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Recepción: 22 Enero 2022
Aprobación: 14 Noviembre 2022
DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v26n2p859-879
Resumo: O artigo analisa as repercussões da legislação trabalhista na educação superior pública e privada, após 2016. Os procedimentos metodológicos utilizados incluíram: revisão da literatura, análise de documentos oficiais do período e realização de entrevistas. Os dados foram analisados sob o aporte teórico da Psicodinâmica do Trabalho, da Sociologia do Trabalho e do Materialismo Histórico Dialético, buscando uma análise crítica das múltiplas determinações da realidade estudada. O texto inicia, apresentando os antecedentes legais, históricos, políticos e econômicos que criaram as condições materiais e ideológicas para as transformações que impactaram a classe trabalhadora no Brasil. Em seguida, apresenta e discute as novas legislações trabalhistas e seus efeitos nas condições de trabalho, na vida e saúde dos trabalhadores das instituições de ensino superior.
Palavras-chave: Legislação trabalhista, trabalho, educação superior.
Abstract: This article analyzes the repercussions of Brazilian labor legislation on the country’s public and private higher education after 2016. The methodological procedures adopted included: a literature review, an analysis of official documents published in the period, and interviews. The theoretical frameworks of the Psychodynamics of Work, the Sociology of Work and the Dialectical and Historical Materialism were adopted with a view to enabling a critical analysis of the multiple determinations of the reality under study. The text begins with a presentation of the legal, historical, political and economic circumstances that created the material and ideological preconditions for the transformations that have impacted the working class in Brazil. The subsequent labor laws and their effects are then presented and discussed, in the light of the working conditions, life and health of workers in higher education institutions.
Keywords: Labor legislation, work, higher education.
1 INTRODUÇÃO
O objetivo geral do presente texto[1] é analisar as repercussões da Lei da Terceirização – Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017 (BRASIL, 2017a) – e da Reforma Trabalhista – Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017 (BRASIL, 2017b) – nas condições de trabalho, na vida e na saúde dos trabalhadores da educação superior, inseridos em instituições públicas e privadas. Pretende-se, portanto, analisar os antecedentes históricos, políticos e econômicos que criaram as condições materiais e ideológicas para as transformações que impactaram a educação superior; discutir os novos mecanismos legais que avançam na direção da alienação do trabalho; identificar como a precarização e a intensificação do trabalho se configuram para os trabalhadores da educação superior, incluindo os terceirizados; identificar em que medida as instituições de educação superior públicas e privadas estão incorporando os novos modelos de contratação legalizados pela Reforma Trabalhista (teletrabalho, home office, pejotização, trabalho intermitente, dentre outros) e pela Lei da Terceirização; analisar as atuais imposições do mundo do trabalho e seus efeitos na vida e na saúde dos trabalhadores das instituições de educação superior (IES) públicas e privadas e identificar as estratégias de enfrentamento implementadas pelos trabalhadores no âmbito individual e coletivo.
Do ponto de vista dos procedimentos metodológicos, foram realizados: rastreamento bibliográfico das temáticas pertinentes; levantamento e análise de fontes documentais e dispositivos legais das principais categorias necessárias ao estudo, consulta de dados agregados já existentes, além de uma pesquisa de campo, que envolveu a realização de 14 entrevistas semiestruturadas envolvendo docentes da rede privada; técnico-administrativos da rede pública e da rede privada; trabalhadores terceirizados do serviço de limpeza e conservação da rede pública e da rede privada, todos do estado do Maranhão[2].
Os princípios éticos da pesquisa estão em consonância com as prescrições do Conselho Nacional de Saúde, que regem as pesquisas em Ciências Humanas e Sociais e, para garantir o anonimato, os depoimentos ao longo do texto estão identificados com letras: D (Docente); A (Auxiliar de Serviços Gerais, onde se incluiu também as entrevistas do motorista e do segurança); TA (Técnico-Administrativo).
Os dados foram analisados tendo como subsídios o aporte teórico da Psicodinâmica do Trabalho, da Sociologia do Trabalho e do Materialismo Histórico Dialético, considerando que a articulação entre essas abordagens propicia uma análise crítica das múltiplas determinações da realidade estudada.
2 BREVE RECORTE HISTÓRICO DOS MARCOS LEGAIS QUE PAVIMENTARAM O ATUAL ESTADO DE PRECARIZAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA NO PAÍS
Foi durante a vigência do Estado Novo (1937-1946) que houve um expressivo incremento das leis trabalhistas brasileiras, incremento esse que resultou na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943. Essa importante referência legal, apesar de suas limitações, em especial pela não abrangência do trabalho rural, propiciou muitos direitos sociais, pois regulamentou temas como jornada de trabalho, período de descanso, férias, proteção do trabalho da mulher, amparo em atividades insalubres, entre outros, além de criar o direito processual do trabalho.
A CLT sofreu várias alterações ao longo dos anos. No período da Ditadura Militar (1964-1985), por exemplo, marcado por intensa perseguição aos sindicatos e seus líderes, mais de 200 artigos da CLT foram alterados. Data dessa época a promulgação da Lei nº 4.330/1964, conhecida como a Lei Antigreve; do Decreto que permitiu a terceirização no serviço público (Decreto-Lei nº 200/1967) e da Lei do trabalho temporário (nº 6.019/1974).
Nessa trajetória de perdas e ganhos de direitos sociais, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), conhecida como Constituição “cidadã” por ter sido gestada no processo de redemocratização do Brasil, foi muito relevante em termos de avanços positivos para diversos campos, e o Direito do Trabalho é uma dessas áreas, pois passou a garantir uma maior proteção e fontes de recursos mais estáveis para as políticas voltadas ao amparo dos trabalhadores, tanto os que desenvolvem suas atividades no meio urbano, quanto os que estão no meio rural.
Contudo, não obstante as forças políticas que fizeram consolidar no texto constitucional algumas demandas das camadas populares, o caráter sincrético[3] da CF-88 já estava presente desde então, abrindo canal para mudanças desfavoráveis às conquistas possíveis, conforme Fernandes (2007). A década de 1990 no Brasil foi marcada por transformações relevantes na sociedade brasileira, sob os ditames da globalização e do neoliberalismo, marcos históricos que buscaram extinguir direitos sociais. A partir do governo de Fernando Collor de Melo (1990) o Brasil passou a viver o início de uma ruptura que marcou para sempre os rumos do país, e isso significou conforme Anderson (1995, p.11): “[...] manter o Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas”. Desde então, as mudanças promovidas por governos balizados pela política neoliberal foram pautadas por desregulamentação de mercados, privatização, desnacionalização de empresas e fragilização dos vínculos trabalhistas. Esta última pauta, por sinal, ataca em cheio os sindicatos, pois como lembra Marcelino (2015, p.100-101): “Depois da década de 1980, na qual o país viveu uma ascensão do movimento sindical, recompor o domínio sobre os trabalhadores era uma tarefa importante para as empresas no sentido de garantir suas taxas de lucros”.
Sob a ideologia neoliberal, toda a regulamentação para o trabalho propiciada pelos instrumentos legais citados (CLT e CF/88) foi sendo atacada, diante do entendimento, por parte das empresas e do próprio Estado, de que esses instrumentos legais são símbolos de rigidez, que dificultam a modernização das relações de trabalho e a criação de empregos no país. Em oposição à rigidez, passa-se a defender a flexibilidade, nos mais diversos aspectos do campo laboral, como: contratos, jornadas, benefícios, salários, entre outros. Todavia, Sennett (2004, p. 69) desnuda esse termo: “O tempo nas instituições e para os indivíduos não foi liberado da jaula de ferro do passado, mas sujeito a novos controles do alto para baixo. O tempo da flexibilidade é o tempo do novo poder”.
Nos últimos trinta anos a classe trabalhadora sempre lutou contra as frequentes tentativas dos empresários de demolir os amparos legais, especialmente as propostas de ampliação da terceirização e a prevalência do negociado sobre o legislado. E, de fato, a resistência possibilitou que algumas dessas discussões não evoluíssem, por meio de reformas constitucionais e infraconstitucionais, durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), apesar do empenho governamental nesse sentido.
Com o Partido dos Trabalhadores no poder (2003 a 2016), o Estado voltou a investir em políticas sociais e valorização do salário mínimo, o que dinamizou o consumo para a população de baixa renda, porém, conforme Campos (2015, p. 21):
[...] a parcela constituída pelos direitos laborais enfrentou uma situação ambígua. Parte dos direitos individuais também se expandiu sendo a valorização do SM [salário mínimo] o caso mais relevante a ser mencionado. Mas outra parte desses direitos se contraiu (no sentido de fragilizar a posição dos trabalhadores nas relações laborais), sendo os casos mais importantes aqueles instituídos pelas Leis nº 11.196/2005[4], nº 11.442/2007[5], nº 11.603/2007[6] e nº 11.718/2008[7] [...]
A partir dos primeiros quinze anos do século XXI, foi se desenvolvendo um contexto mais favorável para diversas reformas que visavam demolir direitos trabalhistas históricos no país. Conforme Mancebo (2021, p. 231):
Desde 2016, o Brasil amarga um golpe, uma ruptura democrática, acompanhada por uma grave crise política, econômica e social, com todos os requintes de uma plataforma programática do neoliberalismo extremado. As medidas adotadas a partir do golpe desmontaram o Estado no seu “braço social” e, com o auxílio do Congresso – que tem se caracterizado por ter grande número de seus membros comprometidos por denúncias de corrupção e por ter um largo número de representantes de setores empresariais, eleitos com fortes contribuições financeiras de grandes empresas –, foram votadas, de forma apressada, praticamente sem debate público, toda uma nova legislação, que afeta diretamente o trabalho.
Após o golpe, antigas propostas foram viabilizadas pelo presidente Michel Temer (2016-2019). Preliminarmente, cabe citar a Emenda Constitucional nº 95, aprovada em 2016, que congelou as despesas primárias, reduzindo-as em relação ao PIB ou em termos per capita por vinte anos e impôs “[...] uma perda [à educação] de R$ 99,5 bilhões (USD 20 bilhões), sendo R$ 32,6 bilhões só em 2019 (USD 7 bilhões), segundo cálculos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação” (PELLANDA, 2020). Isso tem se revertido em dificuldades concretas de diversos níveis para o campo da educação como um todo, destacando no caso da educação superior: redução na abertura de concursos para docentes e técnicos; interrupção de obras; terceirização de serviços; sobretrabalho docente na busca de fomentos para suas pesquisas; entre outras tantas situações que acentuam a precarização do trabalho das universidades públicas.
Deve-se registrar que, em contrapartida a esses cortes, para o setor privado, as medidas foram bem diversas. O presidente Jair Bolsonaro aprovou em 07 de dezembro de 2021, uma Medida Provisória (MP nº 1.075/2021) que libera o acesso do PROUNI (Programa Universidade para Todos) também a alunos de escolas particulares e sem bolsa de estudos integral. Nesse contexto de congelamento de despesas públicas, tal medida merece o resgate de uma crítica do jornalista Fernando Rodrigues trazida por Leda (2009, p. 177), a esse Programa do governo federal: “[...] não há na proposta uma exigência sobre o padrão educacional das faculdades privadas para receberem os benefícios. Ensinam mal, acumulam dívidas e são salvas pelo governo”.
Além da Emenda Constitucional nº 95, foram aprovadas duas leis propriamente trabalhistas, de extrema importância para os anseios empresariais: a Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017, que trata da terceirização irrestrita (BRASIL, 2017a) e a Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017 (BRASIL, 2017b), cujas modificações compõem a chamada Reforma Trabalhista. Embora a denominação adotada seja Reforma Trabalhista, temos plena concordância com autores que qualificam esse arcabouço legal de contrarreforma, pois ele: “[...] modificou a estrutura do Direito do Trabalho no Brasil, com a alteração de mais de cem artigos da CLT e legislações esparsas, flexibilizando, reduzindo e suprimindo vários direitos sociais dos trabalhadores”. (ALMEIDA, 2020, p. 40).
Mais recentemente, durante o governo de Jair Bolsonaro, uma sequência de novas flexibilizações ocorreram, aprofundando o processo de contrarreformas e a vulnerabilidade do trabalhador, entre elas estão: Lei nº 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica); a Medida Provisória (MP) nº 905/2019 (Contrato Verde e Amarelo); a MP nº 936/2020; a MP nº 1.045/2021 (Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda) e a Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019 (BRASIL, 2019), que dificultou o acesso à previdência e diminuiu o valor das aposentadorias. Importante ressaltar que todos esses dispositivos legais foram criados com a mesma justificativa: fomentar a economia e gerar empregos. No entanto, essas promessas não se cumpriram!
3 AS NOVAS LEGISLAÇÕES TRABALHISTAS E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE DO TRABALHADOR: uma análise do campo da educação superior
Com a expansão acelerada do trabalho temporário, precário e subcontratado, possibilitada pela aprovação das novas legislações trabalhistas, as relações de produção vêm apresentando uma configuração na qual os trabalhadores têm menos direitos, estão submetidos a um ritmo de produção intenso, dispondo de precárias condições de vida, saúde e de trabalho.
Nesse ponto, merecem registro as desigualdades no mercado de trabalho brasileiro, e uma de suas principais manifestações pode ser constatada pelo recorte entre raça e gênero, já que a acumulação do capitalismo no Brasil atua fazendo uso de estruturas sociais já existentes – como o racismo e o patriarcado. Conforme recente pesquisa do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, reportada por Depieri, Ganaka e Bugni (2022, n. p.):
As articulações decorrentes da intersecção gênero, raça e classe estruturam as relações sociais e imprimem na vida das mulheres e das pessoas negras deste país as assimetrias de ordem econômica e social. [...] São transferidas para os mais vulneráveis as inserções mais precárias, com sobrerrepresentação no setor informal, menores rendimentos, maiores níveis de desocupação, e, cada vez mais, maior participação dentre os subutilizados..
Assim, as desigualdades de gênero e raça, a partir da ampliação de sua participação relativa, especificamente em trabalhos precarizados, mal remunerados e na informalidade, remetem mulheres e negros a condições de vida e saúde de mais sacrifícios e pior qualidade.
Contudo, para naturalizar e legitimar práticas que desprotegem o trabalhador e fragilizam ainda mais as relações de trabalho, um vasto arsenal ideológico vem sendo construído e difundido. As duas leis anteriormente citadas (Lei nº 13.429/2017 e a Lei nº 13.467/2017) são exemplos claros dessa manipulação. Ambas foram aprovadas sem discussão com a sociedade, com a grande justificativa de geração de empregos e, conforme Guimarães Júnior (2019, p.79), “[...] sob um simulacro desenvolvimentista, baseados na ideia de um suposto aprimoramento das leis para um maior desenvolvimento do país”.
Logicamente, as instituições de educação superior, públicas e privadas, e o trabalho nelas desenvolvido não passaram ilesos a todo esse processo.
No artigo intitulado “O trabalho nas instituições de educação superior”, Mancebo, Silva Jr e Leda (2016) resgatam importantes estatísticas, denotando que, mesmo antes de 2016, e da aprovação das legislações aqui discutidas, os trabalhadores das IES já passavam por um intenso processo de precarização e intensificação de trabalho, em especial os terceirizados, tutores e bolsistas, visto que parte significativa destes apresenta vínculos instáveis, salários rebaixados e costumeiramente em atraso, atividades com baixo reconhecimento social, ausência de representação sindical e escassos direitos trabalhistas. Tal cenário construído com base na lógica do “fazer mais com menos”, apresenta-se cada vez mais grave.
Voltando o olhar apenas para o campo do ensino superior privado, o panorama é bastante assustador, dado que o processo de mercantilização e financeirização desse setor caminha a passos largos. Desde 2007, os grandes conglomerados educacionais abriram seus capitais na bolsa de valores de modo que estamos diante de um setor fortemente financeirizado, no qual a lógica dos negócios é a maximização do lucro para os acionistas. tendo como horizonte principal a rentabilidade em curto prazo, o que tende a gerar situações como:
[...] contratação e demissão de colaboradores da instituição baseados em necessidades de mercado, recrutamento de estudantes com a finalidade de maior lucratividade, criação de programas rápidos a fim de maximizar o ganho, julgamento do desempenho de professores de acordo com a demanda dos consumidores, padronização dos currículos objetivando a eficiência econômica, entre outros. (GRAMANI, 2008, p. 441).
O que essa autora denomina de “recrutamento de estudantes com a finalidade de maior lucratividade”, foi nomeado pelos entrevistados como “captação de alunos”. Esse é um elemento relevante no processo de mercantilização da educação superior brasileira, além disso, é uma estratégia empresarial que gera retrabalho como evidenciado nos relatos abaixo:
Os prazos de matrícula, de entrada de alunos são muito largos, captando aluno novo, a gente chega na metade do semestre, [com] aluno novo entrando na disciplina, isso é muito ruim, o aluno fica perdido e o professor também, a gente tem que ficar fazendo retrocesso. (A 03, grifo nosso).
Também foi possível identificar acentuada precarização e intensificação do trabalho nas IES privadas, produzindo perda na qualidade de vida dos trabalhadores, sem falar nas consequências graves para a formação profissional dos alunos. Os docentes entrevistados de instituições privadas relataram suas dificuldades que vão ao encontro dessas reflexões:
Cada instituição tem suas normas e a gente tem que dançar conforme a música. (D 01).
[...] o que acontece com os professores antigos com 10/15 anos [... é que] o professor é demitido e seis meses depois é novamente contratado dentro [de] novo plano. A gente sempre brinca, que se tem um prazo que é de 5/10 anos, se eu passar disso, ou vou ter que fazer esse acordo de passar seis meses sem trabalhar e voltar ou ser demitida. Muitos professores estão voltando e recebendo praticamente a metade. (D 02).
A gente tem muitos controles informatizados e a gente precisa demandar um tempo considerável para alimentar esses controles, por exemplo: plano de disciplina tem que alimentar dia a dia no sistema. (D 03).
[...] eles não querem pagar nada a mais. O que puderem cortar, eles cortam. [...]Quando eu terminei o mestrado, eu perguntei: adianta trazer o diploma? Não, não adianta, não vai modificar em nada. (D 04).
[...] Não tem carteira assinada, nem um direito trabalhista, se hoje eu me acidentar [o professor viaja para dar aula em outro município] não [recebo] nada [...]. (D 06).
No que diz respeito ao âmbito sindical, expressivas alterações também ocorreram a partir da Lei nº 13.467/2017, cuja essência diz respeito à afirmação do negociado sobre o legislado. Este aspecto enfraqueceu e esvaziou os sindicatos, tornando-se mais recorrentes situações como rescisões contratuais sem a necessidade da assistência da entidade sindical e livres negociações individuais, como se houvesse entre as partes envolvidas (patrão-empregado) igualdade de poderes. É visível que essa legislação trouxe uma prevalência do anseio individual sobre o coletivo, o que abate a classe trabalhadora, aumentando assim o controle dos empresários.
Adicionalmente, o pagamento da contribuição sindical, que, antes era obrigatória, passou a ser facultativa, necessitando da autorização anterior e expressa de cada trabalhador para ser descontada. O campo crítico dos movimentos sindicais sempre criticou a contribuição obrigatória, pois acomodava muitas direções sindicais e contribuía para a burocratização do aparelho sindical. Todavia, a introdução dessa mudança, sem uma preparação prévia das entidades, decididamente, deixou-as sem condições de arcar com seus compromissos e de realizar as necessárias lutas sindicais.
O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE realizou pesquisa, no ano de 2018, na qual verificou uma redução de 90% na arrecadação sindical, em comparação ao ano anterior (2017) e decréscimo de 8,3 mil postos de trabalho nas entidades sindicais.
Em 2019, o DIEESE voltou a publicar dados alarmantes, mostrando um registro comparativo das convenções coletivas de trabalho realizadas entre 2010 e 2018. O intuito era detectar se houve mudanças de natureza econômica consolidadas nas normas coletivas a partir da Lei nº 13.467/2017. O resultado aponta um declínio de 25,4% no número de convenções coletivas em 2018, em relação ao ano de 2017.
Sem dúvida, os patrões se aproveitam do enfraquecimento dos sindicatos inseridos em uma conjuntura de desemprego crescente. Nos relatos desta pesquisa ficaram muito evidentes a fragilização dos vínculos trabalhistas, a subutilização do trabalhador e sua vulnerabilidade frente às ameaças do meio, elementos quase sempre suportados para garantir algum retorno financeiro e em busca de melhorar o currículo para futuras inserções no mundo acadêmico, contribuindo para uma servidão jamais vista, com prejuízos aos trabalhadores em diversas dimensões: sociais, econômicas, físicas e psíquicas. Como se sabe, entre as centenas de alterações promovidas pela Reforma Trabalhista, está a criação do contrato de trabalho intermitente (§ 3º do art. 443 da CLT). Nessa modalidade, o trabalhador alterna períodos de prestação de serviço e de inatividade, aguardando, sem remuneração, ser chamado pelo empregador. Em alguns depoimentos, essas situações foram expostas:
[...] agora em agosto eles me informaram que estou sem disciplina, não vai ter a disciplina, não vai ter a disciplina porque não formou turma [...], mas eles não me demitiram, eu vou ficar, já fiquei em outros períodos também assim, de stand by, sem estar demitida, mas com horário livre, sem tá ganhando nada [...]a situação está tão difícil no mercado que não dá para escolher”. (D 01, grifo nosso).
Eu me sinto muito vulnerável às condições de trabalho que são oferecidas, eu não me sinto seguro para dar nem um passo na minha organização pessoal, por exemplo: comprar um carro, mensalidade de apartamento. Eu me acho extremamente frágil, o que me mantém lá não é o fator financeiro, mas é muito pela bagagem [experiência]. (D 06, grifo nosso).
Mas essa situação de contratos instáveis não é exclusividade do setor privado, pois como já afirmamos, a precarização também vem se disseminando nas IES públicas. A instituição pública, onde foram realizadas parte das entrevistas desta pesquisa, já foi um lugar em que todos os trabalhadores possuíam vínculo direto com a instituição, situação muito diferente da atual, cujo ambiente laboral está repleto de trabalhadores com vínculos externos à IES. Esse convívio entre servidores concursados e terceirizados nem sempre é tranquilo e solidário, pois como bem lembra Antunes e Druck (2014, p. 18): “[...] a terceirização fragmenta, divide, aparta, desmembra as atividades coletivas, individualiza e cria concorrência entre os que trabalham muitas vezes no mesmo local, nas mesmas funções, mas [em condições distintas] pelo crachá diferente e pelos diferentes uniformes”. Isso pode gerar situações como a relatada pelo entrevistado a seguir, revelando preconceito (explícito ou velado) em relação ao terceirizado.
Já passei por preconceito de servidores no início, na época que eu entrei, tive problema de alguém ter um certo preconceito por eu ser um servidor terceirizado, sendo que eu sempre exerci as mesmas funções, nada me diferenciava deles, a não ser a questão do meu vencimento e da minha instabilidade [...] foi um pouco constrangedor, tratar com indiferença a pessoa, pelo fato da pessoa ser terceirizada não tem valor, é obrigada a se submeter a todas as ordens absurdas. (A 02, grifo nosso).
Tal fato vai ao encontro do que salienta um dossiê elaborado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT, 2014, p. 28): “A discriminação é outra face cruel da terceirização, muitas vezes invisível, por não aparecer em nenhuma estatística”. A vivência de preconceito relatada e vivida por esse servidor terceirizado deve ter se tornado mais comum na instituição pública em que ele atua, pois foi um lugar em que as empresas terceirizadas se alastraram sem dificuldade. Conforme documento datado de 2020 e consultado por Santos (2020), tal IES declarava contrato com sete empresas, cobrindo diferentes atividades como: limpeza de laboratórios, banheiros, sala de professores; jardinagem, vigilância, entre outras. Verifica-se, enfim, uma precarização naturalizada, apresentada como gestão eficiente, pois reduz despesas para o setor público.
No entanto, nessa IES já ocorreu de a administração superior precisar assumir o ônus que a empresa contratada não honrou com os trabalhadores, pois conforme a Súmula nº 331/1993 há: “Permissão para contratação de trabalho terceirizado, em quaisquer serviços intermediários (atividades-meio), com responsabilidade subsidiária das empresas tomadoras desses serviços”. O relato a seguir expõe a responsabilidade que a instituição teve que acolher:
A empresa passou um período pagando tudo certinho, uns três anos depois se desmantelou, ficávamos três meses sem receber, mas sempre trabalhando, nunca deixamos de vir ao serviço, até que ela perdeu o contrato [...], mas também nunca acertou com nós (sic), há uma pendência aí com ela. No final quem estava pagando para nós era a [universidade]. [Ela] chegou a pagar uns 4 meses de salário que eles não pagaram. (A 04, grifo nosso).
Situação como a revelada por esse entrevistado, expõe o risco que o ente público corre, mas principalmente a vulnerabilidade do trabalhador, que para dar conta de suas tarefas lança mão de mecanismos ou estratégias de defesa[8], para suportar as adversidades do cotidiano na organização, como forma de proteção, na medida em que minimiza as situações de sofrimento e se despotencializa de senso crítico em relação ao que vive no mundo laboral. Os relatos a seguir ilustram tais mecanismos:
Quando a gente tem amor para fazer algo, aquilo recompensa do que é tirado em direitos. (A 01, grifo nosso).
Às vezes a gente chega em casa abatido, quer descansar, mas dá para levar, [melhor] trabalhando do que tá parado. (A 05).
[...] tem muita reclamação dos alunos e a gente faz ouvido de mercador, eu não posso fazer nada, até porque eu não posso ficar reclamando também. (D 04, grifo nosso).
Esse fazer “ouvido de mercador” evidencia um sentimento muito comum nas diferentes categorias que entrevistamos, o medo foi um sentimento que compareceu com frequência, o que é compreensível diante de tantas pressões e incertezas. Como enfatiza Alves (2006, p. 35): “No caso do mundo do trabalho, a financeirização pressupõe trabalho (e vida social) precário, elemento catalisador do medo, que é a matriz do consentimento”. De diferentes formas, o sentimento de medo, essa base do consentimento, foi verbalizado pelos entrevistados.
[...] a gente tem que ter muito cuidado com o que a gente diz, tenho que ter muito cuidado com o que eu falo, inclusive porque a gente tem aula remota, aula gravada, a gente tem que gravar, não tem opção de não gravar, [...] a gente fica até com medo de falar por causa das câmeras [...]. (D 04, grifo nosso).
Há muita instabilidade, você tem que ser o máximo, o melhor possível. Tenho um temor de perder, mas tenho confiança em minha pessoa. (A 02, grifo nosso).
Quero estudar para fazer concurso, por causa da estabilidade, porque quando a gente tá numa empresa, se tiver corte na educação, os concursados permanecem e os terceirizados saem. (TA 02) (grifo nosso).
Sempre que a gente sabe que vai ter redução, a gente fica “ai meu Deus, será que sou eu que vou sair”. Pode ser a qualquer momento, quando eles acham que dá para fazer a redução, eles fazem. Dá um frio por dentro. É pouco o que a gente ganha, mas serve. (A 05 (grifo nosso).
Esse modo perverso de gestão da organização do trabalho incorpora-se, por vezes, ao comportamento dos trabalhadores que sujeitam seus desejos ao desejo da produção. “É quando surge, inevitavelmente, a questão da alienação [...] na situação em que se exercita a exploração máxima, o sofrimento e as defesas, bem como a alienação, estão muito provavelmente em seu nível mais elevado”. (DEJOURS, 2004b, p.147). Dentro desse contexto, algumas falas dos trabalhadores terceirizados se destacam:
A gente que trabalha em terceirizada, eu tenho uma visão de cooperar, de ajudar, quem sabe eu não posso ser reconhecido com mais oportunidade. (A 02, grifo nosso).
Trabalho fora do meu horário, não recebo hora extra. Quando ocorre isso pego um dia de folga. (TA 01, grifo nosso).
Estou sempre disponível para o aluno. Ontem 10h da noite tinha aluno passando mensagem e eu respondo. (TA 02, grifo nosso).
Essa disponibilidade total dos trabalhadores foi recrudescida no bojo da Lei da Terceirização (Lei nº 13.429/2017), assim como da Reforma Trabalhista (Lei nº13.467/2017) e foi um dos elementos ressaltado como necessário para a modernização das relações de trabalho no Brasil. Segundo o relator do projeto da terceirização, deputado Laércio Oliveira: “O que estamos fazendo, o que o governo Michel Temer está fazendo, é modernizando as relações de trabalho no Brasil para que a gente consiga, em curto prazo, resolver o problema do desemprego”. (SCHREIBER, 2017). Sob essa lógica, a modernização nasce com a retirada de direitos!
A terceirização seja em atividade meio ou fim, no âmbito público ou privado, é reveladora quase sempre de um trabalho precário, em que a contratante busca delegar para a empresa contratada riscos ocupacionais e conflitos trabalhistas. Como bem lembra Guimarães Júnior (2019, p.72): “O que se transfere não é somente a atividade/serviço, como geralmente se pensa, mas sim uma gama de responsabilidades empregatícias que se pulverizam na dinâmica volátil e desagregada do processo de terceirização”. Tal prática desconsidera por completo os objetivos fundamentais do trabalho decente[9].
Oliveira e Pochmann (2020), analisando a devastação do trabalho no Brasil, destacam que, contrariamente à perspectiva ideologizada pelos defensores do capital, a realidade da classe trabalhadora tem sido, quase sempre, rebaixada por condições de vida deploráveis e o distanciamento da possibilidade de ascensão social.
Dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021) bem demonstram a afirmação acima. A taxa de desocupação é assustadora no país, como evidenciado no gráfico a seguir.
O argumento de que a terceirização iria gerar mais postos de trabalho é refutado veementemente pelo gestor da IES pública entrevistado por Santos (2020, p.51): “Não, se existe perspectiva é de diminuição. Ainda mais aí com esse governo [Bolsonaro] que entrou agora, a política deles é de diminuir, quanto menor o Estado melhor para eles”.
Na realidade, deve-se esclarecer que a defesa do “Estado mínimo” se materializa para a realização dos benefícios sociais, pois esse mesmo Estado tem sido suficientemente forte para “[...] incrementar a participação da iniciativa privada, flexibilizar o mercado de trabalho e ampliar a concorrência internacional, abrir de maneira escancarada as portas para a venda do patrimônio nacional, suprimindo liberdades e até aprisionando” (MANCEBO, 2018, p. 66-67).
A configuração do “Estado mínimo” atinge, particularmente, as famílias de baixa renda, o que se agravou, a partir de 2020, pela crise econômica decorrente da pandemia do Coronavírus que tem exigido esforços quase impossíveis de serem realizados por essas famílias, como o distanciamento social, higienização e uso de máscaras. Temos ampla concordância com Lhuilier (2020, p.84) quando ela diz: “Não é o vírus que mata, são as escolhas políticas.”
Diante de escolhas que privilegiam o neoliberalismo, o desmatamento, a livre concorrência, entre outros fatores deletérios à vida no planeta, o mundo tem sofrido desde o início do ano de 2020 os efeitos devastadores da pandemia. No caso da população brasileira, a pandemia aportou num terreno de crises entrelaçadas (econômica, política, social), que repercutem em situações como: subfinanciamento do SUS; dificuldade de acesso de grande parte da população ao saneamento básico; déficit habitacional; eliminação de direitos trabalhistas; entre outros.
Costa (2020) assinala que o isolamento social, usado como uma das formas de prevenção contra o Coronavírus, devido ao alto nível de contágio e veloz propagação, acabou desnudando as desigualdades sociais que prevalecem na sociedade capitalista. Assim, diante de tal contexto, a pandemia deixou mais vulnerável aqueles trabalhadores que não dispõem de mínimas condições de trabalho e de proteção social, o que tem preponderado a partir das flexibilizações da legislação trabalhista brasileira.
O necessário isolamento social (possível apenas para uma parcela da população) gerou novas formas de relações de trabalho, na tentativa de minimizar a propagação da doença, contudo isso potencializou o enxugamento do quadro de funcionários, com aumento significativo de demissões, reduziu a renda de boa parte dos trabalhadores e aprofundou a informalidade.
Destacam-se dois relatos da pesquisa empírica que evidenciaram a oportunidade do formato de aulas à distância, aproveitada pelas instituições privadas, para implementar diminuição no número de docentes e redução de salários:
No 1º semestre de 2020 nada mudou, não parou, continuou, mas no 2º semestre demitiram professores [...] caiu muito o número de alunos, que não podiam pagar com a pandemia, então tiveram que demitir professores, por isso tiveram que reorganizar do modo presencial para o interativo, que já tinha antes. Têm umas [aulas] que é só pelo computador, sem professor [...] vão manter porque eles lucram e os alunos tiram proveito disso, não estão reclamando, é mais fácil. Eles não vão reclamar, a instituição vai ganhar e quem vai perder são os professores, porque o quadro está bastante enxuto. (D 01, grifo nosso).
Para eles [proprietários da instituição] juntou a fome com a vontade de comer porque já queriam fazer isso há muito tempo, a gente já vinha numa preparação para o que está acontecendo hoje [...] muitos professores foram desligados. Nós somos os sobreviventes, a gente até brinca, quem sair por último apaga a luz. [...] Se você não posta aula, se você não engaja o aluno, aí você é avaliado em relação a isso. No final das contas, pode ocasionar teu desligamento se você não aderir ao modelo. (D 04, grifo nosso).
Essa dinâmica de postar aulas (inserir material no sistema virtual de aprendizagem) estabeleceu novos modos de operacionalizar o trabalho, isto é, exigiu uma nova ordem para o trabalho e para os trabalhadores, que se aprofundou nessa situação de enfrentamento à pandemia. No caso dos docentes, isso significou o uso, com ainda mais intensidade, da tecnologia, que já estava presente de algum modo no cotidiano laboral desses trabalhadores. Mancebo (2020), tecendo análises sobre trabalho remoto na educação superior brasileira, adverte sobre as consequências deletérias do home office, como por exemplo: jornadas extensas e intensa sobrecarga.
Também merece ser ressaltado que todos os custos operacionais do home office, em parte significativa das instituições públicas e privadas, foram jogados sobre os ombros do trabalhador. Simultaneamente, na página do Ministério da Economia[10] a divulgação, em agosto de 2020, era de que ocorreu uma economia de R$ 466,4 milhões nas despesas com o teletrabalho no serviço público, especialmente nos itens viagens a serviço (diárias + passagens) e energia elétrica. Isso foi motivo suficiente para o governo publicar a Instrução Normativa nº 65, em 30 de julho de 2020, que estabeleceu orientações para a adoção do regime de teletrabalho nos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal (SIPEC).
Duas docentes de instituições privadas expressaram um ônus adicional no orçamento restrito dos trabalhadores: para buscar viabilizar a rotina laboral dentro do espaço doméstico em melhores condições, trabalhadores de diversas áreas, inclusive professores, precisaram investir na aquisição de melhores equipamentos e internet de maior potência, além de verem os gastos com energia elétrica subirem absurdamente:
Nessa época da pandemia não tivemos nenhum auxílio deles. Tua internet tá ruim? Te vira, grava aula. Não se teve suporte, nenhum tipo de ajuda. (D 02, grifo nosso).
Ficou a cargo do próprio professor, se queria trabalhar, teve que ir atrás. Não teve nenhum incentivo material, financeiro. (D 03, grifo nosso).
Além desses danosos elementos, Vale (2020, p.12), ao discutir sobre a reforma trabalhista e o trabalho docente no setor privado da educação superior alerta para outros agravantes: “[...] há perda da autonomia, invasão do tempo livre pelo tempo de trabalho, controle do trabalho (tanto do conteúdo como da forma do trabalho, mas também do tempo com formas cada vez mais refinadas), apenas para citar algumas consequências”.
Os aspectos enfatizados por essas duas autoras (MANCEBO, 2020 e VALE, 2020) também compareceram nas falas dos nossos entrevistados:
[...] Não posso ultrapassar 15 minutos. Se eu tiver numa discussão na turma, eu tenho que dar uma corrida, você fica amarrado nessa questão trabalhista [...]. Se eu ultrapassar o tempo e não bater o ponto, eu levo falta e tenho que justificar para o coordenador deferir. Dá falta, mas não paga hora extra! (D 02).
[...] uma semana depois [após o início da pandemia] a gente já estava no online. Foi um processo doloroso, mas aos poucos a gente foi ajustando, com treinamento, tutoriais, extremamente desgastante [...]. O volume de trabalho aumentou muito, a gente ficou com o horário de trabalho mais espaçado, diminuindo cada vez mais o tempo livre, porque com a tecnologia a gente fica muito mais tempo à disposição da instituição. (D 03, grifo nosso).
[...] A gente tem cobrança toda hora, a gente é monitorado o tempo inteiro. Se a gente acessa no sistema, se a gente posta aula [...] o que eles podem fazer para controlar eles fazem. (D 04, grifo nosso).
Mas esse “dar conta” não vem sem custos para a saúde do trabalhador, que se vê premido por cobranças, imposições, além do sentimento de medo, comentado anteriormente. Conforme afirma Dejours (2004a, p. 138), o trabalho é isento de neutralidade, pois ele é sempre “[...] um gerador de saúde ou, ao contrário, um constrangimento patogênico”. Em relação aos impactos da jornada laboral na saúde, das preocupações em relação aos vínculos instáveis, os entrevistados trouxeram diversos depoimentos ratificando muitos danos:
Na outra instituição que eu estava com estágio, a cada semestre passa uma lista de quem vai rodar, uma instabilidade enorme que a gente sabe que afeta a saúde da pessoa [...] já fico angustiada de pensar, de ter que trabalhar com essa instabilidade. (D 01, grifo nosso).
Tem sido um árduo trabalho para mim mesma deixar [...] a partir de sábado meio dia não fazer nada em relação à faculdade, mas você acaba sendo invadido no domingo à noite com mensagem no celular da tua coordenação. (D 02).
Com certeza a gente ocupa [com trabalho] o horário que a gente poderia estar cuidando da saúde, lazer [...]. (D 03).
Às vezes eu fico um pouco estressada por causa dessa necessidade de agora, quando a gente menos [espera ...], já deram o nosso número [de telefone]. Estou cheia de mensagens, mas não vou ficar louca. Aluno de [instituição] privada, tudo eles querem colocar processo. (D 04).
[...] Quando fico preocupada sinto dor de cabeça, tenho problema de ansiedade, fico nervosa, mexe com o psicológico. A gente conversa entre a gente. No início da pandemia a gente ficou com medo de ter mais redução (A 05).
As vicissitudes econômicas da pandemia da Covid-19 trouxeram um recrudescimento da realidade social em diversos âmbitos. No campo do trabalho, finalizamos o ano de 2021, segundo ano da pandemia, com mais de 13 milhões de desempregados, segundo dados do IBGE (2021) divulgados amplamente na imprensa e, o que é mais grave, dando vazão à informalidade, com poucas perspectivas de criação de empregos com formalidade de contrato e alguma proteção social.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A configuração do trabalho, em âmbito mundial e brasileiro, no contexto pré-pandemia já apresentava condições aviltantes com significativas diferenças de gênero, raça, contexto de desemprego, informalidade, ascensão do trabalho plataformizado e severa deterioração de direitos sociais. Mundialmente, já se convivia com políticas de austeridade e de privatização do bem público. O contexto pandêmico agravou todos esses aspectos.
Diante desse cenário e movidas por muita indignação, consideramos imprescindível analisar e denunciar os impactos da Lei da Terceirização, da Reforma Trabalhista ou de qualquer outra legislação que avance na destruição de direitos do trabalhador e atinja sua dignidade e sua saúde. Foi esse o intuito do presente texto.
Avaliamos que as análises críticas devem se intensificar, considerando que o conjunto da classe trabalhadora está cada vez mais exposto a muitas vulnerabilidades, sem participação sindical, fragmentada e com muitas dificuldades para articular coletivos de trabalho, em um contexto de políticas de austeridade.
O cenário do trabalho é, de um lado, pessoas querendo entrar no mercado de trabalho, enquanto outras estão assoberbadas com seu trabalho, mas agradecendo pela exploração que sofrem! Tanto no ambiente público como no âmbito privado, a lógica é “fazer mais com menos”.
Acreditamos que as reflexões críticas podem subsidiar movimentos de resistência e de luta, embora a construção destes seja uma tarefa que exige esforços hercúleos em várias dimensões, pois conforme nos alerta Alves (2014, p. 100) ao comentar sobre a terceirização:
As condições de combate contra a terceirização são bastante adversas: por um lado, temos uma sociedade política hegemonizada pelos interesses empresariais, e, por outro lado, uma sociedade civil manipulada midiaticamente e hegemonizada pelos princípios liberais da livre-iniciativa, mantendo-se, deste modo, apática e alienada do desmonte da cidadania salarial decorrente da legalização da terceirização como estratégia de flexibilização das relações de trabalho no Brasil.
Tais considerações de Alves (2014) podem ser estendidas para o conjunto da Reforma Trabalhista, referência maior de flexibilização e de crise do Direito do Trabalho, além de todas as alterações que vieram após o golpe de 2016 e que também suprimiram direitos conquistados, permitindo a livre rotatividade de mão de obra e o aprofundamento do processo de precarização.
Nesse cenário, agravado pelas diversas vicissitudes ocorridas em função da pandemia, a classe trabalhadora se encontra ainda mais fragilizada, fragmentada, empobrecida e oprimida pelas políticas econômica e social do governo Jair Bolsonaro. A agenda ultraneoliberal, expressa no bojo das reformas que estão ocorrendo desde 2017 – reforma da previdência social, reforma trabalhista e, mais recentemente, a proposta de reforma administrativa – aniquila os escassos direitos políticos e sociais conquistados ao longo da história da sociedade brasileira.
Uma significativa parcela da população, além de ter que conviver com a dor e o luto pela perda de entes queridos vitimados pela Covid-19, vive uma condição de miséria e fome, pois teve uma queda brusca de renda ou perdeu totalmente o emprego e vive na informalidade, sobrevivendo de “bicos” e/ou de doações de cestas básicas, além de catar sobras nos lixões das cidades, em um contexto que tem tudo para asfixiar a solidariedade e a empatia na luta pela sobrevivência.
No campo da educação superior, objeto de estudo deste texto, a política do governo federal afronta as universidades públicas e todo o campo científico. Os expressivos cortes e contingenciamentos orçamentários no Ministério da Ciência e Tecnologia e no Ministério da Educação, uma das facetas da Emenda Constitucional nº 95, anteriormente comentada, tornam inviáveis o ensino, a pesquisa e a extensão, sem mencionar a permanência dos alunos na vida acadêmica e o funcionamento institucional dos órgãos oficiais de fomento à pesquisa, assim como de cada uma das universidades públicas brasileiras.
Diante de tantos ataques, é imprescindível permanecer firme na luta a favor de uma educação pública, gratuita e de qualidade, com ênfase em seu perfil crítico, democrático, emancipatório, unitário e plural, assim como reafirmar cotidianamente o compromisso com as lutas sociais, em favor dos direitos da classe trabalhadora, pois como já afirmava Marx em 1867 no Livro I de O Capital (2013, p.241) “O capital não tem [...] a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração”.
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Notas