Resumo: O presente artigo apresenta uma síntese sobre o processo de privatização do setor elétrico no Maranhão e seus efeitos contraditórios produzidos, sobretudo, para a classe menos favorecida. O avanço inescrupuloso da política neoliberal sobre a classe trabalhadora e sua sanha desenfreada de dominar a tudo e a todos, produz efeitos que se assemelham a uma arapuca social. Com o uso da metodologia crítico-dialética, os resultados parciais dessa complexa problemática demonstram para a realidade local que, se por um lado, promove aumento de lucratividade sem precedentes para o acionista, por outro lado, proporciona majoração tarifária e queda na qualidade da prestação do serviço para o usuário final, além de manter milhares de famílias na escuridão sem acesso à energia elétrica, em decorrência dos óbices da universalização.
Palavras-chave: Privatização, neoliberalismo, majoração tarifária, universalização do acesso.
Abstract: This article presents a summary of the process of privatization of the electricity sector in Maranhão and its contradictory effects produced, above all, for the less favored class. The unscrupulous advance of neoliberal policy on the working class and its unbridled rage to dominate everything and everyone produces effects that resemble a social trap. Using the critical-dialectical methodology, the partial results of this complex problem demonstrate to the local reality that, if on the one hand, it promotes an unprecedented increase in profitability for the shareholder, on the other hand, it provides a tariff increase and a drop in the quality of the service. from the service to the end user, in addition to keeping thousands of families in the dark without access to electricity, due to the obstacles to universalization.
Keywords: Privatization, neoliberalism, tariff increase, universalization of access.
Artigos - Temas livres
ODE À PRIVATIZAÇÃO E OJERIZA AO ESTADO o caso da distribuição de energia no Maranhão
ODE TO PRIVATIZATION AND DISGUST TO THE STATE: the case of energy distribution in Maranhão
Recepción: 25 Julio 2022
Aprobación: 01 Noviembre 2022
Na atual fase contemporânea do modo de produção capitalista e de desenvolvimento das forças produtivas, a problemática hodierna vinculada ao debate em torno da energia elétrica e suas derivações objetivas e subjetivas – em seus variados níveis produtivos vinculados à geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia –, engloba um arcabouço complexo e contraditório subjacente ao setor elétrico brasileiro. Via de regra, o mercado de energia é envolto por uma epopeia de leis, decretos, regulamentos, normas etc., com uma visão majoritariamente cartesiana, acobertando a primazia dos interesses dos principais sujeitos envolvidos na misancene do respectivo sistema, a saber: o usuário final e o desafio da modicidade tarifária, qualidade no fornecimento e universalização do acesso.
Entre outros sujeitos envolvidos neste cenário permeado por antinomias, as concessionárias e permissionárias – as quais passam gradativamente à iniciativa privada, leia-se, mercado financeiro especulativo e, portanto, sujeito à lógica formal de balcão de trocas – buscam incessantemente a maximização do lucro, dentro de um setor regulamentado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e que movimenta anualmente cifras nababescas. Desde meados da década de 1990 – e no caso específico da energia elétrica, desde a década de 1970, conforme assevera Fadul (2004) – o Brasil experimentou uma onda de abertura em seu mercado interno para a entrada avassaladora do capital internacional, sob a prerrogativa aparente de ampliação da concorrência e choque de oferta para a indústria nacional, não obstante em sua essência engendre premissas de agudização e aprofundamento da dicotomia capital versus trabalho e desmantelamento do Estado, num quadro de precarização dos serviços públicos.
Enquanto no cenário mundial debatem-se questões que dizem respeito à transição energética de uma economia pautada na carbonização e uso de combustíveis fósseis – que promovem o aumento sem precedentes da poluição, elevação na produção de gases do efeito estufa, degradação ambiental generalizada, aumento do nível de temperatura mundial e desperdício no uso da energia – migrando-se paulatinamente para o uso da energia limpa e renovável; no contexto interno, os arautos do neoliberalismo com seu arsenal de incongruências insistem numa agenda de desmonte do Estado, privatização dos serviços públicos e todos os seus efeitos perpetrados de forma nefasta sobre a classe dominada e historicamente explorada pelos detentores dos meios de produção.
Entre aqueles principais efeitos derivados do processo hegemônico, e, portanto, funesto, das privatizações dentro do setor elétrico, observa-se que a taxa de lucro das concessionárias do segmento cresce de forma exponencial, a tarifa aumenta continuamente e a qualidade do serviço prestado arrefece, numa verdadeira tríade neoliberal, sem contar as milhares de famílias, em pleno século XXI, que ainda permanecem sem o acesso à energia elétrica de forma contínua em suas residências nos rincões do Brasil, sobretudo no meio rural.
A fim de se buscar de forma aproximativa a verdadeira essência do fenômeno que diz respeito ao processo de privatização do acesso à energia elétrica, adotar-se-á a metodologia crítico-dialética, buscando-se desvendar a real natureza da concretude observada nos paradoxos inerentes ao setor elétrico maranhense e seu caráter essencialmente subordinado aos ditames do capital, onde se busca apontar alternativas propositivas para a seguinte inquietação central: a privatização do setor elétrico beneficia principalmente a quem no Maranhão?
Além desta introdução e das considerações finais, este artigo encontra-se dividido em mais três seções. Na segunda parte, expõe-se de forma breve a questão do acesso à energia elétrica e o desafio histórico da universalização. O imbróglio da eficiência de mercado aliado ao processo de privatização do setor elétrico será tema da terceira parte. Na seção quatro, abordar-se-á o caso específico do setor elétrico no Maranhão, em especial ao segmento de distribuição, pelo prisma do aumento desmensurado da lucratividade, majoração tarifária e declínio na qualidade do serviço. Finalmente, à guisa de conclusão são apresentadas derivações gerais da pesquisa e perspectivas futuras para o setor elétrico maranhense.
Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. / Nosso céu tem mais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores. / Em cismar, sozinho, à noite, / Mais prazer encontro eu lá; / Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o Sabiá (DIAS, 2001).
O poema lírico de Gonçalves Dias (1823-1864) remete-nos em dado instante, de forma bucólica e saudosista, a um cenário favorável à contemplação de estrelas e astros no céu infinito, onde a observação noturna do firmamento permitiria um retorno onírico a sua terra natal. A composição, publicada originalmente em meados do ano de 1843, ainda guarda belezas e interpretações distintas devido a profundidade de estilo literário do eminente imortal da Academia Brasileira de Letras.[1]
O ato de observar o céu noturno no final da primeira metade do século XIX, numa época anterior ao advento da energia elétrica – a eletricidade chegaria ao Brasil somente em 1879, portanto somente 33 anos após a publicação da Canção do Exílio – tende a levar o observador, na atualidade, a comparar os benefícios advindos do uso da energia em sua plenitude de significados e, para os objetivos deste artigo, como fator indutor do desenvolvimento de determinada região,[2] dado que o consumo equilibrado de energia se relaciona diretamente com a melhoria da qualidade de vida de determinada população, embora não seja unicamente o fator decisivo para tal. No entanto, a realidade nupérrima remete-nos a milhares de famílias no Maranhão ainda às escuras, sem acesso à energia elétrica.
Nesse ínterim, foi criado o Programa Luz Para Todos (PLPT) pelo governo federal em meados do ano de 2003, pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva e pela Ministra de Minas e Energia Dilma Rousseff, com o objetivo de promover a universalização do acesso à energia elétrica em todo o Brasil e se consubstanciar em uma política pública de enfrentamento à pobreza, buscando minimizar o drama histórico vivido pelas famílias no meio rural, caracterizado, entre outras mazelas, pelo déficit de atendimento à eletrificação rural e aos chamados mínimos sociais.[3] A propósito, a partir de uma perspectiva historicizante de forma breve, como precursores do PLPT tem-se o Programa de Eletrificação Rural Luz da Terra, criado em 1996 exclusivamente para o estado de São Paulo e o Programa Nacional de Eletrificação Rural Luz no Campo, desenvolvido em 1999 para atender todo o território nacional, os quais foram base para formatação das premissas do modelo atual de universalização no acesso à energia elétrica.
A questão da eletrificação rural é um tema complexo, permeado de contradições e conflito de interesses, sobretudo no atual período de avanço do obscurantismo intensificado pelo verborrágico desgoverno Bolsonaro e de ameaça concreta de ascensão do projeto privatista em direção àquilo que restou do patrimônio público, não se limitando tão somente ao contexto circunscrito ao setor elétrico brasileiro.
A privatização e a liberalização dos mercados energéticos passaram a ser a norma, ainda que encontrassem resistências em alguns círculos. Na verdade, não havia uma política energética como tal, exceto pela abertura de certos setores à concorrência [...]. nos últimos tempos, em toda uma ampla faixa de países, houve interrupções em larga escala no fornecimento de energia, o que expôs vulnerabilidades, que em parte derivam da insuficiência dos investimentos, em parte das falhas do mercado (GIDDENS, 2009, p. 67).
Segundo Lamin (2021), contextualizando o debate para as particularidades observadas dentro do estado do Maranhão, vive-se atualmente uma realidade onde 40 mil pessoas aproximadamente não possuem acesso à energia elétrica, somado a um contexto nacional de risco de retorno do apagão elétrico, bandeiras tarifárias, ameaça efetiva de privatização da Eletrobras, queda na qualidade da prestação do serviço de distribuição de energia e taxas recordes de lucro por parte da concessionária, atendendo em síntese ao processo de acumulação do capital, fundamentado pelo aumento tarifário, processo de extração da mais-valia e, portanto, exploração da força de trabalho. Indispensável resgatar a perspectiva Marxiana neste ponto (2013):
Mas como, além disso, dado um certo valor da força de trabalho, a massa do mais-valor produzido pelo trabalhador individual é determinada pela taxa de mais-valor, segue-se a primeira lei: a massa do mais valor produzido é igual à grandeza do capital variável adiantado multiplicada pela taxa de mais-valor, ou é determinada pela relação composta entre o número das forças de trabalho simultaneamente exploradas pelos mesmos capitalistas e o grau de exploração da força de trabalho individual (MARX, 2013, p. 259).
Aliado ao desafio histórico de universalizar o acesso à energia elétrica em benefício do cidadão rural, tem-se a argumento controverso ligado ao fenômeno da privatização do setor elétrico em todo o território brasileiro, desencadeando uma série de consequências que agravam a situação de opressão e de vicissitudes depreendidas pelo proletariado, pois a energia no momento presente passa da concepção de bem público com finalidade social para a configuração enquanto mera mercadoria, dando-se ênfase ao valor de troca – em sentido visceral pelo prisma dialético da aferição de lucro – e anômalo sentido ao valor de uso, quando precipuamente deveria em seu bojo atender prioritariamente às necessidades humanas (HELLER, 1978), auxiliando no enfretamento à exclusão energética e, por conseguinte, minimizando as asperezas decorrentes das injustiças sociais em sua forma objetivada.
Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence (BRECHT, 2007, p. 111).
As mudanças recentes pelas quais vem passando o setor elétrico brasileiro denotam uma mudança estrutural profunda para atender premissas dos mais diversos propósitos – dado o conflito explicitamente antagônico entre o fomento privado com sua lógica rentista e os interesses coletivos do serviço público –, ora atendendo interesses mercadológicos e de privatização do fornecimento da energia elétrica, ora pautadas em modelos vinculados ao novo marco regulatório do setor, o qual se vincula, teoricamente, ao tripé da modicidade tarifária, universalização do acesso à energia elétrica e qualidade no fornecimento.
[...] as mudanças estruturais no setor elétrico, que vêm ocorrendo nas diversas regiões do planeta, inspiram-se na ideia de separação do produto – a energia – e dos serviços – a transmissão e a distribuição. Nesse novo modelo, a produção é entendida como um negócio competitivo e, na maioria dos países cujos setores têm sido ou vêm sendo reformados sob esse enfoque, a energia passa a ser comercializada em bolsas de energia como uma ‘commodity’ (FADUL, 2004, p. 52).
O ano de 1995 pode ser considerado como o ponto de inflexão e marco inicial para o programa de desestatização do setor elétrico brasileiro, materializado a partir da venda da concessionária de energia Escelsa – Espírito Santo Centrais Elétricas S. A., a qual foi marcada, entre outros efeitos deletérios, por drásticas mudanças na qualidade de vida da força de trabalho.[4] Rizzi (2008) coloca de forma emblemática que o caso da privatização da Escelsa provocou mudanças significativas em variadas dimensões, sobretudo nas esferas econômicas, políticas, sociológicas e, inclusive, psicológicas.
Em epítome, sabe-se que o início da trajetória da política de desmonte do Estado brasileiro foi oficializada a partir da Lei nº 8.031 de 12 de abril de 1990, com o Programa Nacional de Desestatização (PND) criado pelo governo Fernando Collor de Melo.[5] Em seu âmago, o PND propunha entre outros objetivos fundamentais “reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público” (BRASIL, 1997). Ou seja, a famigerada modernização do Estado pressupõe, ao contrário, uma política explicitamente de sucateamento pautada, em sua essência, nos postulados do esfaimado Consenso de Washington, denotando aquelas idiossincrasias na fase atual do capitalismo contemporâneo de incentivo à privatização, austeridade e ajuste fiscal, queda na qualidade do serviço, demissões em massa, terceirização etc.
Nos processos de privatização das empresas estaduais de energia, as justificativas geralmente apresentadas nas assembléias [sic] legislativas para a aprovação são: falta de recursos para a área social e para os programas de eletrificação rural e, a necessidade de formação de poupança e abatimento de dívidas estaduais (ROSA et al., 1998, p. 162). Entretanto, para ABREU e GUERRA (2000) após o processo de privatização das empresas de energia elétrica, o acesso à energia por parte da população mais carente ficou bastante difícil, devido ao corte de subsídios e interesses específicos do setor privado (MATSUDO, 2001, p. 50).
Nos últimos cinco anos, dez concessionárias de distribuição de energia foram foco do interesse do afoito projeto de privatização, engendrado pelo avanço do neoliberalismo, onde o Estado passa gradativamente de provedor de serviços públicos para regulador do mercado, transferindo a finalidade de atendimento às necessidades da população para empresas que, fundamentalmente, buscam a maximização das taxas de lucro em detrimento da qualidade do serviço.
A Tabela 1 apresenta as concessionárias que foram alvo do projeto desarrazoado das privatizações ilegítimas no setor elétrico brasileiro apenas nos últimos cinco anos, pois anteriormente a este período, tem-se um histórico perpetrado de desmonte do Estado consubstanciado pelo processo majoritário de desmantelamento do setor público em franco favorecimento à iniciativa privada. Chama a atenção que, entre as concessionárias de energia elétrica do país que foram alvo do processo de privatização recente, quatro delas foram adquiridas pelo Grupo Equatorial (PI, AL, RS e AP), a qual é igualmente acionista controladora das distribuidoras nos estados do Maranhão e do Pará. É fato notório que a distribuição de energia elétrica se enquadra na categoria denominada de monopólio natural, em decorrência de determinadas características que envolvem economias de escala e de escopo. Porém, o que se observa é o avanço de empresas de capital aberto em direção a este nicho de mercado, que embora apresente caraterísticas intrínsecas de serviço público, passa a ter um viés propenso a metamorfosear a energia em mercadoria, portanto, sujeita às vicissitudes do mercado e à cotação e pregões em bolsas de valores, inclusive Wall Street, e todo caráter de repercussões reverberadas em direção ao lado mais “frágil” das oscilações ao sabor do mercado, a saber: o usuário final.
Há uma miscelânea de pesquisas que atestam os efeitos contraditórios advindos do processo de privatização das concessionárias de energia no contexto brasileiro, como por exemplo, Behr (2002), Pinho (2004), Etcheverry (2008), Silvestre e Figueira (2008), Silvestre et al (2010), entre outros, demonstrando as profundas transformações e impactos negativos incorridos sobretudo sobre a classe trabalhadora.
Este processo que encaminha para as reformas do setor redunda na perda de autonomia das empresas públicas para administrar seus próprios recursos, limitando drasticamente seu potencial para investir em expansão e modernização. As empresas ficam endividadas e deficitárias. O discurso privatizante se fortalece neste ambiente e para os usuários a imagem será a de ineficiência (ETCHEVERRY, 2008, p. 6).
A atração do capital privado é conduzida para fazer frente à suposta “ineficiência” das estatais, embora o discurso seja de fato orquestrado pelo processo parasitário de maximização do lucro. “Uma das materializações de tais dogmas se deu nos processos de privatizações, com a transferência para o capital privado de todos os setores rentáveis da economia” (CARVALHO et al, 2010, p. 240, grifos nossos). Ou seja, o setor elétrico nacional apresenta um distinto índice de rentabilidade quando comparada aos demais setores da economia nacional, onde entre as 30 maiores empresas que apresentaram maior lucratividade no ano de 2021 em todo o Brasil, quatro grupos empresariais são pertencentes ao setor elétrico, as quais, se somadas, totalizariam uma lucratividade de R$ 139,3 bilhões – incluindo a estatal CEMIG que obteve em 2021 um lucro de R$ 3,75 bilhões (ALVARENGA, 2022), contrariando a premissa difundida amplamente pela corrente tóxica neoliberal de ineficiência generalizada das empresas públicas –, evidenciando o processo de concentração e centralização do capital no capitalismo contemporâneo.
Como a ação do setor privado dentro dos mercados tem por objetivo a maximização do meio instrumental, que é o dinheiro, pelo lucro, a racionalidade econômica é do seu métier por excelência. As empresas privadas são vistas como “instituições divinas”, representantes morais de toda a virtude, associadas a fatores como eficiência, eficácia e produtividade. Essa ética instrumental deve então ser irradiada para toda a sociedade, inclusive e principalmente para o Estado, acusado de moroso e ineficiente, a quem cabe “reformar-se” e replicar a “lógica do privado” (DASSO JÚNIOR, 2021).
A transferência do serviço público do fornecimento de energia elétrica para empresas com finalidade lucrativa, leva ainda ao óbice da antinomia flagrante que diz respeito ao objetivo central da empresa pública em comparação à lógica da empresa privada, ou seja, o objetivo de atendimento às necessidades da população, derivadas do uso da energia elétrica, se sobrepõem às “necessidades” precípuas de maximização do lucro da empresa capitalista, impactando fortemente no âmago do processo de tomada de decisão dos gestores privados, bem como no direcionamento de investimentos para aqueles setores considerados menos rentáveis, os quais ficam nitidamente comprometidos em decorrência da lógica rentista do setor privado, notadamente àquelas regiões de difícil acesso na zona rural.
[...] a estrutura industrial do setor energético atual já é dominada pelo capital privado. O processo de decisão dos investimentos é muito mais complexo e o governo tem pouco controle sobre este processo. Ressalte-se que independentemente do grau de intervenção do Estado na economia, a variável “investimento privado” não pode ser controlada pelo governo. Os investimentos acontecem apenas quando as empresas enxergam uma relação risco-retorno favorável para os seus investimentos (ALMEIDA; BICALHO, 2014, p. 232-233).
Dessa forma, o projeto privatista somado ao mito da eficiência do mercado alega promover a modicidade tarifária e melhoria na qualidade do serviço, embora não seja aquilo que se observa no campo real e concreto, pois a privatização beneficia acima de tudo aos acionistas e detentores dos meios de produção, via taxas recordes de lucratividade, aliadas à majoração tarifária e queda na qualidade do serviço ofertado, os quais serão observados a seguir de forma inconteste para o contexto maranhense.
Ó minha cidade / Deixa-me viver / que eu quero aprender / tua poesia / sol e maresia / lendas e mistérios / luar das serestas / e o azul de teus dias. / Quero ouvir à noite tambores do Congo / gemendo e cantando dores e saudades. / A evocar martírios / lágrimas, açoites / que floriram claros sóis da liberdade. / Quero ler nas ruas / fontes, cantarias / torres e mirantes / igrejas, sobrados / nas lentas ladeiras que sobem angústias / sonhos do futuro, glórias do passado (TRIBUZI, 1986).
Embora o saudoso Bandeira Tribuzi (1927-1977) tenha retratado com grande sensibilidade uma verdadeira ode no antológico poema Louvação a São Luís, cabe-nos aqui brevemente o recurso da licença poética para transcender as fronteiras territoriais da ilha magnética e observar o contexto subjacente ao estado do Maranhão em sua totalidade e suas respectivas especificidades em torno da energia elétrica. Os sonhos do futuro elencados no verso remetem a perspectivas porvindouras de melhores condições de vida para a população, em termos de acesso a bens e serviços públicos e de qualidade, atendendo aos anseios da classe trabalhadora em sua plenitude de necessidades, sobretudo àquelas mais básicas.
O resgate histórico do advento e do processo de oferta regular de energia elétrica no Maranhão remete-nos à década de 1920, onde a empresa norte-americana Ulen Company se estabelece na condição da pioneira concessionária de energia do Maranhão, numa época marcada nitidamente pela precariedade dos serviços públicos.
Historicamente, grande parte dos Ludovicenses nunca teve acesso regular à água potável de boa qualidade, rede de esgotos, luz elétrica, transporte coletivo, logradouros públicos e higienização urbana. Mesmo ao longo dos anos 1920, período em que os governos Urbano-Godofredo-Magalhães realizaram a tardia reforma urbana de São Luís, por intermédio do projeto Ulen, a maioria dos habitantes da cidade continuava sofrendo as mazelas oriundas da decadência dos serviços básicos, prisioneira de crônicos problemas ligados à contaminação da água, poluição de mananciais, precário sistema de saneamento, falta de luz, sujeira e doenças terríveis, como tifo e febre amarela (PALHANO, 2017, p. 18).
Três décadas após o fracassado do projeto Ulen, através de Lei Estadual nº 1.609, de 14 de junho de 1958, foi criada a CEMAR – Companhia Energética do Maranhão, com o objetivo de garantir a distribuição de energia para todo o estado, sob os auspícios do poder público estadual. No entanto, a partir da implantação do modelo neoliberal de reestruturação do setor elétrico brasileiro, a Companhia experimenta um fenômeno sui generis, passando por aquilo que se pode chamar de dois ciclos de privatização. No primeiro ciclo, o processo de privatização ocorre no ano 2000, onde a concessionária de energia foi comprada pela corporação norte-americana PPL (Pennsylvania Power and Light Company),[6] levando a uma série de efeitos danosos para a força de trabalho.
No processo de privatização da CEMAR, chama atenção a ofensiva ideológica da PPL Global sobre os funcionários e demais entidades, no sentido de desencadear ‘uma mudança de cultura’ na relação dos trabalhadores com a empresa [...] O objetivo da Focus é que todos os funcionários da CEMAR e algumas entidades participem de seu treinamento, que inclui passar uma semana num dos melhores hotéis de São Luís, recebendo informações intensivas sobre como melhorar seu desempenho. Ao final de uma semana, o funcionário ‘vai estar compreendendo e vai levar para sua nova direção estratégica os conhecimentos, ansioso para começar a contribuir’ (GOMES SILVA, 2001, p. 220).
Ademais, devido a uma gestão desastrosa – marcada pela inadimplência diante dos fornecedores, dificuldades financeiras e operacionais, falta de investimentos, aumento das dívidas – o contrato de concessão foi paradoxalmente abandonado no ano de 2002 e o grupo ianque desiste do escarcéu no setor elétrico maranhense, levando à necessidade da intervenção federal pela ANEEL. Entre outros efeitos internos provocados pela primeira tentativa fracassada de privatização, tem-se o legado negativo para o quadro de funcionários, o qual amargou uma taxa de demissão de 27% da força de trabalho (PINHO, 2004).
Outro exemplo da articulação do processo de ajuste fiscal com as formas de espoliação do capital ocorreu com a privatização da CEMAR [...]. A empresa foi privatizada dia 15 de junho de 2000, após ser saneada com investimentos de 122,4 milhões de reais, tendo sido adquirida por uma multinacional por 522,8 milhões de reais. O saneamento significou principalmente redução de trabalhadores, que passaram de 2.384 em 1995 para 1.500 em 2000 (BARROS, 2009, p.77).
Em seguida, após a fase de intervenção federal, no ano de 2004 a concessionária passa pelo segundo ciclo de privatização, desta vez tendo sido adquirida pelo Grupo GP Investimento pelo valor insólito de apenas 1 real, caracterizando o verdadeiro intuito do projeto privatista de desmonte do Estado e entreguismo do patrimônio público para a iniciativa privada. O Grupo GP é controlado por um fundo de investimento denominado de privaty equity, que consiste basicamente em comprar empresas falidas, fazer uma ampla reestruturação financeira – dando ênfase na meritocracia, demissões em massa, austeridade no controle de custos etc. – para, em seguida, revender o que era inicialmente patrimônio público, aferindo lucros exorbitantes.[7] Nesse interregno, no ano de 2006 o controle da CEMAR é repassado para a Equatorial Energia, grupo este que passa a ser, na atualidade, um dos maiores conglomerados empresariais dentro do setor elétrico tupiniquim.[8] O processo espúrio de privatização é acompanhado pelas prerrogativas neoliberais de alienação e demissão em massa da força de trabalho, pressão psicológica no ambiente de trabalho pelo atingimento de metas individuais e coletivas desmedidas, terceirização de atividades fins, queda da qualidade do serviço etc.[9] Para os fins deste ensaio, nos deteremos em três especificidades e consequências diretas do projeto entreguista, a saber: aumento desmensurado da lucratividade, queda na qualidade da prestação de serviços e majoração tarifária, os quais serão abordados a seguir.
A perda do nível de conhecimento sobre o próprio trabalho é um item preponderante para a alienação do trabalhador. No setor elétrico brasileiro, com as privatizações e demissões, perdeu-se massa crítica, perdeu-se conhecimento quando engenheiros, técnicos e gerentes foram demitidos indiscriminadamente. Muitos dos problemas surgidos, como por exemplo: alguns ‘apagões’ tiveram como causa a péssima manutenção advinda da falta de conhecimento dos novos contratados, na maioria dos casos, terceirizados (BEHR, 2002, p. 123-124).
A política de gestão agressiva e de verdadeira obstinação pelo lucro, conforme as próprias palavras da distribuidora local de energia[10], proporcionou uma elevação de 34,7% em seu lucro líquido apurado, passando de R$ 700,3 milhões em 2020 para R$ 943,4 milhões em 2021 (Gráfico 1), portanto, um mirífico lucro líquido próximo da cifra opulente de 1 bilhão de reais, considerando apenas a operação dentro do contexto maranhense. Ao se considerar a lucratividade do grupo como um todo, abarcando os estados do MA, PI, PA, AL, RS e AP, o lucro apurado da holding[11] alcança a exorbitante cifra de 3,7 bilhões, proporcionando aumento de dividendos sem precedentes para os acionistas e colocando a empresa no ranking entre os trinta maiores grupos empresariais do Brasil, alçando a 26ª posição (ALVARENGA, 2022).
Questão factual da concepção crítico-dialética da história demonstra que a raiz do lucro capitalista se dá inerentemente a partir do processo de exploração da força de trabalho, advindo da expropriação e apropriação do valor excedente de produção, materializado pelo espólio da mais-valia, portanto, quanto maior a taxa de lucro do capitalista, maior será a exploração da classe operária, dado que, além do rebaixamento dos salários reais, se remunera parcialmente o trabalho necessário e apropria-se do trabalho excedente.
Outra prerrogativa vinculada ao discurso da privatização do setor elétrico diz respeito à suposta melhoria na qualidade do fornecimento da energia elétrica, a qual pode ser mensurada a partir de determinados indicadores de qualidade (Gráfico 2), os quais mensuram a duração e a frequência da falta de energia em dado período, a saber: i) DEC – Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora e ii) FEC – Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora.
Conforme observado no Gráfico 2, a qualidade do fornecimento de energia elétrica no Maranhão demonstrou piora em seus indicadores de continuidade do sistema. Ou seja, o DEC passou de 18,41 horas de interrupção média em 2020 para 29,1 horas em 2021, o que representa uma elevação de 58,07%. Em termos da frequência da falta de energia mensurada pelo FEC, o ano de 2020 registrou uma média de 7,99 interrupções contra 9,7 em 2021, significando uma piora de 21,4% no intervalo do período analisado.
No entanto, os índices DEC e FEC melhoraram para todas as distribuidoras contempladas neste estudo (exceto a CEMAR, que apresentou piora na qualidade do serviço prestado após a privatização), principalmente se compararmos com as médias antes e depois da privatização (Tabelas 6 e 8). Essa tendência pode ser confirmada pelo fato de as distribuidoras públicas não apresentarem a pior evolução nos indicadores técnicos (SILVESTRE et al, 2009, grifos nossos).
Além das anomalias observadas no DEC e FEC, ranking recentemente veiculado pela ANEEL coloca a distribuidora local de energia na penúltima colocação em termos da qualidade de serviço entre as vinte e nove concessionárias de energia de grande porte em nível nacional. O Indicador de Desempenho Global de Continuidade (DGC) compara o desempenho de uma concessionária em relação às demais no quesito continuidade no fornecimento de energia. Segundo a ANEEL:
A distribuidora que mais evoluiu em 2021 foi a LIGHT, com um avanço de 10 posições, seguida por EPB e EDP SP, que melhoraram 8 posições em comparação ao ano de 2020. As últimas colocadas foram: ENEL GO (27º), EQUATORIAL MA (28º) e CEEE (29º). As concessionárias que mais regrediram no ranking foram a EQUATORIAL MA, que registrou queda de 20 posições, e a CELESC, com recuo de 9 posições em comparação a 2020 (ANEEL, 2022c).
E finalmente, além da lucratividade e da qualidade do fornecimento de energia, o terceiro indicador aqui proposto para averiguar os efeitos da privatização versa sobre a tarifa de energia elétrica. O cálculo da tarifa obedece a dois processos de formação de preço conduzidos pela ANEEL, que correspondem ao reajuste tarifário e à revisão tarifária.
O expressivo aumento dos indicadores de desempenho operacional das concessionárias não se consubstanciou em redução nas tarifas. Assim, o argumento de que o capital privado se encarregaria de expandir o sistema elétrico e que — no ambiente competitivo do mercado — as tarifas ficariam mais baratas, não se concretizou (FARIAS, 2006, p. 105).
O reajuste tarifário corresponde ao processo de recomposição do custo do serviço de distribuição de energia e ocorre anualmente, a partir da correção das tarifas pela inflação do período. Enquanto a revisão tarifária é um mecanismo de redefinição das tarifas cobradas ao consumidor e busca recompor os custos gerenciáveis da distribuidora de energia.
Ao contrário daquilo apregoado pela ideologia neoliberal – cuja cartilha privatista reza falácias de redução do custo da energia para o usuário final – observa-se que o custo tarifário no Maranhão apresenta uma trajetória crescente para o segmento residencial (Gráfico 3). No ano de 2020, o valor da tarifa residencial atualizada pela inflação alcançou o valor de R$ 783,2 por MWh, enquanto no ano de 2021, o valor atingiu R$ 1.048,1, correspondendo a uma variação de 33,8%. Os aumentos consecutivos percebidos na tarifa de energia elétrica evidenciam os custos para o consumidor final bem acima da inflação, denotando a mercantilização do serviço, outrora público, e transformação da energia em mercadoria, influenciando o aumento da lucratividade em detrimento da qualidade do serviço para a população.
“Minha terra tem palmeiras, / Onde canta [...]” o aumento tarifário, conciliado com a falta de acesso à energia elétrica para todos, falta saúde e educação, enfim, falta dignidade e cidadania para todos. Mais de 40 mil pessoas não possuem atualmente acesso à energia elétrica no Maranhão, favorecendo o estado de pauperismo e degradação humana potencializado pelo projeto privatista neoliberal, dada a possibilidade que a energia elétrica tem em favorecer a geração de renda e minimizar o abismo social, inobstante o dinamismo energético evidentemente não seja, por si só, elemento suficiente garantidor da cidadania.
Conforme aqui exposto, constata-se que o processo de privatização da distribuição de energia no Maranhão foi alvissareiro para o acionista, porém não proporcionou os efeitos outrora prometidos para o usuário final. Ao contrário, o neoliberalismo parasitário engendrou majoração tarifária, queda na qualidade do serviço de distribuição e aumento sem precedentes da lucratividade. Para fulgir a arapuca neoliberal e alcançar a emancipação humana, faz-se mister garantir que o interesse público seja cumprido, levando a energia com qualidade e preços módicos para a população, gerando benefícios sociais a partir da possibilidade do uso produtivo da energia em pequena escala, favorecendo, por exemplo, a pequena agricultura familiar (uso de bomba d’água para irrigação), psicultura (aplicação do aerador e oxigenador), granja (aplicação de ventilador, termostato e iluminação noturna) etc., sobretudo para as classes menos favorecidas e historicamente excluídas do sistema de produção capitalista escatológico, evitando o constrangimento social coletivo pela falta de acesso à energia.
No cenário atual periclitante de aumento do obscurantismo, vinte e sete anos após a privatização da primeira distribuidora de energia elétrica do país, o alvo do projeto privatista passa a ser a Eletrobras, dentro de um contexto em que grande parte do setor de distribuição de energia já passou para a iniciativa privada. A privatização dos lucros e a socialização das perdas acaba sendo, em última instância, o verdadeiro intuito do arsenal neoliberal. Portanto, cabe à sociedade dizer não ao projeto privatista do setor elétrico, pois a energia não é mercadoria.