Artigos - Temas livres
Recepción: 27 Mayo 2022
Aprobación: 01 Noviembre 2022
DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v26n2p801-820
Resumo: O artigo objetiva discutir o acesso a mecanismos do sistema de proteção social brasileiro, sob a ótica da memória coletiva de mulheres idosas que vivem em instituições de longa permanência. Utiliza as pesquisas bibliográfica, documental e de campo como estratégias metodológicas, destacando-se, na pesquisa de campo, a observação flutuante, as entrevistas abertas em profundidade e o registro fotográfico. Em vez da proteção social, identifica uma grande lacuna reveladora de inexistência ou carência de recursos materiais e afetivos ao longo das trajetórias dessas mulheres. Conclui que há diversas modalidades de proteção social que, a depender do contexto sócio-histórico, podem se expandir ou se restringir. Por conseguinte, o acesso a esses mecanismos se dá de maneira diferenciada, conforme as condições sociais disponíveis e os variados contextos de inserção social dos sujeitos.
Palavras-chave: Proteção social, velhice e sociedade, memória coletiva.
Abstract: The article aims to discuss access to mechanisms of the Brazilian social protection system, from the perspective of the collective memory of elderly women who live in long-term institutions. It uses bibliographic, documentary and field research as methodological strategies, with emphasis on fluctuating observation, in-depth open interviews and photographic record in field research. Instead of social protection, it identified a large gap revealing the inexistence or lack of material and affective resources along the trajectories of these women. We conclude that there are several types of social protection that, depending on the socio-historical context, can expand or be restricted. Consequently, access to these mechanisms occurs in a different way, according to the social conditions available and the varied contexts of social insertion of the subjects.
Keywords: Social protection, old age and society, collective memory.
1 INTRODUÇÃO
Vivenciamos, no Brasil, um contexto de transição demográfica em que o envelhecimento populacional se torna uma preocupação para os arranjos familiares, as instâncias governamentais e o campo de produção do conhecimento relacionado à questão da proteção social. Para Giovanni (1998), a proteção social se destina a proteger uma parte ou o conjunto de membros de uma sociedade, em meio às condições adversas enfrentadas ao longo de sua vida – dentre as quais destacamos, aqui, a velhice. Segundo o autor, os sistemas de proteção social incluem uma série de iniciativas que expressam valores de solidariedade decorrentes dos processos sociais e históricos em que se desenvolvem os meios necessários para garantir a subsistência daqueles que se encontram nessas condições adversas, implicando pensar o bem-estar dos indivíduos neles envolvidos.
Nessa perspectiva, voltamos nossa atenção para os que vivem a velhice em condições materiais e objetivas que, muitas vezes, não suprem suas necessidades. Desse modo, suas condições de vida passam a ser diretamente dependentes de formas de proteção social que respondam às suas demandas através de mecanismos estatalmente regulados ou não.
Nossa participação em uma ampla pesquisa sobre a relação entre políticas públicas e instituições participativas, realizada no âmbito do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará, bem como a elaboração de uma dissertação de mestrado em sociologia nesta universidade, propiciaram o suporte necessário à elaboração deste trabalho.
O objetivo deste artigo é perceber, mediante o resgate de memórias de mulheres idosas abrigadas em instituições de longa permanência, o acesso a mecanismos de proteção social durante suas trajetórias de vida. Orientamo-nos pelo pressuposto de que os idosos residentes em instituições de longa permanência no país vivenciam diferentes contextos sociais, todos eles determinantes de formas de proteção social restritivas e ineficazes que interferem negativamente na consolidação de suas trajetórias e projetos de vida, e que o acesso a essas formas de proteção é muito limitado ou mesmo inexistente.
Ademais, esses contextos sociais têm favorecido a atribuição de um sentido negativo ao envelhecimento, produzindo formas de “inclusão precária” (SOUZA, 2004) ou mesmo a exclusão de idosos no tocante a aspectos significativos da vida em sociedade, como os concernentes às relações de trabalho e às relações afetivas. A negação de garantias de condições materiais e simbólicas suficientes para que todos os indivíduos consolidem seus projetos de vida faz com que muitos desses idosos sejam colocados na posição de “subcidadãos”, dotados de um “habitus precário” e impedidos de “gozar de reconhecimento social com todas as dramáticas consequências existenciais e políticas aí implicadas” (SOUZA, 2004, p. 87).
No percurso metodológico proposto, examinamos fontes bibliográficas, realizamos trabalho de campo, efetuamos pesquisa em fontes documentais e analisamos registros fotográficos. Quanto à pesquisa bibliográfica, priorizamos as seguintes categorias e seus respectivos autores: “velhice” (BEAUVOIR, 2018); “memória coletiva” (HALBWACHS, 2003); e “proteção social” (ESPING-ANDERSEN, 1991, 1995; GIOVANNI, 1998; JACCOUND, 2009; PEREIRA, 2011, 2013; POCHMANN, 2004). Também estabelecemos interlocuções com outros autores cujas postulações dialogam com estes citados. Destacamos que o trabalho de resgate da memória coletiva teve por base, essencialmente, a perspectiva teórica e metodológica de Halbwachs (2003). Este autor admite que os indivíduos são capazes de memorizar acontecimentos a partir da experiência coletiva, fazendo com que diversas camadas do passado e da sociedade onde vivem (ou viveram) estejam inscritas em suas trajetórias e sirvam como norteadoras para a elaboração do sentido daquilo que é vivenciado no presente.
O trabalho de campo foi realizado em uma instituição de longa permanência denominada Lar Torres de Melo, após aprovação de Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer nº 3.676.421; Certificado de Apresentação de Apreciação Ética [CAAE] nº 20278819.1.0000.5534)[1]. Trata-se de uma das maiores entre as dezoito instituições dessa natureza existentes em Fortaleza/CE, abrigando atualmente 36% do público geral de idosos institucionalizados na cidade. Fundado em 1905 com o nome “Asilo de Mendicidade do Ceará”, o Lar Torres de Melo remete ao fim do século XIX e às formas que o Estado e a sociedade historicamente disponibilizaram para abrigar os sertanejos em êxodo que chegavam à capital do Estado do Ceará, em busca de melhores condições de vida e fugindo do contexto de escassez e penúria proveniente da grande seca que perdurou entre 1877 e 1879 – popularmente lembrada como a “Seca dos Três Oito”.
Iniciamos o trabalho de campo com uma “observação flutuante” (PÉTONNET, 2008) que permitiu captar aspectos que não poderiam ser registrados por meio dos áudios das entrevistas, nem através do exame dos prontuários dos idosos. Ou seja, por meio da observação flutuante captamos os olhares, as expressões corporais, os trejeitos e as lágrimas que acompanharam as narrativas. Focamos também na dinâmica das relações institucionais entre idosos residentes, familiares, visitantes e funcionários.
Prosseguimos com a realização de entrevistas abertas em profundidade (MINAYO, 2008) com as referidas idosas. Para tanto, utilizamos um roteiro meramente norteador a fim de situar recortes temporais importantes do trajeto da vida das participantes – infância, juventude, vida adulta e senescência. O processo de delimitação da amostra representativa, em consonância com a natureza qualitativa da pesquisa, incluiu claros critérios de inclusão, conforme requerido pelo Comitê de Ética. Considerando que no “Lar” predominam mulheres nascidas entre 1930 e 1950, cujas trajetórias sublinham, no passado, o trabalho doméstico não regulamentado como única fonte de sustentação, agregamos no processo de delimitação outros critérios, tais como: a condição de permanência da memória e de verbalização, bem como a concordância expressa em participar da pesquisa. Esses critérios foram identificados mediante conversa com a psicóloga integrante do grupo de pesquisa sobre políticas públicas, do qual fazemos parte.
As mulheres entrevistadas vivenciaram diferentes períodos e contextos políticos do país; nesses casos, o Estado e a sociedade assumiram diversos posicionamentos em relação à proteção social, aspecto muito relevante para o desenvolvimento do trabalho de resgate de memória. Suas narrativas trouxeram subsídios valiosíssimos, pois espontaneamente deixaram fluir “conteúdos restauradores do passado”, possibilitados pela distância do convívio social competitivo que lhes fora imposto no passado. Esses conteúdos floresceram graças às condições em que as idosas vivem atualmente, com alguma margem de liberdade para expressar opiniões sobre diferentes aspectos da vida social (JUCÁ, 2011).
Na efetivação de pesquisa documental com inspiração em Barros (2019), destacamos a busca em sites como o do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) como também o levantamento documental efetuado no próprio Lar Torres de Melo, os quais foram muito importantes em toda a pesquisa. Lançamos mão também da fotografia, com apoio em Barthes (1984, p. 13) para quem a técnica fotográfica “repete mecanicamente o que nunca mais poderá se repetir existencialmente”. Realizamos um registro fotográfico, após o consentimento dos interlocutores da pesquisa e de funcionários da instituição, como também utilizamos fotografias de “segunda mão” extraídos de fontes midiáticas. O intuito não foi meramente ilustrativo, e sim o de auxiliar na compreensão das narrativas como fontes iconográficas.
O presente artigo está estruturado em três partes. Além desta introdução, desenvolvemos um trabalho de conceituação acerca da proteção social como sistema construído em diferentes sociedades, destacando particularidades referentes à proteção social no Brasil; posteriormente, discutimos a proteção social a partir das memórias das entrevistadas; por último, tecemos considerações finais que destacam os principais elementos observados na pesquisa, enfatizando a proteção social como elemento ausente.
2 CONCEITUANDO A PROTEÇÃO SOCIAL
Em linhas gerais, a proteção social pode ser compreendida como um sistema destinado a proteger parte ou o conjunto de membros de uma sociedade, em meio às condições adversas predominantes ao longo da vida destas pessoas. Trata-se de uma série de mecanismos que, de acordo com Giovanni (1998, p. 11), “expressam os valores de solidariedade decorrentes dos processos sociais e históricos em que se desenvolvem os meios para garantir a subsistência enquanto grupo”, implicando pensar o bem-estar dos indivíduos que fazem parte dele.
Dependendo dos contextos nos quais esses mecanismos se desenvolvem, a proteção social pode assumir formas e expressões diferenciadas a fim de promover esse bem-estar social. Com isso, segundo pontuamos, nossa abordagem é constituída por perspectivas que, em linhas gerais, compreendem a proteção social como “um conjunto de mediações que emergem das lutas sociais cotidianas de diferentes segmentos subalternos que vêm à esfera pública para expressar interesses” (IAMAMOTO, 2014, p. 611). Para esta autora, o que entendemos como proteção social configura-se nas dimensões econômica, política e cultural como um processo em curso dependente do contexto social e histórico da sociedade a que se refere. Assim, grupos sociais podem desenvolver formas de solidariedade dentre as quais a proteção social seja uma das vias para amenizar a precarização das condições de vida – ou seja, quando o indivíduo não consegue prover por conta própria os meios capazes de suprir suas necessidades.
Para Giovanni (1998), a proteção social tem suas origens historicamente relacionadas às instituições não-especializadas. No entanto, na medida em que uma nova ordem social se instituiu no decorrer do processo de industrialização, determinado suporte até então proporcionado exclusivamente pelo núcleo familiar e comunitário mostrou-se insuficiente para lidar com as expressões da questão social[2]. Diante dessas limitações, exigiu-se das instituições modernas uma postura decisiva frente às demandas sociais que surgiram e se expressaram por meio de organizações de trabalhadores. Nessa conjuntura, a proteção social estava direcionada para enfrentar as situações que impediam o trabalhador de suprir a sua subsistência, mesmo com trabalho assalariado.
Segundo Jaccound (2009), foi somente a partir do século XIX que de fato a proteção social passou a ser associada às obrigações jurídicas que impõem ao Estado moderno a responsabilidade de prover também os recursos fundamentais para a sobrevivência de seus cidadãos. Assim, a definição de proteção social passou a ser fortemente vinculada às ações e programas institucionalizados e executados pelo aparato estatal, regendo diferentes instâncias da vida a fim de garantir e promover o bem-estar da sua população. A proteção social se desenvolveu, portanto, através de processos diferenciados dependentes das condições estruturais existentes.
Em consonância com diversos autores, por causa das especificidades históricas envolvidas, admitimos a existência de diferentes sistemas de proteção social, em distintas sociedades. Segundo Esping-Andersen (1991, 1995), esses sistemas se diferenciam a depender do papel assumido pelo Estado relativamente às demais formas de provisão, como o mercado e a família. Ou seja, essa diferenciação ocorre pelo grau de “desmercantilização” e de “desfamiliarização”.
Por sua vez, o papel do Estado no atendimento das necessidades fundamentais dos indivíduos estaria, conforme Wolf e Oliveira (2016), relacionado ao seu perfil de políticas públicas e à sua preservação ou alteração em um determinado sentido político, sobretudo nos âmbitos econômico e social. Inclusive, é nestes âmbitos que estão as condições materiais principais de atendimento às necessidades fundamentais. “Mais especificamente, elas [as políticas públicas] condicionam a capacidade dos indivíduos de obter um rendimento e de convertê-lo em um conjunto de bens e serviços essenciais” (WOLF; OLIVEIRA, 2016, p. 4).
O grau de sofisticação de um sistema de proteção social não depende apenas do grau de desenvolvimento das forças produtivas do país em que tal sistema é construído e se desenvolve; há países com um mesmo grau de desenvolvimento produtivo que possuem sistemas de proteção sociais muito diferentes entre si, o que se reflete nas condições de vida prevalecentes em cada um deles (WOLF; OLIVEIRA, 2016).
Além disso, a tendência contemporânea à proteção social, de acordo com Pereira (2013, p. 650), estaria “sofrendo um processo contínuo de laborização e monetização, que exige o desmonte da cidadania social e redunda numa regulação antissocial e perversa, que mais pune do que protege (ou assiste) o trabalhador, em benefício do capital”. Diante da inoperância ou mesmo da ausência de mecanismos públicos de proteção social, as modalidades de laborização visam à inclusão produtiva, isto é, ativar os demandantes da proteção social para o trabalho para que o indivíduo, por conta própria, consiga prover sua subsistência. A monetização, por sua vez, fortalece o mérito individual do pobre de conseguir, por meio do mercado, a satisfação das necessidades sociais. Como veremos adiante, a proteção social no Brasil é caracterizada por controvérsias e carrega particularidades históricas na sua implementação.
2.1 Particularidades da proteção social no Brasil
No Brasil, desde a promulgação da Constituição de 1988, a proteção social é vinculada à seguridade social, a qual abrange a Previdência Social, o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Assistência Social, conforme expresso no Art. 1º da Lei nº 8.212, de 24 de junho de 1991 (Lei da Seguridade Social). Trata-se de “um conjunto de iniciativas públicas ou estatalmente reguladas para provisão de serviços e benefícios sociais visando enfrentar situações de risco social ou privações sociais” (JACCOUND, 2009, p. 58).
Apesar desse arcabouço jurídico, prevalecem, em meio às contradições da modernização capitalista em um país considerado “subdesenvolvido”, as muitas expressões da “questão social”. Por isso, admitimos ser necessário pontuar particularidades das relações entre os contextos brasileiros e as frágeis formas de proteção social, que “pouco a pouco” foram sendo instituídas, sempre insuficientes para garantir o acesso universal. Admitimos que os sistemas de proteção social, sob a forma de políticas e ações, constituem “espaços de disputa política que expressa projetos societários, onde se movem os interesses” (SILVA, 2012) e que nessa dinâmica evidenciam-se características históricas de uma “cultura política autoritária no Brasil, a qual se expressa pela pouca distinção entre público e privado, pelo clientelismo e pelo patrimonialismo” (SILVA, 2012).
Pochmann (2004) relaciona as primeiras medidas de proteção social estatal ao contexto da ascensão da burguesia industrial e da consequente modernização. O autor também situa as classes trabalhadoras urbanas emergentes como os novos agentes responsáveis, crescentemente, pelo aparecimento de uma agenda política direcionada à regulação das livres forças do mercado. Com o passar do tempo e a consolidação desse modo de produção, as demandas se tornam mais complexas e abrangem diversos segmentos da sociedade, que nem sempre são constituídos por trabalhadores (POCHMANN, 2004). As reivindicações ampliam-se para além das garantias relacionadas ao mundo da produção e abrangem a existência de grupos sociais destituídos de recursos.
Ao reportarmo-nos às conjunturas e aos contextos passados ou presentes, cabe destacar traços do Estado brasileiro que nos auxiliam a compreender tais particularidades. A este respeito, esclarecem Behring e Boschetti (2011, p. 75):
O Estado brasileiro nasceu sob o signo de forte ambiguidade entre um liberalismo formal como fundamento e o patrimonialismo como prática no sentido da garantia dos privilégios das classes dominantes. O desenvolvimento da política social [e da proteção social] entre nós, como se verá, acompanha aquelas fricções e dissonâncias e a dinâmica própria da conformação do Estado.
Nessa direção, realçamos a linha de pensamento de Pereira (2011), segundo a qual a proteção social no Brasil é caracterizada por: uma ingerência imperativa do poder executivo; seletividade dos gastos sociais e da oferta de benefícios e serviços públicos; heterogeneidade e superposição de ações; desarticulação institucional; intermitência da provisão; e restrição e incerteza financeira. Tais aspectos, ao longo da formação da nossa sociedade, foram atravessados por práticas clientelistas, populistas e paternalistas predominantes nas formas de regulação social e política. Como a autora aponta:
A subordinação dos valores de equidade e da justiça social aos interesses da maximização econômica impediu que o envolvimento estatal na regulação e na provisão sociais viesse a significar ponderável mudança no padrão da política social herdado do período anterior. Efetivamente, entre 1930 e 1964, não houve no terreno social um rompimento decisivo com o laissez-faire nem com a antiga estrutura do poder oligárquico da era agro-exportadora (PEREIRA, 2011, p. 130).
Pochmann (2004) admite que seríamos um país sujeito à condição de “prisioneiro do subdesenvolvimento”, o qual, mesmo com os avanços consideráveis no processo de industrialização, não foi capaz de “abandonar as características do subdesenvolvimento, tais como a disparidade na produtividade setorial e regional e permanência de grande parte da população prisioneira de condições precárias de vida e trabalho” (POCHMANN, 2004, p. 7).
Como adverte o autor, mesmo no centro do capitalismo mundial, o desenvolvimento dos regimes de proteção social não teria apresentado uma “trajetória simplesmente evolutiva, mas marcada por rupturas, continuidades e transformações históricas, com isso, é necessário compreender os condicionantes históricos referentes a cada contexto” (POCHMANN, 2004, p. 5). A lógica industrial, o acesso à democracia de massa e a conformação da sociedade salarial, segundo o autor, constituem parte fundante dos sistemas de proteção social nas economias centrais. Porém, ele acrescenta que, no caso brasileiro, devemos “considerar inicialmente a condição de pertencimento à periferia econômica, prisioneira do subdesenvolvimento” (POCHMANN, 2004, p. 5).
Com isso, os mecanismos de proteção social foram introduzidos efetivamente somente a partir da abolição da escravatura (1888) e da implantação do regime político republicano (1889), eventos que teriam propiciado um novo modelo de crescimento da renda para o desenvolvimento socialmente menos desigual (POCHMANN, 2004). Sobre essa condição de pertencimento do país à periferia econômica e seus efeitos, mesmo com o processo de modernização, Behring e Boschetti (2011, p. 76-77) destacam que:
Entre a visão de modernização e os interesses senhoriais, prevaleceu uma acomodação intermediária, na qual se barganhava certa contenção da heteronomia nos níveis econômicos e técnicos, ao lado de uma contenção do mercado interno moderno [...] dessa forma, garantia-se o controle do ritmo da modernização, segundo os interesses dos antigos senhores, e uma acomodação limitada no tempo de formas econômicas opostas.
Dadas as marcas históricas citadas, percorremos um extenso e tortuoso caminho até chegarmos aos direitos sociais e a um arcabouço jurídico de proteção social, elementos fundamentais na constituição de estatutos referentes a segmentos sociais vulnerabilizados pelas desigualdades sociais. Destacamos, como exemplo, o Estatuto do Idoso, que remete a um envelhecimento saudável, com o suprimento das necessidades dos idosos em condições de dignidade – porém, ainda longe de se consolidar. Ademais, com o reforço do neoliberalismo no Brasil, principalmente durante o “ciclo político” compreendido entre os anos de 1995 e 2002 (com sua exacerbação no presente contexto), ampliam-se processos de estigmatização de segmentos sociais considerados improdutivos, principalmente o que se refere às pessoas idosas – que, cada vez mais, representam um custo indesejado às famílias e aos cofres públicos.
Ao tomar como exemplo o Estatuto do Idoso e suas respectivas análises, percebemos um vácuo, evidenciado por Camarano (2013, p. 5): “Apesar das leis aprovadas constituírem grandes avanços no sentido de políticas sociais de inclusão dos idosos, não foram estabelecidas prioridades para a sua implementação nem fontes para o seu financiamento”. Acrescenta a autora que os custos para a implementação de ações estatais de proteção social são divididos com a sociedade, o que pode ameaçar até mesmo a solidariedade intergeracional. Dessa forma, é visível que, para amenizar a precarização das condições de vida, nem sempre a ação estatal é protagonista em termos de provisão, principalmente quando observamos a realidade da população idosa brasileira; sobretudo, do segmento de idosos acerca dos quais constituímos nosso objeto de pesquisa.
Percebemos uma reedição de práticas historicamente ultrapassadas, pelo menos em tese, voltadas aos anseios do mercado. Não só no Brasil, mas também em países europeus. Em Portugal, por exemplo, como mostram as pesquisas de Guadalupe e Cardoso (2018), em virtude da forma restritiva de proteção social estatal e de suas origens históricas, a família é enquadrada na modalidade de proteção de âmbito privado não mercantil, a par de outras instituições tradicionais filantrópicas e religiosas, contrapondo-se ao âmbito público assumido pelo Estado.
3 TRAJETÓRIAS E MEMÓRIAS DE RESIDENTES NO LAR TORRES DE MELO: proteção ou (des)proteção social?
Ao acompanhar as narrativas das entrevistadas, na busca por reconstruir o passado da proteção social guardado em suas memórias, verificamos que ela, a proteção social, chega até nós na forma de muitos fragmentos (retalhos) que vão se explicitando à medida que elas recorrem às suas próprias trajetórias, todas elas vivenciadas em um limitado “campo de possibilidades” (KOURY, 2011) até a velhice. Entendemos, então, a necessidade de se adotar uma definição de envelhecimento que mais se aproxime dos propósitos deste artigo.
A velhice se modifica ao longo da história de cada sociedade e de acordo com os papéis sociais desempenhados pelos indivíduos em uma mesma sociedade (BEAUVOIR, 2018). Em certo momento da história, o envelhecimento dava aos indivíduos determinados papéis sociais de prestígio e reconhecimento. Com a modernidade e a industrialização no ocidente, esse lugar de prestígio passa a representar uma condição indesejável desse corpo, agora visto como parte do maquinário de produção capitalista. Assim, em determinado momento, esse corpo “envelhece”, esgota-se, torna-se frágil e não mais interessa ao sistema produtivo, haja vista que seu papel social é definido a partir das relações de trabalho e do significado desse corpo para essas relações.
Le Breton (2012) também se refere a essa concepção do homem da modernidade em sentido semelhante: a ligação do corpo com o mundo e a associação da velhice a um determinado papel social em virtude da sua suposta incapacidade para cuidar de si e produzir riquezas. Nesse sentido, o corpo seria “o valor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é construída” (LE BRETON, 2012, p. 223).
Se outrora os homens envelheciam com o sentimento de seguir uma marcha natural, que os conduziam a um reconhecimento social aumentado, o homem da modernidade combate permanentemente todos os traços de sua idade, e teme envelhecer com medo de perder sua posição profissional e de não encontrar emprego ou de perder seu lugar no campo de comunicação (LE BRETON, 2012, p. 223).
Nessa perspectiva, o envelhecimento é socialmente compreendido como processo de “involução” marcado pela diminuição das faculdades cognitivas e de condições físicas valorizadas em nossa cultura, constituindo um conjunto de representações e práticas que orientam a relação dos sujeitos com o próprio corpo e a forma como esse corpo será percebido coletivamente (MAGALHÃES, 1989). O autor problematiza as concepções originárias do referencial biológico da modernidade e argumenta que o envelhecimento é também atravessado por “determinantes sociais que lhe imprimem características decisivas, peculiares a cada sociedade, a cada momento histórico da mesma sociedade, a cada classe, grupo étnico, de parentesco etc.” (MAGALHÃES, 1989, p. 10-11).
Admitindo que o resgate de memória pode ser feito por meio de narrativa ou registro histórico, esclarecemos que este último, o registro histórico, foi utilizado meramente como ponto de partida para o trabalho de escuta das narrativas – e das posteriores análises. Nos prontuários dos residentes do Lar Torres de Melo, há informações significativas, destacando-se as de ordem geral (idade, gênero, fonte de renda, religião, cor/raça, estado civil, número de filhos, naturalidade, ocupação anterior, motivo e pessoa responsável pela institucionalização) e as referentes a histórico médico (dados referentes às condições físicas e psicológicas).
Esses registros constituíram suportes relevantes tanto na constituição da amostra da pesquisa quanto na realização das entrevistas e da análise das respectivas narrativas. Embora sucintos, eles tornam evidente que os residentes dispuseram de um limitado “campo de possibilidades”. Destaca-se o seguinte: as idosas possuem entre 63 e 84 anos de idade; foram admitidas na instituição há pelo menos 1 ano; o tempo máximo de permanência na instituição foi de 16 anos; elas são naturais do estado do Ceará; a maioria das mulheres é solteira (apenas uma viúva); metade delas nunca teve filhos; todas são pretas ou pardas; todas são “analfabetas”, ou seja, nunca estudaram ou só tiveram acesso aos primeiros anos do Ensino Fundamental; há uma prevalência de beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC) – pois apenas duas delas conseguiram se aposentar através do sistema contributivo; todas elas foram institucionalizadas por iniciativa própria ou de terceiros, devido ao abandono familiar, à inexistência de família ou impossibilidade de assistência.
É importante destacar que suas trajetórias de vida e trabalho transcorrem em contextos diversos, em que os investimentos políticos e econômicos em ações de proteção social são diminutos. Conforme Pereira (2011), durante o período populista/desenvolvimentista, a proteção social era apenas indicativa. O governo Dutra foi o primeiro a incluir em seu planejamento alguns setores sociais, como saúde e alimentação, durante a era Kubitschek.
No referido período, a política social era definida como inversão no capital humano, a exemplo da educação e do apoio ao desenvolvimento de comunidades. A era Goulart teve como marcos o Programa de Alfabetização de Adultos (fundamentado no método Paulo Freire) e o Movimento de Educação de Base (MEB). Durante todo o período de vigência dos governos militares, iniciados em 1964, a política social se configurou como extensão da economia, e depois se tornou um meio de acumulação de riquezas de grupos empresariais específicos. Posteriormente, a política social foi intensificada como meio de aproximação entre o Estado e a sociedade, em plena mobilização.
Pereira (2011) acrescenta que, no período de transição para a democracia liberal, as políticas sociais se ampliaram. Na década de 1980, elas adquiriram centralidade na agenda de reformas institucionais, que culminaram na Constituição de 1988, modificada constantemente pela ação de governos de inspiração neoliberal.
Realçamos que, embora a nossa principal fonte de produção de dados seja as falas das entrevistadas, as narrativas não são constituídas apenas por palavras oralmente expressas. Sobre isso, Bosi (1994) nos ensina que:
O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão asas aos fatos principiados pela sua voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras no chão, como no conto da Carochinha. A arte de narrar é uma relação de alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana (BOSI, 1994, p. 10).
Nesse sentido, são exemplares os vários momentos em que as narrativas das nossas entrevistadas foram complementadas por outras linguagens além da que era falada: o ato de se encolher ao falar sobre a violência física que sofriam, expressando através do corpo a forma como reagiam aos castigos que recebiam ou demonstrando como deviam se comportar na casa dos patrões, para não quebrar nada que pudesse lhes causar prejuízo financeiro. Essas são algumas das expressões do “não dito” que puderam ser observadas em meio às narrativas.
No processo de reminiscência, em cada relato escutado são perceptíveis os efeitos da precarização das condições de vida gravados na memória e, muitas vezes, no corpo. Essas mulheres, ao longo de muitos anos, exerceram a função da hoje formalmente denominada “empregada doméstica”, mas em uma época em que essa expressão sequer era utilizada: não havia regulamentação para o exercício dessa ocupação.
Reafirmamos que o trabalho doméstico ganha centralidade neste estudo por “estar inserido de maneira tão crucial nos principais marcadores sociais do Brasil, especialmente os que tangem raça, gênero e classe” (EZEQUIEL, 2019, p. 12). Além disso, o trabalho doméstico carrega consigo “as heranças escravocratas do período colonial que até hoje resistem, sendo apenas ressignificados ao longo dos anos” (EZEQUIEL, 2019, p. 12).
Ao mergulhar nas vivências compartilhadas conosco durante o processo de pesquisa, fomos levados aos tempos mais remotos da infância das interlocutoras. São as suas memórias mais antigas e, talvez, as mais comprometidas pelo passar dos anos. Como uma fotografia carcomida pelo tempo, na qual é possível observar apenas alguns pedaços restantes, nunca o retrato inteiro, as memórias nos deram um pequeno vislumbre do passado vivido pelas entrevistadas.
Sobre os anos vividos, foram abordados os castigos, as formas de lazer, a carência de recursos e a falta de escolarização; em alguns casos, a perda dos pais e o início do trabalho doméstico na casa onde moravam ou nas proximidades. Questionadas sobre como era o período da sua infância, quase sempre priorizavam a descrição das brincadeiras e das estratégias elaboradas para, com os poucos recursos disponíveis, gerar algum divertimento. Uma época lembrada de forma saudosa e afetuosa, em grande parte; a reminiscência privilegiou os detalhes daquilo de que mais gostavam de fazer. Observemos o trecho a seguir:
Ah, quando eu era criança era bom demais. [...] Tinha as brincadeiras, tinha brinquedo pra gente brincar. As brincadeira da gente era boneco de cabelo de milho, na minha época não tinha boneco, a gente pegava o sabugo de milho, ou então quebrava a (inaudível) do roçado do meu pai e ia fazer boneco de milho (ENTREVISTA 3).
Em outro relato, as estratégias para driblar a falta de recursos nos momentos de diversão ficam ainda mais evidentes:
[...] nós era muito pequeno, nós brincava de esconde-esconde nos mato, a gente brincava de boneca, nós não tinha dinheiro pra comprar boneca, era aqueles sabugo de milho, a gente enrolava nos pedacim de pano pra dizer que era os neném das boneca, aqueles ossim, o pessoal comia as carne, botava os osso fora a gente pegava, banhava os osso e enrolava nos paninho [...] era os nossos brinquedos. Brincava de esconde-esconde, de João, aquele negócio todo, como filho de pobre sim, era isso (ENTREVISTA 4).
Assim, a ludicidade própria da infância era limitada pelas condições sociais e materiais disponíveis. As brincadeiras ocorriam por meio de atividades que não exigiam muitos recursos – desde que houvesse inverno e safra de milho –, além da disposição e imaginação dos brincantes. São espigas de milho que viram bonecas, e ossos que viram bonecas menores (neném), simbolizando o “ser mulher” a partir do “ser mãe”. As narrativas também nos remetem a formas de brincar e existir em um período em que “as mudanças econômicas não teriam acompanhado os impulsos no campo social” (PEREIRA, 2011, p. 129).
Mas o brincar não era livre; pois, como foi narrado, em meio às brincadeiras e “danações” havia também as reprimendas quando a diversão ia além do permitido – com destaque para os castigos físicos empregados, os quais, apesar da dor que causavam, são recordados como a principal forma de ensino daquilo que era “certo” e “errado”. Como método de controle e correção, a violência física aparece de maneira recorrente, principalmente nos relatos sobre a inserção prematura no trabalho doméstico (posteriormente, abordaremos melhor este ponto).
Nesse contexto de carências materiais, sociais e excesso de controle, conforme as narrativas, identificamos a ausência de menção à escolarização. Esta “revela-se” por meio da nossa escuta como lacuna, ausência ou falta de incentivo. Ou seja: a menção à escola durante a infância só entra na narrativa depois de perguntarmos sobre ela. As respostas possibilitaram a compreensão de que, embora as entrevistadas tivessem acesso à escola em suas infâncias, as condições sociais, econômicas e culturais limitavam essa escolarização, tornando-a precária ou sem resultados positivos. Diz uma das entrevistadas:
Fui, mas não aprendi coisa nenhuma. Minha filha, meus pai era muito pobre, não tinha condições de botar, que naquela época não tinha colégio, eu não sei nem o que era, se era público se era colégio particular, também não sei. Era muito pequena naquela época, não sei, ela também não me falava nada, a minha mãe, né?! Pois é, minha mãe também não sabia ler, aí dava certo, a mãe e os filho [analfabetos] (ENTREVISTA 4).
As reminiscências dessas mulheres não trazem à tona apenas uma infância marcada por brincadeiras. Parte delas situam também o começo do trabalho, quando ainda eram bem pequenas: com 8, 9 ou 10 anos de idade, já realizavam tarefas domésticas que exigiam grande esforço físico. Pela falta de recursos e por outros fatores mencionados, elas começaram muito cedo a trocar sua força de trabalho por condições materiais mínimas para sobreviver. Ou seja, trabalhavam, sobretudo, em troca de alimentação e moradia; e se houvesse alguma remuneração em dinheiro, era de forma irregular e em quantias consideradas pequenas pelas depoentes. Não foi possível estabelecer com precisão os valores que eram pagos pelos serviços prestados; porém, percebemos infâncias roubadas. A afirmativa a seguir é ilustrativa: “Eu nunca tive infância, tô lhe dizendo que a minha vida foi ser criada nas casa desde 8 anos de idade, foi criada nas casa” (ENTREVISTA 5).
Em parte das narrativas, conforme notamos, essa inserção da criança no trabalho doméstico era feita pela mãe, que já exercia essa forma de trabalho em alguma casa. Ela então repassava para a filha as instruções, com vistas a auxiliá-la a dar continuidade ao serviço, ou seja, um processo socializador intergeracional que ignorava a importância da escola, diante das condições precárias e da necessidade de subsistência. Noutros casos, a ausência dos pais fora a justificativa expressa para essas meninas trabalharem com tão pouca idade, pois, uma vez criadas por terceiros, teriam de compensar as despesas com alimentação mediante os serviços prestados. Ainda meninas e com pouco ou quase nenhum acesso a escolarização, elas foram inseridas no mundo do trabalho doméstico, sem habilidades que as capacitassem para outro meio de sustento da vida – limitadas, portanto, pelas condições objetivas disponíveis. Diz uma entrevistada: “[...] o que desse pra mim eu trabalhava porque meu estudo foi muito pouco, aí eu trabalhava de doméstica [...]” (ENTREVISTA 9).
Uma das características do trabalho doméstico no Brasil consiste no fato de que sua incorporação nas relações sociais ocorrera sob a justificativa de ser ele, este trabalho, parte inerente à condição feminina. Fora naturalizado de tal forma que seu exercício ainda se configura como obrigação única e exclusiva da mulher. Entretanto, nem todas as mulheres são, de fato, destinadas a executar essa função; existem marcadores sociais pautados na condição de classe e de raça nas relações sociais brasileiras, além da questão de gênero, que define quem suja e quem limpa.
As lembranças dos “tempos áureos” da juventude ou da vida adulta fazem com que as entrevistadas se refiram a outros temas, como lazer, relacionamentos, casamento, filhos, a saída da cidade do interior onde morava, a vinda para a capital em busca de melhores condições e a consolidação da experiência com o trabalho doméstico.
A fragilidade das políticas sociais e a falta de acesso das entrevistadas a elas certamente influenciaram o fato de que, ainda jovens, elas começassem a vender sua força de trabalho para prover seus próprios recursos. Muitas vezes, para elas, a questão do trabalho passou a se relacionar com outros aspectos da realidade conforme as curvas da vida foram aparecendo. Conforme observamos, as condições do trabalho doméstico reafirmam as muitas limitações que lhes foram impostas, em virtude do seu restrito campo de possibilidades.
Diante disso, notamos também as limitações de acesso aos poucos mecanismos de proteção social existentes nos contextos vividos pelas mulheres entrevistadas. Além de restritos, alguns deles direcionavam-se somente aos trabalhadores formalmente reconhecidos de acordo com a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, que instituiu as normas regulamentadoras das relações individuais e coletivas de trabalho. Na época, o trabalho doméstico não era regulamentado ou sequer reconhecido socialmente, até mesmo pela própria trabalhadora. Quando perguntamos em que elas trabalhavam, surpreendemo-nos diante da resposta de que nunca haviam trabalhado; embora, logo em seguida, descrevessem atividades e ocupações condizentes com o trabalho doméstico.
As antigas formas de proteção social lembradas por essas mulheres não eram de natureza estatal nem pública; dependiam das relações de trabalho e das relações pessoais estabelecidas ao longo de suas trajetórias pessoais. Se porventura ficassem doentes ou incapacitadas temporariamente para o trabalho, cabia à patroa possibilitar, em sua própria casa, a provisão de recursos para a subsistência biológica da mulher empregada, como alimentação e moradia – e, às vezes, algum atendimento médico. Quando elas atingiam “certa idade”, ou seja, quando não tinham mais serventia para o trabalho doméstico, os patrões as “levaram” para a instituição.
Nesses casos, a “proteção” oferecida pelos patrões era, de fato, uma garantia da manutenção da mão de obra da qual eles necessitavam. Não se tratava de uma promoção das garantias sociais estatais, tampouco de “estabilidade de emprego”, ainda que algumas dessas mulheres tenham passado quase toda a sua trajetória de vida com os mesmos patrões. Como consequência da ausência de garantia de proteção social como direito, as figuras dos patrões no imaginário das idosas entrevistadas eram quase que dotadas de uma condição de divindade. Principalmente a figura da patroa, sublinhando uma relação de dependência de alguém que poderia ser comparada à figura materna.
Ressaltamos que o sistema de proteção social instituído desde a regulamentação das relações de trabalho, até chegarmos à instituição da Seguridade Social (BRASIL, 1991), é uma realidade distante daquela vivenciada pelas entrevistadas. Na medida em que o envelhecimento impossibilita a execução das tarefas que lhes garantem o sustento, elas são descartadas; os patrões “se livram do peso” e elas seguem “cumprindo a vida” em uma comunhão de destinos encontrada no Lar Torres de Melo. Para muitas dessas mulheres, depois de uma longa jornada de vida e trabalho árduo, sem conhecimento do sistema de proteção social, sem qualquer direito trabalhista, o acesso a esse “mundo desconhecido” só foi possível mediante a institucionalização de longa permanência e/ou pela concessão de benefícios destinados aos que não têm direito à aposentadoria, já na condição de residente no Lar Torres de Melo.
Ademais, elas se depararam com somatizações decorrentes das condições de uma vida precária em todos os sentidos. Com baixo nível de instrução ou mesmo nenhum, e diante das poucas oportunidades para garantir sua subsistência minimamente autônoma, elas tiveram, desde muito cedo, de oferecer sua força de trabalho e executar tarefas física e psiquicamente desgastantes, que contribuíram para o agravamento de outros aspectos relacionados à capacidade do corpo. Somam-se a isso, ainda, as marcas de violência física sofrida, como no caso a seguir:
E eu fui uma pessoa que levei muita peia, muita cacetada, muita [...]. É tanto que eu tive um AVC (Acidente Vascular Cerebral), de muita pancada que eu levei, passava o dia todim carregando água pra lavar roupa [...] em casa, em lata, eu apanhava, porque se eu caísse, ou derrubasse a lata, quando chegasse em casa era uma pisa, e você sabe que minha vida foi assim, toda cheia de marcas pelas costa, uma pessoa muito maltratada, judiada... [...] Lavação de roupa, e vivendo nas casa dos outro, trabalhando nas casa. [...] passava o dia todim feito uma burrinha, o dia todinho, carregando água pra lavar roupa, mas não via um tostão (ENTREVISTADA 7).
Embora o sofrimento vivenciado por essas mulheres tenha deixado marcas inapagáveis, elas encerram suas narrativas expressando o desejo de esquecer o passado e, quem sabe, constituir algo novo a partir do que se lhes apresenta no seu campo de possibilidades encontrado na instituição. Quem sabe, de afetos, considerando que suas condições de trabalho, em parte, privaram-nas de constituir relações de afetividade e relacionamentos que permitissem compartilhar recursos afetivos. Pois, conforme o exame de documentos da referida instituição, a maioria delas nunca se casou ou formou uma união estável. Apesar de algumas terem filhos, esse aspecto não lhes garantiu uma configuração familiar capaz de lhes prover os recursos necessários para o envelhecimento.
Nos novos projetos de vida que se constituem a partir da chegada à instituição, a afetividade ganha espaço. Essas mulheres passaram a construir novas relações através do contato com outros residentes. Tomamos conhecimento de amizades, namoros e relações duradouras que nasceram no Lar. Como retratado na fotografia a seguir, os idosos acabam encontrando, na velhice, alguém com quem compartilhar a vida.
Em síntese, o que suas memórias guardam sobre proteção social não se assemelha sequer a um suporte social informal (GUADALUPE; CARDOSO, 2013), pois dependiam da “benevolência” de suas patroas. O que as narrativas deixam fluir revela-se somente como grande lacuna: ausências por parte da família biológica, também destituída de meios suficientes para o suprimento das necessidades básicas, e, sobretudo, ausência da sociedade e do Estado. Ainda que, em alguns casos, seja possível notar nas narrativas algumas ações de solidariedade sob formas indefinidas e distantes: a ajuda de um vizinho, um amigo que dá um alimento, a patroa que “a aposenta” e/ou a “leva” para a instituição. Essas ações, efetivamente, não suprem as demandas dos recursos necessários, sejam eles materiais ou afetivos.
Por fim, conforme as memórias das entrevistadas, a proteção social como direito de cidadania não ocorreu para elas. As trajetórias narradas nos dão a conhecer uma geração de mulheres que sequer tomou conhecimento de alguns dos direitos sociais que, pouco a pouco, foram se instituindo ao longo dos muitos anos coincidentes com os de suas trajetórias. Elas só puderam se beneficiar dessas garantias e desses direitos quando chegaram à velhice, quando as desigualdades sociais são maximizadas pela condição biológica. A impossibilidade de viver sem os recursos auferidos pelo trabalho doméstico fez com que fossem institucionalizadas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa pretensão neste artigo, assim como Bosi (1994, p. 39), não foi “escrever uma obra sobre memória, tampouco sobre velhice”. Ficamos na conjunção desses pontos; colhemos “memórias de velhas” através de entrevistas, utilizando abordagens qualitativas e quantitativas, bem como empreendemos um estudo de referências bibliográficas e fontes documentais primordiais para a pesquisa que deu suporte a este artigo.
Afirmamos, então, que os sistemas de proteção social conjugam instâncias legais e institucionais voltadas à provisão de recursos, bens e/ou serviços a determinados segmentos da população, cujas condições de sobrevivência deles dependem. Ou seja: são indivíduos com trajetórias únicas, embora se assemelhem entre si pelas precárias condições de vida, maximizadas pelo envelhecimento. Vimos no Ceará a condição do “velho e pobre”, destacada por Beauvoir (2018), embora noutros contextos. Este estado brasileiro partilha de particularidades históricas da região Nordeste, ainda marcada por indicadores sociais abaixo dos das demais regiões do Brasil.
Ao invés de proteção social, as reminiscências das pessoas que foram interlocutoras da pesquisa trazem a (des)proteção social por parte do Estado, pois as referências de proteção social emergem nas entrelinhas de suas, por meio do que lhes faltou durante trajetórias marcadas pela carência de recursos materiais e afetivos. Apesar de existirem de maneira limitada, os mecanismos públicos de proteção social eram inacessíveis a essas mulheres. Devido a regulamentação tardia do trabalho doméstico, as entrevistadas, em geral, não tiveram acesso sequer a essa medida de proteção social. Elas só puderam ter acesso a algumas dessas medidas sociais de forma residual e fragmentada, como o Benefício de Prestação Continuada, por estarem, oficialmente, à margem do trabalho. Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, coincidindo com a sua entrada à “fase da velhice”, essas mulheres são amparadas socialmente pela ação estatal. Quando a proteção social passou a ser associada às obrigações jurídicas, impondo ao Estado brasileiro a responsabilidade de prover determinados recursos, tendo por base os direitos sociais.
Entretanto, no atual contexto, as atuações governamentais com esteio excessivo no neoliberalismo, notadamente a partir da segunda metade do ano de 2016, poderão impedir até mesmo a permanência do sistema de proteção social já inscrito na Constituição de 1988. Ademais, segundo Mattei (2019), estão em xeque até mesmo os direitos sociais definidos nessa Constituição. Historicamente, não se estabeleceu, de fato, no país um sistema com garantias de acesso universal; os problemas de financiamento se avolumam, como expressa a Emenda Constitucional nº 95/2016. Há uma regressão social em consequência do congelamento de gastos primários do Governo Federal com saúde, educação, assistência social, cultura, esporte e defesa nacional, entre outros setores. Por outro lado, as demandas sociais se avolumam, diversificam-se e, não raramente, a velhice se torna assustadora para os que estão no seu limiar.
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Notas