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CANDIDATOS EM 2018 análise sobre as proposições relacionadas às questões agrícola e agrária
CANDIDATES IN 2018: analysis of proposals related to agricultural and agrarian issues
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 2, pp. 512-525, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Artigos - Dossiê Temático


Recepción: 25 Julio 2022

Aprobación: 15 Noviembre 2022

Resumo: O objetivo deste artigo foi captar, ainda que de forma preliminar, as nuances da atuação dos partidos políticos nos processos das políticas agrícola e agrária no Brasil. Para tanto, num esforço de se limitar o escopo do estudo, analisa os programas de governo dos partidos que disputaram o segundo turno da eleição presidencial de 2018. A leitura desses documentos demonstrou que, enquanto o PSL não propõe qualquer alteração do cenário atual, a coligação PT-PCdoB-PROS sugere um mundo rural mais diverso e inclusivo e o ataque ao problema da concentração fundiária. O artigo constata,, dessa forma, a existência de proposições diversas entre os planos de governos analisados, o que demonstra a existência de projetos políticos distintos para a pauta agrícola e agrária brasileira. Além disso, é possível afirmar que tal distinção encontra reflexo nas bandeiras encampadas pelos diferentes partidos políticos.

Palavras-chave: Partidos políticos, políticas agrícola e agrária, programas de governo.

Abstract: The objective of this article was to capture, albeit in a preliminary way, the nuances of the performance of political parties in the processes of agricultural and agrarian policies in Brazil. Therefore, in an effort to limit the scope of the study, the government programs of the parties that contested the second round of the 2018 presidential election are analyzed. Reading these documents showed that, while the PSL does not propose any change to the current scenario, the PT-PCdoB-PROS coalition suggests a more diverse and inclusive rural world and an attack on the problem of land concentration. In this way, the existence of different propositions among the analyzed government plans was verified, which demonstrates the existence of different political projects for the Brazilian agricultural and agrarian agenda. In addition, it is possible to affirm that this distinction is reflected in the banners held by the different political parties.

Keywords: Political parties, agricultural and agrarian policies, government programs.

1 INTRODUÇÃO

O conceito de política pública não é único ou consensual, existindo diferentes definições a depender das perspectivas e bases teóricas que o autor possa ter. De qualquer forma, uma das visões mais difundidas e aceitas, e a que adotaremos neste ensaio, é a de Dye (1984), que afirma que política pública seria tudo aquilo que o governo escolhe fazer ou não fazer.

A amplitude do conceito de política pública, conforme essa definição, abarca um variado leque de assuntos ou temas com os quais o Estado pode se relacionar, como, por exemplo, educação, saúde, saneamento básico, proteção ao meio ambiente, entre tantos outros. Dentre os diversos aspectos aos quais o termo política pública pode se referir, aqueles mais intimamente ligados ao meio rural são englobados pelo que se convencionou identificar como questões agrícolas e questões agrárias. Essas duas categorias, embora dialoguem entre si e, muitas vezes, se tangenciem ou mesmo estejam imbricadas, não são equivalentes.

Silva (1998) afirma que questão agrícola diz respeito aos aspectos relacionados às mudanças na produção em si mesma: o que, onde e quanto se produz, enquanto questão agrária estaria ligada às transformações nas relações de produção: como e de que forma se produz. Mielitz Neto, Melo e Maia (2010), por sua vez, dizem que questão agrária se refere especialmente aos aspectos da organização e uso do espaço rural; aos impactos da atividade produtiva sobre o ambiente; às dinâmicas das populações no meio rural e entre esse e o urbano; às trocas de mão de obra e serviços ocorridas entre essas espacialidades; e, ainda, aos fluxos e cadeias dos mercados. Assim, é possível afirmar que política agrária seria o rol de intervenções promovidas pelo Estado com o objetivo de interferir nesses aspectos específicos, enquanto política agrícola, mesclando o conceito de Silva (1998) ao de Dye (1984) seria o conjunto de ações relacionadas à produção que o governo escolhe fazer ou não fazer.

As políticas agrícola e agrária, como quaisquer outras políticas públicas, não são simplesmente um grupamento de ações isoladas ou de intervenções marcadas de forma estanque no tempo e no espaço. São, ao contrário, o resultado de um processo contínuo e que está, de acordo com as perspectivas das metodologias de análise de políticas públicas mencionadas por Capella (2015) e Capella e Gonçalves (2018), sobre a constante influência da interação entre as ideias com as quais se envolvem, das redes nas quais está imbricada, e dos atores e das instituições e os diversos interesses aí existentes.

É natural presumir, portanto, que o desenvolvimento do meio rural brasileiro está sujeito à influência do resultado desse constante processo que dá forma às políticas agrícola e agrária adotadas nas sucessivas gestões do país. Nesse sentido, dentre os atores envolvidos em todos os processos de políticas públicas, de uma forma geral, e daquelas relacionadas às questões agrícola e agrária, em particular, merece destaque a atuação dos partidos políticos.

Considerando-se que os partidos desempenham um papel fundamental no processo de formulação e execução das mais variadas políticas públicas, o estudo sobre qualquer tema que necessite de algum tipo de intervenção do Estado deve, necessariamente, levar em consideração a visão dessas instituições sobre aquele tema específico. Isso é especialmente válido no cenário brasileiro, onde vigora o “Presidencialismo de Coalizão”, termo proposto por Sérgio Abranches (1988) e apresentado por Carvalho (2017) como um sistema balizador entre a aprovação ou não de uma política pública e no qual os partidos políticos atuam como um dos principais atores envolvidos.

Na esfera política, portanto, as disputas sobre as questões agrícola e agrária, assim como sobre quaisquer outras que sejam alçadas à agenda dos problemas públicos, são encampadas, em boa medida, pelos partidos políticos, que costumam se alinhar em torno de objetivos estabelecidos e dispõem de uma mínima base consensual. Mas como, na prática, isso se traduz na atuação desses partidos? Essa é a pergunta que serve de guia fundamental deste trabalho que tem como objetivo captar, ainda que de forma preliminar, as nuances da atuação dos partidos políticos nos processos das políticas agrícola e agrária.

Responder à pergunta proposta, no entanto, é um desafio considerável e iria requerer o uso de artifícios que permitissem identificar de uma forma minimamente objetiva qual o posicionamento ordinário dos diversos partidos brasileiros em relação aos mais variados temas que compõem a pauta agrícola e agrária nacional. Assim, buscando delimitar o escopo do estudo, neste ensaio será feita uma análise especificamente sobre os programas de governo apresentados pelas candidaturas que chegaram ao segundo turno da eleição presidencial de 2018.

Serão abordadas, dessa forma, as propostas contidas nos documentos “O caminho da prosperidade: Proposta de Plano de Governo” (PSL, 2018) e “Plano de Governo 2019-2022: Coligação o povo feliz de novo” (PT; PCdoB; PROS, 2018). O primeiro foi apresentado pelo candidato eleito, Jair Bolsonaro, à época filiado ao Partido Social Liberal (PSL). Já o segundo é da coligação que fora formada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Republicano da Ordem Social (PROS) e que tinha Fernando Haddad como candidato a presidente.

A partir da leitura desses programas se buscará identificar se existiam propostas para as questões agrícolas e agrárias e, em caso afirmativo, quais eram elas e qual o nível de detalhamento. E, a partir daí, da abordagem desses documentos que trazem a chancela de diferentes partidos políticos, se tenta verificar a hipótese de que existem projetos políticos distintos para as questões agrícola e agrária no Brasil e que tal distinção encontra reflexo nas bandeiras encampadas por diferentes partidos políticos.

Este ensaio contém, além desta introdução, três seções. Na primeira é feita uma breve abordagem sobre as questões agrícola e agrária no Brasil. Em seguida, são abordadas as propostas apresentadas nos planos de governo das candidaturas que chegaram ao segundo turno da eleição presidencial de 2018. Por fim, com base na análise a partir das percepções sobres essas propostas, a última seção traz as considerações finais do trabalho.

2 AS QUESTÕES AGRÍCOLA E AGRÁRIA NO BRASIL

O setor agrícola brasileiro, até meados do século passado, foi marcado pela dicotomia formada por agricultura de subsistência e as grandes áreas de monoculturas voltadas para a exportação, com destaque para os ciclos da cana-de-açúcar, da borracha e do café. Essa etapa foi sucedida por uma relevante mudança na nossa produção agropecuária, intensificada a partir da segunda metade do século XX. O país, embora continue tendo o mercado internacional como meta, passou a diversificar o que produzia, ampliou a área explorada, redimensionando sua fronteira agrícola, e, o que para muitos é o feito mais notável, viu os seus índices de produtividade quebrarem sucessivos recordes a cada nova safra.

Toda essa mudança foi promovida a partir do investimento massivo em pesquisa e tecnologia, o que pode ser atestado pela criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na década de 1970. A criação da Embrapa e o modelo de Assistência Técnica e Extensão rural implantado no país, fortemente orientado para a mera transmissão de tecnologia, são, de alguma forma, símbolos da opção do Estado no fortalecimento da agricultura brasileira a partir da adaptação dos métodos e técnicas da chamada “Revolução Verde” às condições edafoclimáticas de nosso país.

A escolha por investimento massivo em tecnologia, em alguma medida, se deu em detrimento da possibilidade de estruturação do setor formado por agricultores de pequeno porte. Se por um lado esse movimento trouxe inegáveis avanços para o setor agrícola e, consequentemente, para a economia do Brasil, por outro, excluiu uma parcela muito significativa de agricultores que, não tendo acesso aos meios necessários, foram alijados do processo de nossa modernização agrícola.

Presume-se, pois, que havia, assim como continua havendo, interesses em disputa na condução da política agrícola brasileira. Foi a correlação de forças entre os atores protagonistas nessa disputa, entre os quais certamente figuram os partidos políticos, que pautou as escolhas que foram dando forma a essa política. Assim, o cenário agrícola brasileiro, sendo consequência desse processo, é, em alguma medida, o resultado da atuação desses atores.

Se, por um lado, o Brasil testemunhou uma revolução de seu cenário agrícola, por outro, o mesmo não pode ser dito em relação ao panorama agrário. No país impera uma forte tradição que favorece a manutenção de grandes latifúndios e a intensa concentração fundiária o que remonta ainda aos tempos imperiais, quando foi promulgada a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, que dispunha sobre as terras devolutas no país (BRASIL, 1850).

O nosso cenário marcado pela concentração fundiária fez com que o debate sobre uma possível reforma agrária fosse, em vários momentos de nossa história, tema central no debate público. Neles, as alas mais progressistas e, mais recentemente, os movimentos sociais do campo se posicionavam favoráveis a uma intervenção do Estado que atacasse a existência de latifúndios e redistribuísse as terras de forma mais equânime entre a força de trabalho rural. Em oposição a essas bandeiras, a classe dominante, com maior grau de organização e com muito mais influência nos espaços de poder, embora numericamente inferior, defendia que as necessidades de transformações do setor agropecuário brasileiro eram fundamentalmente de ordem agrícola e que a nossa estrutura agrária prescindia de intervenções mais drásticas.

O saldo desse embate, embora francamente favorável aos que rejeitam a necessidade de mudanças profundas na estrutura agrária do país, até resultou em algumas iniciativas relevantes favoráveis à reforma agrária. É o caso da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida como Estatuto da Terra (BRASIL, 1964). Outro exemplo nessa linha é o artigo 184 da Constituição Federal de 1988, estabelecendo como competência da União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (BRASIL, 1988).

Esses e outros marcos não foram, no entanto, efetivos para mudar a realidade agrária brasileira. Nesse sentido, Silva (1996), analisando os desdobramentos do primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), lançado na década de 1980, demonstra que os resultados efetivamente alcançados ficaram distantes de atingir a meta proposta. Já Prieto (2017) afirma que o Estatuto da Terra e a proposição jurídica materializada na lei de uma reforma agrária da ditadura militar foi uma estratégia do Estado autoritário para o apaziguamento jurídico das lutas camponesas, sendo implementado prioritariamente em regiões de conflito fundiário, e, simultaneamente, garantindo aos latifundiários que a lei seria produzida, aprovada e discutida no Congresso, mas não implementada. Ou seja, embora do debate sobre o cenário agrário tenham surgido alguns instrumentos, em tese, capazes de atacar o problema da concentração fundiária, o arranjo de forças no país impediu que esses instrumentos se materializassem em mudanças concretas.

Como consequência do cenário de embate sobre os rumos das pautas agrícola e agrária no país, o que se tem observado, portanto, é, em linhas gerais, uma mudança significativa no panorama agrícola brasileiro, especialmente a partir da segunda metade do século XX, com a diversificação de culturas exploradas e o aumento constante dos índices de produtividade. Do ponto de vista das relações de produção, contudo, as transformações não foram tão evidentes, com o país apresentando um cenário de manutenção do seu horizonte agrário, onde o acesso aos meios de produção, com destaque para a terra e para os instrumentos de crédito e fomento, permaneceu muito concentrado nas mãos de poucos.

Essa alteração na produção agrícola, baseada no emprego massivo de tecnologia, acompanhada da rigidez da questão agrária ficou conhecida como modernização conservadora da agricultura brasileira e é fartamente abordada na literatura por autores como Graziano Neto (1985), Luís Castro (2017), Silva (1987), Coelho (2001), Ramos (2014), Silva (1998, 1996) e Prado Junior (1978). Assim, aos que se interessarem, é possível se aprofundar sobre o assunto recorrendo-se, entre outros, a esses pesquisadores.

Diante da trajetória abordada e considerando a relevância do setor agropecuário para a economia brasileira, percebe-se que as políticas agrícola e agrária foram e continuam sendo temas de disputas entre os diversos grupos de poder nos mais variados espaços da sociedade. Nesse cenário, o embate mais perceptível, atualmente e já há bastante tempo, costuma opor, de forma genérica, o que é caracterizado como agronegócio a uma agricultura de base familiar. Importante ressalvar, contudo, que essas duas perspectivas, além de não serem excludentes, podem ser, cada uma, decomposta em uma variedade ampla de subcategorias, todas elas com suas especificidades, demandas e potencialidades próprias.

Necessário destacar, também, que cada lado nessa disputa tem sua importância para o país, seja o agronegócio gerando divisas, fortalecendo a economia e contribuindo com a nossa balança comercial, seja a agricultura familiar cumprindo também um papel importante na produção de alimentos, além de oferecer ganhos para a preservação do meio ambiente e para a manutenção de uma parcela significativa da população na zona rural. Logo, as políticas públicas para o setor devem ser pensadas de modo a atender às especificidades desses dois polos, de modo que os avanços na pauta agrícola sejam preservados e continuem a ocorrer, sem que isso, contudo, ocorra ao custo do não enfrentamento aos problemas relacionados à questão agrária brasileira.

Arrematando o debate sobre a trajetória das questões agrícola e agrária no Brasil, é válido ressaltar que um dos fatores que contribui decisivamente para a pouca mobilidade da pauta agrária é a atuação de setores que historicamente ocuparam o poder, inclusive no Congresso Nacional, onde, a partir das discussões sobre a Constituição de 1988, passaram a se organizar como um grupo coeso conhecido como Bancada Ruralista. Um estudo a respeito da forma de atuação histórica desse grupo, suas origens, bandeiras e estratégias, foi realizado por Simionatto e Costa (2012).

A atuação da Bancada Ruralista, naturalmente composta por parlamentares, é uma clara demonstração da relevância da atuação dos partidos políticos no debate sobre as questões agrícola e agrária no Brasil. Essa atuação pode ser examinada a partir da composição da bancada, dos posicionamentos dos líderes, das proposições legislativas, do posicionamento em votações, entre tantos outros instrumentos. Na seção seguinte recorre-se a uma outra referência na tentativa de se identificar o posicionamento de partidos políticos frente às questões agrícola e agrária no Brasil: os programas de governo das candidaturas que disputaram o segundo turno da eleição presidencial de 2018.

3 A PAUTA AGRÍCOLA E AGRÁRIA NOS PROGRAMAS DE GOVERNO DOS PARTIDOS QUE DISPUTARAM O SEGUNDO TURNO NA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 2018

3. 1 O caminho da prosperidade: proposta de plano de governo (PSL, 2018)

O primeiro ponto a destacar sobre o plano de governo do PSL é a superficialidade. É um documento que aborda diversas questões relevantes, especialmente aquelas que pautaram o debate público durante a eleição de 2018, como, por exemplo, a segurança pública e a pauta de costumes, mas sempre de forma muito superficial. São apresentadas não exatamente propostas, mas intenções, valores que norteariam a candidatura e só raras vezes, para não dizer nunca, é feito algum detalhamento sobre como tais intenções seriam levadas a cabo. Essa característica pode ser observada também quando se trata de temas afetos às questões agrícola e agrária.

Outra característica que merece destaque, especialmente ao se considerar o tema de estudo proposto no presente ensaio, é que são poucas as referências a políticas voltadas para o setor agropecuário de uma forma geral. O programa permite concluir que não existe um projeto estruturado de ação envolvendo políticas agrícola e agrária. O que há, quando há, são proposições vagas e aparentemente desconexas. De qualquer forma, em que pese a ausência de uma articulação entre as intenções apresentadas, é possível captar algumas das diretrizes voltadas para o rural que são caras à campanha.

A primeira passagem do plano de governo a tangenciar alguma questão voltada às políticas do campo é feita na seção “Valores e Compromisso” e demonstra de forma enfática a defesa do instituto da propriedade privada, conforme transcrito a seguir:

Os frutos materiais dessas escolhas, quando gerados de forma honesta em uma economia de livre iniciativa, têm nome: PROPRIEDADE PRIVADA! Seu celular, seu relógio, sua poupança, sua casa, sua moto, seu carro, sua terra são os frutos de seu trabalho e de suas escolhas! São sagrados e não podem ser roubados, invadidos ou expropriados! (PSL, 2018).

O documento do PSL, portanto, deixa claro que a propriedade privada, não à toa escrita no plano de governo em caixa alta, é um de seus valores fundamentais. Essa iniciativa permite deduzir, de plano, que a reforma agrária[1] e o ataque ao problema da concentração fundiária brasileira não estariam entre as intenções prioritárias daquela campanha. Nesse sentido, chama atenção, também, os apontamentos feitos no quesito “Segurança e combate à corrupção”, onde se defende a reformulação do Estatuto do Desarmamento para garantir o direito do cidadão à sua legítima defesa e à de sua propriedade.

Ao abordar o tema “Inovação, Ciência e Tecnologia”, o plano de governo do PSL faz uma menção às perspectivas para o meio rural associadas a esse campo. No entanto, dificilmente a referência poderia ser mais lacônica:

Na agricultura, há espaço para trazer o conhecimento de Israel (PSL, 2018)

O trecho acima é a transcrição de tudo que o plano de governo fala a esse respeito. Pode-se afirmar, dessa forma, que qualquer análise sobre o que significaria na prática exportar a partir de Israel conhecimento para ser aplicado na agricultura seria mero exercício especulativo.

O plano de governo traz ainda a seção “Agricultura – Uma proposta de mudanças”. No entanto, ao contrário do que o título faz crer, não há qualquer proposta, muito menos no sentido de alguma mudança. A seção corresponde a um parágrafo do qual, com algum esforço, é possível extrair o entendimento de que a intenção apresentada é a de conferir maior autonomia aos agricultores. Não está claro, porém, a que exatamente se refere tal autonomia.

Além desse parágrafo, são apresentados alguns tópicos com o que passariam a ser as pretensas atribuições do governo federal, sem qualquer detalhamento de quais são as proposições para cada uma delas, conforme transcrito adiante:

· A nova estrutura federal agropecuária teria as seguintes atribuições:

Política e Economia Agrícola (Inclui Comércio)

Recursos Naturais e Meio Ambiente Rural

Defesa Agropecuária e Segurança Alimentar

Pesca e Piscicultura

Desenvolvimento Rural Sustentável (Atuação por Programas)

Inovação Tecnológica

· Tais atribuições seriam exercidas dentro da nova forma de gestão, através de indicadores que permitam identificar e monitorar o andamento de cada programa. (PSL, 2018)

O plano do PSL lista, ainda, o que chama de grandes demandas da agricultura:

· Segurança no Campo;

· Solução para a questão agrária;

· Logística de transporte e armazenamento;

· Uma só porta para atender as demandas do Agro e do setor rural;

· Políticas especificas para consolidar e abrir novos mercados externos;

· Diversificação (PSL, 2018).

Mais uma vez não é apresentado qualquer detalhamento a respeito desses itens. Não é feita qualquer menção sobre qual seria a intenção do governo para cada um deles. No tópico “Diversificação”, inclusive, é difícil saber a que exatamente o documento está fazendo referência. Além disso, merece destaque a referência a uma “solução para a questão agrária”. O tema é mencionado, mas não se explicita como o partido enxerga essa questão e, muito menos, qual seria a solução proposta.

Uma outra observação importante é que o plano de governo poucas vezes faz menção ao tema ambiental. Mesmo assim, quando o faz, é quase sempre no sentido de afrouxar o regramento então existente. Além disso, não se encontra referência à agricultura de base familiar. As intenções apresentadas, todas elas extremamente superficiais, são na maioria das vezes relacionadas à questão agrícola e do pouco que se pode associar à pauta agrária se sobressai a defesa da propriedade privada.

A leitura do plano de governo apresentado pelo PSL revela a falta de propostas estruturadas de políticas agrícola e agrária. Não se identifica qualquer intenção de mudança nos paradigmas que regiam e continuam regendo a agricultura brasileira. Não se identificam referências à agricultura familiar. Ou seja, é um programa que, não sugerindo qualquer alteração no status quo e cuja posição mais enfática é em defesa da propriedade privada, não afronta as classes dominantes, não propõe soluções para os problemas da pauta agrária e, por isso, além de não criar qualquer desgaste com o lado rico de nossa agricultura, o agronegócio, não oferece alternativas para as demandas da agricultura de base familiar.

3. 2 Plano de governo 2019-2022: Coligação o povo feliz de novo (PT, PCdoB, PROS, 2018)

O plano de governo da coligação PT-PCdoB-PROS, embora não tão superficial quanto aquele analisado na seção anterior, também não se configura como um documento com propostas extremamente robustas e com um nível de detalhamento plenamente satisfatório. Porém, de uma forma geral, é mais explícito quanto ao direcionamento que pretendia dar às diversas questões abordadas, ainda que muitas vezes desperte dúvidas sobre a viabilidade de suas proposições.

O documento, além disso, também dispensa maior atenção aos temas palpitantes durante a eleição, relegando a um segundo plano as questões agrícola e agrária. Merece destaque, contudo, a existência de uma proposta minimamente estruturada de políticas para o meio rural. Tal entendimento decorre da percepção de que as proposições aqui, embora também carentes de um maior nível de detalhamento, demonstram algum entrelaçamento entre si. Esse cenário, inclusive, facilita a compreensão de quais foram os valores ligados às pautas agrícola e agrária a nortear o posicionamento dos partidos que apresentaram o plano de governo.

A primeira menção a temas relacionados às questões do campo no plano do PT-PCdoB-PROS aparece em um tópico destinado a discutir uma transição ecológica, e é transcrito a seguir:

Viver bem no campo tem como pressuposto integrar três dimensões essenciais à transição ecológica: produzir alimento saudável como prioridade da agricultura familiar, gerando emprego e renda no campo e abastecimento com qualidade nutricional nas cidades; ampliar a oferta de serviços nas pequenas cidades do interior, evitando a evasão territorial em busca de direitos à educação, ao trabalho, à saúde e à cultura nos centros maiores; e democratizar a propriedade da terra com políticas de reforma agrária, fortalecimento da agricultura familiar de base agroecológica e da agroindustrialização da sua produção e ampliação do crédito e da economia solidária como instrumentos de desenvolvimento (PT; PCdoB; PROS, 2018).

Como pode se perceber, o programa de governo demonstra já de início, além do apreço à questão ambiental, atenção para temas como a agricultura de base familiar e perspectivas para seu fortalecimento, a qualidade de vida no campo, e a necessidade de enfrentamento ao problema da concentração fundiária através de políticas de reforma agrária.

A questão fundiária volta a ser abordada no capítulo dedicado à afirmação de direitos, mas especificamente no tópico destinado a tratar da promoção dos direitos dos povos do campo, das florestas e das águas. Nele, é assumido o compromisso não só de promoção da reforma agrária, mas de titulação de terras quilombolas e de demarcação de áreas indígenas, além de se destacar o enfrentamento à violência no campo. Em que pese a significância que é abordar cada um desses temas, se posicionando em relação a eles, não são detalhadas as ações que levariam a cabo cada um desses compromissos.

O tópico que trata da superação da pobreza e assistência social dedica, também, alguma atenção à agricultura familiar, destacada como uma alternativa para a superação da fome, conforme passagem a seguir: “[...] vamos promover a agricultura familiar, em bases agroecológicas, sem o uso de agrotóxicos, aproximando produção e consumo de modo a assegurar o acesso de todos e todas a alimentos de qualidade” (PT; PCdoB; PROS, 2018).

Essa passagem apresenta, assim, uma interessante proposta que permite conjugar os esforços de combate à fome ao fortalecimento da agricultura familiar, categoria formada, em grande parte, por pequenos produtores e que corresponde ao maior contingente do setor agrícola brasileiro. Essa é uma estratégia que aparece em outros momentos do plano de governo, como, por exemplo, quando o fortalecimento da agricultura familiar é citado como alternativa para a ampliação do emprego e dos níveis de renda no campo.

O documento traz ainda um capítulo sobre uma pretensa transição agroecológica. Nele, além de mais uma vez se destacar a opção por alterativas que estejam alinhadas aos cuidados com o meio ambiente, é inserido um tópico sobre as principais propostas para o meio rural brasileiro. É esse o ponto onde fica mais nítido que os partidos que compunham aquela coligação tinham uma proposta minimamente estruturada para o rural brasileiro.

Merece destaque, aí, a perceptível orientação para o fortalecimento do setor agrícola com base em práticas sustentáveis, no compromisso com a produção de alimentos mais saudáveis a partir de um maior controle sobre o uso de agrotóxicos, e na intenção de estruturação da agricultura de base familiar. O tópico destaca, ainda, a necessidade de democratização do acesso à terra, reconhecendo, uma vez mais, a relevância dessa demanda vinculada à questão agrária no Brasil.

Outro ponto que precisa ser ressaltado no tópico que apresenta as perspectivas da coligação para o rural brasileiro é a atenção dedicada, também, ao agronegócio. Os partidos que assinam o documento, reconhecendo a importância desse setor para agricultura de nosso país, elencam uma série de medidas para o seu fortalecimento como, por exemplo, a desburocratização do crédito rural e o investimento em infraestruturas, pesquisa e difusão de tecnologias.

O plano de governo da coligação PT-PCdoB-PROS, como é possível perceber a partir da abordagem apresentada, traz um conjunto de proposições que dialogam com as pautas agrícola e agrária. Além disso, embora se comprometa com o fortalecimento do agronegócio, não se exime de pontuar a necessidade de estruturação também da agricultura de base familiar, demonstrando que não se trata, necessariamente, de pautas excludentes. Ademais, aborda reiteradas vezes o principal drama da questão agrária brasileira, a concentração fundiária, sinalizando que entende ainda ser necessária uma política de reforma agrária no Brasil.

As proposições apresentadas pelos partidos dessa coligação não representam um caminho diametralmente oposto ao defendido pelo agronegócio brasileiro, uma vez que, inclusive, defende o fortalecimento desse setor, ainda que sob certa ressignificação de perspectivas. Mas, sem dúvidas, faz acenos no sentido de uma percepção contra hegemônica para a pauta agrícola e agrária de nosso país. Isso resulta em direcionamentos que se mostram, não só alternativos às escolhas que predominaram até hoje, mas mais diversos e mais inclusivos, sugerindo que a categoria formada pelos agricultores de base familiar merece um protagonismo até hoje nunca experimentado no que se refere à atenção dispensada pelo Estado.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os partidos políticos se mostram como importantes instâncias no debate sobre as políticas agrícola e agrária. São grupamentos que, fiéis aos apontamentos de estudiosos que examinam essas instituições, como Sartori (2005), são capazes de amalgamar posições e defendê-las no debate público.

Os programas de governos que disputaram o segundo turno da eleição presidencial de 2018, contudo, relegavam a uma condição de coadjuvante as propostas voltadas às questões agrícola e agrária em detrimento de temas como saúde, educação, economia e segurança pública, por exemplo. De qualquer forma, ainda assim é possível perceber que o programa da coligação PT-PCdoB-PROS, além de dar um pouco mais de atenção a esses temas, apresentava propostas mais estruturadas e que tendiam à promoção de uma política agrícola e agrária mais diversa, inclusiva e ambientalmente sustentável.

O programa do PSL, por sua vez, além de extremamente superficial, traz proposições desconexas e não sugere qualquer alteração no status quo. É razoável concluir, inclusive, que o movimento percebido nos últimos anos, de descaso com a agricultura familiar, é o reflexo natural da vitória de um partido político que em seu programa de governo apenas fazia menções pontuais à defesa da propriedade privada no campo, sem apresentar qualquer proposição contrária aos interesses do agronegócio.

Foi possível perceber, portanto, que a análise dos planos de governo permite identificar, ainda que de forma preliminar, os posicionamentos dos partidos políticos em relação às questões que compõem a pauta agrícola e agrária brasileira. Enquanto o plano do PSL não propõe qualquer alteração do cenário atual e se compromete com a propriedade privada, em contraposição à política de reforma agrária, o da coligação PT-PCdoB-PROS sugere um mundo rural mais diverso e inclusivo e o ataque ao problema da concentração fundiária. Essa percepção inicial pode vir a ser aprofundada com base em estudos futuros que recorram a outras fontes de consultas como, por exemplo, os atos de governos, os discursos de parlamentares, as proposições legislativas, entre outras. Além disso, novas abordagens podem envolver outros grupos partidários não analisados no presente ensaio.

Destaca-se, por fim, que a constatação da existência de proposições diversas entre os planos de governos analisados demonstra a existência de projetos políticos distintos para a pauta agrícola e agrária brasileira. Além disso, é possível afirmar que essa distinção encontra reflexo nas bandeiras encampadas pelos diferentes partidos políticos, os quais apresentam perspectivas diversas para as mesmas questões que historicamente permearam o meio rural brasileiro.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Importante destacar que no Brasil, ao contrário do difundido entre o senso comum, a reforma agrária, ou melhor dizendo, a desapropriação de imóveis para a criação de assentamentos rurais não se dá mediante a expropriação de terras. As áreas que irão ser destinadas ao processo de reforma agrária são avaliadas com base em critérios técnicos que visam definir o seu valor de mercado, o que deverá ser pago pelo Estado ao ex-proprietário da terra. Logo, a ideia de que a reforma agrária, ou a desapropriação de terras, no Brasil é uma afronta ao direito de propriedade privada é, no mínimo, enviesada.


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