Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Buscar
Fuente


NEOLIBERALISMO DE RESISTÊNCIA E ESPAÇO VIVIDO as possibilidades para ação pública e para hegemonia
RESISTANCE NEOLIBERALISM AND LIVING SPACE: the possibilities for public action and for hegemony
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 2, pp. 616-635, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Artigos - Dossiê Temático


Recepción: 25 Julio 2021

Aprobación: 14 Noviembre 2022

DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v26n2p616-635

Resumo: Este artigo faz breve percurso histórico do neoliberalismo brasileiro para pensar caminhos possíveis na atualidade, a partir da ideia de “neoliberalismo desde abajo”, de território, de espaço vivido e da ação pública. Por meio de estudo teórico, reflexivo e documental tem o objetivo de perceber a relação entre os modelos de neoliberalismo no território brasileiro e do neoliberalismo praticado no espaço vivido, considerado aqui como neoliberalismo de resistência. Revela que as desigualdades sociais não apenas reproduziram, mas, fundamentaram as políticas públicas e são decorrentes do processo do desenvolvimento capitalista. Essas desigualdades são intensificadas com o advento do neoliberalismo, todavia, são cotidianamente reinventadas no território, perturbam a hegemonia e podem ajudar viabilizar a ação pública.

Palavras-chave: Neoliberalismo de resistência, território, espaço vivido, ação pública, hegemonia.

Abstract: This article makes a brief historical overview of Brazilian neoliberalism in order to think about possible paths today, based on the idea of “neoliberalismo desde abajo", territory, lived space and public action. Through theoretical, reflective and documental study, it aims to understand the relationship between the models of neoliberalism in Brazilian territory and neoliberalism practiced in lived space, considered here as neoliberalism of resistance. It reveals that social inequalities have not only reproduced, but have been the basis for public policies and are the result of the capitalist development process. These inequalities are intensified with the advent of neoliberalism; however, they are daily reinvented in the territory, disturb hegemony, and can help make public action viable.

Keywords: Neoliberalism of resistance, territory, living space, public action, hegemony.

1 INTRODUÇÃO

A ideia central do artigo é apresentar como se deu o neoliberalismo no Brasil, seus efeitos nos diferentes campos, e perceber como esse modelo se reproduziu. Esse modelo sustenta hoje as políticas públicas do Estado e ajuda a garantir, na vertente capitalista, o neoliberalismo extremado no território brasileiro, contudo, é também constituído pelas formas de organização popular por meio do associativismo, cooperativismo e práticas informais de economia no espaço vivido. Assim, vamos observar, também, arranjos populares por meio de suas práticas cotidianas de sobrevivência e resistência.

Para encontrar caminhos com a crise mundial que vivemos, é importante compreender as dinâmicas locais de convivência e resistência populares construídas dentro de seus territórios. O argumento é que o entendimento das táticas de sobrevivência das práticas populares, ou seja, o neoliberalismo de resistência, se apresentam como potencializadoras de mudanças nas relações humanas no espaço vivido e perturbam a hegemonia do modelo neoliberal advindo de cima para baixo.

A proposta colocada para o artigo é desafiadora, pois está inserida tanto em meio a idas e vindas nas experiências no Brasil, quanto com as incertezas e complexidades teóricas dos conceitos trabalhados. A tentativa é contribuir com o pensamento sobre o neoliberalismo, as práticas no espaço vivido e nesse duplo movimento, perceber como possibilita a ação pública e impede a efetivação da hegemonia no território. A proposta é lançar luzes no tocante às políticas públicas no Brasil e nas possibilidades de mudanças com as práticas humanas cotidianas.

Na dinâmica mundial, latino-americana e nacional, é importante captar alguns movimentos para compreender como o Brasil se colocou e se coloca do ponto de vista do neoliberalismo e de suas opções políticas. É relevante compreender, também, como os movimentos das pessoas do andar de baixo, criaram e criam saídas dentro da lógica capitalista neoliberal que perturbam cotidianamente a hegemonia.

Ao observarem essa realidade, Gago (2014), Andrade (2019) e Cruz Freitas (2021) demonstram que no capitalismo, a política neoliberal implantada no processo de globalização evidencia os contrastes e diferenças que este sistema provoca dentro das sociedades, que atualmente estão todas ao seu alcance.

Sob essa ótica, no caso brasileiro, o neoliberalismo aprofunda as desigualdades estruturais, porque tem historicamente por escolha política de desenvolvimento: uma classe social a privilegiar, um péssimo modelo de distribuição de renda, com efeitos amplos e maléficos na questão social, em especial nas políticas públicas. O seu resultado é conhecido: aumento acentuado da pobreza e da miséria, que desemboca no aumento das desigualdades, em um movimento circular vicioso. Essa circularidade pode ser quebrada com o fortalecimento da ação pública. (CRUZ FREITAS, 2021)

Acompanhando esses efeitos, o modelo atual do desenvolvimento neoliberal brasileiro prega a privatização, diminuição da participação social, precarização das políticas públicas, impactando diretamente na dinâmica do desenvolvimento nacional. Esse movimento, característico dos modelos neoliberais segundo Carinhato (2008), Cruz Freitas (2021), Andrade (2019), ocorre de maneira diferente nos países, cidades e bairros.

Portanto, o desenvolvimento no neoliberalismo precisa ser considerado sob a luz da influência internacional do capital financeiro, da dinâmica política e social dos países hegemônicos, mas também, sob a ótica da dinâmica nacional carregada de sentidos, saberes, estratégias, táticas e práticas específicas do espaço vivido, que dão corpo aos modelos da cidade de carne de Sennett (2006). A cidade é aqui reconhecida como lócus das práticas democráticas e populares para efetivação da política e da ação públicas, neste particular, a partir do território e das ações do Estado (CRUZ FREITAS, 2018).

Assim sendo, o artigo se estrutura do seguinte modo. De início, apresentam-se as discussões sobre desenvolvimento a partir dos anos de 1930 e os modelos de neoliberalismo no Brasil desde a década de 1990, suas influências e modelos econômicos, políticos e sociais. Discutem-se esses processos, com o intuito de perceber a dinâmica do Estado no neoliberalismo e suas influências no âmbito das políticas públicas. Para depois, com o conceito de neoliberalismo de Gago (2014), vivências e reflexões sobre as práticas populares no DF, indicar as possibilidades para a ação pública e para a hegemonia.

2 ESPAÇO VIVIDO E DINÂMICA TERRITORIAL DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO (1930-1970)

O Brasil, entre as décadas de 1930 e 1970 foi um dos países com alto índice de crescimento mundial. Esse avanço substancial no processo do desenvolvimento brasileiro, do ponto de vista territorial, ocorreu de forma concentrada e a região sudeste logrou maior investimento e crescimento. À vista disso, as pessoas migraram para essa região em busca de trabalho, especialmente, as que viviam no campo.

Considerando que o desenvolvimento nacional não se deu pela via democrática, e por meio de políticas públicas com foco em avanços sociais e garantias de direitos para um enorme contingente de pessoas, o resultado foi, de acordo com Cruz Freitas (2021), a geração de riqueza nas mãos de poucos e geração de muita pobreza para a maioria, pois se criou uma grande massa de excedentes de força de trabalho nos centros industrializados.

Para a autora, a dinâmica desigual do desenvolvimento no território e de acesso aos bens públicos advindos desde o modelo de produção colonial, ao se deparar com o modelo de produção industrial nos grandes centros, não só reproduz como amplia, substancialmente, as desigualdades estruturais existentes. Tal desenvolvimento gerou nas distintas regiões do país desigualdades abundantes nos territórios, setores produtivos, econômicos e sociais, principalmente, com as diferentes receitas neoliberais.

As diferenças encontradas nos modelos neoliberais levaram alguns autores como Andrade (2019) a pensarem na existência de um neoliberalismo híbrido. No tocante ao desenvolvimento, Cruz Freitas (2021) revelou que o Brasil teve um desenvolvimento peculiar e de modelo próprio. Ainda nessa ótica, autoras como Gago (2014), foram levadas a perceber que o neoliberalismo, como ideia força, busca impor suas receitas de cima para baixo.

Contudo, na dinâmica social, as práticas populares de resistência estão indo, em parte, na contramaré da receita e criando no espaço vivido, o que a autora intitulou de “neoliberalismo desde abajo” e que estamos chamando de neoliberalismo de resistência.

Com as teorias e conceitos dos autores sobre desenvolvimento, neoliberalismo, território e espaço vivido é possível pensar que a inserção e a dinâmica das ideias advindas do modelo dentro dos países, cidades, bairros e tantos outros espaços são sempre diferentes. Dessa maneira, dependem da dinâmica do desenvolvimento, das escolhas políticas, das práticas populares, dos jogos de interesses da rede de atores e atrizes envolvidas, e dos campos de forças e disputas entre diferentes setores sociais.

A pluralidade dos atores e atrizes apontam para a necessidade do esforço conjunto para que possamos reconhecer o direito as cidades e construir cidades de direito, como também compreender o que ocorre no território, pois é nesse cenário que acreditamos habitar a potência da ação pública e da hegemonia. Autores como Lefebvre (2001) afirmam que desde a sua origem o território apresentou duplicidade de conotação, que é ao mesmo tempo material e simbólica, é bastante fronteiriça do sentido tanto de terra, território quanto de terror, aterrorizar. Para o autor, tem a ver com a dominação jurídica e política da terra e com a inspiração do terror, do medo. Em contradição, quem consegue se manter dentro no território pode realizar uma apropriação efetiva.

Por sua vez, Santos (1978) apresenta a centralidade do conceito de espaço para que possamos entender a dinâmica das mudanças territoriais. O autor o concebe como um conjunto de formas típicas de relações sociais antigas e novas, e por uma estrutura caracterizada por relações concretas que se manifestam através de processos e funções. Por ser estabelecido como campo em disputa, o espaço apresenta uma formação desigual.

É por esta razão que o autor afirma que existem diferentes formas de evolução espacial. O espaço possui formas vivas e seu modo de funcionamento permite, muito acesso para alguns grupos e cerceia esse acesso para muitos outros, porém, é por excelência o resultado da práxis coletiva e da reprodução das relações sociais, como também, se modifica por meio da dinâmica da totalidade.

Nessa acepção, o espaço é organizado pelas pessoas e como qualquer outra estrutura social é subordinado e subordinante. Portanto, “o espaço, embora submetido à lei da totalidade, dispõe de uma certa autonomia”. (SANTOS, 1978, p. 145). Para Lefebvre (2000), o espaço é um produto social e histórico é, fundamentalmente, constituído a partir da realidade social. “A chave para a teoria de Lefebvre é a compreensão de que a produção do espaço pode ser dividida em três dimensões ou processos dialeticamente interconectados. Lefebvre também os chama de “formantes” ou momentos da produção do espaço” (SCHMID, C., 2012, p. 91).

A partir desta percepção, Lefebvre (2000) define três momentos na produção social do espaço, pensado de forma tridimensional: o espaço concebido, o espaço percebido e o espaço vivido. O espaço concebido é o da representação do espaço, é constituído pelo pensamento hierarquizado, imóvel, distante do real. Essas representações do espaço estão focadas nos aspectos físico e material, têm como norte a ideia de mercadoria, devido à supremacia do valor de troca na racionalidade capitalista.

O espaço percebido se refere ao pensamento lógico formal, aos desdobramentos de práticas espaciais oriundas de ações, valores e relações específicas de cada formação social. Está diretamente relacionado aos aspectos mentais e corresponde a uma lógica de percepção da produção e da reprodução social. Já o espaço vivido revela as diferenças em relação ao modo de vida programado, está vinculado ao espaço das representações, ao desenvolvimento das relações sociais, é experimentado cotidianamente, sendo o espaço social sua expressão concreta.

Esta forma de análise espacial também remete à produção do espaço no processo da reprodução social. À vista disso, o espaço é considerado um campo de possibilidades de construção de um território que se opõe à ideia de homogeneidade e considera o uso do mesmo. Entretanto, essas dimensões espaciais em Lefebvre são mutáveis. Quase sempre o espaço vivido não corresponde imediatamente ao espaço concebido, eles possuem relação dialética, e entre um e o outro existe o espaço percebido. Esse movimento pode contribuir para o entendimento do mundo, e está permeado pelas representações do espaço e pelo espaço de representações (CATALÃO, 2010), ou seja, entre o espaço concebido e o vivido.

Todo esse movimento entre o desenvolvimento e a relação entre o território e o espaço vivido precisa ser revelado, essa é apenas uma pequena contribuição para pensar essa relação e o neoliberalismo dos anos de 1990, pois o desenvolvimento à moda brasileira contou sempre com a intervenção fundamental do Estado, e com o processo de internacionalização do mercado. No entanto, nos anos de 1980 houve perdas substanciais, o emprego industrial reduziu a taxas não conhecidas anteriormente, e nos anos 1990, o país opta por adotar uma receita neoliberal extremada.

3 O NEOLIBERALISMO ENTRA EM CENA NO BRASIL: as ideias de ontem e de hoje

Em seu artigo: “O que é o neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências sociais,” Andrade chama atenção sobre a potencialidade do campo de sociais no Brasil admitir não só o uso do termo, e sim tentar elaborar uma definição de neoliberalismo.

As questões sobre a validade do conceito, de seu embasamento teórico, do nível adequado de análise e dos fenômenos que ele designa estão no centro dessa disputa ao mesmo tempo acadêmica e política. Defendo a reabilitação do conceito pelas ciências sociais brasileiras devido à sua importância como saber estratégico (ANDRADE, 2019, p. 213).

O desafio aqui é considerar as práticas neoliberais do Estado e daí dialogar com as práticas populares, pois segundo o autor, o neoliberalismo é muito utilizado pelos movimentos políticos como parte de identificação dos seus adversários e construção de suas lutas, resistências, modelos econômicos informais e produtivos solidários. No caso brasileiro, perceber as suas especificidades torna-se relevante. A intenção é trazer para o debate as questões sociais, econômicas, culturais, políticas, para tentar compreender na dinâmica do neoliberalismo, o crescimento econômico, com diminuição e, às vezes, aumento das políticas sociais do Estado e seus impactos no âmbito social e territorial. Entender, também, as alternativas advindas do neoliberalismo de resistência praticado nos espaços vividos. E a partir daí verificar as possibilidades para a ação pública e para a hegemonia.

O neoliberalismo surgiu em contraposição aos ideais keynesianos, tais como, intervenção do estado na economia, pleno emprego, fortalecimento dos sindicatos e leis trabalhistas, ideias propostas como formas de combate a crise econômica iniciada em 1929. O neoliberalismo retoma a ideia do liberalismo clássico da autorregulação do mercado e da economia. Sendo assim, se constituiu em defesa da diminuição da ação interventiva do estado na dinâmica social e perpetuou ideologicamente na sociedade que um estado forte é oneroso.

A receita proposta foi privatizar, limitar o comércio e a indústria em suas negociações financeiras e no investimento, defender a não elevação dos salários. Assim, o fortalecimento dos sindicatos e das organizações são ameaças à economia porque aumentam o custo da força de trabalho e elevam os índices da inflação. Portanto, é necessário ter liberdade econômica com desregulamentação do trabalho, com diminuição da renda, flexibilização do processo produtivo e privatização dos bens públicos.

Na realidade brasileira, as ações dos governos que diminuíram ou aumentaram a intervenção do Estado, não significaram mudanças drásticas no lucro do capital e na ação neoliberal. Tal afirmação parte da ideia de que nem sempre o aumento do papel do Estado é garantia de combate aos males do capital, principalmente, se não for fortalecida a participação social nas decisões no tocante às políticas públicas.

Um exemplo claro do aumento do papel do Estado foi a elevação dos gastos sociais ocorridos nos governos progressistas a partir de 2003, entretanto, com foco no consumo e acesso aos bens materiais, significaram mais o fortalecimento de certo tipo de neoliberalismo de mercado do que combate ao modo de produção vigente. (DA CRUZ; CRUZ FREITAS, 2016).

A prometida guinada à esquerda não aconteceu, e depois de mais de uma década, esse modo de governo ajudou a garantir uma guinada à ultradireita, com subordinação intensa aos Estados Unidos. Por esse motivo, perceber os modelos de organização e produção nas práticas populares é parte da possibilidade de perceber outras formas de neoliberalismo e de construção de saídas ao capitalismo.

O que se observa na lógica capitalista brasileira é que para manter o funcionamento desse modo de produção, é preciso garantir os interesses da classe dominante e sua hegemonia. O discurso recorrente é que o Estado precisa em tempos de crise diminuir seu investimento em políticas públicas e investir no capital para se garantir direitos para todos. Em outros momentos, precisa investir na política social para garantir as receitas do capital e da classe dominante. Sendo possível afirmar que no Brasil, o Estado é tanto o indutor do desenvolvimento quanto do atraso. Diante disso, é fundamental discutir as diferentes formas de neoliberalismo nos governos brasileiros.

A entrada do Brasil no neoliberalismo se dá nos anos de 1990, momento em que a maioria das empresas nacionais foram privatizadas; esse é o caso da Telebrás, Embratel e da Vale do Rio Doce (POCHMANN, 2009). Com o percurso feito até agora, percebe-se que o neoliberalismo tem diferentes faces, além das questões econômicas, age também com certo padrão social, comportamental e político.

Tal ideologia atua na diminuição tanto dos direitos e no acesso às políticas públicas, e, ainda, na qualidade de vida da classe trabalhadora em nível mundial. Contudo, também desenvolve potencialidades nas práticas populares com novas receitas econômicas, sociais e humanas construídas no território, a partir do espaço vivido.

Como já enunciado, não se dá de maneira igual em todos os lugares e tempos, sempre depende das questões ligadas à capacidade da produção, do crescimento, das forças e formas em conflito e disputas, como também, das culturas e capacidade de inventividade locais. Por isso, cada país, cidade, bairro pode ser visto de maneira individual. É em função disso que Andrade (2019) propõe que as ciências sociais estudem o conceito de neoliberalismo. O autor, que em nossa visão discute o neoliberalismo com ideias de hoje, apresenta o recente debate das ciências sociais, ao afirmar que o neoliberalismo.

[...] tem o potencial de desfazer o isolamento acadêmico, pois atravessa diferentes disciplinas (sociologia, antropologia, ciência política, economia, geografia, história e filosofia), e de dialogar com as lutas sociais, sendo um termo utilizado por movimentos e atores políticos para identificar seus alvos (ANDRADE, 2019, p. 213).

Aqui, o intuito é contribuir com essa construção, ao buscar perceber na arte do fazer a vida dos que estão no andar de baixo, a relação entre essa dinâmica e as influências neoliberais. Como são dois movimentos distintos dentro de um mesmo processo, pensamos que a ação pública na acepção de Lascoumes et Le Galès (2012), poderá indicar possíveis saídas, pois a dinâmica acima, segundo GAGO (2014), não permite que a hegemonia se estabeleça com força total. Entretanto, antes de prosseguir com a discussão sobre o neoliberalismo de resistência, torna-se importante conhecer o neoliberalismo implementado pela prática governamental brasileira com ideias de ontem.

A política neoliberal adotada no Brasil nos anos 1990 gerou diversos conflitos, pois a tentativa de reproduzir a nível local o que ocorria a nível mundial, não se efetivou. Na dinâmica brasileira, de acordo com Pochmann (2009), foi possível observar em sua história, a formação de blocos econômicos, a integração subordinada aos mercados, com o foco, dentre outras coisas, no acúmulo histórico de riquezas dos países centrais e da classe dominante brasileira.

Para isso, o país se submeteu às receitas do Consenso de Washington em seus conhecidos 10 pontos e do FMI. Esse processo na América Latina e no Brasil sempre encontrou resistência da sociedade civil organizada ou não (CRUZ FREITAS, 2021), seja por meio de lutas por direitos, seja com novos arranjos produtivos e distributivos populares locais, que em nossa acepção se configuram como neoliberalismo de resistência.

O advento do capitalismo e seus diferentes processos no Brasil, um deles o neoliberalismo, não contribuíram para acabar com as desigualdades estruturais, que a cada dia aumenta os seus níveis. Em parte, isto ocorre porque em nosso modelo de desenvolvimento e desde os tempos coloniais, existe um reduzido número de pessoas e/ou empresas capitalistas que constituem o seleto grupo dos que tem terra, propriedade, acesso à cidade e dinheiro, ao passo que a maioria da população vive abaixo da linha da pobreza, em lugares sem políticas urbanas, muitas vezes trabalhando na informalidade ou no próprio negócio.

Sendo relevante destacar que

El neoliberalismo sobrevive sin embargo por arriba y por abajo: como renovación de la forma extractiva-desposesiva en un nuevo momento de soberanía financierizada y como racionalidad por abajo que negocia beneficios en ese contexto de desposesión, en una dinámica contractual que mixtura formas de servidumbre y de conflictividad (GAGO, 2014, p. 11).

Como citado anteriormente, essa dinâmica se aprofundou no Brasil na década de 1990, cabendo agora ver como se deu nos governos neoliberais conservadores e nos progressistas. Aqui é relevante registrar que programas sociais e de governo variam muito, particularmente, no Brasil. Neste artigo, a ideia não é ficar discutindo as diferenças em projetos estabelecidos e realizados de um ou outro governo, na realidade é ver o que mudou em princípios nas regras fundamentais e reformas feitas, por exemplo, nas políticas públicas e sociais com o advento do neoliberalismo.

A tônica central da década de 1990 era a drástica diminuição da intervenção do Estado, pois o objetivo era o liberalismo com engrandecimento do mercado, com foco na concorrência e na liberdade para a iniciativa privada. O discurso e as ações visavam a superioridade do mercado em relação as ações do Estado na América Latina e no Brasil. Posteriormente, a tônica se deu com o aumento no gasto social e na distribuição da riqueza sem, no entanto, diminuir o lucro do capital ou mudar as receitas de austeridade com ajuste fiscal. (DA CRUZ; CRUZ FREITAS, 2016).

Segundo Boito Jr. (2003), no Brasil ocorreu um processo político e social ao longo dos anos 1990 que resultou na implantação de uma nova hegemonia burguesa no país. Estava baseado no discurso e na prática do modelo capitalista neoliberal dependente, com investimento nas instituições do escasso e desigual sistema de proteção social. Sistema construído no Brasil entre os anos de 1930-1970, e que de acordo com as análises feitas por Draibe (2003), passou por um ciclo democratizante de mudanças em 1980 e outro nos anos 1990.

Para a autora, o sistema brasileiro de proteção social entre 1930 e 1970, pode ser descrito como um sistema nacional de grandes dimensões e complexidade organizacional. O sistema com base na ideia de bem-estar social integrava, quase na totalidade, todos os programas dos modernos sistemas de proteção social. Apesar dessa grande dimensão, a cobertura do sistema era insuficiente e a política pública foi implementada com base nas desigualdades.

Combinava de forma sensacional “[...] a concentração de poder e recursos no executivo federal com forte fragmentação institucional, porosa feudalização e balcanização das decisões.” (DRAIBE, 2003, p. 67). Em 1980 e 1990, as reformas se deram com diferenças substanciais em relação a outros períodos, tanto do ponto de vista econômico, político e cultural quanto aos princípios e valores que nortearam as suas dinâmicas, embora a ideia de bem-estar social tenha permanecido. A agenda da democratização do país iniciou na fase da Nova República e findou com a proclamação da Constituição de 1988.

Nesse período, as políticas públicas foram implementadas por meio da reforma do sistema de proteção sob uma dupla chave, que, segundo Draibe, ficou circunscrita em sua democratização e na melhora de sua eficácia. Portanto, se constrói nesse momento a ideia de politicas públicas fundadas nos princípios da equidade e da criação de mecanismos para ampliação da participação social, ou seja, a possibilidade da ação pública.

Houve a valorização do poder local por meio da criação de conselhos estaduais e municipais para acompanhamento e orientações no tocante às políticas públicas. Tal movimento foi potencializado pela descentralização do gasto social e a redistribuição no espaço territorial, que tinha se constituído com sérias desigualdades regionais. Houve ampliação do emprego e da renda em regiões que anteriormente tinham um baixo índice de desenvolvimento humano, regiões como o Norte e o Nordeste (POCHMANN, 2009).

Para Draibe (2003, p. 69):

A Constituição de 1988 consagrou os novos princípios de reestruturação do sistema de políticas sociais, segundo as orientações valorativas então hegemônicas: o direito social como fundamento da política; o comprometimento do Estado com o sistema, projetando um acentuado grau de provisão estatal pública e o papel complementar do setor privado; a concepção da seguridade social (e não de seguro) como forma mais abrangente de proteção e, no plano organizacional, a descentralização e a participação social como diretrizes do reordenamento institucional do sistema.

Essa dinâmica fortalece a possibilidade da ação pública e da hegemonia nesse campo. Porém, embora possamos registrar os avanços constitucionais no tocante à participação e aos direitos sociais, com maior intensidade no âmbito da saúde e da assistência, a partir da criação dos seus sistemas únicos, as reformas no país se deram mantendo as bases desiguais. Carinhato (2008) afirmou que para compreender esses processos que culminaram com a vitória do modelo neoliberal no Brasil, foi preciso realizar as seguintes análises:

i) a ideologia neoliberal e sua implementação no mundo, na América Latina e no Brasil; ii) os ajustes macroeconômicos engendrados a partir de uma determinada concepção de estabilização monetária; iii) a Reforma do Estado e suas determinações, como parte constitutiva de um projeto ambicioso de realocar o poderio estatal para a promoção do desenvolvimento; iv) e as mudanças ocorridas na concepção da política social a partir e ao longo do período citado (CARINHATO, 2008, p.38).

Ainda de acordo com o autor, Fernando Henrique Cardoso (FHC) em seu governo defendeu a necessidade de liberalização dos entraves que impediam o aparecimento do empresariado dinâmico e ganhou as eleições porque havia criado no governo Itamar, o Plano Real. O plano tinha seu discurso e ações focadas na estabilização da moeda e em dar fim na lógica da hiperinflação.

De acordo com Boito Jr. o primeiro governo do Luiz Inácio Lula da Silva (Lula), além de manter as bases do modelo capitalista neoliberal dependente de FHC, aprofundou alguns de seus aspectos.

Os membros da equipe governamental não tocaram na herança neoliberal de FHC: a abertura comercial, a desregulamentação financeira, a privatização, o ajuste fiscal e o pagamento da dívida, a redução dos direitos sociais, a desregulamentação do mercado de trabalho e a desindexação dos salários. Em relação a esse último item verifica-se uma omissão particularmente grave: o governo Lula não fez e não disse nada [...] sobre a desindexação dos salários imposta aos trabalhadores pelo neoliberalismo (BOITO JR., 2003, p. 1).

Nessa linha, Maciel (2010) acrescenta que já no segundo governo Lula, os interesses do grande capital e o programa neoliberal tiveram uma legitimidade só vista nos anos de 1990. O neoliberalismo alcançou estabilidade política sólida e se transformou no único projeto político a pautar as ações, inclusive, pautou a campanha eleitoral de 2010.

Essa situação permite afirmar que com o governo Lula, a hegemonia neoliberal atingiu uma qualidade superior, ao combinar a aplicação de uma política econômica favorável ao grande capital, com políticas sociais compensatórias que conferiram ao governo substancial apoio popular (DA CRUZ; CRUZ FREITAS, 2016). Tudo isso, junta-se a cooptação feita de grande parte dos movimentos sociais e suas organizações, além de impor à esquerda socialista uma situação de fragmentação e isolamento político (MACIEL, 2010).

Para estes autores, combinando a conjuntura externa favorável, com a manutenção de pontos chave da política econômica neoliberal, tais como regime de metas de inflação, política de superávit primário, taxas de juros elevadas, câmbio valorizado; com ampliação das políticas do Bolsa Família, Fome Zero, valorização do salário mínimo, o governo se beneficiou com as altas taxas de crescimento econômico e popular.

Ainda para os autores, ficou patente o abandono da promessa de campanha de Lula por um desenvolvimentismo moderado para adoção a partir de eleito em 2003, de um neoliberalismo moderado que passou a caracterizar a gestão do seu governo. Assim, o governo Lula conseguiu agrupar em torno de seu projeto, desde a burguesia nacional a grande beneficiária da política econômica, como parte da população beneficiária dos programas de transferência de renda, de habitação, de saúde, de educação; até parte da classe média, dos trabalhadores assalariados e do campesinato.

Para Da Cruz e Cruz Freitas (2016), no tocante ao governo Dilma Rousselff (Dilma) iniciado em 2011, logo em seus primeiros movimentos percebeu-se uma visão diferente no modo de governar em relação ao governo Lula. A visão do governo Dilma estava mais focada na austeridade no tocante à dinâmica da política macroeconômica, com reformas que nos fizeram retornar ao neoliberalismo extremado da década de 1990.

Ainda em relação ao governo Dilma, afirmaram Rossi e Biancarelli (2016, p.14): “a gestão macro nos últimos anos foi guiada por uma agenda “industrialista” e por uma política fiscal equivocada, que comprometeu as contas públicas e o crescimento econômico.” O governo, para esses autores, deixou de investir e atuar no desenvolvimento social para atuar com o financismo.

No ‘novo’ discurso liberal, parte-se da percepção equivocada de que o baixo crescimento é decorrente do intervencionismo do Estado; da seguridade social, das leis trabalhistas, dos aumentos de salários, os bancos públicos, etc. Desenvolvimento, na visão liberal, é um conceito esvaziado, entregue a um pretenso caráter natural do sistema capitalista, cuja operação, livre de interferências do Estado, levaria a uma alocação de recursos eficiente. Portanto, diferentemente do industrialismo, o financismo não se preocupa com a indústria, tampouco com a estrutura produtiva que deve ficar sujeita à espontaneidade das forças de mercado (ROSSI; BIANCARELLI, 2016, p.16-17).

Nesse sentido, o modelo financista foi guiado pelos limites como à discricionariedade do Estado, pregou a busca exclusiva do equilíbrio fiscal e a garantia da estabilidade dos preços. Essa concepção deixou de lado ações que poderiam ter amenizado as flutuações da renda e do emprego, tais como o investimento público. Como resultado, observou-se a queda no crescimento e uma piora de indicadores macroeconômicos, especialmente, os referentes as necessidades de financiamento do setor público e à dívida pública (CORRÊA, 2016).

Isso revela que a política financista e de austeridade do governo Dilma não foi o melhor caminho, pois visou investir no crescimento econômico e diminuir os gastos sociais. Arrocho fiscal e falta de investimento público são incompatíveis com a retomada do crescimento do país. Portanto, na prática, o governo Dilma foi impulsionado pela visão neoliberal extremada, e a diferença dos anos de 1990 foi o maior nível de investimento em políticas sociais, entretanto, bem menor que no governo Lula.

Mais uma vez, as ações trouxeram maior vantagem para o capital, com resultados negativos para os que vivem do trabalho. Neste ponto, as recentes mudanças nas leis trabalhistas no país são um singular exemplo dessa ideia força, e foi a partir da crise de 2008 que esses ventos neoliberais de modelo extremado sopraram com maior impulso no Brasil, culminando com um golpe administrativo da ultradireita, recentemente comprovado.

Sob o discurso hegemônico econômico conservador e reducionista do governo de Temer e continuado por Jair Bolsonaro, quando afirmaram que os problemas públicos são fruto dos gastos sociais do Estado, tornou-se necessário o ajuste fiscal como agenda central e pregou, outra vez, a austeridade como solução. Assim, o discurso ideológico centrado na austeridade embota o interesse público e entram em cena as reformas que só apontam para a redução das políticas públicas. (Moretti, 2019).

Para tanto, as regras fiscais – resultado primário, regra de ouro e teto de gastos – cumprem um papel decisivo, fazendo a despesa pública aparecer como excesso e criando um senso difuso de que o “país vai quebrar”, embora a restrição nada tenha a ver com a efetiva disponibilidade financeira, sendo antes produzida pelo arranjo fiscal vigente. Especialmente, a Emenda Constitucional no 95/2016, que congela despesas públicas por até vinte anos (teto de gastos), foi aprovada sob o argumento de que a economia só se recuperaria mediante um ajuste fiscal que retomaria a confiança dos investidores (MORETTI, 2019, p. 16).

O Brasil ainda paga um preço alto pela manutenção dos privilégios e a hegemonia de classe, pois esse fenômeno gerou distorções sociais, políticas e econômicas muito graves e atuou diretamente no aumento das desigualdades estruturais existentes desde a colônia. O neoliberalismo brasileiro atuou na ampliação do consumo, e é essa a força no capitalismo que sempre exige que se procurem novos mercados para lucrar. Contudo, essa mesma força pode gerar outros tipos de relacionamentos econômicos e de consumo, o enraizado nos espaços vividos advindos das práticas populares.

Atualmente, o neoliberalismo brasileiro está para a classe dominante e o capital internacional quanto o neoliberalismo da classe trabalhadora informal, migrante, imigrante e pobre está, possivelmente, para um novo modelo de economia, política e trocas dentro dessa mesma sociedade. Porém, de acordo com os estudos de Gago (2014), sob uma ótica humana, econômica e política diferente.

4 NEOLIBERALISMO DE RESISTÊNCIA E AS PRÁTICAS POPULARES NO TERRITÓRIO

Com um exemplo claro dos novos arranjos, modos de vida e formas práticas de ação no neoliberalismo nos instiga Gago (2014), a

[...] pensar el neoliberalismo como una mutación en el “arte de gobernar”, como propone Foucault (2007) con el término gubernamentalidad, supone entender el neoliberalismo como un conjunto de saberes, tecnologías y prácticas que despliegan una racionalidad de nuevo tipo que no puede pensarse sólo impulsada “desde arriba”. Foucault ha dicho que la innovación radical del neoliberalismo es que se trata de una forma de gobernar por medio del impulso a las libertades (GAGO, 2014, p. 9).

Para a autora, o que pode parecer uma contradição ao olhar rápido e acostumado à leitura vinda de cima para baixo, na realidade se apresenta como uma maneira nova, sofisticada e complexa de engendrar de forma íntima e institucional,

[...] una serie de tecnologías, procedimientos y afectos que impulsan la iniciativa libre, la autoempresarialidad, la autogestión y, también, la responsabilidad sobre sí. Se trata de una racionalidad, además, no puramente abstracta ni macropolítica, sino puesta en juego por las subjetividades y las tácticas de la vida cotidiana. Como una variedad de modos de hacer, sentir y pensar que organizan los cálculos y los afectos de la maquinaria social (GAGO, 2014, p. 10).

As ações de resistência, modelos de produção, troca e consumo sustentável são processos dos que estão muitas vezes no andar de baixo, e que em todos os momentos, em especial os de crises e conflitos, organizam a sobrevivência de maneira informal e solidária. E assim, constroem suas alternativas de resistência dentro do território e nos espaços vividos, apesar das receitas do neoliberalismo exógeno e endógeno.

A partir das crises dos anos 2000, na Argentina, a autora observou o que se apresentou de novo nas alternativas populares de sobrevivência na dinâmica neoliberal. Então, estudou o neoliberalismo e percebeu como os modelos dos que estão no andar de baixo nos ajudam a pensar a dinâmica do mesmo e, quem sabe, podem ajudar na mudança necessária no modo de vida e de produção no território, como também da hegemonia.

Para pensarmos o que há de novo nesse horizonte das práticas populares é relevante conhecer também, o que afirma Sennet (2003) em sua obra .Carne e Pedra”.

O autor observou que

A cidade tem sido um lócus de poder, cujos espaços tornaram-se coerentes e completos à imagem do próprio homem. Mas também foi nelas que essas imagens se estilhaçaram, no contexto de agrupamentos de pessoas diferentes — fator de intensificação da complexidade social — e que se apresentam umas às outras como estranhas. Todos esses aspectos da experiência urbana — diferença, complexidade, estranheza — sustentam a resistência à dominação (SENNETT, 2003, p. 24).

Essa resistência à dominação, é vista por Gago (2014) quando estuda as práticas populares na Argentina. Por sua vez a obra Carne e Pedra nos possibilita perceber como se estabeleceu a relação entre o espaço urbano e a experiência corporal na sociedade ocidental.

A ‘carne’ e a ‘pedra’ traduzem, como nexos de um encontro, um horizonte de historicidade que, justamente por ser material ao extremo, não pode ser somente objetivo. O apelo constante na obra de Richard Sennett ao modo como se experimenta corporalmente a cidade, é ainda uma requisição do ‘fazer falar’ as vivências do espaço urbano (ANDRADE, 1996, p. 293).

Nessa mesma linha, na obra de Gago, o “fazer falar” está na experiência cotidiana das práticas populares de sobrevivência na cidade, dentro do sistema atual, e ao mesmo tempo quebrando com sua lógica hegemônica. A autora aponta que o neoliberalismo de baixo para cima é ambivalente e de luta, e que não permite a efetivação da hegemonia porque “não a aceita plenamente, mas, que tampouco outorga às políticas neodesenvolvimentistas e de Estado a aptidão para substituí-la” (GAGO, 2018, p. 9).

A autora percebeu a metamorfose do neoliberalismo a partir das economias populares, especificamente, as situações em que a exigência popular abriu uma temporalidade de revolta e, ao mesmo tempo, tenta o reconhecimento e estabilização por cima. Por essa dinâmica vemos a ambivalência e a luta pela hegemonia no neoliberalismo.

Nessa lógica, é possível perguntar: Quais valores e ações estão sendo resgatados e/ou criados no andar de baixo para que se possa combater, para mudar, o modelo de sociedade? Como a economia informal e a organização popular se organizam para enfrentar dentro do neoliberalismo formas de ação e valores diferentes? Um dos possíveis caminhos é resistir dentro do território e construir no espaço vivido. Contudo, apesar da resistência, são dois tipos de neoliberalismo, e a intersecção para a construção das saídas pode se dar pela ação pública e pela hegemonia.

As práticas populares no território são pontos e ações políticas fundantes para compreender o neoliberalismo de resistência. A dinâmica das aprendizagens e ações práticas do viver em uma sociedade, cada vez mais excludente, nos revela os acontecimentos nos espaços vividos.

O estudo de Madeira e Veloso (2007) sobre as feiras permanentes do Distrito Federal (DF) permite analisar e pensar possíveis caminhos. O DF, em especial, o Plano Piloto (PP), surge sob a égide da racionalidade do planejamento no tocante à ocupação do espaço urbano. Numa alusão à obra de Sennett (2003), as autoras revelam que esse planejamento da cidade de pedra foi alterado

[...] pelas populações que vieram de diversas partes do Brasil para viver, trabalhar e construir a “cidade de carne”. Essas diferentes populações imprimiram padrões culturais trazidos de sua região de origem, dotando a cidade de núcleos e redes de relações que passaram a ser referência para as muitas levas de migrantes que, desde então, não pararam de chegar à cidade (MADEIRA; VELOSO, 2007, p. 9).

Nesse sentido, houve mudanças não concebidas na paisagem do PP; essas surgiram espontaneamente e com o tempo foram sendo consolidadas. Sem previsão no planejamento inicial da cidade, as pequenas ruas foram aparecendo nas entrequadras comerciais. Essas nomenclaturas se impuseram pelo uso do espaço vivido e construído coletivamente no território, a cidade de carne.

Lugares saíram do anonimato, das siglas dos endereços brasilienses e ganharam nomes próprios, como a rua da Igrejinha que fica na entrequadra sul da 307/308, a rua das Farmácias que fica no setor hospitalar sul, a Colina que se localiza na Universidade de Brasília. Além desses exemplos, é possível perceber rituais coletivos, e, dentre tantos, citamos os shows na Casa do Cantador em Ceilândia, festas religiosas, festas juninas, feiras nas diferentes cidades como a Feira do Guará e da Ceilândia, o Mercado do Núcleo Bandeirante e a caminhada noturna da lua cheia[1].

Essa última é composta por um grupo que reúne diferentes pessoas, sem limites de idade. Esses espaços foram sendo conquistados e reinventados, mesclados e têm se firmado como uma força coletiva e solidária, no conjunto de bens simbólicos em circulação na sociedade contemporânea da cidade de pedra modernista. No tocante às feiras, ambientes que conhecemos e convivemos desde criança, em diversas partes da cidade e do país, existe relevante heterogeneidade étnica, regional e cultural. As feiras são lugares de trânsito, de cultivo de tradições, de trocas, de sabores regionais, de trabalho, de saberes tradicionais e de táticas e estratégias diretamente ligadas ao como fazer e como agir para viver coletiva e solidariamente o dia a dia na cidade.

De acordo com Gago (2018, p. 349), essas relações nos “permitem entender o neoliberalismo de maneira diferente de como é entendido usualmente.” Ali sobrevivem conhecimentos e práticas sociais, tecnologias artesanais que constituem parte importante do repertório da cultura e das práticas populares brasileira. (MADEIRA; VELOSO, 2007).

Tradições de relevância cultural e histórica são conhecidas e reconhecidas nestes espaços em que,

[...] o sentimento de pertencimento a uma localidade torna-se possível no ato de compartilhar uma história e um mesmo gosto estético, culinário, musical, de referências culturais, o que representa um patrimônio valioso para numerosos grupos que nas feiras encontram um lugar para transmissão de tradições. Tradição – entendida em seu sentido etimológico, “dizer através de” – diz respeito a um repertório de saberes e práticas que são transmitidos de geração a geração, e remete a valores ancestrais comuns (MADEIRA; VELOSO, 2007, p. 23).

A feira, portanto, não é apenas o lugar de comércio, troca, compra e venda de mercadorias, ela também é o espaço de encontros, culturas, afetos, contradições e conflitos. Importante salientar que a feira está inserida na dinâmica econômica e pode se adaptar à sociedade de consumo. No entanto, internamente, mantém a troca pelo uso como modo de aquisição de mercadorias, valoriza as relações pessoais, culturais, sociais, religiosas e as tradições.

A troca não se limita às mercadorias e bens, inclui a de saberes, sabores, tecnologias sociais e patrimoniais. Nesse sentido, assegura na jornada a capacidade de reinventar, adaptar e transformar os conhecimentos, as práticas sociais e a sociedade, a cidade de carne. Nas feiras e nas ações práticas coletivas populares, ou ao que Gago chamou de economias barrocas, os espaços são constituídos de subjetividades reconhecidas e solidárias. Alí, o neoliberalismo ocorre, todavia, tem uma face social e estrutural diferente da publicizada na mídia e nas instituições. As pessoas se apoiam, se chamam pelo nome, fazem seus negócios, trocam, vendem, “catiram”, “gambiram”, fazem rolo, sem a lógica perversa da economia tradicional, sem a competição e o individualismo egoísta.

Essas dinâmicas, nas feiras e bairros, ocorrem de maneira não regulada e são bastante flexíveis. Convivem também com as formas tradicionais de trocas de bens e produtos, que podem ser percebidas com o uso de vocabulário próprio

[...] que inclui termos como ‘catira’, ‘gambira’, ‘escambo’, ‘fazer rolo’ indica a permanência de práticas centenárias de troca de bens ou produtos, enraizadas nas classes populares desde o Brasil Colônia. Esse vocabulário também denuncia a origem regional das práticas e dos grupos sociais que as mantêm vivas e ativas (MADEIRA; VELOSO, 2007, p. 26).

As feiras e festas populares são por excelência, no DF, pontos de encontro e referências para os migrantes, sendo constituídas de uma rede de relações baseadas no parentesco, vizinhança, conterraneidade, associações comunitárias religiosas e de bairros. No DF, essa dinâmica se deu desde o início, pois aqui chegaram pessoas vindas de todas as regiões e estados do país, em que o local de encontro, reconhecimento e identificação com valores, saberes e sabores, práticas culturais coletivas, solidárias se deram nas feiras e festas populares, ambientes prenhes de afetividades.

Tais ações vencem o isolamento, o anonimato, o individualismo, a calculabilidade do tempo e do dinheiro, elementos típicos das sociedades modernas e neoliberais. Nesses espaços, os relacionamentos por serem muito próximos são profundamente sentidos, emocionais e afetivos, como também convivem com conflitos, diferenças e interesses. As relações são estabelecidas por uma ordem diferente do que estamos acostumados a trabalhar no âmbito das ciências, por isso a capacidade conceitual das ciências sociais foi invocada por Andrade e aqui aceita como um desafio teórico prático, para que possamos olhar o fenômeno como ele ocorre.

Na acepção gramsciana, temos que observar a prática concreta e daí fazer o relato do que vimos e não do que gostaríamos ou estamos acostumados a ver. Entretanto, ainda temos que estudar e observar no Brasil e na rede de atores e atrizes, essas formas de associação dos que estão em baixo e suas estratégias e táticas de sobrevivência e resistência. Para isso, não podem ser considerados de maneira estática e dentro de uma racionalidade já concebida e difundida, e sim, dentro das relações sociais concretas e vividas, para Cruz Freitas, dentro da pedagogia da luta por direitos. Os estudos de Gago, Andrade, Lefebvre, Cruz Freitas, Santos e Sennett e tantos outros, nos oferecem as ferramentas teórica e metodológica para além da dinâmica tradicional e racional nas ciências e na vida.

5 CONCLUSÃO

A dinâmica do desenvolvimento brasileiro foi diferente dos demais países do mundo e teve peculiaridades que o explicam e dão novos significados ao processo. O neoliberalismo implementado no país, seja esse nos governos conservadores ou progressistas, sempre utilizaram o Estado como o grande investidor. A diferença foi que em alguns períodos a classe do andar de baixo entrou na dinâmica do consumo, teve acesso aos bens e a participação social. No entanto, a concentração de renda, o lucro do capital e da classe dominante foram mantidos e muitas vezes elevados.

O neoliberalismo com base no consumo, no privilégio de classe e no esvaziamento das políticas públicas não atua no desmonte da lógica capitalista. Por sua vez, as práticas populares de sobrevivência e resistência permitem que as relações de afetividade, coletividade, culturas, formas econômicas e tradições transformem a dinâmica do espaço vivido e perturbem a efetivação da hegemonia burguesa no território.

Nesse movimento contraditório, é possível perceber as possibilidades de avanços por meio da ação pública, aqui vista como a que poderá garantir que atrizes e atores heterogêneos e em conflito, possam construir saídas consensuadas para os problemas públicos vividos e garantir os direitos fundamentais de forma participativa e democrática. A potencialidade da ação pública se faz presente, pois viabilizaria o processo do encontro das diferentes concepções e práticas neoliberais.

O neoliberalismo do Estado e neoliberalismo de Resistência podem permitir a emancipação pela tríade espaço concebido, espaço percebido e espaço vivido, pois a ação pública discute que o Estado não seja único no âmbito das decisões e implementações de políticas e de resolução dos problemas públicos. Percebemos essa possibilidade no espaço urbano.

Portanto, a ação pública, o estabelecimento de instrumentos de gestão participativa, de tecnologias de controle social e a construção de políticas públicas intersetoriais não só reforçariam como criariam redes tanto de solidariedade quanto de controvérsias, que poderiam interferir e reconfigurar as ações e os discursos sobre as cidades, as políticas públicas e a dinâmica do neoliberalismo no território, a partir do espaço vivido e do aprendido com a luta.

Essas memórias e práticas vividas no território e na cidade, ao mesmo tempo de carne e de pedra, embora possam estar engendradas nos indivíduos, pertencem simultaneamente a todo o grupo, pois ao formar a rede criam referências de base comum em que todos em um mesmo espaço se reconhecem e se apoiam. Assim, se reconhece o neoliberalismo de resistência e se permite a construção de novas saídas fundamentadas no saber produzido pela experiência vivida.

Para isso, é de fundamental importância perceber como o desenvolvimento brasileiro foi praticado sob a égide do neoliberalismo receitado de forma exógena, à luz do neoliberalismo praticado de forma endógena, como também apresentar algumas práticas de sobrevivência, aprendizagens e resistências populares locais, que influenciam no estabelecimento da hegemonia e podem contribuir com o fortalecimento da ação pública e a viabilidade da democracia radical.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Daniel Pereira. O que é o neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências sociais. Revista Sociedade e Estado, v. 34, n. 1, 2019.

ANDRADE, Marta M. Prática do espaço, experiência do corpo: Sennett e a cidade. Anais do Museu Paulista. SP. 1996.

BOITO JR, Armando. A hegemonia neoliberal no governo Lula. RJ: Editora Revan, 2003.

CARINHATO, Pedro Henrique. Neoliberalismo, reforma do estado e políticas sociais nas últimas décadas do século XX no Brasil. AURORA,ano II, n.3. 2008.

CATALÃO, I. Brasília, metropolização e espaço vivido: práticas especiais e vida quotidiana na periferia goiana da metrópole. SP: Editora UNESP, 2010. Disponível em: http://books.scielo.org/id/jbt6b/pdf/catalao-9788579831058-02.pdf. Acesso em: 9 mar. 2016.

CORRÊA, Vanessa P. A virada neoliberal de Dilma. Mudança de cenário, crescimento distributivo e arrocho fiscal. Revista Política Social e Desenvolvimento. 2016.

CRUZ FREITAS, Urânia Flores da. Desenvolvimento à Moda Brasileira: Dinheiro e Desigualdades na Educação. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021.

DA CRUZ, Matheus; CRUZ FREITAS, Urânia Flores da. Programas de governo no Brasil: as estratégias econômicas do Partido dos Trabalhadores em debate. VII Congreso GIGAPP. 2016.

DRAIBE, Sônia. A política social no período FHC e o sistema de proteção social. Tempo Social. USP.2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v15n2/a04v15n2.pdf

GAGO, Verónica. La Razón Neoliberal: economías barrocas y pragmática popular. 1. ed. Buenos Aires: Tinta Lomón, 2014.

LASCOUMES, P., LE GALÈS, P. Sociologia da Ação Pública. Maceió: EDUFAL, 2012.

LEFEBREV, Henri. O direito a cidade. SP: Centauro, 2001.

LEFEBREV, Henri. La productuion de l´Espace. Editora Economica. 4. ed. 2000.

MACIEL, David. “Melhor impossível”: a nova etapa da hegemonia neoliberal sob o Governo Lula. Universidade e Sociedade. DF, ano XX, n. 46, 2010.

MADEIRA, Angélica. VELOSO, Mariza. A cidade e suas feiras: um estudo sobre as feiras permanentes de Brasília. Brasília, DF: IPHAN. 2007.

MORETTI, Bruno. Reformas ou Austericídio? A economia discursiva do corte de gastos. In: Desmonte do Estado e Subdesenvolvimento: riscos e desafios para as organizações políticas públicas federais. J. Celso Cardoso JR. et al. Brasília: Afipea, 2019.

POCHMANN, Marcio. Qual desenvolvimento: oportunidades e dificuldades do Brasil Contemporâneo. SP. Publisher Brasil, 2009.

ROSSI, Pedro e BIANCARELLI, André. A virada neoliberal de Dilma. Do industrialismo ao financismo. Revista Política Social e Desenvolvimento. 2016.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. SP: Hucitec, Edusp, 1978.

SENNETT, Richard, Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. RJ. Record. 2003.

SCHMID, C. A Teoria da Produção do Espaço de Henri Lefebvre: em direção a uma dialética tridimensional. Revista GEOUSP – espaço e tempo, SP, n.32, pp. 89- 109, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br. Acesso em: 19 dez. 2015

Notas

[1] Para saber mais acesse; https://caminhadanoturna.com/caminharcom-ogrupo/


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por