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O CÁRCERE COMO TECNOLOGIA REPRESSIVA E DE CONTROLE SOCIAL DA POPULAÇÃO POBRE E NEGRA NO BRASIL1
PRISON AS A REPRESSIVE TECHNOLOGY AND SOCIAL CONTROL OF THE POOR AND BLACK POPULATION IN BRAZIL
O CÁRCERE COMO TECNOLOGIA REPRESSIVA E DE CONTROLE SOCIAL DA POPULAÇÃO POBRE E NEGRA NO BRASIL1
Revista de Políticas Públicas, vol. 27, núm. 2, pp. 888-901, 2023
Universidade Federal do Maranhão
Recepción: 06 Mayo 2023
Aprobación: 01 Noviembre 2023
Resumo: O artigo1 objetiva analisar a função do cárcere na ordem capitalista com reflexões sobre como este se constituiu em tecnologia repressiva a serviço dos interesses do Estado no capitalismo dependente e periférico instaurado no Brasil, discutindo-se o seu papel em tempos de reestruturação produtiva do capital no controle social da população pobre e negra. Com base em estudo bibliográfico e documental os resultados mostraram que há uma intrínseca relação entre a formação e a consolidação do Estado nacional brasileiro e a configuração do sistema penal no bojo da transição para o capitalismo dependente, no qual o cárcere funciona como importante tecnologia de reprodução das hierarquizações sociais, raciais e de gênero.
Palavras-chave: Estado, encarceramento, neoliberalismo.
Abstract: : The article aims to analyze the role of prison in the capitalist order with reflections on how it became a repressive technology at the service of the interests of the State in dependent and peripheral capitalism established in Brazil, discussing its role in times of productive restructuring of capital in the control of the poor and black population. Based on a bibliographic and documentary study, the results showed that there is an intrinsic relationship between the formation and consolidation of the Brazilian national state and the configuration of the penal system in the midst of the transition to dependent capitalism, in which prison functions as an important technology of reproduction. of social, racial and gender hierarchies.
Keywords: State, incarceration, neoliberalism.
1 INTRODUÇÃO
O trabalho intitulado “O cárcere como tecnologia repressiva e de controle social da população pobre e negra no Brasil” objetiva analisar a função do encarceramento na ordem capitalista com reflexões sobre como este se constituiu em tecnologia repressiva a serviço dos interesses do Estado no capitalismo dependente e periférico, discutindo-se o seu papel em tempos de reestruturação produtiva do capital no controle social da população pobre e negra.
O estudo apresenta uma importante contribuição teórica com relevante impacto social considerando a relação entre Estado e sociedade nos processos de encarceramento. A metodologia consistiu em estudo bibliográfico e documental buscando responder à seguinte questão de pesquisa: Como o cárcere se constituiu em tecnologia repressiva a serviço dos interesses do Estado brasileiro no capitalismo dependente e periférico e como este se apresenta em tempos de neoliberalismo conservador?
Considerando a ordem capitalista dependente instaurada na América Latina, as unidades prisionais em atendimento aos paradigmas modernos de aplicação da pena de privação de liberdade serviram de base para a formação e a consolidação do Estado nacional. Enquanto instrumento de atuação e de representação dos interesses da burguesia o Estado brasileiro historicamente se apresentou a partir de uma perspectiva autocrática e repressiva, fazendo com que a passagem do modelo agrário-exportador para o urbano-industrial tenha ocorrido a partir das diretrizes dos países capitalistas centrais para a periferia do sistema-mundo.
O trabalho está estruturado em 2 (duas) partes. A primeira, examina o cárcere enquanto tecnologia repressiva a serviço dos interesses do Estado no capitalismo dependente e periférico, mostrando que o encarceramento se constituiu em importante tecnologia de controle e de disciplinamento dos corpos, e, a segunda, que analisa o papel do cárcere no controle social da população pobre e negra em tempos e neoliberalismo e conservadorismo no Brasil.
Os resultados mostraram que há uma intrínseca relação entre a formação e a consolidação do Estado nacional brasileiro e a configuração do sistema penal no bojo da transição para o capitalismo dependente, no qual o cárcere funciona como tecnologia de reprodução do sistema hetero-patriarcal-racista-capitalista assentado em uma hierarquização social, racial e de gênero (SAFFIOTI, 1987).
2 O CÁRCERE ENQUANTO TECNOLOGIA REPRESSIVA A SERVIÇO DOS INTERESSES DO ESTADO NO CAPITALISMO DEPENDENTE E PERIFÉRICO
A instauração do cárcere no contexto do Estado moderno (FOUCAULT, 1987) tem como fundamento a engrenagem do sistema capitalista, de acordo com a qual o trabalho que em seu sentido ontológico diz respeito a uma atividade vital imprescindível à existência humana no sistema metabólico do capital assumiu um caráter mercadológico, visto que foi utilizado como valor de troca para o enriquecimento da classe burguesa, tornando-se, portanto, mercadoria apropriada por quem possa pagar (MARX, 2013; LUKÁCS, 1968; LUXEMBURG, 1970).
A acumulação capitalista ocorre por meio do estabelecimento da propriedade dos meios de produção e da utilização da força de trabalho em prol desse sistema, havendo nesse contexto uma importante contradição: enquanto as mercadorias são vendidas com valor maior, os salários pagos aos trabalhadores não equivalem àquilo que foi produzido (MARX, 2013; LUKÁCS, 1968; LUXEMBURG, 1970). Considerando que o trabalho é transformado em mercadoria, então, a oferta deste em larga escala vai constituir um exército industrial de reserva para o mercado, que cresce na medida em que a força de trabalho é substituída pela máquina (AQUINO, 2008).
A formação dos fluxos de mercadorias e de serviços vai desestruturando as tradicionais formas de produção com a paulatina vinculação do(a) trabalhador(a) ao modo de produção capitalista. Em relação aos países latino-americanos esse processo de transição das tradicionais formas de produção ocorreu a partir do genocídio dos povos aborígenes, da imposição das formas de trabalho escravizado e da instauração do cárcere e do sistema penal como estratégia de repressão e controle social.
A instauração do cárcere no contexto da formação do Estado Nacional moderno na América Latina e Brasil teve como base, dentre outros, o tripé colonialismo/escravismo/patriarcado, ancorado nos seguintes elementos: seletividade penal, controle social e manutenção das hierarquias sociais, raciais e de gênero. Desse modo, o cárcere assume o papel de retirar da ordem social as pessoas pobres e negras, indesejáveis ao projeto de nação branca, racista, classista e sexista a partir dos paradigmas da modernidade europeia (CESAR, 2013; BORGES, 2019; ANGOTTI, 2021).
Na trajetória de análise do cárcere enquanto tecnologia repressiva é importante resgatar a história e a memória dos países latino-americanos no sentido da construção de hegemonias a partir de uma visibilização dos povos subalternos (GRAMSCI 1995, 2004) com o desvelamento das violências e das estruturas de desigualdades.
As estruturas que serviram de base na trajetória de configuração do cárcere no capitalismo dependente e periférico que se estabeleceu na América Latina e Brasil encontram-se perpassadas pelas expropriações, explorações e opressões a partir das dimensões de classe, da raça e de gênero, com um processo de hierarquização social produzido a partir das marcas do colonialismo, do escravismo e do patriarcado (ORTEGAL, 2018).
Para Gonzalez (1984, p. 228), o mito da democracia racial “oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra”. Nesse contexto, o racismo é estrutural visto que “não se reduz a uma questão puramente identitária, mas está intrinsecamente imbricado com a divisão social do trabalho e por isso, é estrutural e estruturante da forma de ser capitalista” (ALMEIDA, 2019 apud SOUSA, 2022, p. 76).
De acordo com Moura (1983, p. 135), considerando a formação histórico-social o Brasil produziu “dois modelos de sociedade: o escravista colonial, subordinado à economia colonialista e o capitalismo dependente subordinado ao imperialismo”.
Os estudos de Rui Mauro Marini (2000), Vânia Bambirra (2012), Florestan Fernandes (2009) e Otávio Ianni (1978) apresentam importantes contribuições para a apreensão da constituição da ordem capitalista dependente e periférica no Brasil, mostrando estruturas que ensejam desigualdades no interior da própria classe trabalhadora, com violências, discriminações e violações a direitos na ordem societária.
Os países latino-americanos se constituíram a partir de relações pautadas numa perspectiva colonialista com base em paradigmas eurocêntricos, que produziram relações de brutal violência e de desrespeito às diversas formas de organização dos povos originários. Tais relações de dominação ensejaram o genocídio, a exploração e a escravização, como forma de acumulação das riquezas que serviram de base para a garantia da propriedade privada e para a emergência e o desenvolvimento do capitalismo.
A acumulação capitalista no Brasil articula-se aos elementos que contribuem para a transição do modelo monocultor agrário-exportador para o urbano-industrial, que foram engendrados a partir da vinda da família Real para o Brasil em 1808, com a introdução e a circulação de capitais que favoreceram a instauração das forças produtivas tendo como base um conjunto de transformações: a) na ordem interna: após o decreto de liberação da produção de manufaturas, o que contribuiu para gerar um fluxo de circulação de mercadorias e de serviços nos centros urbanos, sobretudo no Rio de Janeiro e São Paulo, com a utilização da mão de obra escravizada e de trabalhadores livres em comércios, produção de alimentos, dentre outros; b) na ordem internacional: com a abertura dos portos e a obtenção de empréstimos junto à Inglaterra.
Nesse resgate dos estudos subalternos destacam-se os trabalhos de Frantz Fanon (1968), de acordo com o qual o racismo está arraigado nas estruturas do capitalismo. De modo que o cárcere enquanto tecnologia repressiva a serviço do Estado apresenta um conjunto de particularidades na América Latina que se articula com as marcas do colonialismo, do escravismo e do patriarcado, incorporadas ao capitalismo dependente e periférico.
A referida dependência está assentada, sobretudo, na superexploração do trabalho, na baixa proteção social e em intensa informalidade, com um processo de hierarquização social, racial e de gênero, que marca profundas “assimetrias de poder e de acesso aos recursos, que geraram elevados níveis de desigualdade e exclusão, bem como numerosos conflitos étnico-raciais marcados por intolerância, racismo e misoginia” (CEPAL, 2020, p. 5).
Na transição para o capitalismo dependente no Brasil buscou-se negar a diversidade humana na ordem societária a partir da imposição de modelos padronizados que interessam ao capital e à dinâmica das explorações e opressões, com a hierarquização social, racial e de sexo a partir de marcadores que perpassam a formação social, com a manutenção dos padrões pautados na lógica do sistema hetero-patriarcal-racista-capitalista (SAFFIOTI, 1987; CISNE; SANTOS, 2018; SILVA, 2019; ALMEIDA, 2018, 2019).
No sistema capitalista, o cárcere serve para a reprodução das estruturas e relações que interessam ao capital, considerando que a acumulação se efetiva, dentre outros, com o estabelecimento da propriedade dos meios de produção e a apropriação da mais-valia produzida com a exploração da força de trabalho (MARX, 2013). De modo que a análise do cárcere enquanto tecnologia repressiva a serviço do Estado remete a uma reflexão sobre a relação entre Estado e questão social, considerando as contradições e explorações presentes na relação entre capital e trabalho.
Castelo (2021, 99) analisa a categoria violência articulando-a a uma perspectiva de potencialização da economia, com análises em torno desta para apresentar as dimensões “das expropriações, das colonizações e das opressões como estruturais e estruturantes nos estudos sobre a ‘questão social’”, apresentando importantes aportes para a análise da configuração da questão social no Brasil.
Para Iamamoto (2001 e 2013) a questão social no Brasil emerge no contexto da relação capital e trabalho e das lutas sociais instauradas na primeira metade do século XX, e, assim como Netto (2001), apresenta importantes discussões para que se possa compreender os conflitos e problemas decorrentes da exploração capitalista, bem como as mediações estabelecidas pelo Estado brasileiro.
Em conformidade com Castelo (2021, p. 99), a questão social no Brasil surge na segunda metade do século XIX, quando o “Estado brasileiro desenhou e implementou um conjunto complexo e intricado de políticas de gestão e disciplinamento das forças de trabalho escravizadas, semilivres e livres e de intervenções nas questões fundiária e agrária e na reprodução capitalista”.
O cárcere enquanto tecnologia a serviço do Estado moderno teve sua implantação iniciada no Brasil na segunda metade do século XIX, contudo, a sua afirmação e consolidação ocorreu concomitante com a afirmação e consolidação do Estado nacional, assentado em um projeto de nação branca, racista e classista, no qual as instituições são os mecanismos essenciais para a sua consecução. Assim, o cárcere ganhou contornos específicos no Brasil a partir de 1930, considerando a necessidade de afirmação do capitalismo na ordem interna, bem como na ordem internacional.
Apesar de a implantação dos primeiros estabelecimentos penais ter sido iniciada ainda na segunda metade XIX, a consolidação da formação do sistema prisional ocorreu somente a partir de 1930, quando o país precisou adotar com mais intensidade o cárcere como tecnologia repressiva a serviço dos interesses do Estado no capitalismo dependente e periférico por meio de práticas higienistas, eugenistas e repressivas no controle social dos segmentos sociais pobres e negros (ALMEIDA, 2018, 2019; ALEXANDER, 2017, FLAUZINA, 2007).
No Brasil, a violência, a repressão e o cárcere foram utilizados como estratégia de legitimação da propriedade privada com o desmantelamento das tradicionais formas de produção, por meio de um conjunto de expropriações, explorações e opressões, tendo a violência como elemento que irá engendrar a acumulação capitalista e a inserção do país na divisão internacional do trabalho a partir dos interesses imperialistas (CASTELO, 2021). Em tal cenário ocorre uma hierarquização social, racial e de gênero na ordem interna, configurando um capitalismo dependente e periférico ancorado, dentre outros, nos elementos estruturais de um sistema hetero-racista-patriarcal-capitalista (SAFFIOTI, 1987; CISNE; SANTOS, 2018; SILVA, 2019; ALMEIDA, 2018, 2019).
Para Saffioti (1987, p. 16), o patriarcado é um “sistema de relações sociais que garante a subordinação da mulher ao homem”, porém este não se constitui em estrutura isolada, visto que há uma interlocução com a classe social, apresentando-se também como elemento de diferenciação as desigualdades étnico-raciais, de modo que a última posição nesse processo de hierarquização social, racial e de gênero é ocupada pelas mulheres pobres e negras.
3 O CÁRCERE COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE SOCIAL DA POPULAÇÃO POBRE E NEGRA EM TEMPOS DE NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO
A reestruturação produtiva ensejada a partir da crise capitalista dos anos 1970 apresentou importantes desdobramentos no mundo do trabalho, com o aprofundamento da questão social. O neoliberalismo foi adotado nos países europeus nos anos 1980 e na década de 1990 no Brasil, a partir das diretrizes do Consenso de Washington, com ajustes fiscais, privatizações e as contrarreformas previdenciária, administrativa e trabalhista, com correlações de forças que ganharam contornos específicos na América Latina, diante da superexploração da classe trabalhadora. Em tal cenário tem-se o recrudescimento da legislação, o proibicionismo . a guerra às drogas que fazem com que o cárcere se torne uma importante estratégia da necropolítica do Estado neoliberal (FERRUGEM, 2019).
O Estado penal é composto por um conjunto de instituições no âmbito do sistema de segurança pública e de justiça que constituem o aparato policial, jurisdicional e penal, exercendo a coerção sobre os indivíduos e coletividades. No Estado democrático de direito esse aparato deve pautar-se no estrito cumprimento da lei, respeitando os direitos humanos, como forma de manter a paz social, contudo, no Estado penal a ação do Estado extrapola essa diretriz e atua a partir de uma perspectiva de seletividade (WACQUANT, 2015).
Em consonância com as diretrizes do neoliberalismo, o recrudescimento da legislação no Brasil tem promovido a ampliação do Estado penal desde a década de 1990, com a aprovação da Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990), da Lei de Drogas (Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006) e do chamado Pacote Anticrime, que têm ensejado um processo de encarceramento em massa da população pobre, negra e periférica (BORGES; 2019; ALEXANDER, 2017).
O estudo mostrou que o sistema de hierarquização social, racial e de gênero implementado na ordem capitalista visa manter a hegemonia e a ordem institucionalizada (BUENO, 2021). No Estado neoliberal as diretrizes do Estado penal dão lugar a um processo de recrudescimento da legislação e da adoção de um aparato ideológico visando justificar a ação do Estado voltada para o inimigo (ZAFFARONI, 2007), que, na verdade, é o pobre, a pessoa negra, a população LGBTQIA+, mulheres, dentre outros.
A partir de 2016, com a ascensão da extrema direita ao poder, a lógica neoliberal foi perpassada pelo conservadorismo pautado em discursos de ódio e medidas regressivas de direitos, com cortes orçamentários nas políticas públicas e a ampliação dos aportes do Estado penal, que exerce fundamentalmente a necropolítica (MBEMBE, 2018) com base no paradigma da chamada guerra às drogas.
No âmbito do mercado, tem-se a ampliação da fragilização dos vínculos trabalhistas e do processo de uberização do trabalho (ANTUNES, 2018), fazendo com que a população pobre negra e periférica, sobretudo, as mulheres, vivenciem profundas expressões da questão social, com desemprego/desocupação, pobreza/insegurança alimentar e violências.
Considerando os dados relativos ao ano de 2022, atualmente o Brasil conta 2.240 estabelecimentos prisionais, com a oferta de 469.944 vagas, 645.056 pessoas encarceradas, havendo um défict de 175.112 vagas.
| Estados | Quant. de estabelecimentos | Quant. de vagas | Quant. de presos/as | Déficit de vagas |
| Estabelecimentos prisionais de pequeno porte no Brasil | ||||
| Amazonas | 96 | 6.858 | 7.817 | 959 |
| Acre | 9 | 4.350 | 5.634 | 1.284 |
| Amapá | 9 | 1.590 | 2.457 | 867 |
| Rondônia | 46 | 7.056 | 7.869 | 813 |
| Roraima | 7 | 2.045 | 5.962 | 1.917 |
| Tocantins | 27 | 2.902 | 3.403 | 501 |
| Mato Grosso do Sul | 131 | 9.271 | 16.797 | 7.526 |
| Rio Grande do Norte | 27 | 7.155 | 7.615 | 460 |
| Piauí | 21 | 3.080 | 5.388 | 2.308 |
| Paraíba | 74 | 6.589 | 10.508 | 3.919 |
| Alagoas | 12 | 3.747 | 4.853 | 1.106 |
| Sergipe | 11 | 3.767 | 5.661 | 1.894 |
O quadro 1 mostra a configuração do sistema prisional no Brasil no que se refere aos estabelecimentos prisionais de pequeno porte, revelando que estes encontram-se, em significativa parcela nos estados do norte-nordeste. Tal realidade demonstra que apesar do recrudescimento da legislação penal a da repressão policial ocorrerem em escala crescente em âmbito nacional, a atuação do Estado penal ocorre com maior intensidade nos grandes centros urbanos, o que reafirma o importante papel do cárcere no capitalismo dependente e periférico no controle social da classe trabalhadora.
| Estados | Quant. de estabelecimentos | Quant. de vagas | Quant. de presos/as | Déficit de vagas |
| Estabelecimentos prisionais de médio porte no Brasil | ||||
| Pará | 153 | 11.386 | 11.672 | 286 |
| Mato Grosso | 48 | 8.280 | 11.337 | 3.057 |
| Goiás | 94 | 11.422 | 19.187 | 7.765 |
| DF | 11 | 12.768 | 15.256 | 2.488 |
| Maranhão | 55 | 10.509 | 10.886 | 377 |
| Ceará | 37 | 15.483 | 22.387 | 6.904 |
| Bahia | 331 | 15.678 | 15.758 | 80 |
| Pernambuco | 88 | 13.238 | 32.658 | 19.420 |
| Espírito Santo | 37 | 13.995 | 23.260 | 9.265 |
| Santa Catarina | 54 | 19.650 | 24.848 | 5.198 |
O Quadro 2 mostra a configuração do sistema prisional no Brasil no que se refere aos estabelecimentos prisionais de médio porte, que abrangem alguns estados do norte-nordeste e do centro-sul do país. Em conformidade com Antunes (2018), a reestruturação produtiva do capital levou a uma profunda alteração na morfologia da classe trabalhadora diante das desregulamentações e flexibilizações na legislação trabalhista, com a ampliação dos mecanismos de exploração do trabalho, com aumento das situações de pobreza, da extrema pobreza e das violências.
| Estados | Quant. de estabelecimentos | Quant. de vagas | Quant. de presos/as | Déficit de vagas |
| Estabelecimentos prisionais de grande porte no Brasil | ||||
| Minas Gerais | 228 | 42.941 | 63.977 | 21.036 |
| Rio de Janeiro | 54 | 30.438 | 44.904 | 14.466 |
| São Paulo | 328 | 153.940 | 200.182 | 46.242 |
| Paraná | 139 | 26.444 | 33.008 | 6.564 |
| Rio Grande do Sul | 113 | 25.362 | 33.772 | 8.410 |
O Quadro 3 mostra a configuração do sistema prisional no Brasil no que se refere aos estabelecimentos de grande porte, com a concentração dessas unidades nos estados do centro-sul do país, mostrando a articulação entre o Estado penal e o uso de tecnologias de controle social da pobreza, sobretudo, nos grandes centros urbanos.
A ação exercida pelo Estado penal nos processos de encarceramento frente às expressões da questão social que afetam os indivíduos e famílias na realidade brasileira contemporânea, sobretudo as famílias monoparentais chefiadas por mulheres, apresenta as seguintes dimensões: a) territorialidade: com a repressão do Estado nos territórios historicamente estigmatizados e marginalizados; b) seletividade penal: apesar de no ordenamento jurídico brasileiro o crime ser tipificado em legislação específica com a definição das formas em que as situações podem configurar os tipos penais, com a cominação de penas previstas em lei conforme as peculiaridades de cada caso, na prática, as prisões ocorrem a partir de parâmetros que estão para além do que está tipificado nas legislações, considerando o caráter de seletividade penal que perpassa os processos de encarceramento.
O cárcere assume no contexto da reestruturação produtiva do capital o papel de controle social e de gestão da pobreza (WACQUANT, 2015) por meio da violência, repressão e segregação, o que reafirma e aprofunda as expressões da questão social decorrentes de desemprego/desocupação e de pobreza/insegurança alimentar que afetam mais efetivamente as famílias monoparentais chefiadas por mulheres, sobretudo, mulheres negras moradoras das periferias urbanas (CAVENAGHI; ALVES, 2018).
De modo que no contexto do neoliberalismo conservador o recrudescimento da legislação criminal e penal está ancorado em “tecnologias de encarceramento em massa, consolidando o aparato político, jurídico e social de aprisionamento dos pobres” (FERNANDES, 2020, p. 807).
O projeto neoliberal busca efetivar a reestruturação produtiva do capital com o controle social da pobreza a partir dos interesses do capital financeiro, com o recrudescimento do aparato repressivo e penal, e, no campo econômico, com a adoção de medidas que promovem a “elevação das taxas de juros, o enfraquecimento dos movimentos sindicais, a baixa dos impostos sobre altos rendimentos e greves, o aumento do desemprego e o corte nos gastos sociais e a consequente redução nas políticas sociais” (FERNANDES, 2020, p. 808), reafirmando as desigualdades, explorações e opressões.
4 CONCLUSÃO
As análises em torno do Estado Penal e do cárcere a partir de uma perspectiva histórico-crítica de totalidade teve como base reflexões sobre as transformações do trabalho, que, enquanto elemento fundante do ser social torna-se alienado na ordem sociometabólica do capital.
O estudo mostrou que a formação do sistema penal no contexto da formação do Estado nacional no Brasil teve como base os paradigmas do colonialismo, do escravismo e do patriarcado (SAFFIOTI, 2004), cujas marcas são a seletividade penal, o controle social e a manutenção das hierarquias sociais, raciais e de sexo (CISNE; SANTOS, 2018).
A reestruturação produtiva do capital a partir dos anos 1970, e a adoção das diretrizes do neoliberalismo na América Latina e Brasil na década de 1990, foi acompanhada pelo aprofundamento das desigualdades e das expressões da questão social, sendo que na atualidade, as suas manifestações se apresentam mais fortemente a partir do desemprego/desocupação, pobreza/insegurança alimentar e violências, que afetam significativamente a população pobre, negra e periférica.
Os resultados mostraram a importância do reconhecimento das particularidades da formação do Estado nacional brasileiro e do processo de constituição das classes sociais e das estruturas subjacentes que embasam a ação do Estado no capitalismo periférico e dependente, no qual a hierarquização social, racial e de gênero se faz a partir da ação do Estado, das demais instituições e das relações políticas, econômicas e sociais. Nesse contexto, o cárcere se constitui em tecnologia por excelência de reprodução das estruturas de desigualdades engendradas na ordem capitalista a partir do racismo, do patriarcado, do classismo, do sexismo e da misoginia, sendo, portanto, de fundamental importância as lutas feministas, antirracistas, anticoloniais, antiprisionais e antipatriarcais, como forma de fortalecimento da democracia e exercício da cidadania.
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Notas