Artigos - Dossiê Temático

BRASIL “EM TESE”: ideologias em disputa, democracia em jogo

BRAZIL “IN THEORY”: ideologies in dispute, democracy at stake

Barbara Nascimento Rodrigues
Universidade de Brasília - UnB, Brasil
Cristina Araujo
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Brasil

BRASIL “EM TESE”: ideologias em disputa, democracia em jogo

Revista de Políticas Públicas, vol. 27, núm. 2, pp. 545-563, 2023

Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 09 Junio 2023

Aprobación: 01 Noviembre 2023

Resumo: Após anos de um cenário político-institucional protagonizado por figuras de centro e discussões em torno de pautas estruturais e socioeconômicas, o início da última década abre espaço para questões que abordam valores e pautas identitárias, além do agravamento da falta de expectativa quanto à resolução dos problemas que a desigualdade no Brasil acarreta. Tais questões também são permeadas por ideologias onde seus porta-vozes estão em contínua disputa pelo domínio da esfera pública, logo, da opinião pública. Os impactos dessa mudança ainda estão sob análise, mas necessário, de antemão, compreender a qual democracia esse processo faz referência, já que esses agentes afirmam a defender sob diferentes óticas. Este artigo apresenta uma reflexão acerca da democracia brasileira contemporânea, tendo em vista as recentes disputas ideológicas e os novos meios de socialização de ideias.

Palavras-chave: democracia, ideologia, política, discurso, Brasil.

Abstract: After years of a political-institutional scenario led by centrist figures and discussions around structural and socioeconomic guidelines, last decade brought questions that address values and identity agenda, in addition to the escalation of the lack of expectations regarding the resolution of problems that inequality in Brazil entails. Such questions are also crossed by ideologies where their advocates are in continuous dispute for the domain of public sphere, therefore, of public opinion. The impacts of this process are still under analysis, however it is necessary to understand first, which democracy this process is referring to, since these agents claim to defend it from different perspectives. This article presents a reflection on contemporary Brazilian democracy, in face of recent ideological disputes and new medias of socializing ideas.

Keywords: democracy, ideology, policy, discourse, Brazil.

1 INTRODUÇÃO

Tweet do Presidente Jair Bolsonaro em resposta à ‘Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito’’ publicado em 28 de julho de 20221
Figura 1
Tweet do Presidente Jair Bolsonaro em resposta à ‘Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito’’ publicado em 28 de julho de 20221
Bolsonaro, 2022

A população brasileira tem acompanhado nas últimas décadas a tentativa de exercício da democracia em uma realidade que tem como característica principal a desigualdade, fruto de um processo histórico que ainda não teve, de fato, uma ruptura com o modelo de desenvolvimento hegemônico vigente. “Em tese”, a democracia representativa seria o melhor caminho para solidificar uma sociedade em que as vontades e necessidades do povo fossem levadas em consideração nos momentos de tomada de decisão e na construção da civilização almejada. Entretanto, “na prática”, a retórica democrática se sobrepõe à sua tradução em ações e, portanto, em mudanças reais. Diante da expectativa de ultrapassar a eterna etapa como país em desenvolvimento, o Brasil contemporâneo se apresenta como um palco do acirramento da disputa de ideologias condicionadas ao afeto do desamparo promovido por um Estado que não proporciona a segurança necessária à população para viver de forma plena e, assim, exercer sua cidadania.

O objetivo do presente artigo é construir uma reflexão acerca dos limites atuais da democracia à moda brasileira, tendo em vista a noção de que as escolhas políticas não são exclusivamente racionais e que o conflito de ideias é transpassado por discursos tanto hegemônicos quanto alternativos, com base em distintas ideologias. Faz-se necessário situar essa discussão na problemática contemporânea em que a internet, as redes sociais, o marketing de influência aparecem enquanto elementos-chave para repensarmos o exercício democrático – perante novos movimentos como, por exemplo, o tecnopopulismo (LEAVY, 2018) e das reflexões iniciais acerca dos efeitos das novas estratégias de influência e domínio do debate público na consolidação do regime democrático no Brasil.

2 OS LIMITES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA: chegamos ao ponto sem retorno?

Enquanto regime de governo, a democracia se caracteriza por ser aquele em que o povo é soberano. No caso brasileiro, essa vontade pode ser expressa por meio de instrumentos de participação com vistas a traduzir suas ideias, opiniões e desejos, acerca de questões coletivas, de caráter público, e assim ser levada em consideração no momento de tomada de decisões. Sendo uma democracia representativa, os cidadãos brasileiros devem delegá-la aos seus representantes, selecionados por meio do voto – com peso igual para todos os eleitores – durante os períodos eleitorais que ocorrem de dois em dois anos, alternando para cargos do Executivo e Legislativo municipal e cargos do Executivo e Legislativo federal e estadual.

Esse modelo de democracia não é um tipo único, replicado em diferentes lugares. Existem diferentes modelos de democracia, como apresentado no esquema da figura 2, que respondem a diferentes realidades e visões sobre como assegurar coletivamente bens e valores entendidos como fundamentais, como liberdade, igualdade, interesses comuns e privados, satisfação de necessidades, entre outros (HELD, 1987) mediante a dinâmica de distribuição de poder (e, portanto, recursos) existente.

Esquema dos modelos de democracia
Figura 2
Esquema dos modelos de democracia
Held (1987, p.4) - (As linhas pontilhadas simbolizam os padrões de influência entre os modelos, as linhas uniformes simbolizam as relações entre as variantes teóricas).

O esquema traz como “modelo de partida” a Democracia Liberal por ser a referência inicial principal das democracias ocidentais, estabelecendo as premissas que diferentes nações reconhecem e replicam hoje nas estruturas de seus Estados. Seus defensores prezam pelas liberdades individuais (expressão, de reunião, religiosa) sobre o Estado, que seria resolvida por meio da participação do povo ao eleger seus representantes. Por outra perspectiva não exposta no diagrama, a Democracia Social, ou seja, de raiz socialista, denuncia a luta de classes e sua hierarquização vertical nos mecanismos de representação e defesa da soberania popular propostos pelo liberalismo, o que coloca em xeque a garantia da real representação dos interesses das classes mais vulnerabilizadas.

Atentando-se a essas perspectivas que partem de diferentes campos ideológicos, Bobbio et al. (1998, p. 326) afirma que a “democracia se foi entendendo um método ou um conjunto de regras de procedimento para a constituição de Governo e para a formação das decisões políticas [...] mais do que uma determinada ideologia”, como que em um esforço de conciliação em torno de um mesmo modelo ideal de governo da população. A discussão sobre a própria noção do que seria a democracia encontra críticos de diferentes frentes, seja aqueles que se opõem a ela por discordarem dos seus fundamentos, seja por acreditarem na teoria, mas a acharem inviável na realidade ou ainda aqueles que são favoráveis, mas possuem críticas pontuais a alguns fatores específicos (DAHL, 2012).

Decerto, se ampliarmos nossa percepção para além do debate academicista, notamos que a democracia possui muitas camadas e conceitos além de sua concepção original enquanto regime de governo, acrescentando complexidade no debate em torno da sua definição e, por consequência, de quem a define. Robert Dahl (2012) denuncia que “um termo que significa qualquer coisa não significa nada” e que a democracia é um exemplo disso, a caracterizando não como “um termo de significado restrito e específico”, mas como um “vago endosso de uma ideia popular” (DAHL, 2012, p.3). Essa imprecisão não anula sua prática, mas, ainda assim, nos permite pensar criticamente – ao colocarmos em perspectiva a dinâmica política atual – nos desafios de se defender ou rejeitar algo no qual não existe um consenso em torno do que se é.

O professor Luís Felipe Miguel afirma que o conceito de democracia é um conceito em disputa (MIGUEL, 2019). Não à toa, independente do espectro ideológico (excluindo aquelas figuras que publicamente rompam com a ideia de uma soberania popular), o discurso da defesa e fortalecimento da democracia está presente nas narrativas de agentes políticos dos mais diferentes partidos e agendas. A figura 1, que abre a seção anterior, é um exemplo disso. A Carta em defesa ao Estado Democrático de Direito (2022) expressa uma preocupação em relação ao que se considera “ameaças à democracia”, especialmente no que diz respeito aos ataques do Executivo ao processo eleitoral, aos demais poderes (Legislativo e Judiciário) e setores da sociedade civil, além da “incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”. Enquanto isso, o principal representante do Executivo, em tom de ironia, responde ser (também) a favor da democracia. Nota-se que há interpretações e posturas distintas acerca da democracia brasileira, ainda que ambos estejam diante da mesma realidade.

As camadas trazidas nesse diálogo ultrapassam a simples ideia de democracia enquanto regime de governo, conjunto de valores ou mecanismo de participação popular. Esses dois grupos, defensores da Carta e representantes e apoiadores da gestão de Bolsonaro, reclamam para si um discurso de democracia sabendo que tal discurso carrega em si o poder de coesão necessário para movimentar massas, já que o povo almeja um sistema que concretize seus desejos e sane suas necessidades. Nessa perspectiva não há certo e errado, os dois acreditam ter razão e a defendem para seus meios, evidenciando uma disputa discursiva que depende da capacidade do povo em manifestar sua vontade e nos leva a questionar sua real autonomia em fazê-la.

Se por um lado temos sociólogos e cientistas políticos, como Souza (2017) e Avritzer (2019), que apontam a fragilidade da democracia brasileira perante a crise de representatividade ou desvelam o papel das elites nacionais no aparelhamento e manipulação da política institucional, por outro, temos na esfera pública contemporânea produtores de conteúdo, como a empresa Brasil Paralelo com seus 3,59 milhões de inscritos no YouTube, que contribuem para a pulverização de contranarrativas que chegam ao cidadão médio, não acadêmico, como respostas palatáveis à sua duradoura indignação. Por vezes, ambos se utilizam dos mesmos fatos, como por exemplo os casos de corrupção, para apresentarem justificativas e defenderem saídas totalmente distintas, seja por meio da defesa e fortalecimento do regime democrático que conhecemos, seja pelo seu total abandono e direcionamento para novos modelos de governo.

Não podemos deduzir que hoje a construção do consentimento em torno de como o regime atual de governo deve ser, se reduza à opinião de especialistas até porque esses não são legitimados por uma Cátedra, mas sim pelo espectador, pela esfera pública mais ampla2. Logo, o que estamos denominando de “a democracia à moda brasileira” consiste em um regime de governo em construção caracterizado pela desigualdade e pela disputa de classes e discursos que rege o bem público mediante a expressão da maioria (o eleitorado) e os acordos de uma minoria (os eleitos).

Portanto, essa disputa – de classes e discursos – traz consigo um horizonte histórico que no Brasil3 é marcado por eventos simbólicos que caracterizam sua jornada democrática de modo singular. A democracia brasileira, enquanto um fato histórico, se constituiu por fases. Apesar de ter se formado a partir do início da República, em 18894, o grande ponto de virada para o debate contemporâneo foi a instauração da Constituição de 1988, também conhecida como a Constituição Cidadã, no período pós ditadura militar, caracterizado como a Nova República. Em seu preâmbulo o texto destaca:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (BRASIL, 2016, grifo nosso).

O trecho traz o Estado democrático como defensor de direitos sociais e individuais e ainda cita um conjunto de valores que ele deve assegurar, dialogando com os preceitos da Democracia Liberal já mencionados. Ao acrescentar a igualdade, a justiça e indicar a sociedade brasileira como uma sociedade fraterna, o texto dialoga mais diretamente com as críticas advindas da vertente social. Sabemos que todos os elementos descritos são conceitos que dependerão de uma interpretação individual e coletiva, esperando-se que exista um entendimento comum que promova a harmonia social. O que o texto não prevê – já que parte de uma forma idealizada e conciliatória de democracia – é a possibilidade de ruptura com a lógica socioeconômica vigente onde as desigualdades se aprofundam e o tecido social se esgarça. Ou seja, espera-se atingir um ideal de equilíbrio e bem-estar que supere as dificuldades encontradas sem romper com a estrutura atual. Ao menos aparentemente, as soluções pacíficas para as controvérsias encontradas estão sujeitas a conflitos inerentes do sistema em que a Constituição está inserida, fazendo com que seus próprios valores de base social passem a ser negligenciados devido ao desequilíbrio de poderes de cada grupo social existente. A história recente nos evidencia tal desafio.

De 1988 até os dias atuais passamos por oito presidentes (entre eleitos diretamente e vices que eventualmente assumiram o cargo de presidência), em que dois deles sofreram processo de impeachment e foram retirados do cargo. Governos ruins não justificam um impeachment, mas na democracia brasileira isso pode ser usado como pano de fundo para a instauração de processos legais de suspensão de mandato. No caso do impeachment de Fernando Collor, ocorrido em 1992, falhas na gestão da crise econômica (alta inflação) e desavenças com setores das elites econômico-financeiras incitaram o início da investigação sobre o vínculo do então presidente com PC Farias em um esquema de corrupção. Collor foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) 22 anos após seu afastamento por falta de provas (BRASIL, 2014).

Já no processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, as pedaladas fiscais (manobra econômica utilizada de forma recorrente por atores políticos) foram o fator escolhido para sua abertura. Entretanto, Singer (2018) mostra que, na realidade, o que incitou o processo foi a insistência da Presidente em proceder com um ensaio desenvolvimentista diante de um Congresso e um Senado que ansiavam pela agudização de políticas neoliberais e uma menor participação do Estado na dinâmica do mercado e no provimento de segurança e assistência para os trabalhadores. O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff foi lido por muitos como um golpe de Estado pelas suas características, que apontavam para uma estratégia de recuperação do poder do Estado por parte das elites econômicas brasileiras representadas por políticos de centro-direita e direita (MIGUEL, 2019).

Não somente Collor e Rousseff tiveram pedidos de impeachment protocolados pela oposição no Congresso. Entretanto, os dois foram os únicos ex-presidentes que tiveram os pedidos aprovados, postos para avaliação, votação e, por fim, tiveram um parecer favorável ao afastamento. Dois fatores se destacam nesses processos: a conjuntura econômica vigente e os grupos políticos de relevância tanto no cenário institucional quanto na esfera pública. Ambos são peças fundamentais para entendermos a democracia brasileira que tem se desenvolvido “aos trancos”, ainda tateando sua real concepção e pleno exercício. Esses eventos nos mostram também que a dinâmica de capitais (Bourdieu, 2015) é inerente às práticas políticas que, por sua vez, são atreladas ao regime de produção e seus protagonistas. Para a manutenção do poder de determinadas classes sociais detentoras de capital é necessário que a estrutura estatal, mesmo dita democrática, responda diretamente aos interesses desses grupos. Porém, assegurar suas escolhas nos espaços de poder dependerá não somente de sua própria vontade, mas também da vontade de classes que são mais numerosas, devido a seu peso no momento da eleição de seus representantes. Como, então, garantir tal hegemonia? Para chegarmos a uma resposta, e refletirmos sobre as consequências desse ato, é necessário entender o local das classes sociais, ideologias e seus discursos no cenário brasileiro.

3 ENTRE DISPUTAS IDEOLÓGICAS, DISPUTAS DISCURSIVAS, DISPUTAS DE CLASSE

O caráter conciliatório expresso na Constituição revela um aspecto intrínseco à formação e ao desenvolvimento das sociedades: a existência de conflitos. Ainda que provenientes de diferentes naturezas, conflitos também podem nascer simplesmente do (des)encontro entre diferentes ideias que estão presentes no debate público, e que são expressas em sua mais ampla diversidade, ao menos em democracias que prezam pela liberdade de expressão. Apesar de ser algo que costumeiramente busca-se mitigar, a depender das perspectivas e dos limites morais estabelecidos pelo coletivo, o conflito é também salutar para a oxigenação dessas mesmas ideias, identificando limitações, falhas e outros aspectos críticos que nos levaria a um processo de análise e validação da concepção e pertinência das ideias postas para debate.

Partindo das ideias, podemos também trazer para o mesmo movimento, concepções de mundo, comportamentos, opiniões, identificando divergências entre esses fatores na sociedade. Porém, refletir sobre tais elementos de maneira isolada não é suficiente para entendermos a razão por trás das ações de cada indivíduo, tornando-se necessário buscar os mecanismos de ativação dos corpos sociais em esferas mais amplas e complexas, de modo que nos traga uma maior noção sobre a reprodução de padrões desses elementos. Um dos possíveis caminhos a se tomar é pela análise das correntes ideológicas existentes na sociedade.

Nos dias atuais, o debate sobre ideologia(s) não se encerra nos limites dos muros acadêmicos. O termo ‘ideologia’ ganhou a esfera pública contemporânea e é possível vislumbrá-lo em alguns meios de maneira mesmo banalizada, por exemplo, como quando é associado com as críticas ao avanço das discussões sobre gênero. Nesse mote, a “ideologia de gênero” passa a ser objeto de discussões políticas acerca de novos comportamentos e padrões de manifestação de gênero e sexualidade na sociedade. Todavia, a ideologia não se encerra a recortes identitários específicos (o que, além de outros fatores, torna o conceito de “ideologia de gênero” equivocado no uso exemplificado), mas pode ser compreendida como uma concepção de mundo expressa de maneira implícita em diferentes formas de manifestação da vida individual e coletiva. Ou seja, ela seria um conjunto de ideias que carrega em si a capacidade de mudar visões de mundo e que penetram em comportamentos, ações, relações sociais, sem ter – necessariamente – um conceito positivo ou negativo.

Essa é uma forma de começarmos a interpretar o conceito de ideologia, porém não é a única. Desde os escritos de Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, muito se percorreu na busca por entender suas implicações nos indivíduos a medida em que as cidades cresciam, se complexificavam e adaptavam a estrutura do Estado às suas necessidades. Zizek (1996) mostra que a crítica à noção de ideologia é vasta e distintas escolas teóricas trouxeram contribuições para esse debate. Para nós, dessas leituras cabe destacar a posição adotada por Habermas (2014) que entende a ideologia como uma comunicação distorcida, um texto no qual há uma separação entre seu sentido público e sua intenção real, sendo ele influenciado por interesses inconfessos (interesses esses que podem ser de dominação). Logo, deve-se ter atenção aos discursos presentes na esfera pública já que por mais que um texto tenha um caráter descritivo, segundo Oswald Ducrot (1986), o limite entre argumentação e descrição não é nítido, fazendo com que esse tipo de conteúdo não possa ser considerado neutro. Para o autor, a seleção dos predicados, a descrição em si, é um momento de um esquema argumentativo. Por uma perspectiva da análise do discurso “[...] a própria ideia de um acesso à realidade que não seja distorcido por nenhum dispositivo discursivo ou conjunção com o poder é ideológica” (ZIZEK, 1996, p. 16), ou seja, qualquer esforço de expressão daquilo que é real teria um fundo ideológico ou, ao menos, seria acometido por discursos que têm em si poder de coerção social, inclusive a própria tentativa de vislumbrar algo que esteja alheio a esse processo.

Nesse sentido, portanto, podemos dizer que a ideologia está relacionada à forma como diferentes perspectivas “ganham espaço” na coletividade, seja alcançando escalas subjetivas individuais, seja se propagando por meios de interação globais. De qualquer forma, elas são permeadas por relações de poder e dominação, que em nosso cenário tem como característica principal a desigualdade da distribuição desse poder, usualmente estratificado em classes sociais de acordo com a detenção de capital de cada classe. Bresser Pereira (1999) defende que as lutas que a sociedade civil trava são disputas entre classes sociais e suas respectivas ideologias, que por sua vez são condicionadas pelas “restrições de caráter econômico [...] e pelas condicionantes histórico-estruturais”, tais como: o avanço da democracia, o aumento da produtividade, a melhoria da qualidade de vida acompanhada da concentração de renda e outros desafios trazidos pela globalização (BRESSER-PEREIRA, 1999, p.110).

Essa etapa do período histórico moderno, conhecida como globalização, traz mudanças significativas nas relações comerciais e informacionais entre países, assim como algumas contradições. A aceleração das trocas, o rápido desenvolvimento tecnológico e a busca por melhores condições de vida, enquanto características dessa etapa, são acompanhadas do aumento da pobreza e da desigualdade de acesso a serviços básicos, da corrupção e do surgimento de novas doenças (SANTOS, 2021), por exemplo. E isso não é resultado de um processo espontâneo. “A globalização atual é muito menos um produto das ideias atualmente possíveis e, muito mais, o resultado de uma ideologia restritiva adrede estabelecida” (SANTOS, 2021, p.181), ideologia essa que sustenta a manutenção do sistema econômico capitalista por meio da intensificação dos discursos que estimulam a acumulação de riquezas materiais e o culto ao consumo (SANTOS, 2021), seguindo um padrão hegemônico de desenvolvimento das sociedades ocidentais.

Esse padrão de desenvolvimento tem como matriz ideológica o liberalismo, que ganha proeminência no século XX, a ponto de poder ser identificada como uma “macroideologia”, ou seja, uma rede inclusiva de ideias que se consolida como tradição mais ampla de pensamento (ROCHA, 2021). Enquanto “macroideologia” o liberalismo cumpre uma agenda de defesa das liberdades. Ao longo do tempo, diferentes atores que o defendiam desenvolveram novas leituras e aplicações acerca do ideário liberal, fazendo com que separações (por exemplo, entre a dissociação entre liberalismo econômico e político) e novas vertentes surgissem, entre elas algumas que podem ser consideradas “ideologias modulares”. Segundo Rocha (2021), ideologias modulares são, quando comparadas às “macroideologias”, menos desenvolvidas em termos de alcance e propostas de soluções de problemas, podendo ser combinadas com outras ideologias mais amplas, criando assim novos padrões de comportamento, como por exemplo o nacionalismo (e sua releitura no Brasil contemporâneo por grupos ultraliberais conservadores). Para alcançarmos a discussão atual sobre quais ideologias estão presentes no jogo político brasileiro é necessário primeiro nos depararmos em uma ideologia modular específica, o neoliberalismo.

O fim dos anos 1980 trouxe o início da estagnação da lógica de modernização vigente e foi marcado pela aceleração inflacionária e a crise externa e fiscal. Dentre as possíveis soluções para lidar com a crise, a saída se deu por meio de estratégias vinculadas a um modelo neoliberal de desenvolvimento econômico. Dardot e Laval (2016) sustentam que, a partir da década de 1990, reforçou-se o quadro de desigualdades nos países que adotaram o neoliberalismo como modelo econômico. Em defesa da liberalização do mercado, idealmente de ampla concorrência, esse modelo estendeu esse ideal econômico para a escala individual e, consequentemente, para as relações sociais. Ele se tornou, então, uma racionalidade que é capaz de orientar de uma nova maneira “a conduta, as escolhas e a práticas desses indivíduos.” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 21). Os principais aspectos que configuram essa racionalidade são a concorrência individual e o modelo empresarial, que na contemporaneidade são absorvidos em diferentes escalas e suscitam em sociedades individualizadas que têm o consumo como guia (DARDOT; LAVAL, 2016). A aceleração do processo de modernização, que acompanhou o intenso avanço tecnológico das últimas décadas, também traz novos elementos para essas sociedades que, inseridas em um mundo globalizado, começam a enfrentar problemas identitários.

Para que esse projeto, baseado em relações de submissão e alienação, tivesse êxito foi (e ainda é) necessário que suas implicações ultrapassem as barreiras do social e alcancem a dimensão individual (psicológica, afetiva) dos cidadãos (BOLSTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Enaltecida quase como uma virtude, a lógica de acumulação fez com que os indivíduos se convencessem da retórica da liberdade individual, reforçando valores baseados em uma dinâmica de concorrência empresarial. Nesse contexto, o sentido econômico destitui-se de um caráter autônomo, vinculado às trocas comerciais, e passa a dar forma a uma nova ideologia que buscará justificativas de diversas fontes para sua existência (Dardot; Laval, 2016; HARVEY, 2011).

Sua consolidação, portanto, demandou uma série de intervenções estatais e reajustes, dentre os quais destacam-se aqui a fragilização proposital da organização coletiva da classe trabalhadora e o rearranjo da dinâmica das cidades. Para exemplificar os efeitos desse processo, pela perspectiva da dinâmica urbana, Harvey (2008) afirma que:

A administração da cidade passou a ser concebida cada vez mais como entidade empreendedora, em vez de social democrática ou mesmo administrativa. A competição entre centros urbanos por capitais de investimento transformou o governo em governança urbana mediante parcerias público-privadas. Os negócios da cidade passaram a ser crescentemente realizados por trás de portas fechadas e houve uma redução do conteúdo democrático e representacional da governança local (HARVEY, 2008, p. 57).

Recursos públicos foram utilizados para proporcionar a base de investimentos de grandes empresas, fazendo com que espaços públicos fossem trabalhados a partir de uma ótica da iniciativa privada. Tal perspectiva optou por um esforço de “espetacularizar” esses lugares. Como um “banho de loja”, as cidades foram objeto de ressignificação por parte dos agentes interessados no aquecimento de novos mercados, mesmo que tais processos não garantissem um impacto positivo sobre a pobreza ou demais déficits sociais (ARANTES et al., 2002, p. 23). Assim, ao invés de perseguir o bem-estar social, os governos e demais atores locais passaram a priorizar o bem-estar corporativo (HARVEY, 2008). A racionalidade econômica defendida demanda um princípio de ceteris paribus5 que a realidade urbana não acompanha. Submetendo-se marginalmente a esse processo, os países latino-americanos seguiram o discurso neoliberal que defende uma “ótica prática” baseada no paradigma técnico-econômico distribuindo a influência dessa lógica na estrutura e dinâmica das cidades, que também entraram no movimento de competição entre si para atrair investimentos (MATTOS, 2010).

Inclusive, o modelo de desenvolvimento capitalista adotado, para que possa existir, demanda inconstâncias e momentos de crise. “As crises financeiras servem para racionalizar as irracionalidades do capitalismo” (HARVEY, 2011, p. 18) e elas não limitam seus efeitos ao mercado de títulos e ações. A busca por soluções tem se voltado cada vez mais para a intensificação de uma agenda neoliberal, a qual parece insistir em vender como remédio seu próprio veneno.

Para Marilena Chauí (2022), um marco da ideologia neoliberal é o fato de ela encarar a sociedade como uma empresa e defender a privatização dos direitos sociais – os serviços públicos seriam ofertados por organizações privadas. Além disso, o cidadão não se identificaria mais enquanto trabalhador (pertencente à classe trabalhadora), mas sim pela sua ocupação. A autora aponta como alguns dos principais traços dessa ideologia:

  1. 1. 1. O estímulo ao ódio ao outro, ao diferente, àquele que é socialmente vulnerável, o que se torna justificativa para práticas de extermínio;

    2. Instituição do discurso totalitário, com a narrativa do “marxismo cultural” que incentiva a perseguição de formas de expressão do pensamento crítico. Um exemplo é a retomada do “medo ao comunista” (ou qualquer ação que questiona o status quo) como slogan. Em uma espécie de ódio ao pensamento, ódio também à intelectualidade, apoiado na ideologia da competência, ela acirra conflitos por meio de argumentos preconceituosos transformados em medos, ressentimento e ódios;

    3. Com o mundo eletrônico – e a (ir)realidade virtual – a ideologia apaga todo contato com o espaço tempo como estrutura do mundo (em uma ideia de compressão espaço temporal, como proposta por Harvey (1992). Assim, o passado não tem a profundidade da memória e o futuro não tem a profundidade da esperança. O indivíduo não compreende as diferenças sociais, culturais, geográficas expressas no espaço, porque tudo se resume ao aqui e ao agora;

    4. A subjetividade não é considerada reflexão e interrogação. Ela se torna modalidade da intimidade narcisista, enquanto a objetividade deixa de ser o conhecimento do que é exterior e diverso no sujeito, passando a ser uma estratégia montada sobre jogos de linguagem, que representam jogos de pensamento, sem que o conhecimento jamais enfrente a realidade como experiência que suscita a interrogação e o pensamento;

    5. A fugacidade do presente. A ausência de laços com o passado objetivo e de esperança de um futuro emancipador, suscitam o reaparecimento de um imaginário religioso. E por isso mesmo a figura do empresário de si mesmo é sustentada e reforçada pela teologia da prosperidade (neopentecostal);

    6. Surgimento de uma nova forma de subjetividade, marcada por dois traços aparentemente contrários, que na verdade são complementares. De um lado, uma subjetividade depressiva, marcada pela exigência de vencer toda e qualquer competição e a culpa ao fracassar. E por outro lado, uma subjetividade narcisista produzida pelas práticas das tecnologias eletrônicas de comunicação. As novas tecnologias operam com obediência e sedução do campo mental. Porém – e é isso que é ideologicamente ocultado pela imagem ilusória da liberdade – o que se tem é a liberdade de escolher obedecer. Pensa-se menos, deseja-se muito. E as empresas – sendo um outro lugar em que a ideologia se realiza – desenvolvem aplicativos para enfatizar, direcionar, induzir e estimular desejos. Na ideologia contemporânea “curtir” se tornou uma obrigação: o selfie, o like, o meme se tornam ao pouco a definição do ser de cada um porque começa a se acreditar que existir é ser visto.

Essa é uma leitura possível, mas não é a única. Em contraponto, alguns economistas de matriz liberal defendem que o neoliberalismo é um termo que não possui tal conotação subjetiva nem ao menos traz tantos desdobramentos para a vida social ou íntima das pessoas. Um exemplo é o economista e atual deputado federal argentino Javier Milei que afirma que "não existem novas ou velhas liberdades. Ou há liberdade ou não há. Por isso, o conceito neoliberal não tem sentido". Na última edição do Fórum da Liberdade, promovido pelo Instituto de Estudos Empresariais (IEE) em abril de 2022, o deputado foi um dos palestrantes mais esperados. Líder da coalização política ‘A Liberdade Avança’, em seu discurso Milei defendeu que o modelo da casta política é permeado por privilégios, e que há uma inconsistência nesse modelo que prega que onde há uma necessidade, nasce um direito. Para ele isso é insustentável, tanto pelas consequências morais quanto pelo desastre que causaria no funcionamento do sistema econômico. Para além do direito à vida, à liberdade e à propriedade, para o economista, alguém teria que pagar por esses direitos, já que isso se traduz em um aumento do gasto público, que alguém teria que financiar. Em suas palavras “o Estado não é a solução. O Estado é o câncer que está nos matando” (MILEI, 2022).

É possível notar a distância no conteúdo dos discursos ao mesmo tempo em que encontramos alguns assuntos comuns, entre eles a questão da dinâmica de classes e seu debate atrelado sobre direitos e privilégios, ainda que com entendimentos distintos. Rocha (2021) inclusive aponta a diferença entre os discursos do liberalismo e do libertarianismo6, chamando atenção para o desenvolvimento de correntes que trazem narrativas mais radicais quanto a valores conservadores, por exemplo, que seriam as ideologias modulares operando a partir do desdobramento de seus discursos na esfera pública e assim, se aproximando de outras ideologias e ganhando corpo enquanto movimentos políticos, como é visto no caso do bolsonarismo.

Decerto, o bolsonarismo é um fenômeno que chama atenção por destoar das correntes políticas comuns em termos de discurso e organização de sua base de apoio, trazendo à tona uma ruptura com o debate público vigente ao publicizar narrativas que admitem a perpetuação de atitudes consideradas por vezes preconceituosas ou mesmo retrógradas. Ele ganha espaço e se consolida em um momento oportuno de ruptura política na ocasião do impeachment da presidente Dilma Roussef, centrado nas falas e comportamentos do então deputado Jair Messias Bolsonaro, que viria se tornar presidente nas eleições de 2018.

Para além de eleitores, o bolsonarismo possui seguidores leais de diferentes perfis e classes sociais. A aderência ao discurso bolsonarista se dá por diversas razões e ainda é um objeto de estudo relativamente recente. Solano (2019) sustenta que sua candidatura se fortaleceu com a moralização do debate público, assim como com a rejeição às políticas sociais adotadas nos governos anteriores. De certa forma, o bolsonarismo não somente agrava discursos de matriz neoliberal – vinculando-se a um campo político de uma direita mais radical – mas ele extrapola os mesmos ao estar associado diretamente com um discurso religioso, aproximando a política de uma compreensão mais subjetiva, voltada a crenças pessoais e transformando afetos negativos em instrumento político (SOLANO, 2019).

Nesse movimento, o entendimento sobre o inerente conflito de classes advindo da lógica do sistema capitalista se torna ainda mais complicado. Com o contínuo distanciamento do reconhecimento dos trabalhadores com a ‘classe trabalhadora’ – devido ao fortalecimento da hegemonia de discursos ligados ao empreendedorismo, a meritocracia e a fragilização dos sindicatos (entre outros motivos) – o bolsonarismo se consolida com base em um discurso antissistema e anti-institucional, apontando o privilégio das classes políticas que enriquecem por meio de práticas de corrupção. Essa crítica comum (quem seria favorável à corrupção?) arrasta apoiadores que finalmente se veem pertencentes a um corpo social comum: a figura de um cidadão “de bem”, que preza pelas suas liberdades, principalmente a liberdade de expressão, tendo como referência valores considerados cristãos, ainda que na prática tais valores não sejam exercitados, e que se veem representados por um homem que não pauta agendas identitárias (cor, raça, gênero, sexualidade) defendendo a ideia de um “todo” homogêneo que seria igual perante a Deus.

O entendimento sobre estratificações por classes sociais existentes no cenário brasileiro hoje ultrapassa sua simples categorização por faixas de renda. Para Souza (2015), deve-se incorporar o capital cultural, como proposto por Bourdieu (2015), a essa leitura fazendo com que a dimensão simbólica sobre a posição do indivíduo na sociedade seja elementar para uma compreensão atualizada do jogo político em curso. Inclusive, dessa forma, é mais fácil entender a aproximação de classes consideradas mais pobres7 a correntes políticas de direita ou mesmo extrema-direita. Como alguns sociólogos americanos chamam, o white trash (lixo branco), boa parte eleitora de Donald Trump, possui as mesmas características das classes populares que votaram no Jair Bolsonaro, sendo indivíduos que não se veem representados pelas pautas identitárias de esquerda (raça, cor, gênero, sexualidade) e não se veem enquanto classe de renda pertencentes à direita tradicional (por exemplo, figuras vinculadas ao partido político PSDB e sua detenção de capital cultural e econômico, como Fernando Henrique Cardoso e João Dória) (BROWN, 2019).

Se a dinâmica de classes não é mais a mesma de uma hierarquia tradicional, a luta de classes também não é. “‘Luta de classes’ não é apenas a ‘greve sindical’ ou a revolução sangrenta nas ruas que todos percebem. Ela é, antes de tudo, o exercício silencioso da exploração construída e consentida socialmente.” (SOUZA, 2014, p. 5). Essa “exploração construída e consentida socialmente” possui mecanismos que garantem sua perpetuação. Um exemplo se encontra no manejo da esfera pública pelas classes sociais dominantes que conseguem apresentar suas ideias de maneira mais sólida, menos fragmentada, por serem detentoras dos meios de produção e das estruturas de comunicação. Apesar disso, o bolsonarismo se fortalece com um novo movimento nas redes virtuais que coloca em xeque a mídia tradicional e as formas de construção do consentimento. Com um tom de ‘democracia digital/virtual’, onde a voz do povo tem seu espaço sem a necessidade do intermédio de terceiros, de representantes, a internet tem se tornado o principal lugar de encontro e embate dos discursos políticos, gerando novos desdobramentos no cenário contemporâneo.

Essa transição introduz um novo sentido de democracia à esfera pública, ao promover novas formas de sociabilidade, vulgarmente chamadas de “bolhas”, que criam uma ilusão de interação e troca social concreta enquanto, na verdade, são promotoras da solidão, da competição (com o outro, o inimigo, o estranho não pertencente à bolha), por encerrar os mesmos discursos em si mesmo. Ou seja, não há espaço para o contraponto, somente para a reverberação de um consenso já formado a partir dos valores mencionados anteriormente. Os discursos começam, então, a serem tratados como um jogo de linguagem fabricado a partir da destruição dos referenciais espaciais e temporais e a linguagem passa a não se referir ao mundo, tornando-se um jogo de narrativas (CHAUÍ, 2022). Tal fenômeno tem implicação direta na tentativa de consolidação do regime democrático contemporâneo e, por ainda ser algo recente, suas consequências ainda não são completamente passíveis de serem analisadas, até por desconhecermos todas. Porém, até o momento é notável o acirramento dos conflitos políticos, em ambientes virtuais e reais, seguido do aumento do descrédito com as instituições e com o papel do Estado (MIGUEL, 2019).

4 CONCLUSÃO: a interminável “crise dos 30”

Trinta e cinco anos de democracia (a contar da Constituição de 1988) não é muito tempo para um país com tantos desarranjos institucionais, eventos controversos, conflitos de interesses e principalmente, marcas dos efeitos de uma desigualdade socioeconômica assustadora. Anúncios de que a democracia brasileira estaria próxima de um momento de ruptura têm sido recorrentes nos últimos anos (MIGUEL, 2019), mesmo que dado nossos histórico político caiba o questionamento se de fato já tivemos uma democracia forte e consolidada no país. Talvez, a democracia como conhecemos não esteja em jogo, mas sendo ela o conjunto de regras pelo qual o jogo político é jogado, seu papel enquanto regime político a ser adotado e respeitado tenha se reduzido a um objeto de manipulação dos agentes políticos que concentram o poder para tal. De tal modo, a concentração de poder nas mãos daqueles que já detêm maiores quantidades de capital é assegurada, independente se instrumentos democráticos estão em funcionamento ou não.

Como vimos, os mecanismos que propiciam a isso provêm de correntes ideológicas variadas, cada qual com seu entendimento particular sobre o que é e para que serve a democracia brasileira, assim como suas maneiras de exercê-la. Se tomarmos uma postura mais crítica, como adotada por Safatle (2022), podemos mesmo questionar a existência da democracia no Brasil, a partir de uma lógica da perpetuação da hierarquia de classes. Sobretudo os agentes que atuam nos poderes Legislativo e Judiciário (e em alguns casos do Executivo), em sua maioria, fazem parte da “aristocracia” brasileira, seguindo uma lógica patriarcal de manutenção dos poderes da mesma família. Dessa forma, nota-se continuamente o mesmo perfil de classe social que ocupam as esferas de poder e controle dos instrumentos democráticos no Brasil, com raras exceções.

Nesse contexto, vemos também como os discursos políticos exprimem os interesses dessas classes em direção a obter o consentimento da população em torno de argumentos que asseguram a manutenção de suas posições, como por exemplo cortes de gastos com políticas sociais. Como denunciado por Carvalho (2018, p. 159): “A democracia caberia no Orçamento. O que parece não caber é a nossa plutocracia oligárquica”. Não há espaço para ceder à ascensão da classe trabalhadora, seja ela “batalhadores”, “ralé”, ou qualquer outro conjunto denominado. O que se coloca no presente momento de renovação desses discursos é a forma como uma suposta ruptura com essa lógica é absorvida por parte da população, enquanto em vias de fato, direitos sociais são diminuídos ou retirados e a vida nas cidades não mostra sinais de melhora.

Sendo um regime democrático, a presença nos espaços de poder perpassa pelo processo de escolha de representantes, logo não faria sentido a defesa de discursos que suspendam tal prática, certo? Não necessariamente. A contínua sensação de desamparo do Estado – ainda resquício de uma visão paternalista da figura do chefe de Estado – acarreta não só na falta de perspectiva de se ter um futuro melhor quanto, consequentemente, em uma apatia social, que faz com que a população não acredite no seu poder de mobilização e deixe de cobrar seus direitos (SAFATLE, 2015). Dessa forma, outros discursos que “dão conta” e trazem alternativas a esse afeto ganham adeptos facilmente, se constituindo pouco a pouco em grupos organizados em torno de novos ideais de democracia, mesmo que ele determine a ausência dela.

A democracia brasileira exercida dos anos 2018 a 2022 decerto não foi a democracia pensada na ocasião da instauração da Constituição Cidadã. Os atos de 8 de janeiro de 2023, quando a Praça dos Três Poderes foi invadida por manifestantes que depredaram representações materiais das principais instituições do Estado brasileiro, podem ser lidos como a culminância de um ideal sociodemocrático em crise. Esse processo trouxe elementos novos para a conjuntura sociopolítica que ainda carecem de análises profundas diante das suas consequências nas relações sociais desenvolvidas, no impacto nos territórios (em especial, os mais vulnerabilizados), na esfera pública. As políticas estabelecidas durante esse período, tendo sequência ou não nos próximos anos, seguirão influenciando o dia a dia da população. Mais do que isso, os discursos promovidos ainda estarão presentes na esfera pública e afetarão a construção do consentimento de muitos futuros eleitores, que daqui a alguns anos novamente se encontrarão diante de uma urna se questionando ou afirmando que sua decisão é a melhor para a democracia no Brasil.

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Notas

[1] Carta lançada pela Universidade de São Paulo (USP) e demais entidades em resposta ao discurso de descrédito ao sistema eleitoral do presidente Jair Bolsonaro. A carta foi lançada em 26 de julho de 2022 e está disponível em: https://www.estadodedireitosempre.com/
2 Um exemplo concreto é o protagonismo do ensaísta e influenciador Olavo de Carvalho como representante intelectual de muitos grupos conservadores, de direita a extrema-direita, e o papel do seu Curso Online de Filosofia (COF) na politização de pessoas que não necessariamente estavam vinculadas à Academia. Alguns inclusive acusam o ambiente acadêmico público tradicional de não aceitarem suas ideias, excluindo-os do diálogo.
3 Assim como nos Estados Unidos, na Itália, e em outros países que têm colocado sua democracia à prova pela movimentação “antissistema” promovida por alguns grupos sociais organizados.
4 Ainda que o presidente Deodoro da Fonseca tenha sido eleito de forma indireta, esse é um marco importante. O primeiro presidente eleito de maneira direta foi Prudente de Moraes, em 1894. . No campo das Ciências Econômicas, a expressão ceteris paribus é utilizada na explicação de teorias e modelos onde não se considera variações externas ao conceito ou ideia trabalhada. Ela também pode significar “todo o resto mantendo-se constante”.

Ainda que o presidente Deodoro da Fonseca tenha sido eleito de forma indireta, esse é um marco importante. O primeiro presidente eleito de maneira direta foi Prudente de Moraes, em 1894.

5 No campo das Ciências Econômicas, a expressão ceteris paribus é utilizada na explicação de teorias e modelos onde não se considera variações externas ao conceito ou ideia trabalhada. Ela também pode significar “todo o resto mantendo-se constante”.
6 Diferença essa que também era feita pelos participantes do Fórum da Liberdade. No discurso de muitos notava-se o afastamento ao discurso bolsonarista que não era visto como pertencente ao mesmo espectro ideológico que os demais presentes.
7 Souza (2014) propõe a seguinte classificação: “batalhadores” que seria a classe trabalhadora moderna, aquela que ainda incorpora capital cultural a si e possui uma qualificação mínima para cargos da base da pirâmide; e a “ralé” que estaria abaixo da classe trabalhadora pela ausência desse capital cultural. Para Miguel (2019, p. 192), “o aburguesamento de uma aristocracia operária e a precarização de boa parte da classe trabalhadora restante fragiliza a identidade de classe” (MIGUEL, 2019, p. 192).
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