Entrevista
ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NA AMÉRICA LATINA: crises, polarizações e resistências Entrevista Especial com o Professor Dr. Lúcio Fernando Oliver Costilla
Entrevistadora: Quando penso em eleições na América Latina, eu fico imaginando, quer dizer, a eleição é um momento do processo político, até chegar na eleição propriamente dita, tem um caminho largo. Não dá para discutir aqui, focando nesses processos como se deram na América Latina e no Brasil. Então eu vou focar em pensar as eleições no começo do século XXI e pensando como que a América Latina, ou parte dos países desse continente, depois de um surto de políticas neoliberais deram uma virada, para governos progressistas, na região: Venezuela, Argentina, Brasil, Honduras Bolívia, Equador. Como você pensa esse momento histórico do começo do século XXI e a implementação de políticas neoliberais e, depois, a eleição de governos progressistas?
Lúcio Fernando Oliver Costilla: Eu enxergo assim: o aparecimento desses governos foi resultado de muita resistência e luta popular. Mas, num outro sentido, foi também uma primeira manifestação da crise hegemônica da globalização neoliberal que já desde então, no início do século XXI, manifestava seu caráter desigual, excludente e bárbaro, especialmente para os países da nossa região. Os governos progressistas desse primeiro ciclo acreditavam na administração da crise; que eles podiam administrar a crise e apostavam num pacto de conciliação de classes, sem reformas profundas nas instituições e nas sociedades. A única exceção foi na Venezuela, com Hugo Chávez, que considerava ser preciso e possível avançar numa aliança anti-imperialista e anticapitalista entre os novos governos progressistas, de então, e em seu próprio país. Mas, ele estava equivocado ao pensar que mudanças profundas na economia, na política e na cultura das elites progressistas e nas sociedades, não precisam de acumulação de forças; de uma luta de posições prolongada e de mudanças na organização e na consciência popular. Houve muita confiança de que o espontaneísmo, das resistências populares, poderia se transformar em projetos emancipadores pós-neoliberais. Houve, então, um voluntarismo, misturado com confiança, nos outros países, na democracia neoliberal.
Eu acho que poderíamos caracterizar esse primeiro ciclo progressista como um ciclo de aprendizado de que contradições históricas e problemas históricos não se resolvem nem com confiança nas instituições que ajudaram nessas contradições nem com voluntarismo. Foi um momento de grande aprendizado ainda que, em muitos aspectos, inconsciente, tanto das forças políticas quanto dos movimentos sociais populares. Então eu penso que foi uma primeira manifestação da crise hegemônica global, das dificuldades pra novas forças populares encontrarem verdadeiras soluções e foi uma escola de luta, como o intelectual crítico René Zavaleta fala. Foi uma escola de luta para as forças políticas progressistas e de esquerda e para as sociedades. Assim, poderíamos caracterizar aquele momento também muito importante: com os governos progressistas a América Latina apareceu como um ator político mundial, no mundo, e num mundo em que, em geral, o neoliberalismo continuava a impor suas políticas. Aqui houve criação, resistência e aprendizado. Assim eu caracterizo esse primeiro ciclo que terminou, como todo mundo sabe, mal. Terminou mal, mas foi um grande momento de aprendizado.
Entrevistadora: Deixa-me fazer uma pequena provocação. Aqui no Brasil ficou muito modal referir-se aos governos petistas como governos de conciliação de classes. Aí a minha provocação é no seguinte sentido: num governo de conciliação de classes o espontaneísmo e o voluntarismo das massas acabam perdendo, porque a elite não é espontaneísta e muito menos voluntarista. Mas, é possível pensar numa relação neste processo que é um processo eleitoral sem grande mobilização de massas, de organização popular, que eu acho que na Venezuela tem uma caraterística um pouco diferente, não tinha muita história de movimentos sociais na Venezuela, mas se cria uma organização de massas ali; no Brasil é o contrário; é possível ter governos diferentes, dada essa conjuntura, que não seja de conciliação de classes? E, mais ainda: - como é que se dá essa participação popular de fato em uma estrutura de Estado que é uma estrutura de Estado burguês? Se pensarmos nas propostas, principalmente no Brasil, nos anos oitenta que eram chamados de orçamentos participativos, mas o orçamento participativo não definia o orçamento para as questões centrais, então no orçamento participativo a população participava de uma forma muito pequena e “floricultura”, eu diria quer dizer, a praça, uma rua, era esta a participação popular.
Lúcio Fernando Oliver Costilla: Isso é verdade. Mas também não era possível uma confrontação, nos outros países, como aquela que começou a propor Hugo Chávez; isso não era possível nos outros países com governos progressistas. Teria sido compartilhar esse voluntarismo em piores circunstâncias porque as instituições, nos outros países eram mais fortes, tinham mais legitimidade, mais consenso. O problema é que, essas políticas, necessárias, de conciliação de classes não se acompanharam de elevação da politização popular, da educação, da organização popular que preparasse e acompanhasse as possíveis políticas de mudanças mais profundas, reformas profundas, nas próprias instituições. Por isso eu digo que foi uma experiência de achar que administrar a crise sem incluir a sociedade, sem politizar as massas, sem reformar as instituições, foi um aprendizado pelo negativo. Porque os dirigentes políticos desses países, da Bolívia, de Honduras, do Brasil, não tinham clareza, vamos dizer em geral, de como estava acontecendo a luta de classes num sentido profundo.
Qual era a relação de forças real e não perfilaram uma política de curto, médio e longo prazo. Não tinham essa concepção. Lembro-me que, inclusive, alguns falavam de um processo quase evolutivo, de quase cem anos, para transformar os países. Isso é deixar fora todo o conhecimento da teoria política crítica que sabe que a luta de classes não é evolutiva, que o processo de desenvolver capacidades, de mudar as situações, mudar as forças, é um processo de criar uma vontade coletiva nacional-popular para ir mudando a situação. Além do mais, ainda nesse período sobre o qual estamos falando, do primeiro ciclo, a força das oligarquias globais, transnacionais, que dirigiam a globalização, ainda era muito forte e não aparecia e, inclusive, se mostrava a fortaleza dessas políticas oligárquicas mundiais se mostravam que esses governos do primeiro ciclo progressista tinham pouco conhecimento e pouca crítica das contradições do capitalismo mundial, das contradições que tinha um projeto de crescimento econômico baseado somente no aumento das exportações, do agronegócio, do extrativismo, das exportações. Tinham pouco conhecimento crítico, pouco manejo crítico desse mundo global, que estava ainda dominando, com muita força a globalização.
Entrevistadora: Você fala da crise da globalização excludente, ou seja, do capitalismo nessa fase neoliberal; agora, me parece que, depois de passado esse momento, principalmente na América Latina, não se conformou um movimento crítico nem uma mudança que fosse realmente uma mudança cultural, nas formas de organização popular. Então, vamos ver, em certo momento, essa volta de implementação de políticas neoliberais, e aí com golpes baseados em questões, ou melhor pautas, moralistas. Foi assim no Paraguai (2012), na Bolívia (2019), Honduras (2009), Brasil (2016) e também no Equador, que me parecia ter um movimento indígena, principalmente, mais organizado, mais arraigado, mas o contrário disso. Quer dizer, não dá pra entender apenas como uma traição individual o vice do Rafael Correia fazer todas as mudanças que fez, mas uma política imperialista que se volta para a América Latina nesse período. Mas no caso brasileiro especificamente, os governos petistas apostaram na formação de uma burguesia nacional sem atentar que nunca existiu uma burguesia nacional brasileira, que tornou esse trabalho, um pouco vazio. As relações e os interesses da burguesia brasileira estão relacionados com o imperialismo. Mas a pergunta é: como que você vê essa tensão na relação sociedade civil e governos nos países da América Latina? E uma pequena provocação, é algo que ultimamente tem me incomodado muito que são as políticas, os movimentos, que eu vou chamar aqui, entre aspas, de “movimentos identitaristas”, que a identidade étnica, a identidade de gênero acaba prevalecendo em relação à questão mais profunda, como você mesmo colocou, que é a luta de classes e ter uma percepção real dessa luta que, inclusive, assume características étnicas, de gênero e por aí vai. Como é que você avalia isso?
Lúcio Fernando Oliver Costilla: Nesse primeiro ciclo progressista eu penso que houve um grande aprendizado, tanto das forças políticas quanto da sociedade. E houve uma derrota popular de um projeto que eu já caracterizei como espontaneísta e voluntarista em alguns aspectos. Não houve um processo real de democratização nas relações de poder, isso temos que colocar claramente, foi importante porque mudou a situação econômica, política, cultural de setores muito excluídos das massas populares; foi importante, mas não houve um processo de democratização das relações de poder, de mudança nas relações de poder, o aprendizado foi isso: que o poder real, quando se tem só políticas de conciliação de classes, sem levar a atividade política das massas, sem fazer reformas profundas, se mantém nos grupo econômicos, políticos e ideológicos dominantes, historicamente dominantes, eles é que são também dirigentes da sociedade. Agora, esses grupos dominantes se apavoraram com algumas medidas de políticas públicas, de políticas sociais; e, de regulação econômica, se apavoraram embora tenha mantido um crescimento econômico e uma acumulação extraordinária de capital, mas se sentiram sem ter os postos de comando que estavam acostumados a ter.
Então, isso gerou uma sensação de “estamos sendo colocados fora do comando político nos nossos países”, e isso era inaceitável, para eles, porque têm uma história de domínio, uma história secular de domínio, “como é que agora outras forças estão dirigindo o país e para onde”. Então, isso apavorou, e gerou uma dificuldade para ter essa espera, essa flexibilidade que eles tiveram no início do século para outra força dirigir o governo, achavam que podiam confiar no seu poder histórico e deixar um momento de melhora na sociedade para voltar ao poder. Desse modo, eu acho que as medidas que nós, do ponto de vista crítico, achamos limitadas, muito limitadas, muito conciliadoras, de políticas públicas, políticas sociais, econômicas, para eles era uma situação difícil de aceitar. Lembremos que políticas dessa natureza foram totalmente derrotadas na Grécia, por exemplo, e, também, na Grécia criaram um medo muito grande dessas oligarquias. Agora, do ponto de vista das massas populares, essa derrota popular que levou ao fim desse primeiro ciclo progressista mostrou que o poder real não só estava nas classes dominantes históricas. Isso não é tão difícil de entender: o poder real também estava nas instituições e na cultura social e política construída durante décadas. Nesse sentido, é interessante porque mostrou algo que não estava claro para as massas populares, que o poder de domínio das classes historicamente conservadoras e oligárquicas também está nas instituições e na cultura. Aí é que aparece esse problema que você colocava, as minorias que achavam que podiam ter direito de serem respeitadas com as suas identidades, que também podiam mudar essas formas de opressão sem considerar esse poder mais geral, que existia na sociedade, também tiveram um aprendizado. Eles compreenderam que nenhum avanço nos novos direitos “identitários” poderia acontecer se não mudavam ao mesmo tempo as relações de força e se as massas populares não tinham um projeto de transformação. Então, isso foi muito importante também para essas minorias que hoje estão entendendo que, mudanças nas políticas “identitárias” só com verdadeiros movimentos de mudanças sociais e políticas podem acontecer e se afirmarem.
Eu penso que o problema com essas lutas identitárias não é a luta mesmo pelas reivindicações identitárias porque realmente expressam contradições importantes da sociedade, por exemplo o feminismo, o movimento negro, o movimento por respeito às diferenças sexuais etc., o movimento ambiental, tudo isso, expressa contradições reais, mas as suas lutas têm que estar vinculadas ao problema do sistema social capitalista, a uma crítica desse sistema social e das formas de dominação. Então, também foi um aprendizado para essas minorias entender que o problema não estava só nas suas problemáticas identitárias parciais, que o problema estava nessas formas de poder econômico, de poder político e cultural geral que existiam na sociedade. Por conseguinte, eu entendo que isso gerou também um aprendizado para essas lutas que apareciam muito soberbas, sem considerar as relações de poder gerais na sociedade, ou ‘vamos mudar a opressão, os diferenciais de poder das mulheres’, sem mudar as relações gerais da sociedade. Aqui essa derrota popular também foi uma derrota dessas lutas identitárias parciais e foi, de novo, uma escola de lutas para esses componentes da sociedade que agora podem se vincular mais, com projetos gerais de transformação política, social e cultural da sociedade.
Mas estamos num momento em que, depois desse ciclo progressista, voltou a dominar nas políticas da região, o ideário da democracia liberal burguesa restrita, mas sem nenhuma capacidade de recuperar a hegemonia das classes dominantes; temos que entender também que, após a derrota do primeiro ciclo progressista, voltou essa democracia liberal burguesa, mas, deteriorada, totalmente deteriorada, sem hegemonia. As forças políticas sustentadoras dessa democracia liberal, por exemplo no Brasil, de 1989 para 2013 foram ultrapassadas pelas forças de ultradireita, que não apreciavam o pacto democrático liberal como necessário. Quer dizer, aí houve uma deterioração total da hegemonia desse projeto democrático liberal. E quem olhou com precisão essa deterioração foram as forças de ultradireita, que então começaram a depreciar as formas democrático-liberais, que achavam que não eram necessárias, quer dizer, também um erro dessa ultradireita, mas era uma convicção dessa dela. E eles consideravam que tinha chegado já o momento de políticas de força, de domínio autoritário militar da sociedade, uma concepção de muita irracionalidade reacionária.
A surpresa foi que houve uma adesão de grandes massas a esse projeto autoritário de ultradireita. Essa adesão de grandes massas foi possível pela subalternidade histórica das massas populares, pelo autoritarismo histórico e pelas religiões evangélicas, pentecostais, da teologia da prosperidade, que têm gerado um senso de comunidade para os carentes, e também porque outras forças históricas importantes flertaram e foram cúmplices desses setores reacionário, por exemplo, parte das forças armadas foram cúmplices dessa virada à ultradireita e achavam também que tinha chegado o momento dessas políticas de força. Na Bolívia, por exemplo houve um golpe de Estado de forças militares, no Brasil, o militarismo reapareceu com muita força como o salvador da pátria, o poder moderador, superior etc. Desse modo, o eixo político desses países que tinham vivido o primeiro ciclo progressista se deslisou à ultra direita: no Paraguai, em Honduras, no Brasil, em Bolívia, mas não só nesses casos em que a crise tenha alcançado um nível muito alto, também avançaram em países que mantiveram uma situação institucional forte, por exemplo, como no Uruguai, no Chile, na Colômbia, que eles achavam que podiam manter instituições democrático-liberais de controle social e acumulação acelerada do capital, também aí a ultradireita começou a achar que estavam muito próximas a um domínio de força militar. Então, é assim que houve esse caso mais conhecido e irracional de, na Colômbia, a população ter votado contra a paz. Imagina como o pensamento de ultradireita estava dominando.
Perante todo esse quadro não houve resistência suficiente de movimentos populares: de movimentos de educadores, de movimentos de bairros, de movimentos de favela, de movimentos indígenas também, de comunidades que sofreram a derrota política e estavam sentindo o endurecimento e o descaso das políticas ultraneoliberais que acrescentavam nas contradições. O domínio já escancarado do neoliberalismo, e das políticas do capital, geraram uma resistência, de novo espontânea, mas já com aquele aprendizado que nós falamos. Aí apareceu uma situação que nós poderíamos caracterizar de equilíbrio catastrófico e de crise orgânica do Estado. Tal crise se manifestou numa polarização das forças políticas, e nas próprias sociedades civis, entre as políticas de barbárie, fascistas, locais e apoiadas por grupos fascistas internacionais, que têm políticas de luta pela conquista do poder pelas forças de ultradireita, na Ucrânia, na Hungria, na Espanha, houve um aumento dessas forças de ultradireita, que começaram a ter inter-relação com a ultradireita da Argentina, dos Estados Unidos, do Brasil, do México etc. Essa situação de polarização levou a uma contraposição muito importante nesse equilíbrio catastrófico entre políticas de barbárie e por outra parte de um agrupamento de forças de segmentos civilizatórios, nas forças políticas democráticas, isso é muito importante.
Quer dizer, a crise civilizatória era tão profunda, que forças políticas democráticas tinham aceito situações totalmente inadmissíveis, em termos civilizatórios, por exemplo como aconteceu no Brasil em 2018. Como era possível aceitar contender eleitoralmente com um candidato, cujo slogan principal era uma política de ódio e de armas, e, cuja palavra de ordem era “vamos recuperar as armas, vamos pedir para os militares estarem atentos para usar políticas de força, vamos incluir sete mil militares nos postos de comando do Estado”, como? Isso é uma política bárbara, de desprezo à Democracia, às instituições, às minorias identitárias, aos negros, às mulheres, aos indígenas. Era inadmissível, mas essa situação, inadmissível, apareceu dominando com clareza nessa polarização, nesse equilíbrio de forças. Daí nos aproximamos hoje a uma reação, uma reação muito importante das forças democráticas. Porque apareceu claramente nessa polarização que, o crescimento da extrema direita tinha sido acompanhado por um fanatismo de massas e um autoritarismo bárbaro de forças vinculadas a grandes empresários, a políticos, a militares, a pastores fanáticos. Mas essas forças, e aí está a especificidade da situação que levou ao momento atual, essas forças bárbaras, de extrema direita, não tinham projetos nacionais para enfrentar, com soluções, os problemas e as contradições históricas da sociedade. Ou seja, o projeto dessas forças de ultradireita não era o projeto de melhora da sociedade, de fazer a sociedade avançar; era um projeto de tomada do aparelho estatal como um veículo de dominação, distante do projeto para recuperar a hegemonia, ou pra transformar, com legitimidade, o regime político ou o Estado, pra criar uma nova forma de Estado, uma nova relação de direção da sociedade civil em geral. Não existia isso.
Muitos desses políticos de extrema direita se vincularam com forças internacionais, como foi demonstrado claramente no caso do Brasil, em que os grupos de ultradireita dos Estados Unidos, desse sistema judiciário de ultradireita, apoiaram essas políticas de lawfare de usar a justiça, o judiciário para fazer política. Mas o problema principal para eles foi que não existia um projeto nacional na crise para recuperar o caminho; foi um alinhamento absoluto às diretrizes de uma globalização neoliberal em crise. Quer dizer, manter essa ideia de que o Estado tem que valorizar o grande capital como prioridade independentemente das necessidades, da soberania nacional, das necessidades de cuidar o ambiente, de cuidar a população, nada disso.
Então, eu compreendo que isso abriu o espaço para uma situação totalmente nova na América Latina: estamos pela primeira vez na história da América Latina com uma maioria, nesse segundo ciclo de governos progressistas, uma maioria de Estados e sociedades com uma direção democrática de dirigentes progressistas. Pela primeira vez na história da América Latina governos como o da Argentina, do Brasil, do México, da Colômbia e de Chile, cinco países considerados fortes, considerados líderes, estão, pela primeira vez, com governos democrático-progressistas, na história da América Latina! E acompanhados também por uma quantidade de países também com posições avançadas, como Cuba, Venezuela, Honduras, Peru que acompanham essa luta. Aqui aparece uma situação nova: as forças de esquerda estão fazendo parte desse segundo ciclo progressista, mas já conformando uma grande força regional, ainda que atuem sempre como forças nacionais. Neste momento, ainda não têm um projeto comum. Mas, se abre a potencialidade de criar uma força dirigente comum, latino-americana progressista, muito grande, e já não vai ser como no primeiro progressismo; agora tem possibilidades de ser um progressismo multiplicado e consciente, dirigido por forças que têm mais possibilidades de um entendimento comum. Eu acho que as políticas entre México, Brasil, Colômbia, Argentina, inclusive o Chile, apesar desse começo tão complicado, tem muita possibilidade de conformar uma política transformadora comum. Eles têm extraordinárias potencialidades num mundo onde a crise da globalização neoliberal se aprofundou e estamos, também, numa situação de guerra internacional, como todo mundo sabe, de uma exacerbação das contradições desse neoliberalismo a nível mundial.
A contradição da OTAN com Rússia e China está explodindo muito facilmente, está chegando a um nível muito alto. E aí o que estamos enxergando é que a Europa não tem política própria, política soberana, as iniciativas de paz de onde vêm? Vêm, por exemplo, do México, da iniciativa do presidente mexicano que diz: “não é aceitável a guerra, temos que lutar pela paz”. Iniciativa de paz não vem da Europa! Incrível! Não vem da Europa Ocidental, vem de países periféricos, da Índia, do México. E agora a América Latina pode se posicionar de uma outra forma, com o aprendizado desse primeiro ciclo, que tem que fazer política de conciliação de classe MAS junto com esses dois elementos imprescindíveis que foram aprendidos nessa escola de lutas: a) com a elevação da organização e da consciência popular, de politização popular, com criação de um movimento popular crítico e de autonomia histórica das massas populares e, b) com reformas, agrária, política, militar, da mídia, do sistema judiciário, etc.
Ou seja, está aparecendo outra situação em que os problemas que geraram a derrota do primeiro ciclo já estão mais claros; claro, isso não quer dizer que vai ser fácil, que vai ser simples, não! mas que, potencialmente, estamos perante uma situação de grandes possibilidades para a América Latina mediante a situação política inédita, inclusive para demandar uma multipolaridade perante essas grandes potências, que estão acostumadas ao domínio mundial. E agora estamos numa situação de sermos um ator mundial, pela primeira vez, na história da região. Imagina o importante que é essa visão da situação geral da América Latina, não só dos países em particular. Se a gente só aprecia o que acontece em cada país é como uma situação de situações que já se conheceu. Não! Estamos numa nova situação potencialmente diferente. Aí é que aparece, como eu falava, o meu otimismo estratégico.
Entrevistadora: Você mesmo disse há pouco de como que essas forças, até pela crise do capitalismo neoliberal; dessa globalização completamente excludente, de uma ação do imperialismo em decadência, e por isso se torna mais agressivo. Mas, quando analisamos o conjunto da América Latina, vamos observar alguns países que tiveram eleições recentes: Chile, não era um candidato que era da esquerda tradicional, vamos dizer assim, mas estava concorrendo contra um fascista, ou flertava com o fascismo; Colômbia, a mesma situação, Peru e Brasil também. Agora, vejamos o caso do Brasil, o movimento progressista popular ganhou as eleições com uma frente amplíssima, nem vou entrar no mérito das frentes, porque eu acho que em situações como essa ela é extremamente necessária. No caso brasileiro são apenas dois milhões de diferença, claro que teve um trabalho de base que eles fizeram e nós não, através das igrejas neopentecostais, do movimento neopentecostal dentro da Igreja Católica que influenciou bastante. Bom, eles estão organizados, no caso brasileiro eu diria que estão organizados e armados. Você acha, você avalia, que num quadro de - bom eu já disse que não tenho o teu otimismo -, processo de organização popular, de politização, a direita sim, e a esquerda, ainda impactada por esse processo. Há possibilidade de fazer governos que apontem para esta perspectiva? Eu nem estou dizendo que é para o socialismo, mas pra um Estado ou para condições materiais em que a população possa realmente se organizar, se conscientizar. Se pegarmos o caso, do Chile, por exemplo, com a proposta da Constituinte foi uma derrota bastante significativa; quer dizer, o povo, eu tomo muito cuidado com a palavra povo porque eu acho genérico demais, mas, ali, conscientemente ou não, a população disse não a todas aquelas mudanças que estavam sendo propostas. No caso do Brasil, há uma corrente, há grupos que advogam uma nova Constituinte no governo Lula, e que eu temo que a gente também sofra uma derrota significativa, porque eu não acho, diferentemente de você, eu não acho que tenhamos aprendido muito com essa escola de luta, eu acho que ainda temos muita luta pra que essa consciência, essa politização das massas se faça presente, se faça atuante.
Lúcio Fernando Oliver Costilla: Eu esclareço que minha visão, meu otimismo é estratégico. Não é um otimismo pela situação imediata atual, eu enxergo possibilidades, potencialidades muito fortes. Agora, o que fica mais claro é a mudança das relações de força, a mudança não vai acontecer como no passado, isto é, gerada por um grande movimento revolucionário, muito espontâneo que vai significar uma virada no poder e nas relações de forças a parir dessa situação, não. Por isso é que teóricos como Gramsci estão começando a ter mais acolhida na intelectualidade crítica, porque agora é o momento de uma prolongada e difícil luta de posições, como Gramsci esclareceu, uma luta que significa primeiro entender que mudanças têm a ver, também, com uma transformação da cultura como política; que a cultura e as concepções do mundo têm muito a ver com a política, que a democracia participativa e o socialismo não vêm só da luta política em si, eles precisam ter uma acolhida na cultura de massas, e não só como socialização de ideias fortes necessárias mas, socialização de algo mais complicado que Gramsci chamava de hegemonia civil, quer dizer, disseminação do pensamento crítico na cultura popular, no sentido comum. Isto é o que está na ordem do dia de todos os nossos países: como criar condições para criar um movimento político-crítico de massas populares que se transforme numa força política que seja em si mesmo uma força política?
Gramsci tem um conceito complicado, muito difícil de entender que é a questão da hegemonia civil; ele não acreditava que já fosse possível nos países do ocidente a hegemonia do proletariado e muito menos nessa ideia da ditadura do proletariado. Gramsci falava “precisamos hoje da hegemonia civil”, que quer dizer essa disseminação na sociedade de uma cultura crítica, que mude o sentido comum, a filosofia popular. Então, temos melhores condições para isso hoje, em todos os nossos países, e esse é o caminho também. Essa derrota, por exemplo, na Constituinte do Chile, que você comentou, é porque o sentido, o senso comum das massas populares chilenas, desde aquelas que não tinham uma definição ainda, apareceu porque a participação foi obrigatória, distinto como aconteceu nas eleições que era voluntária. Lembra que o plebiscito sobre essas resoluções da Assembleia Constituinte foi não só daqueles que queriam participar, foi de toda a população, e aí apareceram essas massas que têm um senso comum tradicional, autoritário inclusive. Portanto, não tinha acontecido uma mudança de concepção.
O problema é que quem dirigiu essas resoluções, que foram colocadas em plebiscito, pensou nas suas próprias posições particulares: feministas, ambientalistas, indigenistas; e, isso não falava nada substancial a respeito das necessidades imediatas pra essas grandes massas populares, não tinha repercussão na consciência, no sentido comum dessas massas populares. Ao contrário, foi a maneira como a direita criou um novo medo nessas massas populares falando “agora os mapuches e os comunistas vão vir tomar nossas riquezas, nosso Estado, a tua família”, coisas terríveis que a direita colocou nessa luta pelo plebiscito. Então, quer dizer que aí houve também uma política que eu chamava há pouco de voluntarismo, então, temos que pensar que essas novas potencialidades têm que se sustentar numa mudança desse sentido comum popular, aí é que aparece a importância de uma conscientização, de uma politização, de uma auto-organização popular, de uma transformação conceitual no próprio senso comum. É possibilitar que o povo comece a sentir e a atuar com outras concepções, que sua vida seja dirigida por outras concepções e aí, como falou Gramsci num momento dado, vai ser irreversível o aumento do poder popular.
Tudo isso no primeiro ciclo não tinha importância, ninguém ligava para isso, porque tinha esse eixo espontaneísta, voluntarista como característica. Hoje, não. Hoje já sabemos que isso é necessário e que isso é um caminho para mudar as relações de forças. A direita ainda acredita no espontaneísmo, a direita acredita na ocupação do Estado como política. O que vai acontecer com essa direita militarista, agressiva, quando já não estejam no comando do Estado? Não sei o que vai acontecer, mas, com certeza, na nova situação é possível essa luta de posições que Gramsci tinha enxergado como fundamental, como uma nova concepção da política, da cultura fixada na política, nas diretrizes da ação política de massas. Que sim, que é uma outra concepção; sem a criação de uma vontade coletiva nacional-popular, a democracia participativa radical e o socialismo não vão aparecer; não vão ser firmes, isso temos que meter na cabeça. Só com uma lenta, firme criação de uma vontade coletiva, nacional-popular, - além do mais, nessa crise mundial que estamos vivendo isso é fundamental - para manter uma soberania, senão amanhã vai começar uma terceira guerra mundial e a América Latina vai ficar sem política própria, demandada para se aproximar de qualquer das partes em contenda. Não! Para a América Latina ser uma força firme, segura, e ter uma participação mundial, como acho que hoje temos condições, tem que ter muita clareza desses dois aspectos que não existiram no primeiro ciclo progressista: primeiro, superar o espontaneísmo e o voluntarismo para criar uma política de elevação ideológico-política das massas populares; segundo, fazer transformações no regime político e na situação da sociedade, não transformações voluntaristas.
Você está certa quando diz que é errado pensar que hoje uma proposta de nova Constituição no Brasil vai resolver qualquer coisa, não, porque ainda está esse equilíbrio catastrófico, ainda existe essa polarização, então uma Constituição não vai mais que refletir essa situação como aconteceu no Chile. Então, não é o momento! É o momento para que essa capacidade extraordinária de direção política, para encontrar uma saída ao conflito, como a que a esquerda teve no Brasil, hoje, nessas eleições, tem que se aprofundar, mantendo essa conciliação, essa frente ampla, mas, elevando a capacidade das massas populares, a consciência, a vinculando às massas nesse processo, com a sociedade política e reformando.
Como vai ser possível essas reformas não só no Brasil, mas, na Colômbia, no Chile, no México, na Bolívia? Esse é o grande desafio para as forças políticas progressistas. Eu acho incrível a maturação política das forças que hoje estão nesses novos governos progressistas, não é um governo de iniciantes o que existe hoje nas forças progressistas da América Latina. No México mesmo não é um governo de iniciantes, é um governo que se colocou primeiro como um governo restaurador de um Estado que veio da Revolução, quer dizer, não estava restaurando qualquer Estado, eu acho que muitas pessoas não entendem isso, que a restauração do Estado do México tem um sentido avançado, não é qualquer coisa, mas Lopez Obrador o fez colocando no meio uma coisa que não existia nesse Estado mexicano anterior, que era a democracia. Hoje o México tem muitas possibilidades porque tem uma democracia que não tinha nos governos passados do PRI[1]. Não se trata de governos de iniciantes. Colômbia com Petro não é um governo de iniciante, Brasil também não, Bolívia já teve muitos anos de experiência com esse projeto de Estado plurinacional, são governos com forças maduras politicamente, daí meu otimismo estratégico. Não é porque eu estou entusiasmado de ocasião, não, porque eu acho que estamos encontrando uma situação onde a esquerda pode ser dirigente nacional e regional, encontrar uma saída política de direção de toda a sociedade, possivelmente, pela primeira vez na história, tanto dos países em particular, como regionalmente.
É claro que estamos no meio de uma crise mundial, no meio de equilíbrios catastróficos em todas as sociedades, com uma direita que é muito agressiva. Mas, temos que reconhecer que temos política também para trabalhar nessa situação, para entrar na disputa, na verdadeira disputa que, agora sim, pode ser uma disputa histórica na América Latina; pela primeira vez na história da América Latina. Não é normal, não é uma situação normal, natural, que países como Argentina, Brasil e México, agora com Colômbia e Chile, estejam numa situação comum, de abrir caminho a uma democracia popular, isso é totalmente novo. Temos que acreditar que isso vai gerar algo, que isso é uma potencialidade extraordinária. Agora, lembremos o que Gramsci falava, “o otimismo da vontade e o pessimismo da inteligência, da razão”, isso que temos que ter para realmente transformar problemas em soluções, para transformar potencialidade em conquistas, isso que temos que ter.
E isso aparece agora. Estamos perante uma situação inesperada e potencialmente extraordinária. Aí o Lúcio está emocionado? Sim, porque temos potencialidades históricas pela primeira vez, na nossa realidade latino-americana, inclusive de ser o grande ator mundial. Quando você vê a subalternidade da Europa perante essas velhas jogadas da Guerra Fria? Como é possível? Mas eles são subalternos, são subalternos sim. Quem, pela primeira vez, tem condições de não ser subalternos são os países da América Latina. Incrível! É a história que coloca uma situação, é a vida que coloca uma situação histórica impensável. E não sabemos o que vai acontecer com essa guerra internacional, com essas políticas tão estranhas que lembram a guerra fria dos Estados Unidos, com esse jogo mais econômico que político da China, não sabemos o que vai acontecer. Mas a América Latina pode ser uma força mundial pela primeira vez. E estou falando da América Latina toda porque não é um problema de um país ou outro, porque um país ou outro não tem força, é justamente a criação de uma direção coletiva latino-americana progressista e crítica que pode gerar outras condições. Mas, vamos pensar que o processo está iniciando. É o ponto de partida de uma virada histórica; mas que, como toda virada histórica, se não se faz acompanhada de verdadeiros compromissos e políticas, pode descer, pode rachar. Mas, meu otimismo está nas potencialidades, meu pessimismo está em que nem sempre as coisas acontecem como a gente potencializa.
Entrevistadora: Pois bem, Lúcio, está bem. Te agradeço muitíssimo. Tem questões que você coloca que ficam para um outro momento, mesmo porque eu tenho leves discordâncias, porque eu não vejo essa diferença entre a hegemonia da sociedade civil e a ditadura do proletariado. Mas, aí é para outro momento, uma outra entrevista, se for o caso. Repito: Eu te agradeço muitíssimo por esta entrevista.