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TRABALHO PROFISSIONAL DO/A ASSISTENTE SOCIAL NO SUAS tensionamentos em tempos de “falso normal”
PROFESSIONAL WORK OF THE SOCIAL ASSISTANT IN SUAS: tensions in times of false normal
TRABALHO PROFISSIONAL DO/A ASSISTENTE SOCIAL NO SUAS tensionamentos em tempos de “falso normal”
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 2, pp. 880-899, 2022
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 11 Julio 2022
Aprobación: 14 Noviembre 2022
Resumo: O presente artigo aborda o trabalho profissional das/os assistentes sociais na Política de Assistência Social frente à pandemia de Covid-19. Realiza um estudo bibliográfico e documental à luz do método histórico-dialético, intentando descortinar as ideologias presentes no cenário pandêmico, diante do “novo normal”. Nesse sentido, analisa a proteção social oportunizada pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nas três esferas de governo. Em seguida, discorre sobre o trabalho de assistentes sociais frente à pandemia e aos impactos da crise sanitária nos processos de trabalho, assim como no trabalho social com famílias nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Os resultados evidenciam que o cenário de falsa normalidade acirra os processos de desigualdade social, acumulação capitalista, intensificação da demanda a necessidade de instrumentalização para as lutas coletivas e individuais por parte de assistentes sociais, trabalhadores/as do SUAS e conjunto da classe trabalhadora. Logo, conclui que a pandemia de Covid-19 traz repercussões para o Sistema de Proteção Social brasileiro, colocando na ordem do dia a defesa do Estado social e o enfrentamento das dificuldades de garantia de proteção social.
Palavras-chave: Trabalho, assistente social, assistência social.
Abstract: This article addresses the professional work of social workers in the Social Assistance Policy in the face of the Covid-19 pandemic. The bibliographical and documentary study was conducted in light of the dialectical historical method, to unveil the ideologies present in the pandemic scenario, such as the proclaimed "new normal". In this sense, it analyzes the social protection provided by the Unified System of Social Assistance in the three spheres of government. Then, it discusses the work of social workers facing the pandemic and the impacts of the health crisis in the work processes and in the social work with families in the Reference Centers for Social Assistance and Specialized Reference Centers for Social Assistance. Thus, the scenario of false normality accentuates the processes of social inequality, capitalist accumulation, intensification of demand and the need for social workers, SUAS workers and the working class as a whole to be instrumentalized for collective and individual struggles. The Covid-19 pandemic brings repercussions to the Brazilian Social Protection System, putting on the agenda the defense of the Social State and the confrontation of the difficulties in guaranteeing social protection.
Keywords: Labor, social worker, social assistance.
1 INTRODUÇÃO
A constituição dos Sistemas de Proteção Social possuem especificidades, tendo em vista o desenvolvimento das experiências históricas do Welfare State ou Estado de bem-estar social, Estado-providência ou Estado social. No Brasil, é possível afirmar que com a Constituição Federal de 1988 e a instituição da Seguridade Social, constroem-se as possibilidades do Estado social.
A efetivação de garantias das políticas sociais, a partir de 1988, foram atravessadas pelos processos de reestruturação produtiva, neoliberalismo e ajuste fiscal, enquanto iniciativa global de respostas às crises estruturais e cíclicas do capital. Nesse contexto, a disputa pelo fundo público entre capital e trabalho dá-se no interior das políticas sociais.
Dessa forma, os/as assistentes sociais, que participaram ativamente das lutas pela instituição da Seguridade Social, também passaram por lutas internas com vistas à disputa por hegemonia na profissão, ao enfrentamento relativo ao conservadorismo e à promoção do Projeto Ético-Político do Serviço Social.
Isso posto, tem-se que a história do Serviço Social se confunde com a da Política de Assistência Social, ainda que os/as assistentes sociais contem com um amplo leque de possibilidades quanto à sua atuação profissional. Aliás, o Serviço Social atuou decisivamente pela inscrição da assistência social no texto da ordem social da Constituição Federal de 1988, integrando a Seguridade Social enquanto direito do/a cidadão/ã e dever do Estado.
Na mesma direção, os/as assistentes sociais constituem as equipes de referência do SUAS, particularmente dos CRAS e dos CREAS. Assim, o processo de trabalho do Serviço Social na Política de Assistência Social desenvolve-se a partir das competências teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas da profissão, frente às orientações técnicas e demais normativas do SUAS.
Nesse sentido, nem sempre a concepção da Política de Assistência Social do Projeto Ético-Político do Serviço Social converge com a direção da Política de Assistência Social inscrita nos documentos e regulamentos oficiais, uma vez que se identifica uma matriz familista nas requisições profissionais (TEIXEIRA, 2013).
Com efeito, a pandemia de Covid-19 intensifica a direção familista da proteção social, uma vez que as ações de enfrentamento à crise sanitária e de atendimento à população não acontecem na velocidade e densidade que o cenário demanda, constituindo um cenário de desproteção social – ainda que iniciativas tenham se estabelecido ao longo dos últimos quase dois anos de pandemia. É nesse contexto que atuam os/as assistentes sociais e demais trabalhadores do SUAS, enquanto área essencial de enfrentamento à crise pandêmica.
O presente estudo realizou-se mediante revisão bibliográfica intencional, com a utilização de autores como Braga (2017), Braz (2017), Behring (2008), Boschetti (2016), Esping-Andersen (1995), Mioto (2015), Netto (1991), Iamamoto (1997, 1998, 2017) e Teixeira (2013); além da análise de normativas como Constituição Federal (1988), Lei Orgânica da Assistência Social (1993), Política Nacional de Assistência Social (2004), Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (2005, 2012), Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais na Política de Assistência Social (2011).
O estudo desenvolve-se, inicialmente, a partir de considerações sobre a proteção social nas três esferas de governos pela Política de Assistência Social. Em seguida, aborda-se o impacto da pandemia no trabalho dos/as assistentes sociais, passando pela origem, o desenvolvimento e os tensionamentos na atualidade. À luz do método de Marx, analisam-se as condições objetivas e subjetivas do trabalho profissional nos CRAS e nos CREAS, os processos de trabalho e a direção do trabalho social com famílias. Por fim, problematizam-se os discursos de “novo normal”, apontando-se a intensificação da demanda e a precarização das condições de trabalho como resultados da crise pandêmica para a Política de Assistência Social.
2 A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO ENFRENTAMENTO À COVID-19: considerações sobre a proteção social nas três esferas de governo
A pandemia de Covid-19 trouxe significativos impactos às várias dimensões das relações humanas e sociais, uma vez que apresenta reflexos na economia, na educação, no trabalho, na cultura, entre outras áreas. Para além das centenas de milhares de vidas perdidas, aprofundou o cenário de desproteção já existente, requisitando das políticas sociais, portanto do Estado e da sociedade civil, mediante gestores/as e trabalhadores/as, respostas no tocante ao atendimento das expressões da questão social evidenciadas pela conjuntura pandêmica.
No Brasil, o enfrentamento à pandemia ganha contornos específicos, em razão da gestão do presidente da república, Jair Bolsonaro, e de seus apoiadores/as, gestores ou não. Nesse sentido, concebe-se o negacionismo refletido na minimização dos efeitos da doença, na descrença na vacinação, no incentivo a tratamentos com ineficácia comprovada e, singularmente, na demora e descontinuidade de medidas de proteção à população trabalhadora e usuária do SUAS.
Destaca-se, por oportuno, a morosidade na liberação do auxílio emergencial, inicialmente proposto no valor de R$ 200,00 (duzentos reais) e, que, por pressão da sociedade civil e do Congresso Nacional, teve o incremento para R$ 600,00 (seiscentos reais), creditada em abril, dois meses após a chegada da pandemia no País. Vale lembrar, também, que o auxílio emergencial foi prorrogado, com redução do valor pela metade, e que em 2021, ele somente voltou a ser pago em março, finalizando-se em outubro.
Transcorridos quase dois anos desde o início da pandemia de Covid-19, visualizam-se seus efeitos deletérios ao tecido social, sobretudo no trabalho, aumentando o desemprego, o trabalho informal e, direta ou indiretamente, as violações de direitos e violências. À vista disso, correlata à corrosão do trabalho protegido, verifica-se a ampliação do público-alvo da Política de Assistência Social, com o atendimento a parcelas da população que até então não apresentavam o perfil necessário para absorver os serviços, programas, projetos e benefícios do SUAS.
Na mesma direção, é meritório lembrar o posicionamento de Boschetti (2016), ao abordar que historicamente, a assistência social e o trabalho tiveram uma relação contraditória, decorrente da direção de política social e econômica vigentes. Dessa forma, a assistência social visa a atender parcelas significativas da classe trabalhadora superexplorada, um público cada vez mais amplo em razão das medidas de ajuste fiscal, contrarreformas da Previdência Social e trabalhista, e lei do teto dos gastos, advindas do pós-golpe parlamentar-midiático-jurídico (BRAZ, 2017).
A Política de Assistência Social estrutura-se em Proteção Social Básica e Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade, integrando a Seguridade Social brasileira a partir da inscrição na Constituição Federal de 1988 enquanto direito do/a cidadão/ã e dever do Estado. Fruto de intensa participação popular e dos movimentos sociais, a assistência social é alçada a integrar o Sistema de Proteção Social brasileiro, embora esse processo não tenha ocorrido sem descontinuidades, retrocessos e contradições.
Isso posto, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) somente foi instituída em 1993, quatro anos após a Constituição Cidadã. Em 2004, como resultado do processo conferencial e da eleição do presidente Luís Inácio Lula da Silva, aprova-se a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), almejando normatizar e regular a política em todo o País, enfrentando “as caraterísticas assistencialistas, ações pontuais, fragmentadas, desarticuladas, segmentadas, sobrepostas e com regulação frágil” (SPOSATI, 2013, p. 9).
Em 2005 institui-se a Norma Operacional Básica do SUAS (NOB-SUAS), atualizada em 2012, com vistas à normatização das ações em âmbito nacional, definição de atribuições entre as três esferas de governo, nomeadamente no que toca ao financiamento, além da institucionalização do sistema.
Em 2006 publica-se a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH-SUAS), discriminando as profissões que atuam na assistência social, bem como suas atribuições e competências profissionais. Sobreleva-se nesse momento a previsão da Política de Educação Permanente do SUAS.
Em 2009 avançou-se com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, que padronizou os serviços de proteção social básica e especial a partir de matriz contendo nome do serviço; descrição; usuários; objetivos; provisões; aquisições de usuários; condições e formas de acesso; unidade; período de funcionamento; abrangência; articulação em rede; e impacto social esperado.
No ano de 2011, a Resolução nº 11, do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) ratifica as profissões de nível superior que atuam no provimento das proteções sociais básica e especial, além de recomendar as profissões que preferencialmente comporão a gestão do SUAS. Na mesma direção, em 2014, o CNAS aprova a Resolução nº 9, que ratifica e reconhece as ocupações profissionais de nível médio e fundamental no SUAS.
O estado do Piauí situa-se no Nordeste brasileiro e compõe-se por 12 territórios de desenvolvimento, 28 aglomerados e 4 macrorregiões. O SUAS do Piauí tem como órgão gestor estadual a Secretaria da Assistência Social, Trabalho e Direitos Humanos (SASC), e como instância de controle social o Conselho Estadual de Assistência Social do Piauí (CEAS).
A Proteção Social Básica está presente nos 224 municípios piauienses, enquanto a Proteção Social, em 71 municípios. No Piauí, 702581 famílias estão inscritas no Cadastro Único para programas sociais do governo federal, das quais 462850 em condição de extrema pobreza (renda per capita mensal entre 0,00 e 89,00), e 36341 em situação de pobreza (renda per capita mensal entre 89, 00 e 178, 00). Em se tratando do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Piauí possuía, em 2020, 73815 beneficiários idosos/as e 34165 beneficiários/as portadores de deficiências (PIAUÍ, 2020).
A pandemia de Covid-19, no Piauí, ceifou mais de 7951 piauienses, dos quais 2845 são da capital, Teresina. Destaca-se a adoção das medidas restritivas no Piauí, a partir de março de 2020, por meio de suspensão das atividades não essenciais, toque de recolher, obrigatoriedade do uso de máscara e multa em caso de descumprimento, em contraposição ao negacionismo do governo federal (BRASIL, 2020).
No âmbito da Política de Assistência Social, o governo do estado, por meio da SASC, instituiu o Programa Cartão SASC Emergencial, tendo como público-alvo a população desassistida do auxílio emergencial do governo federal, Programa Bolsa Família, BPC, seguro-desemprego, aposentadoria ou pensão, e que tenha o perfil de pobreza ou extrema pobreza (PIAUÍ, 2020).
A seleção dos/as beneficiários/as foi realizada pela SASC a partir da base de dados do Cadastro Único para programas sociais. Assim, cabe aos municípios que fazem adesão ao programa a busca ativa dos/as beneficiários/as selecionados/as para a verificação dos critérios do perfil, assinatura do termo de compromisso e entrega dos cartões que dão acesso à compra de gêneros alimentícios em estabelecimentos da rede Alelo, em duas parcelas de R$ 200 (duzentos reais), mediante débito.
Cabe salientar que o referido programa chegou à fase de entrega dos cartões nos municípios apenas em meados de 2021, ou seja, transcorrido um ano do início da pandemia de Covid-19. A capital do Piauí realizou adesão ao programa no segundo semestre de 2021, tendo as primeiras listagens repassadas aos CRAS de Teresina no mês de agosto. O SUAS de Teresina integra-se por: dezenove CRAS; quatro CREAS; um Centro Especializado para a População em Situação de Rua (Centro POP); um Centro Dia de Referência para a Pessoa com Deficiência; um Centro Dia de Microcefalia; um albergue para a população em situação de rua “Casa do Caminho”; uma Casa de Acolhimento Reencontro para Crianças; uma Casa de Acolhimento para a Pessoa Idosa; um Serviço de Família Acolhedora; uma República, além de outros serviços em parceria público-privada.
No âmbito do município de Teresina, enquanto enfrentamento à pandemia de Covid-19, destacam-se o Programa Teresina Solidária, estabelecido na gestão do prefeito Firmino Filho, e o Programa Teresina Cuida de Você, na gestão do prefeito Dr. Pessoa. Ambos se caracterizam pela entrega de cestas básicas para famílias cadastradas pelas Associações de Moradores, representantes de igrejas ou outros setores da sociedade civil (TERESINA2020, 2021).
Embora possa ser uma importante estratégia para chegar a quem está em situação de insegurança alimentar com maior agilidade, os referidos programas dão margem para uso político e eleitoreiro, na contramão do estatuto do direito à Política de Assistência Social, além de preverem uma única cesta básica, ferindo a integração entre serviços, benefícios, programas e projetos socioassistenciais.
Na mesma lógica, os referidos programas passam por fora do fluxo de acesso aos benefícios eventuais, instituídos por lei federal e regulamentado por lei municipal, reforçando a tendência de transferência de responsabilidades para a sociedade por intermédio de campanhas de doações de cestas básicas, por um lado; e possibilidade de “atravessadores” no acesso aos benefícios eventuais, de outro.
Em seguida, aborda-se o impacto da pandemia no trabalho dos/as assistentes sociais, designando origem, desenvolvimento e tensionamentos na atualidade, além dos impactos no Projeto Ético-Político.
3 O TRABALHO DO/A ASSISTENTE SOCIAL NO SUAS E A PANDEMIA DA COVID-19
A profissão de Serviço Social tem como objeto de atuação as múltiplas expressões da questão social, expressões das desigualdades do sistema vigente, crivadas nos marcos da disputa entre capital e trabalho (IAMAMOTO, 1997, p.14).
Para a referida autora,
[...] os assistentes sociais trabalham com a questão social nas suas mais variadas expressões quotidianas, tais como os indivíduos as experimentam no trabalho, na família, na área habitacional, na saúde, na assistência social pública, etc. Questão social que sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem, se opõem. É nesta tensão entre produção da desigualdade e produção da rebeldia e da resistência, que trabalham os assistentes sociais, situados nesse terreno movido por interesses sociais distintos, aos quais não é possível abstrair ou deles fugir porque tecem a vida em sociedade (IAMAMOTO, 1997, p.14).
Deveras, os/as assistentes sociais atuam nas instituições a partir de saber especializado, mediante as competências teórico-metodológicas, técnico-operativas e ético-políticas. Após 84 anos da instituição do Serviço Social no Brasil, a categoria soma mais de 200 mil assistentes sociais, distribuídos/as pelos 27 Conselhos Regionais de Serviços Sociais, perdendo apenas para os Estados Unidos, em termos de quantidade de profissionais (IAMAMOTO, 2017).
A profissão de Serviço Social tem como uma das principais áreas de atuação no Brasil as Políticas de Saúde, Assistência Social e Previdência Social, inserindo-se, ainda, nas mais diversas políticas públicas. Outrossim, é no setor público que se inserem majoritariamente as/os assistentes sociais, embora haja profissionais no setor privado e no “terceiro setor”.
Toda essa conformação possibilita a inserção da profissão nos mais variados setores, por meio de diversas formas de contratação, inclusive submetidas à precarização. Dessa forma, cabe ao Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) a normatização e regulação do exercício profissional, e aos Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESS) a orientação e fiscalização do exercício profissional (BRASIL, 1993).
Isso ocorre em razão de o Serviço Social ser uma profissão liberal, ainda que não no sentido clássico, porquanto não detém os meios para realização das atividades profissionais, cabendo aos empregadores a garantia dos meios e instrumentos de trabalho.
À vista disso, o/a assistente social dispõe de relativa autonomia profissional para a realização de suas atividades, de acordo com as requisições profissionais das instituições empregadoras (IAMAMOTO, 1998).
A direção do trabalho profissional é dada pelas entidades organizativas do Serviço Social Brasileiro (conjunto CFESS/CRESS), da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), e da Executiva Nacional dos/as Estudantes de Serviço Social (ENESSO), materializada no cotidiano das instituições, por meio dos/as profissionais da área. Dessa forma, o perfil profissional é moldado pela graduação em Serviço Social, cuja formação é delineada pelas Diretrizes Curriculares da ABEPSS de 1996, por intermédio dos Projetos Pedagógicos das Instituições de Ensino e de Estágio. Uma vez concluída a graduação, é necessária a inscrição nos Conselhos Regionais de Serviço Social de cada estado.
O conjunto CFESS/CRESS, respectivamente, normatiza e fiscaliza o exercício profissional por meio de resoluções e orientações, fundamentando-se no Código de Ética do/a Assistente Social (Resolução CFESS N° 273/1993) e na Lei nº 8662/1993 (Lei que regula a profissão de assistente social).
Uma das áreas de atuação desse profissional é a Política de Assistência Social, inclusive se confundindo a história da política com a da profissão. Tal equívoco remonta à própria origem do Serviço Social, vinculada à Igreja Católica, quando da emergência da questão social no Brasil, a partir dos anos 1930.
Da mesma forma, a categoria de assistentes sociais participou ativamente da luta contra a ditadura militar e da Constituinte que resultou na aprovação da Constituição Federal de 1988, quando a categoria desenvolveu protagonismo, em especial, no texto da Ordem Social e na inscrição da Política de Assistência Social na Seguridade Social brasileira.
Conforme previsto na Lei que regula a profissão de assistente social no Brasil, é obrigatória a participação das/os profissionais em situação de emergência e/ou calamidade pública, a exemplo daquela verificada com a chegada da pandemia de Covid-19 no País. Dessa forma, por força de decretos federal, estaduais e municipais, os/as chefes dos Poderes Executivos oficializaram a situação de calamidade pública em razão do cenário pandêmico, designando como dever do/a assistente social “participar de programas de socorro à população em situação de calamidade pública, no atendimento e defesa de seus interesses e necessidades” (CFESS, 1993, n.p.).
No âmbito do SUAS, previu-se o serviço de proteção em situações de calamidade pública e emergências, inscrito no rol de áreas essenciais pelo governo federal. Nesse cenário, a pandemia de Covid-19, que impactou todas as áreas da humanidade, atravessa diretamente o trabalho profissional dos/as assistentes sociais e do conjunto da classe trabalhadora.
Tendo isso em vista, a grave crise sanitária exponencia as expressões da questão social, afeta o trabalho profissional do Serviço Social e passa a conformar a atuação na Política de Assistência Social, agudizando o cenário dramático do Sistema de Proteção Social brasileiro. A direção do trabalho dos/as assistentes sociais também é tensionada, embora não seja a pandemia a criadora da disputa pela hegemonia do Serviço Social, como será discutido adiante.
3.1 Projeto ético político do/a assistente social: origem, desenvolvimento e tensionamentos na atualidade
A profissão de assistente social possui conformações específicas, consoante o seu surgimento em diversos países. No Brasil, o Serviço Social reflete a formação sócio-histórica e as condições econômicas, políticas e culturais da sociedade brasileira. É nesse cenário que se materializa a profissão no País, bem como é sobre as estruturas e conjunturas históricas que se desenvolvem as possibilidades de atuação e são vivenciados os desafios profissionais pelos/as assistentes sociais.
O surgimento da profissão no Brasil data da emergência da questão social no cenário público, nos anos 1930, enquanto caso de política e não mais de polícia (CERQUEIRA FILHO, 1982). Nessa lógica, dão-se as bases para a profissionalização do Serviço Social, com a chegada das primeiras escolas no Brasil, no Rio de Janeiro e em São Paulo. As protoformas de instituição da profissão ocorrem por meio de parceria entre a Igreja Católica, o empresariado e o Estado, com o objetivo de formação de profissionais capacitados/as para intervir na sociedade, maiormente junto ao operariado emergente.
Nessa direção, o trabalho social com famílias, desempenhado pelo Serviço Social, tinha caráter nitidamente de conformação das classes subalternas às normas das empresas. Dessa forma, as bases metodológicas, teóricas e técnicas eram iluminadas pelo viés funcionalista/positivista de culpabilização dos sujeitos pelas situações vivenciadas, ainda que originadas da exclusão da divisão sócio e técnica do trabalho.
À época, a direção da profissão era marcadamente conservadora, uma vez que as situações vivenciadas pelos/as indivíduos eram tratadas como responsabilidade deles/as, ou seja, como falta de capacidade ou esforço. Por conseguinte, hegemonicamente, a profissão contava com um viés de manutenção da ordem e culpabilização dos/as usuários/as. Todavia, as profissões não são estanques e refletem os movimentos da sociedade. Portanto, com as transformações da sociedade brasileira são dadas as condições para o questionamento das bases conservadoras do Serviço Social.
Vale destacar que paralelo ao surgimento da profissão no Brasil, concebem-se as bases para as primeiras experiências de proteção social, ainda que desenvolvidas por meio de ações pontuais, sobrepostas, descontínuas e com forte responsabilização dos/as indivíduos/as. Assim, a formação sócio-histórica brasileira caracteriza-se pela invasão portuguesa; pelo genocídio dos povos tradicionais originários, além de imposição da religião oficial portuguesa; pela escravização dos povos africanos e posterior criminalização do negro; pela dependência e subordinação internacional; pela proclamação tardia da República; pelas vivências autoritárias por meio das ditaduras; pelos traços do clientelismo e coronelismo presentes nas relações sociais; pelos elevados níveis de desigualdades em contraste com a elevada concentração de renda. Portanto, todos esses processos são determinantes para o desenho do Sistema de Proteção Social brasileiro.
Considerando a categoria de assistentes sociais uma das profissões inseridas nesse sistema protetivo, a direção do trabalho profissional é influenciado também pelo desenvolvimento das ações pelo Estado e pela sociedade civil. Logo, é com o Movimento de Reconceituação do Serviço Social que emergem na profissão as possibilidades históricas de desenvolvimento de vertentes progressistas disputando a direção com as tendências conservadoras.
Não obstante, esse processo não aconteceu sem contradições, sendo a “Intenção de Ruptura” a primeira aproximação de questionamento do Serviço Social tradicional em aproximação com a tradição marxista (NETTO, 1991).
Ainda que relevante, tal movimento se configurou em intenção, por ter ficado restrito ao campo das universidades, não ganhando corpo nas instituições de campo. É o Congresso da Virada, de 1979, III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), que simbolicamente marca a virada do Serviço Social na direção conservadora. Na oportunidade do CBAS, assistiu-se à destituição das mesas oficiais e à recomposição com representantes de entidades dos/as trabalhadores/as, em pleno cenário ditatorial.
Da mesma forma, a luta pela democracia e o enfrentamento à ditadura militar, em que atuaram ativamente as/os assistentes sociais, foi determinante para o fortalecimento das forças progressistas na profissão, visando à disputa pela hegemonia. Nessa lógica, o Projeto Ético-Político do Serviço Social emergiu nos anos 1970, consolidou-se nos anos 1980, paralelamente à luta pela democracia, e a partir dos anos 1990 manifestaram-se os questionamentos reflexos da reestruturação produtiva, do neoliberalismo e do ajuste fiscal no Brasil.
Frisa-se, ainda nos anos 1990, a aprovação de importantes documentos que instrumentalizam o Projeto Ético-Político e materializam a direção das entidades organizadoras do Serviço Social, a saber: Código de Ética do/a Assistente Social; lei que regulamenta a profissão de assistente social; e as Diretrizes Curriculares da ABEPSS.
Vale salientar que foi no mesmo período de consolidação do Projeto Ético-Político do Serviço Social que se integrou o Sistema de Proteção Social Brasileiro, por meio da instituição, no texto da Ordem Social da Constituição Federal de 1988, da Seguridade Social, com a definição das políticas de saúde, assistência social e Previdência Social.
Como parte do tripé da Seguridade Social, a saúde passou a ter caráter universal. Porém, como reflexo da disputa entre o projeto privatista e o projeto da reforma sanitária, previu-se a possibilidade de iniciativa privada na organização do Sistema Único de Saúde (BRAVO; MATOS, 2006, p. 211). No campo da Previdência Social, configurou-se equilíbrio entre os direitos no campo e na cidade, sendo a condição para participação da contribuição previdenciária.
A inclusão da Política de Assistência Social, enquanto direito do/a cidadão/ã e dever do Estado, perfaz um dos principais avanços no campo do sistema protetivo recém-criado. Na mesma direção, a instituição do BPC da assistência social, fruto de emenda popular –destinado a pessoas com deficiências e pessoas idosas a partir de 65 anos, com renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo –, representou significativo avanço na proteção à população idosa e com deficiência, impossibilitados/as de contribuição previdenciária em razão do não acesso ou acesso precário ao mercado de trabalho.
Na contramão do cenário mundial, enquanto no Brasil, avançava-se na constituição do Sistema de Proteção Social, particularmente materializado pelas Políticas de Seguridade Social, com intervenção do Estado, o mundo era solapado pelas medidas do neoliberalismo, de ajuste fiscal e de reestruturação produtiva na tentativa do capital de responder à sua crise estrutural.
Esse receituário passa a ser ditado pelo Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial como resposta às crises cíclicas e ao esgotamento da capacidade de lucros produtivos. Nessa direção, também emerge o fenômeno da financeirização do capital ou capital volátil. Ademais, as respostas à crise do capital passam pela disputa pelo fundo público, alavancado a partir dos anos 1930 com a emergência das experiências do Welfare State (Estado de bem-estar social), Estado-providência ou Estado social. No Brasil, em razão dos determinantes econômicos, sociais, políticos e culturais, tem-se o desenvolvimento do Estado social, essencialmente com a instituição da Seguridade Social, ainda que anteriormente tenham acontecido experiências focalizadas de proteção social.
Sublinha-se que mesmo que se reconheça o avanço com a Seguridade Social inscrita na Constituição Federal de 1988, a categoria das/os assistentes sociais atuou no sentido de aprovação de uma Seguridade Social ampliada, para além do tripé instituído. Nesse sentido, a direção do Projeto Ético-Político do Serviço Social defende a ampliação da Seguridade Social, materializando-se na Carta de Maceió para a constituição de “um verdadeiro padrão de proteção social no Brasil” (CFESS, 2000, n.p.).
Outrossim, ressalta-se que ainda nos anos 1990, e avançando nos anos 2000, incidem no Brasil processos de deterioração do Sistema de Proteção Social, por meio da Contrarreforma do Estado e das privatizações. A partir de 2003, com a eleição do presidente Lula, dá-se início no País ao Neodesenvolvimentismo, significando uma mudança no padrão de desenvolvimento econômico e social, por meio do “pacto de conciliação de classes”, embora não tenha representado alteração na disputa entre capital e trabalho.
Em 2016, no quarto mandato do Partido dos Trabalhadores, aconteceu o Golpe Parlamentar, Midiático e Jurídico, denotando o esgotamento do pacto de conciliação de classes (BRAZ, 2017). Nesse contexto, o vice-presidente “assume” a presidência e passa a implementar uma série de medidas que significaram uma “ponte para o passado”, dentre as quais a mais significativa foi a aprovação da Emenda Constituição nº 95, que instituiu um novo regime fiscal e congelou os investimentos públicos por vinte anos, além da Contrarreforma Trabalhista.
Na continuidade desse projeto de regressão de direitos, em 2018, foi eleito o presidente Jair Bolsonaro, que aprovou a Contrarreforma da Previdência Social, processo que representou a tentativa de alcance do último e talvez mais cobiçado nicho de fundo público disponível, considerando a queda das taxas de lucros do capital.
É nesse cenário de desproteção que a pandemia de Covid-19 aprofunda os desafios vivenciados pela Seguridade Social, especialmente no que alude ao financiamento das políticas sociais, trazendo reflexos para o trabalho profissional das/os assistentes sociais, bem como para o conjunto da classe trabalhadora, em particular a população desprovida de trabalho, configurada enquanto exército industrial de reserva, nos termos de Marx (ALENCAR; GRANEMAMM, 2009).
Sobreleva-se que como fruto do irracionalismo, com a pandemia, passou-se a proclamar que os/as invisíveis estavam aparecendo, por exemplo, a partir da oferta de auxílio emergencial do governo federal ou da busca por benefícios eventuais, mormente a cesta básica. Na verdade, os/as invisíveis são reflexos diretos do sistema de produção capitalista, impulsionados pelas Contrarreformas Trabalhista e Previdenciária, pela Lei de Teto dos Gastos, pelo ajuste fiscal e pela crise sanitária fomentada pela Covid-19.
Diante dessa realidade, o Projeto Ético-Político do Serviço Social é atravessado pela grave crise sanitária, sendo a pandemia de Covid-19 um elemento catalisador da disputa pela direção da hegemonia. Assim, a Política de Assistência Social, enquanto área essencial de enfretamento à pandemia, é conformada pela conjuntura dessa crise sanitária, recaindo sobre as/os assistentes sociais e os/as demais trabalhadores/as do SUAS a intensificação da demanda de trabalho e da precarização do trabalho, e a necessidade de respostas coletivas e individuais aos desafios postos.
É nesse ambiente de recrudescimento da questão social que se (re)atualiza o significado da profissão no atendimento às demandas sociais, embora tais requisições reflitam as contradições da apropriação desigual das riquezas socialmente produzidas. Então, cabe analisar as condições objetivas e subjetivas do trabalho profissional das/os assistentes sociais nos CRAS e nos CREAS – as duas unidades de referência da Política de Assistência Social.
3.2 As condições objetivas e subjetivas do trabalho profissional nos CRAS e nos CREAS
O/a assistente social desenvolve as requisições para as quais é contratado/a, mediante processos de trabalhos nas diversas áreas de atuação em que a categoria se insere. Nesse processo, definiu-se que o objeto de intervenção, a matéria-prima do Serviço Social são as expressões da questão social, conforme definição acima.
Dessa forma, a profissão atua, intervém frente às requisições do Estado e da sociedade civil, mediatizadas pelas instituições empregadoras, essencialmente inserida nas diversas políticas sociais constituintes do Sistema de Proteção Social brasileiro. Então, as/os assistentes sociais inserem-se para além da mera intervenção, participando também da formulação, da implementação, do monitoramento e da avaliação das políticas sociais.
Para tanto, as/os profissionais não possuem a totalidade dos meios ou instrumentos de trabalho, sendo estes oportunizados pelas instituições empregadoras. Portanto, aqui reside a relativa autonomia dos/as assistentes sociais. A transformação no objeto de trabalho ou produto do trabalho do Serviço Social dá-se por meio do acesso ou não aos direitos pela população usuária de serviços, programas, projetos e benefícios das diversas políticas sociais. Nesse sentido, o produto do trabalho da profissão, não necessariamente é algo visível, pois perpassa a socialização de informações sobre os direitos, bem como o fortalecimento da população usuária na participação e no controle social, possibilitando o protagonismo da classe trabalhadora nas lutas pelos direitos (CFESS, 2011).
À vista disso, o trabalho das/os assistentes sociais para atingir o produto, intermediado por requisições profissionais, acontece em função de condições objetivas e subjetivas. Em se tratando da Política de Assistência Social, constata-se o avanço normativo na estruturação do SUAS, pois desde 2004 viveu-se a expansão e “consolidação” do sistema, com a implantação de unidades de referências da Proteção Social Básica e Proteção Especial de Média Complexidade e Alta Complexidade.
Nesse ensejo, previu-se um conjunto de condições materiais/estruturais e de recursos humanos inscrito nos documentos normativos, nomeadamente a PNAS, a NOB, a NOB-RH e a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, entre outros. Todavia, a garantia das condições de trabalho não se dá de forma automática, requerendo um conjunto de esforços das/os gestores/as, das/os trabalhadores/as e do controle social para a concretização da profissionalização das ofertas e desprecarização do SUAS.
Transcorridas quase três décadas de institucionalização da Política de Assistência Social, observa-se um descompasso na garantia das condições objetivas, implicando diretamente as possibilidades do produto das/os assistentes sociais. Em outros termos,
[...] as condições para o exercício profissional no SUAS, no contexto brasileiro, favorecem a precarização e a alienação profissional: parcos investimentos na rede de serviço, equipamentos sociais insuficientes, precarização do trabalho, controle gerencial, dentre outros. Essas determinações sociais podem interferir no trabalho do assistente social, limitando o exercício da sua relativa autonomia e distanciando o Serviço Social dos seus objetivos (BRAGA, 2017, p. 78-79).
Isso posto, a direção do Projeto Ético-Político é tensionado pelas possibilidades concretas de os/as assistentes sociais imprimirem tal projeto, uma vez que as condições de trabalho são adversas. Contudo, a relativa autonomia profissional permite, ainda que não em sua totalidade, desenvolver as atividades profissionais à luz da Política de Assistência Social, sem recair no messianismo ou fatalismo (IAMAMOTO, 1997).
Tais posturas remontam à origem da profissão e comungam da despolitização da profissão, recaindo na desprofissionalização do Serviço Social. Por conseguinte, essas condições interferem diretamente no trabalho desenvolvido junto às famílias, conforme será discutido adiante.
3.3 O trabalho do/a assistente social junto às famílias no âmbito dos CRAS e dos CREAS
Conforme discutido anteriormente, a Política de Assistência Social avançou em termos de normatização, apesar de esse progresso não acontecer sem contradições, uma vez que persiste uma tendência familista, na medida em que a família é apropriada enquanto recurso, instrumento, meio para assegurar a proteção dos/as integrantes (MIOTO, 2015).
Nessa acepção, a família, antes mesmo de ser objeto de proteção, é encarada como possibilidade para proteger seus integrantes, sem considerar suas condições concretas de existência. Essa lógica está presente nos atos normativos da Política de Assistência Social, desde a PNAS até as Orientações Técnicas do Trabalho Social com Famílias. Consequentemente, enquanto se avança na concepção ampliada de família e no reconhecimento desta como organização foco de proteção, requisitam-se contrapartidas aos/às seus integrantes como condição para participação em programas, projetos, serviços e benefícios (TEIXEIRA, 2013).
Com tal característica, é possível associar essa lógica de tratamento da pobreza e das situações de desproteção às experiências vivenciadas pelos Welfares States (Estado de bem-estar social) ou Estados-providências – ressalvadas as características enquanto experiências históricas localizadas no tempo e no espaço. Logo, embora se compartilhe que o Brasil não vivenciou as experiências referidas, é possível localizar semelhanças no trato com as tipologias de Esping-Anderson e Titmuss, ao abordarem as experiências conservadora e liberal (ESPING-ANDERSEN, 1995).
Então, a família, na concepção teórico-metodológica, técnico-operativa e ético-operativa é entendida como parceira, e ao falhar, é culpabilizada pelas situações de desproteção aos seus membros. Portanto, existe uma “armadilha” conceitual e operativa que precisa ser desvendada pelos/as trabalhadores/as do SUAS, sob pena de alicerçar outra direção que não a do Projeto Ético-Político. Seja nos CRAS ou nos CREAS, cabe o desenvolvimento de atividades que fortaleçam a família no papel protetivo, enquanto sujeito a ser protegido, e não recurso para proteção.
Admite-se que se apresenta uma linha tênue entre uma direção e outra, pois o trabalho social com famílias é apropriado tanto por projetos progressistas quanto conservadores, ou até mesmo retrógrados. Nessa lógica, é fundamental a observância do exercício profissional à luz dos fundamentos ético-políticos, teórico-metodológicos e técnico-operativos. Deveras, os Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais na Política de Assistência Social (CFESS, 2009) constitui um documento que deve iluminar a prática profissional, não como manual a ser seguido, mas como constituinte de indicações embasadas na direção de Política do Serviço Social.
Enfatiza-se que convivem, nem sempre harmoniosamente, concepções diversas de Política de Assistência Social, Serviço Social, mundo e humanidade que, consciente ou inconscientemente, são apropriadas ou reproduzidas pelos/as sujeitos profissionais no desenvolvimento dos processos de trabalho.
Aliás, o trabalho de assistentes sociais nos CRAS e nos CREAS é regulamentado pelos órgãos gestores e pelo controle social, ambos nas instâncias federal, estadual e municipal. Conforme presentes nas regulações, o trabalho social com famílias pode desenvolver-se por meio de atendimentos ou acompanhamentos individuais ou coletivos. Os atendimentos caracterizam-se por ações pontuais e que terminam neles mesmos, tais como uma orientação; caso necessário, os/as usuários/as podem retornar para outros atendimentos.
Tais acompanhamentos são compreendidos como ações de médio a longo prazo, uma vez que as expressões da questão social não podem ser “resolvidas” a partir de um encaminhamento, sendo necessária uma série de ações para atingir os objetivos do Plano de Acompanhamento Familiar. Tanto os atendimentos quanto os acompanhamentos podem acontecer por meio de ações coletivas ou individuais, sendo as primeiras as que envolvem mais de uma família ou indivíduo.
É nesse cenário contraditório que se desenvolve o trabalho de assistentes sociais nos CRAS e nos CREAS, sendo idealizado em equipe, com outros/as profissionais que compõem as equipes das unidades de referências das Proteções Social Básica e Especial de Média Complexidade, respectivamente.
Analisa-se adiante como a pandemia afetou o trabalho nos CRAS e nos CREAS, a partir dos desenhos anteriormente normatizados e instituídos no SUAS.
3.4 Processo de trabalho do/a assistente social em tempos de “falso normal”
A pandemia de Covid-19 descortinou as desigualdades já agudizadas no mundo todo, trazendo impactos sem precedentes no Brasil, haja vista os processos recentes abordados ao longo deste artigo, entre os quais as Contrarreformas Trabalhista e Previdenciária, a Lei de Teto Fiscal e o ajuste fiscal.
A grave crise sanitária vivenciada desde fevereiro de 2020 enseja reflexos para o Sistema de Proteção Social no Brasil, singularmente para a Política de Assistência Social. No início da pandemia, propagou-se um discurso amplamente divulgado de surgimento de um “novo normal”, requerendo das pessoas e das profissões uma reinvenção.
Transcorridos os primeiros meses, verificou-se que essa nova normalidade não passava do “velho normal”. Primeiramente, porque não aconteceram transformações estruturais no modus operandi da sociedade capitalista. Apesar da necessidade de intervenção do Estado social, as ações majoritariamente beneficiaram o capital, por meio da ajuda aos bancos, às empresas. Também oportunizaram atendimento das necessidades sociais, por meio, particularmente, do auxílio emergencial do governo federal, somado a outras ações dos estados e municípios, tais como o Cartão SASC Emergencial, do governo do estado do Piauí, e benefícios eventuais ofertados pelas secretarias de assistência social dos municípios. Sem embargo, o socorro ao capital sobrepõe as ofertas ao trabalho.
Em segundo lugar, a reinvenção prometida, não raras vezes, significou intensificação da precarização das relações de trabalho, do aumento do desemprego, da informalidade, da uberização, da falta dos equipamentos de proteção individuais e coletivos, bem como da demora na vacinação contra a Covid-19. Nesse aspecto, vale lembrar que embora a assistência social tenha sido definida como área essencial, por força de decretos do governo federal e dos municípios, houve exclusão da categoria das/os trabalhadores/as do SUAS dos Planos de Vacinação contra a Covid-19.
Com isso, a atuação das/os assistentes sociais durante a pandemia deu-se mediante a intensificação das demandas de trabalho, da suspensão das atividades coletivas presenciais, da adoção de protocolos de saúde, da demora no acesso aos Equipamentos de Proteção Individuais e Coletivos, do medo e da insegurança do trabalho por conta da “novidade” da crise pandêmica, que necessitou de adequação das atividades desenvolvidas e previstas nas regulações da Política de Assistência Social.
Para além de uma nova normalidade, desvelou-se um velho ou falso normal de intensificação da precarização das relações de trabalho, aumento das demandas em razão do aumento do desemprego e da informalidade, e fragilização das lutas individuais e coletivas, que embora existentes, não deram conta dos ataques ao trabalho, embora se reconheça que ainda que incipientes, sem elas, o cenário seria mais desolador.
É nesse contexto desafiador que se desenvolvem os processos de trabalho dos/as assistentes sociais, inclusive reafirmando a imagem da profissão no atendimento parcial de algumas das necessidades sociais, articulada à reprodução do capital, justificando a necessidade e razão de ser do Serviço Social.
Ainda não é possível vislumbrar todas as consequências da pandemia no Sistema de Proteção Social brasileiro, especialmente na Política de Assistência Social e no Trabalho. Porém, projeta-se intensificação da demanda em um contexto de redução do orçamento das Políticas de Seguridade Social, imprimindo uma direção focalizada e o chamamento para ações da sociedade civil, pontuais e ausentes da condição de direito.
Essa realidade reafirma a necessidade de organização política das/os assistentes sociais junto aos/às demais trabalhadores/as do SUAS e ao conjunto da classe trabalhadora, assim como o fortalecimento da participação e do controle social das/os usuárias/os do SUAS, historicamente alijadas do trabalho.
4 CONCLUSÃO
O Projeto Ético do Serviço Social reafirma-se no cotidiano das experiências profissionais das/os assistentes sociais, organizadas/os coletivamente mediante as instâncias da profissão, quais sejam o conjunto CFESS/CRESS, ABEPSS e ENESSO.
A direção do trabalho profissional é dada não sem contradições, tendo em vista a estrutura do sistema capitalista e os processos de apropriação privada dos direitos e das riquezas socialmente produzidas. Situadas no interior dessa sociedade, estão as experiências históricas dos Sistemas de Proteção Social, funcionais ao capitalismo, embora representem acesso aos direitos no campo do trabalho, em que estão inseridas/os os/as assistentes sociais, por meio das políticas sociais, a exemplo da assistência social.
A pandemia de Covid-19 agudizou o cenário de desproteção vivenciado no Brasil, fruto das consequências nefastas de ajuste fiscal executadas pelos organismos internacionais a partir dos anos 1970, com vistas ao retorno dos ganhos para o capital, sendo implementadas no Brasil sobretudo a partir dos anos 1990/2000.
Nesse sentido, as políticas sociais, perpassadas por medidas de ajuste fiscal, ocasionam o desfinanciamento e a precarização das ofertas para a população trabalhadora. As/os assistentes sociais atuam nas políticas sociais como parte da classe trabalhadora, e experienciam os impactos no trabalho, sendo necessário responder às requisições profissionais nesse contexto de precarização das condições de trabalho. É nesse cenário que atuam os/as assistentes sociais trabalhadores/as do SUAS. Para além de uma nova normalidade, a pandemia de Covid-19 desvendou o “velho ou falso normal”.
Destarte, a pandemia de Covid-19 não altera o modo de funcionamento do sistema capitalista, sendo até mesmo resultante e funcional ao mesmo tempo, tendo em vista o padrão destrutivo ao meio ambiente. Logo, a crise pandêmica intensifica as expressões da questão social e, na mesma direção, o objeto de trabalho dos/as assistentes sociais.
Nesse contexto, permeado de desproteção social, direciona-se o Projeto Ético-Político do Serviço Social, da Política de Assistência Social, da Seguridade Social e do Sistema de Proteção Social brasileiro.
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