmica é obtida através de uma maior dominância do capital sobre o trabalho, apoiada por um Estado subsidiário aos interesses privados. Dessa forma, a Onda Conservadora representa um processo de institucionalização dos interesses empresariais na esfera pública (NERCESIAN; MENDOZA, 2021; FELDMAN, 2021).[10]
No plano cultural, a nova direita populariza uma combinação entre os dogmas do neoliberalismo - meritocracia, empreendedorismo, defesa do Estado mínimo – e uma retórica conservadora-cristã direcionada contra pautas de gênero, diversidade e educação sexual. A estes elementos, adiciona-se um sentimento anticomunista datado dos tempos de Guerra Fria, oriundo da rejeição aos governos de centro-esquerda da Onda Rosa, e a frequente apologia a armas, regimes militares e violações de direitos humanos (BIROLI et al., 2020).
Não obstante o caráter pluridimensional do fenômeno político analisado, esta seção destaca o âmbito econômico das transformações institucionais impostas pela Onda Conservadora, e que substituíram o acordo capital-trabalho dos anos 2000. O novo marco estabelecido é delimitado em duas categorias: i) o ajuste fiscal regressivo e ii) o ataque ao trabalho. O primeiro grupo compreende políticas de austeridade, privatização de ativos estatais e reformas pró-mercado que minaram a possibilidade de ampliação de políticas sociais, em favor de uma governança pública orientada por interesses empresariais. A segunda categoria engloba reformas trabalhistas e previdenciárias justificadas pela necessidade de redução dos custos do trabalho, além da suspensão de políticas públicas adotadas por governos anteriores.
4.1 O ajuste fiscal regressivo
Em meio a um quadro de desaceleração do crescimento e forte instabilidade política, diversos governos da região optaram por uma estratégia pró-cíclica de enfrentamento à crise. Neste sentido, países como o Brasil serviram de laboratório para a teoria da “austeridade fiscal expansionista”, cujos proponentes argumentam em favor de um choque fiscal no curto prazo como instrumento ideal para a retomada do crescimento no médio prazo (ARESTIS et al., 2021).
De acordo com Blyth (2018), a ideia de austeridade “colonizou o Ocidente” após a crise financeira global de 2007-2008. A rápida expansão dessa estratégia de enfrentamento à crise não tardou em ser acompanhada por críticas que ressaltam seus efeitos indesejados.[11] O autor denuncia o caráter intrinsecamente recessivo das políticas de ajuste fiscal, que impõem um custo desproporcionalmente maior às camadas mais pobres da população.
Parte considerável da literatura acadêmica utilizada como referencial para as medidas de austeridade adotadas na União Europeia e outros países foi descredibilizada, tanto em função de equívocos metodológicos nas estimativas apresentadas, quanto pelos resultados insatisfatórios de sua aplicação prática (BLTYH, 2018).[12] A despeito das evidências contrárias, essa orientação de política econômica foi extensamente divulgada pelos analistas políticos como a solução possível para a América Latina durante a crise dos anos 2010, vide o caso brasileiro (CARVALHO, 2018).
A agenda econômica dos governos Temer e Bolsonaro se caracteriza pela reversão dos termos da conciliação social promovida pelo Partido dos Trabalhadores (PT), com base em um diagnóstico que destaca o desequilíbrio fiscal como grande obstáculo para o crescimento. Entende-se que a maturação do capitalismo brasileiro e sua plena integração às cadeias globais de valor depende da redução do “Custo Brasil” ou, em outros termos, da criação de condições propícias para uma acumulação de capital estável. Como consequência, políticas sociais e encargos trabalhistas devem ser reduzidas a um nível mínimo, garantindo a solvência do Estado e estabelecendo um ambiente favorável para o investimento privado (FILGUEIRAS, 2020, p. 42-43).
O Novo Regime Fiscal condicionou eventuais ganhos para a classe trabalhadora à retomada do crescimento econômico, abdicando de uma estratégia ativa de geração de emprego e enfrentamento à miséria, e priorizando um ajuste fiscal extremamente oneroso aos mais pobres (MENDES, 2016; DE OLIVEIRA, et al., 2020). A este plano, soma-se a agenda de extinção de ministérios responsáveis por políticas públicas direcionadas ao pequeno produtor rural, medidas de fomento e incentivo à cultura, e fiscalização do trabalho infantil e análogo ao escravo (PEDREIRA et al., 2021; ROCHA, 2022). Como resultado, o Brasil atingiu o menor patamar de investimento público federal em 50 anos (DE OLIVEIRA et al., 2020, p. 68)
Ao eliminar subsídios concedidos aos setores de energia e transporte público, em paralelo a uma flexibilização tributária para grandes empresas, o governo Macri confirma sua opção por um ajuste fiscal regressivo que onera os trabalhadores argentinos em favor de privilégios para a classe empresarial. Sob esta orientação, o governo Macri desvaloriza o Peso Argentino em mais de 300% ao longo dos seus quatro anos de gestão, favorecendo setores exportadores também contemplados com a eliminação de tarifas de comércio internacional (CONSTANTINO, 2019).
A estratégia Macrista reforçou a dimensão financeira da dependência estrutural da economia Argentina, fato que se denota pela eliminação de mecanismos de controle de capitais e pela adoção de altas taxas de juros. Sob o regime de câmbio flutuante, as medidas adotadas deixaram o país mais vulnerável a ataques especulativos contra o Peso, provocando fuga de divisas e inflação elevada. A combinação dos fatores citados resulta um quadro de deterioração dos salários reais e perda do poder de compra da população em um contexto de crescente precarização e informalização do trabalho (CONSTANTINO, 2019; ZANOTTI; SCHORR; CASSINI, 2021).
No caso boliviano, o violento golpe de Estado ocorrido em 2019 teve latente motivação econômica, tendo contado com o apoio de segmentos do empresariado nacional e estrangeiro. O projeto político encabeçado por Jeanine Añez tornou explícito o seu desejo de reverter o modelo de desenvolvimento guiado pelo Estado que caracterizou os governos de Evo Morales. Convém destacar que a Bolívia não seguiu o receituário de ajuste fiscal durante o contexto de desaceleração econômica regional, apostando em uma estratégica contracíclica manutenção de políticas sociais e incentivos ao consumo. O maior nível de endividamento público não comprometeu a expansão da economia boliviana, que apresentou taxas de crescimento superiores a 4% até 2018 (LATJMAN et al., 2021).
Sob a justificativa de contenção do endividamento público e saneamento das contas da União, o governo ilegítimo avançou uma agenda de privatizações de empresas públicas e terras comunitárias. Mais da metade das estatais bolivianas foram identificadas como deficitárias, em particular aquelas que possuem função social como EMAPA e EBA, responsáveis por garantir soberania e segurança alimentar à população (LATJMAN et al., 2021, p. 84-85). O período também é marcado por uma nova orientação diplomática para o país, que se aproxima dos Estados Unidos em detrimento das relações previamente construídas com a China. O conflito entre o interesse norte americano nas reservas de lítio e a estratégia de exploração traçada por Evo Morales pode ser apontado como um dos elementos que propiciaram o golpe de Estado. (LATJMAN et al., 2021, p. 157).
Na Colômbia, a plataforma eleitoral de Ivan Duque sinalizou propostas de valorização do emprego e a eliminação de tributos. Uma vez eleito, o governo assumiu a direção contrária, avançando uma reforma tributária com o objetivo de ampliar a base de arrecadação a partir de uma redução significativa do teto de isenção do imposto de renda (ZAMUDIO, 2019; SUAREZ, 2020). No Chile, Sebastián Piñera anuncia um ambicioso plano de austeridade fiscal, com a meta de reduzir as despesas públicas em aproximadamente 4,6 bilhões de dólares ao longo dos quatro anos de seu segundo mandato (LEIVA, 2021).
4.2 O ataque ao trabalho
Acompanhando uma tendência global, países da América Latina avançaram projetos de reforma e desregulamentação trabalhista ao longo da década, sob a premissa de facilitar a contratação de mão de obra visando a retomada do crescimento. Após a crise financeira global de 2007-2008, diversas nações realizaram alterações em suas legislações trabalhistas, havendo forte tendência em favor de reformas que optaram pela desregulamentação ou corte de garantias laborais. No ano de 2015, um estudo da Organização Internacional do Trabalho analisou as mudanças legislativas pós-crise para 110 países. Os resultados indicam que políticas de desregulamentação trabalhista estão associadas a níveis mais baixos de emprego no período seguinte, especialmente quando realizadas em contextos recessivos (ADASCALITEI; MORANO, 2016).
As reformas laborais intencionam um maior gerenciamento da informalidade do trabalho, problema estrutural das economias latino-americanas com forte incidência entre jovens, mulheres e moradores de regiões não urbanizadas. Entre as similaridades das estratégias adotadas, denota-se a institucionalização de modalidades precarizadas de trabalho como o emprego terceirizado e autônomo, além do enfraquecimento de organizações sindicais e a eliminação de multas rescisórias. A estes elementos, soma-se a eliminação de práticas e mecanismos de negociação coletiva que garantiram maior poder de barganha para a classe trabalhadora durante o ciclo de expansão econômica dos anos 2000 (BIAVASCHI; DROPPA, 2021; ESPEJO, 2022).
O México foi um dos primeiros países da região a flexibilizar sua legislação laboral no pós-crise, aprovando uma reforma trabalhista ao final de 2012. A medida se mostrou pouco efetiva na entrega dos resultados previstos, havendo manutenção do déficit de empregos, a despeito do fortalecimento do trabalho intermitente e autônomo. Não obstante, a reforma logrou êxito em estabelecer limites para indenizações rescisórias, restrições ao direito de greve e outras demandas patronais (BIAVASCHI; TEIXEIRA; DROPPA, 2018).
O Brasil acompanhou a desregulamentação das normas instituídas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é uma pauta histórica da direita brasileira. A partir da redemocratização, esta bandeira política foi periodicamente levantada por organizações patronais, analistas da imprensa e partidos políticos, reafirmando a necessidade de reformular o marco regulatório do emprego formal no Brasil. A justificativa recorrente sustenta que a CLT, instituída nos anos 1940, não compreende a modernidade das relações de trabalho, representando um empecilho à contratação de mão de obra e, subsequentemente, uma fonte de desemprego (KREIN; OLIVEIRA; FILGUEIRAS, 2019). Este raciocínio está em linha com a fala do presidente eleito Jair Bolsonaro em dezembro de 2018, quando este afirmou que trabalhadores teriam que optar por menos direitos, caso quisessem ter empregos.[13]
Em estudo recente, Serra, Bottega e Sanches (2022) utilizam a metodologia de controle sintético para a avaliação do impacto da reforma trabalhista brasileira. Em comparação com outros países da América Latina que não adotaram políticas de desregulamentação laboral, não foi possível identificar efeitos significativos da reforma do governo Temer sobre a geração de emprego.
Poucos meses após sua aprovação, o modelo adotado por Temer foi citado como referência para o projeto de reforma trabalhista apresentado por Mauricio Macri, antes mesmo que se pudesse mensurar seus efeitos sobre a geração de emprego e as condições de trabalho no Brasil. Utilizando a terceirização como instrumento para instituir um maior controle do mercado de trabalho por parte das elites empresariais, o projeto macrista despertou forte resistência e mobilização das entidades sindicais, que conseguiram barrar a maior parte do projeto (BIAVASCHI; DROPPA, 2021).
A instrumentalização do trabalho precarizado também se fez presente entre as propostas do Plano Nacional de Desenvolvimento do governo Ivan Duque na Colômbia, despertando uma série de protestos em 2019. O governo propôs uma nova modalidade de contratação que burla convenções sindicais, permitindo vínculos empregatícios com remuneração inferior a um salário mínimo (ZAMUDIO, 2019; SUAREZ, 2020).
No caso do Chile, a pauta da “modernização” das relações de trabalho se fez presente no itinerário tanto de governos de direita, quando de centro-esquerda. O fortalecimento das centrais sindicais chilenas no século XXI criou as condições para a negociação de um acordo-capital trabalho junto a organizações patronais entre 2012 e 2013. Durante o segundo governo Bachelet, o projeto original de reforma, que incluía políticas de ampliação da cobertura social dos trabalhadores, foi gradualmente desmontado ao longo de um ano e meio de disputas no congresso que favoreceram a legislação original, implementada no regime Pinochet (LEIVA, 2021). Em seu segundo mandato, Sebastián Piñera buscou avançar uma reforma previdenciária e promover novos ajustes na legislação trabalhista, mas foi forçado a adotar uma linha mais “social” a partir dos protestos de 2019.[14]
Outras propostas de reforma laboral regressiva foram encaminhadas por governos de direita em países como Peru e Equador. Convém destacar também a reforma previdenciária avançada pelo governo Bolsonaro. Ao contrário de outros países da região, o Brasil ainda não havia passado por uma extensa reforma liberalizante em seu sistema de previdência social. Baseada em um sistema de capitalização individual, a proposta inicial do governo guardava notável similaridade com o modelo chileno implementado pelo regime Pinochet (OLIVEIRA; MACHADO; HEIN, 2019).
5 CONCLUSÃO
No plano econômico, a Onda Conservadora se caracteriza por um processo de aprofundamento do neoliberalismo latino-americano em seu projeto original, através de uma modernização regressiva dos arranjos institucionais do capitalismo periférico. Este projeto é centrado em dois eixos: a reorientação do papel do Estado, austero e subsidiário aos interesses do setor privado, e o maior controle sobre o trabalho.
Os arranjos institucionais forjados pela nova direita representam uma solução pró-capital para a desaceleração econômica pós-ciclo das commodities, condicionando eventuais ganhos da classe trabalhadora ao reestabelecimento da lucratividade empresarial. Em oposição às reformas impopulares, uma série de protestos irrompe em 2019, colocando em xeque a ordem liberal e acirrando tensões sociais em países como Chile e Colômbia. No mesmo ano, a derrota de Macri na Argentina sinaliza o início de um novo ciclo político para as esquerdas do continente.
Em 2021, a esquerda latino-americana conquista importantes vitórias em pleitos eleitorais ainda marcados pela expressiva representatividade do ideário liberal-conservador entre candidatos e votantes. Em nova derrota para o “Fujimorismo”, Pedro Castillo se elege no Peru com uma plataforma que combina elementos progressistas e pautas conservadoras. Em Honduras, Xiomara Castro se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo presidencial, encerrando o período de 12 anos do Partido Nacional no poder, iniciado com o golpe de 2009. No Chile, o ex-líder estudantil Gabriel Boric se tornou o mais jovem presidente do país em uma eleição marcada pela escalada do radicalismo de direita, representado na figura de José Antonio Kast.
O ano de 2022 será decisivo para uma potencial reversão da nova hegemonia liberal instituída na América Latina, em razão dos embates eleitorais entre centro-esquerda e direita radical na Colômbia e no Brasil. A despeito de um novo ciclo de alta nos preços das commodities, a desaceleração econômica da última década, acentuada pela crise da pandemia do COVID-19, estabelece condições pouco favoráveis para um novo padrão de crescimento sustentado na região. Frente a uma direita cada vez mais radicalizada e conservadora, a esquerda latino-americana enfrentará o desafio de romper com a lógica conciliadora que caracterizou os governos da Onda Rosa, e radicalizar seu projeto de sociedade justa e inclusiva.
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Notas