Resenha
ADORNO, Theodor W. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Editora Unesp, 2020. UM PAÍS QUE CABE NOS OLHOS
ADORNO Theodor W.. Aspectos do novo radicalismo de direita. 2020. São Paulo. Editora Unesp. 103pp. |
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É mais do que necessário se defrontar com o colapso. Jean Baudrillard sentenciou, quando o mundo parecia outra coisa que não o “desmundo” que experimentamos hoje, que “a orgia é o momento explosivo da modernidade, o da liberação em todos os domínios”[1]. Ele escrevia na virada dos anos 1980 para o tempo intocável da hegemonia do neoliberalismo autoritário. O paradoxo é que as últimas décadas foram definidas por forte confronto entre políticas de estabilização econômica e tentativas de adaptação do social ao estreito programa da economia neoliberal. Tariq Ali, curiosamente, classificou de ‘extremo centro’ as variações extremas do centro da política dominante. Com a normalização da economia política do neoliberalismo, as únicas variações possíveis estariam em torno do reconhecimento (“quem merece direitos”) e da distribuição (“quem merece renda”).
O problema é que o “após a orgia” não pode ser pensado como algo diferente do colapso, ou da catástrofe. Estamos diante de uma experiência compartilhada regressiva que tem em Trump, Erdogan, Marine Le Pen, Viktor Orban, Giorgia Meloni e Bolsonaro etc., as principais referências políticas e de identificação ideológica. A perturbação mental é enorme. Fala-se em “populismo” para caracterizar o autoritarismo político aberto. Nessa equação, teríamos um universo ideológico em que o confronto político se daria pela disputa entre populismos de direita e de esquerda (Chantal Mouffe chega a propor uma espécie de “populismo de esquerda”). O que essa elaboração garante, apenas, é a normalização do populismo como o campo compartilhado das cisões político-ideológica decisivas. Por outro lado, tomar o antagonismo político atual pelo léxico da ‘extrema direita’ também significa destotalizar o significado do radicalismo de direita que temos como fenômeno social no capitalismo contemporâneo.
É por isso que retomar Theodor Adorno é tão indispensável. Publicado no Brasil somente em 2020 – mas originalmente escrito em 1967, quando proferiu palestra a convite da União dos Estudantes Socialistas da Áustria, na Universidade de Viena –, “Aspectos do novo radicalismo de direita” é uma monumental antecipação da permanência do fascismo como modo continuado de uma forma de vida obliterada. Sua tese irreprimível é que “os pressupostos do movimento fascista, apesar de seu colapso, ainda perduram socialmente, mesmo se não se perduram de forma imediatamente política”[2]. Ou seja, a despeito da experiência histórica do fascismo como um movimento particular – que supostamente teria sido superado ou, na pior das hipóteses, teria adormecido –, Adorno sugere que o fascismo tenha se mantido permeado na estrutura social das sociedades capitalistas desenvolvidas.
O que precisamos pensar é que o fascismo atua como uma certa revolta, ou mesmo radicalização, embora vampirizada, contra o centro dominante da ideologia política. Sabemos, desde Marx, que o sistema capitalista é propriamente desequilibrado, em que seu progresso é desprovido de uma ideia ou mesmo de uma razão consciente, mas sua reprodução e circulação se dão através de uma dinâmica autorreferente compulsiva. Deleuze e Guattari falam em capitalismo esquizofrênico para delinear a ausência de limites externos, pois o limite está internalizado à sua compulsão abstrata. Neste sentido, o capitalismo produz necessariamente desigualitarismo e assimetrias sociais agudas. Paradoxalmente, o fascismo salienta o sintoma de um problema que não pode ser resolvido sem mudanças de longo alcance. Adorno e Horkheimer, comentando a situação da miséria alemã, mas que pode ser transposta para o Brasil contemporâneo, dizem que “não há nenhuma diferença entre o destino econômico e o próprio homem”, pois “na consciência dos homens, a máscara econômica e o que está debaixo dela coincidem nas mínimas ruguinhas”[3]. Acaso seja possível elaborar alguma similitude, poderíamos dizer que o fascismo brasileiro – que aparece agora como bolsonarismo, embora seja um capítulo do fascismo brasileiro, como podemos atestar com a experiência do integralismo – representaria um país que cabe nos olhos. O destino subjacente e o próprio homem médio brasileiro estão entrelaçados definitivamente. Trata-se de um encontro marcado pela experiência do fracasso do processo de democratização substantiva que Celso Furtado chamava de ‘o longo amanhecer’.
Então, pensar o fascismo significa tomar as questões da consciência e da subjetividade – pessoal e coletiva – considerando as formas de assimilação e internalização da culpa e da responsabilidade, ou seja, a tarefa ideológica prioritária do fascismo é distorcer e deslocar a relação de causa e efeito dos problemas produzidos pelo capitalismo. Como resposta à deterioração social do capitalismo, o fascismo aparece como uma reação regressiva ao status quo. Isso faz com que grupos inteiros adotem a transferência da “culpa de sua própria desclassificação potencial não ao aparato que a causa, mas àqueles que se opuseram criticamente ao sistema no qual outrora eles possuíam status, ao menos segundo concepções tradicionais”[4]. Trata-se de uma análise pouco usual, pois, tradicionalmente, o fascismo é traduzido como regime político ou forma de Estado. Adorno possibilita que o fascismo seja complexificado, subtraído de uma alternativa antissistema para uma modalidade política e ideológica de distorção dos efeitos diretos da dominação capitalista.
“Aspectos do novo radicalismo de direita” tem o mérito de traduzir o fascismo como um movimento específico que não depende de uma objetividade dada que corresponda ao desenvolvimento do seu conceito. Adorno sugere, portanto, que “com frequência ocorre que convicções e ideologias, justamente quando elas não são mais de fato substanciais devido à situação objetiva, assumem então seu caráter demoníaco, seu caráter verdadeiramente destrutivo”[5]. Neste caso, podemos dizer que o fascismo devorou qualquer particularidade histórica. A questão não é que possa se repetir. Ele nunca foi superado. Adorno insiste que o fascismo não está marcado no passado, mas segue corroendo a vida moderna, sobrevivendo nos interstícios do centro dominante do mundo capitalista e recalcado no inconsciente das pessoas singulares. Por suposto, o que permite a explosão política da catástrofe capitalista é a conjuntura social do presente. A explosão nunca se demora. Ela está sempre perto demais. Uma lição irreprimível do bolsonarismo é que seu conteúdo sempre esteve aqui, perto demais, mas sua forma ainda não tinha alcançado sua correspondência imediata com seu objeto. Foi necessário a erosão do capitalismo dependente, combinado com a crise do neoliberalismo autoritário e da democratização truncada para que o fascismo brasileiro (bolsonarismo) pudesse conectar forma e conteúdo num sintoma social violento.
As leituras tradicionais da crítica do fascismo tendem a relacioná-lo ao movimento da classe dominante, quando muito, representante da pequena burguesia em decadência. O que explicaria seu caráter de massa? É apenas uma questão de falsa consciência e alienação? Adorno apresenta uma resposta importante, quando diz que “o fascismo, cujo aparato sempre tem a tendência de se autonomizar diante dos interesses econômicos fundamentais”[6]. Ele responde, com isso, a uma certa vulgaridade comum entre os críticos, que insistem em afirmar que nas democracias coexiste uma camada social de lunatic fringe com a normalidade subjetiva. Em outro lugar, Adorno afasta qualquer subjetivismo na análise da subjetividade lunática fascista, quando diz que “a psicologia totalitária // reflete o primado de uma realidade social que produz seres humanos já tão insanos quanto ela própria”[7]. Adorno conclui, então, que “poderíamos caracterizar os movimentos fascistas como as feridas, as cicatrizes de uma democracia que até hoje ainda não faz justiça a seu próprio conceito”[8]. O fascismo não apenas decorre da democracia, bem como ele sobrevive dentro de seu colapso lento. A aproximação da teoria crítica com a psicanálise nos permite afastar qualquer comportamento pessoal da loucura propriamente dita. Neste sentido, Adorno insiste que “seria falso, entretanto – como acontece frequentemente –, conceber como psicóticos, loucos, aqueles que tendem psicologicamente a sistemas totalitários”. Pelo contrário, é justamente “o sistema delirante” que “protege os indivíduos da psicose explícita – o delírio encapsulado lhes permite comportar-se em outras regiões de forma um tanto ‘mais realista”[9].
A substância do argumento de Adorno perpassa pela tentativa de traduzir a loucura não como um problema pessoal, mas a loucura é sistêmica, objetivamente fundada. No limite, podemos dizer que é o capitalismo (com sua radicalização fascista) o sistema delirante, que não pode ter sua reprodução social ampla desprovido da produção de pessoas deliradas, de lunatic fring. O fascismo que experimentamos hoje – ao contrário do que realmente pensamos e somos impelidos a agir – não confronta absolutamente a democracia política do capitalismo realmente existente. Ele é interno à democracia. Funciona nos seus interstícios, escondendo-se nas suas sobrecamadas para gerar uma reação que seja capaz de aparecer nos momentos de crise do metabolismo social. É daí que podemos deduzir a mentira (hoje, fake news), a manipulação grosseira e as distorções como operativos ideológicos bastante eficazes na “cisão na consciência das pessoas”[10] encapsulada pelo fascismo. Adorno lembra que não podemos nos surpreender quando a mentalidade fascista defende a pena de morte e, ao mesmo tempo, a impunidade para os assassinos de Auschwitz. Sem muito esforço, podemos perceber que o fascismo brasileiro (bolsonarismo) aciona permanentemente essas contradições e ambiguidades para produzir o transe coletivo, que é sua forma estrita de mobilização política.
Ernest Bloch salienta que “no processo de recalque, os desejos não realizados, ou até mesmo anulados pelo silêncio, simplesmente submergem num inconsciente mais ou menos completo”. O recalque adormece e congela os desejos. Ele segue dizendo que “ali eles apodrecem, formando tensões e complexos neuróticos, sem que aquele que sofre possa reconhecer as causas de seu sofrimento”[11] (BLOCH, 2005, pp. 57-58, grifos do autor). O fascismo mobiliza o ressentimento pessoal para transformar o recalque em desrecalque agressivo e violento. Assim, a ambiguidade que o fascismo nos impõe – da relativização de termos que são absolutos – exige que não nos concentremos nos objetos do seu desrecalque – “inimigos designados”[12] –, mas no próprio núcleo elusivo da mentalidade autoritária. Adorno retoma uma tese memorável do seu Authoritarian Personality, em que demonstra a combinação entre formas inescrupulosas de preconceito e um comportamento subjetivo puramente racional:
Talvez eu possa lembrar também de um resultado de pesquisa nos Estados Unidos, // de nossa Authoritarian Personality, na qual se mostrou que também as personalidades preconceituosas, que portanto eram completamente autoritárias, repressivas, reacionárias no que concerne à política e à economia, reagem de modo totalmente diferente no momento em que se tratava de seus próprios interesses transparentes, transparentes para si mesmos. Isto é, eles eram, por exemplo, inimigos mortais do governo Roosevelt, mas, no caso das instituições que os beneficiaram de forma imediata, como a regulação dos aluguéis ou o barateamento dos medicamentos, o antirrooseveltianismo deles terminava imediatamente e aí eles se portavam de um modo relativamente racional[13].
Ou seja, os interesses subjacentes de classe e o pragmatismo indicam que não existe imediatamente nenhuma ruptura com o aparente objeto de seus ataques virulentos. É por isto que a melhor maneira de enfrentar o fascismo não é apelando a mistificações obtusas: não se trata de nomeá-lo como “populismo de direita”, “extrema direita” ou “pós-fascismo”[14] etc., mas da necessidade de atacá-lo no seu próprio campo. O fascismo, operando a manipulação dos afetos políticos, torna impermeável qualquer cálculo político racional. Além disso, a fronteira entre verdade e mentira é abolida. Não há mais nenhuma forma de acesso ao universal simbólico do discurso de verdade. O relato da propaganda – corporificada ou não no líder – não somente produz o objeto, mas a verossimilhança do sujeito. “Aspectos do novo radicalismo de direita” não é apenas um pequeno texto sublime sobre o fascismo, na verdade, ele é um dos mais importantes esforços na tentativa de dar corpo ao antifascismo dentro da teoria crítica emancipatória. Quando tudo parece perdido, quando a teoria parecer ser incapaz de influenciar o debate público, quando nosso mapeamento cognitivo parece obsoleto, Adorno apresenta uma fórmula por antecipação que parece ser a mais notável saída ao impasse que vivemos hoje:
Mas aquilo que é objetivamente falso, não verdadeiro de sua própria substância, o força a operar com meios ideológicos, isto é, nesse caso, com meios propagandísticos. E por isso, além da luta política e dos meios puramente políticos, ele deve ser enfrentado no seu próprio terreno. // Mas não se trata de colocar mentira contra mentira, de tentar ser tão esperto quanto eles, mas de realmente contrapor-se a eles como uma força decisiva da razão, com a verdade realmente não ideológica[15].