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A COLONIALIDADE DO SER SURDO: construto da colonialidade do corpo normativo e da colonialidade monolíngue
A COLONIALIDADE DO SER SURDO: construto da colonialidade do corpo normativo e da colonialidade monolíngue
Revista de Políticas Públicas, vol. 28, núm. 1, pp. 13-32, 2024
Universidade Federal do Maranhão

Recepción: 31 Octubre 2023
Aprobación: 17 Mayo 2024
Resumo: O artigo ilustra um recorte teórico da tese “Narrativas de vida e o pensamento decolonial: na construção da integralidade do Ser Surdo na Amazônia tocantina”; busca apresentar a colonialidade, do corpo normativo e monolíngue, do Ser Surdo como um padrão sistêmico e hierárquico. O estudo tem como base uma pesquisa bibliográfica fundamentada nos estudos decoloniais e conclui que há duas colonialidades presentes no processo de opressão dos sujeitos surdos: a colonialidade do corpo normativo e a colonialidade monolíngue. Ambas tendem a mascarar a questão da diferença linguística, identitária e cultural do sujeito surdo, pois ao fazer uso do discurso normativo medicaliza a surdez e enquadra a diferença do corpo e a forma de comunicação como primitiva e inferior: as colonialidades moldam os corpos a partir do ouvido incompleto e da fala ineficiente do sujeito surdo.
Palavras-chave: Pensamento decolonial, colonialidade do ser surdo, colonialidade do corpo normativo, colonialidade monolíngue, capacitismo.
Abstract: A theoretical outline of the thesis “Life narratives and decolonial thought:” is illustrated in the construction of the integrality of the Deaf Being in the Tocantina Amazon”. In this article, we sought to present the coloniality, of the normative and monolingual body, of Deaf Being as a systemic and hierarchical pattern. The study was characterized by a bibliographical research based on decolonial studies. It is concluded that there are two colonialities present in the process of oppression of deaf subjects, they are: the coloniality of the normative body and monolingual coloniality. Both tend to mask the issue of the linguistic, identity and cultural difference of the deaf subject, because by using normative discourse, it medicalizes deafness and frames the difference in the body and the form of communication as primitive and inferior: colonialities shape bodies based on the deaf subject's incomplete hearing and inefficient speech.
Keywords: Decolonial thought, coloniality of the deaf being, coloniality of the normative body, monolingual coloniality, ableism.
1 INTRODUÇÃO
A colonialidade do ser é um instrumento de poder colonial que desumaniza o outro, nega a sua identidade e seus saberes, oprime o outro mediante o padrão da normalidade europeia e estadunidense, com padrões heteronormativos e capacitistas. A colonialidade do Ser, então, nos possibilita compreender o processo de negação do outro em uma perspectiva ontológica, de hierarquia colonial e de violência dos direitos humanos, não exclusivamente à raça, mas também ao gênero, à sexualidade, à idade, à cultura entre outros, ou seja, a todos os grupos e indivíduos que sofreram e têm sofrido com os impactos históricos sociais da modernidade/colonialidade.
A colonialidade do ser, tratada por Maldonado-Torres (2019), adentra no campo ontológico da filosofia para ilustrar a negação do ser e o poder colonial presente nas subjetividades e identidades, bem como toma como exemplo Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon (1968), para tratar o processo de libertação dos movimentos que se opõem à colonização, e Peles negras, Máscaras Brancas (FANON, 2008) nos possibilita entender a lógica colonial, a desumanização e o racismo ao tratar a “zona do ser” e do “não-ser”.
Desse modo, aqueles que estão na “zona do ser” são os colonizadores/opressores — constituídos como superiores e privilegiados a partir de suas identidades, seus conhecimentos e sua cultura como hegemônicos. E os colonizados/oprimidos são inseridos na “zona do não-ser”, pois não pertencem ao perfil do sujeito civilizado.
Soma-se a isso, Dussel (2000) assinala que a invenção do outro foi fabricada pela negação desse como outro no decorrer da história. No caso da Pessoa com Deficiência1 (PcD), em específico a pessoa Surda2, houve uma negação e uma invisibilidade em seus processos formativos, educativos e culturais. Para o autor, faz-se necessário pensar o outro pela diferença e não pela igualdade, rompendo com a colonialidade do ser que criou uma referência e a partir dela se pensou o outro.
Os estudos decoloniais vêm atuando como base epistêmica, política e cultural neste anúncio, uma vez que oportuniza os oprimidos, os subalternizados em dizer e sinalizar a sua palavra, sua leitura de mundo e suas identidades outras. Todavia, percebe-se uma lacuna na subalternização, na exploração e na opressão vivida pelas Pessoa com deficiência, – capacitismo – como se houvesse uma cortina de fumaça que impedisse de olhar esses sujeitos como concretos vitimados e periféricos (OLIVEIRA, 2023).
O capacitismo estabelece um padrão físico, normal, hegemônico. O padrão da classe dominante. O sujeito com deficiência, então, está à margem da normalidade capacitista. Somando-se a isso, o capacitismo estabelece a não aceitação de gestos, de sotaques, de formas de falar diferente; estabelece a linguagem padrão e o monolinguismo no caso dos surdos; estabelece fenótipos corporais — boca, nariz, cabelo, peles, olhos — tudo tem que estar no padrão normativo patológico.
Portanto, o capacitismo instaura uma representação sobre as pessoas com deficiência pautada na ausência da linguagem, de uma inteligência inferior e primitiva e de problemas nas relações interpessoais por elas, PcD, não possuírem maturidade afetiva e cognitiva como as pessoas sem deficiência. O capacitismo retira a capacidade e impede as pessoas com deficiência de ser, viver e intervir no e com o mundo; materializa atitudes e ações preconceituosas contra a PcD a respeito de seus corpos. Assim, por muito tempo foi atribuído a Pessoas com deficiência, e a pessoa surda foco deste artigo, o rótulo de incapacidade, de limitação e de anormalidade.
Justifica-se a importância deste estudo, através do recorte da tese de Oliveira (2023), como basilar na teorização que a modernidade incidiu sobre os corpos, através da normalidade, de homens e mulheres surdos, que ainda são invisibilizados campo teórico do Sul global. Por conseguinte, este artigo objetiva apresentar a colonialidade do ser surdo como um padrão sistêmico e hierárquico na produção das colonialidades do corpo normativo e monolíngue.
O trabalho fundamentou-se nos estudos decoloniais: Freire (1978, 1982, 2017), Maldonado-Torres (2019), Dussel (2000). No campo da surdez com os autores: Bueno (1998), Lopes (2007),Santana (2007), Skliar (1999, 2003, 2005, 2006, 2010) entre outros.
O estudo caracteriza-se como uma pesquisa bibliográfica e estrutura-se em 04 (quatro) partes: a introdução em que se realiza a apresentação da temática, a justificativa e o objetivo da pesquisa. Seguido da parte teórica colonialidadedo Ser Surdo, na qual ilustram-se as marcas e traços da modernidade/colonialidade que atravessaram o corpo surdo. A terceira parte, Colonialidadedo corpo normativo e Colonialidade monolíngue, descrevem-se os conceitos presentes da normalidade que estruturou padrões de corpo e língua que deixa o surdo à margem dela, e, por último, as considerações finais que sintetizam o desenvolvido no texto.
2 COLONIALIDADE DO SER SURDO
As pessoas com deficiência, dentre elas as pessoas surdas, vivem situações de colonialidade do ser, uma vez que seus corpos não apresentam e nem se encaixam no padrão dos corpos perfeitos, o que acarreta uma identidade fragmentada, ou seja, um corpo pela metade, isto é, um corpo incompleto. Nesse debate, a colonialidade do Ser trabalha a lógica colonial nas mentes, nos corpos, na língua padrão dominante, na subjetividade do outro negado.
Há nesta colonialidade uma visão clínico-terapêutica de normalidade, que exclui as pessoas deficientes, as quais vêm sendo marcadas e representadas pela sua deficiência, como subalternas aos outros, cuja diferença colonial se configura pela perda sensorial, física e intelectual. No caso da Pessoa Surda, a colonialidade é marcada pela imposição da oralização – como meio de comunicação – presente na colonialidade monolíngue e pelo campo Clínico-terapêutico de normalidade – o corpo com dano, a ausência de um sentindo –, colonialidade do corpo normativo.
Nesse sentido, a normalidade do colonizado – sujeito com deficiência – é medida pela avaliação do colonizador – sujeito sem deficiência. Assim, estabelece parâmetros e graus de aproximações e distanciamentos da norma, com base em suas próprias características; então se coloca em lugar de superioridade sobre o corpo, a cultura e a identidade daquele outro, que o colonizador chama de subalterno.
Lane (1992) aproximou a ação do colonizador europeu sobre os africanos à atitude que algumas entidades ouvintes atribuíram aos surdos, enquanto características extremante negativas nos âmbitos social, cognitivo, comportamental e emocional. O autor elaborou uma lista com as características atribuídas aos surdos pelos especialistas ouvintes.
A lista é a materialidade de representações sociais de 20 anos de investigação psicométrica sobre a psicologia do surdo, realizada pelo autor que “os surdos são vistos como pessoas que pertencem ao mais baixo escalão de desenvolvimento: concreto no pensamento, linguagem pobre, desintegrado, imaturo, moralmente atrasados” (LANE, 1992, p. 54). A lista consiste, com base no autor, em representações sociais altamente negativas enraizadas pela ótica colonial, paternalista e estereotipada sobre o ser surdo. Olhares idênticos do paternalismo e do colonialismo europeu sobre os africanos e olhares ouvintista e colonialista sobre os surdos.
Na perspectiva do colonizador o nativo é atrasado em hábitos, costumes, cultura e linguagem. Desse modo sua ação civilizatória tem como intuito elevá-los a um padrão aceitável de ser. No que tange “[...] o estereótipo do ouvinte, a surdez, representa a falta e não a presença de algo. O silêncio é sinônimo de vácuo” (LANE, 1992, p. 23).
Entretanto essa aproximação entre a colonização africana e colonialidade do ser surdo é questionável. Na colonização africana ocorreram massacres e comercialização de negros, pois para os colonizadores eles não tinham alma, não eram humanos – para a religião católica da época, dos séculos de escravidão. Para Walsh (2009, p. 16) “a matriz da colonialidade afirma o lugar central da raça, do racismo e da racialização como elementos constitutivos e fundantes das relações de dominação”.
Já a negação colonizadora sobre os sujeitos surdos não ocorreu na prática da comercialização e da dominação racial. A colonialidade do ser enraizou um padrão normativo e instrutivo do corpo e da língua; assim sendo, os sujeitos surdos foram oprimidos por uma colonialidade do corpo normativo — clínico-patológico — e por uma colonialidade monolíngue — imposição da língua oral e desconsideração da comunicação dos surdos sinalizados.
A matriz de poder colonial incutiu no surdo o não-lugar, a não-língua e o estereótipo de inumano. Nota-se que na dimensão colonial o sujeito surdo foi ancorado e narrado pelo capacitismo. O opressor é considerado como o padrão de normalidade — sua língua correta, seu corpo perfeito, sua personalidade como modelo e sua cultura como única a ser considerada – enquanto ao oprimido — surdo — o nada, o vazio e a anormalidade.
Dessa forma, constituiu-se um processo binário-hierárquico-colonial. O surdo precisa da tutela da pessoa sem deficiência para sair de sua barbárie enquanto ele precisa do outro surdo para firmar sua cultura diferente do padrão estabelecido como único. A representação sobre os surdos demarca uma posição paternalista. Assim, “[...] o conceito de surdo, igual o conceito de africanos por parte dos colonizadores, exige a inferioridade linguística e intelectual dos surdos” (LANE, 1992, p. 55).
Foi pela ausência da “linguagem oral” e do “corpo com dano” que os surdos foram estigmatizados e subalternizados. Assim, “[...] faltava-lhes a característica eminentemente humana: linguagem (oral, bem entendido) e suas “virtudes” cognitivas. Sendo destituídos dessas virtudes, os surdos eram “humanamente inferiores” (SANTANA, 2007, p. 31).
Nesse contexto, a imagem do outro – surdo – é narrada pela hierarquia colonial, pelo capacitismo presente na contraimagem do sujeito sem deficiência. O selo da inferioridade provocou nos corpos das Pessoas Surdas, o vácuo e a ausência de Ser, não conferindo a esse sujeito a diferença pela lente da singularidade e do fenômeno social, ético-político e cultural. Percebe-se que a visão colonial determina um instrumento de poder intersubjetivo que vai formar, em uma perspectiva hierárquica, os que são e os que não-são, conforme a figura 1.
Conforme ilustra-se na figura 1, o maquinário colonial é o padrão ao qual outras formas de opressão podem ser equiparadas envolvendo, tal como ele, “[...] a subjugação física de um povo enfraquecido, a imposição de uma língua e de costumes estrangeiros, e o controle da educação em nome dos objectivos do colonizador” (LANE, 1992, p. 43).
Para tanto, produz uma visão colonial, um estereótipo de ser – ser social, ser cidadão, ser civilizado – e um estereotipo de não-ser, fabrica o outro enquanto diferença de sua referência. Dessa forma, “o outro é um outro que não queremos ser, que odiamos e maltratamos, que separamos e isolamos, que profanamos e ultrajamos, mas que o utilizamos para fazer de nossa identidade algo mais confiável” (SKLIAR, 2003, p. 121).
Nessa perspectiva, os que estão na zona do não-ser buscam a cada instante se enquadrar na zona do ser. A partir disso, a visão colonial permite que eles procurem a normalidade — como fabricação de quase ser — com base na ação vertical de poder de dominação entre opressor e oprimido.
A dominação ocorre pela negação do outro, “para dominar, o dominador não tem outro caminho senão negar às massas populares a práxis verdadeira. Negar-lhes o direito de dizer a sua palavra, de pensar certo” (FREIRE, 2017, p. 71).
Faz-se necessário pontuar que a opressão não é ação essencialista da pessoa sem deficiência, das pessoas ouvintes. Pensar assim reduz a discussão do maquinário colonial capacitista, pois infere que todos os ouvintes terão práticas excludentes e opressivas sobre os surdos. Uma visão maniqueísta, na qual o mundo é visto e compreendido em uma divisão: o bem e o mal, o certo e o errado e o opressor e o oprimido, uma simplificação primária do pensamento que diminui os fenômenos humanos.
Entende-se, portanto, que as práticas coloniais capacitistas sempre são realizadas por sujeitos sociais — pessoas sem e com deficiência — que fazem uso dos sistemas de opressão para negar o outro com deficiência. Nesse contexto, no campo da surdez, a visão colonial influencia diretamente a concepção capacitista e ganha materialidade nas práticas coloniais que conduzem a forma do ser surdo – ser e estar no mundo.
As práticas colonialistas capacitistas vão introjetar ao ser surdo formas de narrar-se, de comunicar-se entre outras. Mediante a perspectiva capacitista suas ações não vão atuar somente em um campo simbólico – nas representações sociais dos que são e dos que não-são – mas também reverbera em uma materialidade que vai ser denominada como “a figura do paternalismo colonial” (FANON, 2008, p. 101).
O paternalismo vai influenciar diretamente uma dominação intersubjetiva no sujeito surdo, ao engrenar uma ação conduzida pela tutela do outro ouvinte. O sujeito surdo, então, pelas amarras do paternalismo busca a todo custo a normalidade mesmo que seja vista e sentida enquanto um sacrifício.
Para tanto, o paternalismo corrompe alguns membros da comunidade surda para que o domínio do capacitismo permaneça. Santana (2007) trata dessa questão ao relatar em sua pesquisa que alguns surdos mais velhos recusavam aprender a Língua de Sinais e ilustravam aos mais novos a importância do português oralizado. Cria-se uma ação tutelada, de dependência entre o opressor e o oprimido – o surdo.
Essa dependência, conforme a Figura 1, tange o campo da psicologia e da economia. No que refere ao campo psicológico o sujeito surdo busca a todo custo a norma, uma normalidade para ser social — demonstração totalmente colonial — como já tratada por Fanon (2008) na busca do negro embranquecer-se para torna-se um quase-branco, isto é, para torna-se sujeito.
Por fim, no que se refere ao campo econômico o sujeito surdo na busca da normalidade adentra ao mercado consumidor de próteses e de implante coclear. A ideologia normativa abre mercados livres de consumidores ao vender “a cura” como uma ação reparativa do corpo com dano. Portanto, o mercado de próteses apresenta-se em um campo econômico pela imposição da modernidade dos corpos perfeitos presente no capital.
A fabricação e a comercialização de corpos ideais é uma tentativa de normalização da diferença enraizada na norma. O maquinário normativo controla e manipula implicitamente o sujeito surdo para buscar a todo tempo e com todos os custos sua normalização.
Rezende (2010) chama atenção para aumento na procura dos implantes cocleares, para os custos da correção do sujeito surdo e da notoriedade do reconhecimento pelos feitos heroicos que os médicos recebem da família de seus pacientes, portanto “o implante coclear é tido como normalizador dos sujeitos surdos” (REZENDE, 2010, p. 123).
O primeiro profissional que atende o sujeito surdo e a ele lhe oferece seu prisma de olhar a surdez é o profissional da saúde. A surdez no campo clínico-patológico é tida como um problema biológico e anatômico e que se faz necessário sua reabilitação por meio de práticas corretivas oralista e aquisição de próteses. O profissional da saúde e a indústria farmacêutica e de próteses apresentam à família do sujeito surdo um leque de possibilidades para compra de sua normalidade – ouvir e oralizar –, ampliando assim o mercado consumidor.
A outra faceta do paternalismo é a negação e a privação dos valores da língua presente nas comunidades surdas. Percebe a alteridade desse outro no campo da deficiência e não da alteridade (SKLIAR, 1999), isto é, a alteridade deficiente3 vai estar presente o tempo todo com base na normalidade.
Para o autor, há um processo articulado entre a medicalização e a caridade, pois para a maioria dos ouvintes, a surdez representa uma perda da comunicação, um protótipo de autoexclusão e isolamento. Com base nisso, alguns ouvintes praticaram e praticam as mais inconcebíveis formas de controle sobre os corpos, as mentes e a linguagem dos sujeitos surdos: “entre os controles mais significativos, pode mencionar-se: a violência e a obsessão para fazê-los falar” (SKLIAR, 1999, p. 21).
Nessa perspectiva, a medicalização seria realizada de maneira caridosa por parte de alguns ouvintes para que os sujeitos surdos pudessem sair do silêncio, da solidão e do isolamento que a deficiência os colocou. Tal concepção aproxima-se com a retórica salvacionista, como custo necessário da modernização, presente no mito da modernidade descrita por Dussel (2000).
É notório que a dominação colonial ocorre quando há domínio entre dois povos, grupos ou classes, no âmbito territorial, no político, no cultural, na linguagem, no corporal, na cor da pele, no religioso, na sexualidade, na relação de gênero, no étnico, na exploração do trabalho, na relação econômica entre rico e pobre, nas atitudes violentas. Para Maldonado-Torres (2019) a colonialidade do ser demarca a imposição linguística com uma das principais ferramentas no maquinário colonial, posto que envolve a análise dos impactos do eurocentrismo na linguagem com forma de colonização.
Ao fazer isso, utiliza a língua padrão (monolíngue) do colonizador para incutir valores acerca do ser opressor e da linguagem oral, como elemento primordial para o seu processo de integração e reconhecimento enquanto ser social, com base no seu processo de busca da normalidade.
A colonialidade monolíngue é a imposição da língua e da cultura do colonizador sobre o colonizado, em uma ação justificável pela aparente anormalidade, barbaridade e ausência de civilização na qual vive o colonizado. Assim, o colonizador exerce pressões de normalização sobre o outro, negando e encobrindo sua forma de ser e estar no e com o mundo.
De acordo com Freire (2017) a relação do eu e do outro é uma ação dialógica e dialética, isto é, o eu e o outro se constituem mutuamente, um não existe sem o outro. O monolinguismo não ilustra um movimento dialógico, o qual não constitui um território comum entre o sujeito (eu) para com o sujeito (outro) que recebe a comunicação, não proporcionando um diálogo contido frente a um e a outro.
O monolinguismo, então, representa a ausência de relação eu-outro, o desinteresse e desvalorização pelo outro (surdo). Favorece a imposição da língua oral - língua portuguesa - dos sujeitos ouvintes sobre os sujeitos surdos e prejudica a língua sinaliza - Língua Brasileira de Sinais, ao conceber apenas o uso de uma língua única a comunidade.
De acordo com Maldonado-Torres (2019) os impactos do eurocentrismo na linguagem estabeleceram uma relação estreita entre língua e identidade civilizada e não civilizada. Centrou-se na norma, no padrão de língua civilizada para fomentar a monolingualização das populações e dos indivíduos e assim formar cidadãos monolíngues e civilizados.
O monolinguismo, neste contexto, apresenta uma demarcação colonial por impor e favorecer uma única língua - ou seja, uma língua padrão normativa -em detrimento às demais línguas. O monolinguismo reverberou na colonialidade monolíngue, ao realizar um processo de colonização em surdos severos e profundos, ao: 1) serem obrigados a usar próteses; 2) serem proibidos de usar Língua de Sinais; 3) serem obrigados a oralizar; 4) fazerem leitura labial; 5) fazerem implante de cóclea e 6) não poderem ser bilíngues, tendo que ser monolíngues.
Neste campo, na colonialidade monolíngue, infere-se que há apenas uma língua padrão e aceitável, sua modalidade é oral-auditiva e nega-se toda forma e/ou tentativa de comunicação e o uso da língua do colonizado, neste caso a língua de sinais toma este lugar: de língua subalterna, por apresentar uma modalidade visual-gestual diferente do padrão.
Destarte, infere-se que no momento que um sujeito e/ou uma comunidade impõe sua língua ao outro circunscreve um processo colonial. Inicialmente pode ocorrer pela linguagem – por meio de falas agressivas, machistas, sexistas, heterossexista, capacitistas – com outras opressões: de classe, de gênero, de raça, de corpos. Haja vista que, a língua e/ou a forma de comunicação do subalterno não são reconhecidas como autênticas; nesse sentindo o opressor antidialógico e monolíngue invade, oprime e conquista o oprimido, valendo-se do “mito da inferioridade ontológica destes e o da superioridade daqueles” (FREIRE, 2017, p. 189).
Nessa perspectiva, Skliar (1999, p. 29) retrata que os surdos têm sido permanentemente inventados e excluídos, uma vez que seus “[...] corpos foram moldados a partir do ouvido incompleto e da fala insuficiente. Suas identidades, pensadas como pedaços desfeitos. Suas mentes, como obscuras e silenciosas cavernas”.
Pelos corpos, a visão clínica representou e representa o surdo no conceito da enfermidade e reproduziu e reproduz na sociedade um sujeito de ausências, enquanto a língua de sinais o representou e o representa em um âmbito cultural, descrita na diferença.
3 A COLONIALIDADE DO CORPO NORMATIVO
A colonialidade busca a diferença como elemento de hierarquização social dos que são e dos que não-são, isto é, faz uso das particularidades existenciais, sociais, culturais e identitárias para justificar a opressão e subalternização do indivíduo pertence a um grupo. Essa diferença, no campo da colonialidade, materializa opressões quanto a raça, a classe, o gênero, a sexualidade, a língua, a religiosidade, o corpo entre outros.
Para tanto, faz uso da normalidade para estabelecer a aceitação do ser pela norma colonial. Para Skliar (2003, p. 169) normalidade vem da norma e tem um significado latino “[...] que demarca uma arte de seguir preceitos e corrigir erros”, preceitos coloniais de uma cultura normal, de um corpo normal, à identidade normal.
A normalidade preza pela homogeneização da padronização do ser, portanto, apresenta “[...] a pretensão de ordenar a desordem originada pela perturbação dessa outra invenção, dessa outra fabricação, dessa outra produção que chamamos habitualmente de ‘anormalidade’” (SKLIAR, 2006, p. 17). Nesse sentido, o normal faz uso do padrão colonial para impor-se ao anormal uma situação, a de subalterno.
Segundo Bentes e Hayashi (2012) o discurso sobre a normalidade assume um caráter fulcral na compreensão da realidade das pessoas deficientes, uma vez que esse discurso é responsável pela imposição de valores normativos do corpo, em conformidade com os parâmetros estabelecidas pelo padrão de um modelo “normal”.
Somando-se a isso, para Canguilhem (2009) o padrão normativo e o funcionamento da normatividade são elementos vitais na conceituação entre o normal e o patológico. Dessa forma, o sujeito deficiente ao ser considerado anormal não faz parte da média, pois apresenta características diferentes das normas socialmente estabelecidas.
O corpo do sujeito com deficiência, então, é narrado pela teoria médica e pelo senso comum, pela oposição frente à norma do corpo sem deficiência. O corpo deficiente é defeituoso e apresenta um prejuízo à normalidade. Nesse ínterim, “o corpo com deficiência somente se delineia quando contratado com uma representação de o que seria o corpo sem deficiência” (DINIZ, 2007, p. 7).
Nesse processo colonial, a pessoa com deficiência é oprimida, coisificada. É notório que a estrutura colonial reconhece que alguns corpos apresentam consciência, temporalidade, historicidade e inter-relação uns com os outros e outros não, sendo corpos vazios, incompletos e sem importância. Tal ação colonial faz uso de um controle sobre o corpo e domesticação da sensibilidade, da corporeidade e da diferença dos corpos das pessoas com deficiência.
A colonialidade do corpo normativo não reconhece as nuances do corpo da pessoa com deficiência e busca medidas reparativas para organizar a desordem que o corpo deficiente apresenta a norma padrão estabelecida pela sociedade.
Assim, a colonialidade do corpo normativo mascara e invisibiliza a pluralidade de corpos. Bentes e Hayashi (2012) chamam atenção sobre o padrão do corpo feminino que desconsidera as mulheres com deficiência, como por exemplo, uma mulher cadeirante, uma mulher com síndrome de Dow. Portanto, “[...] na invisibilização, o corpo do ‘outro’, deficiente, não é notado, não é trazido à consciência” (BENTES; HAYASHI, 2012, p. 38), pois não segue os padrões da normalidade consequentemente o corpo deficiente é posto à margem.
Ao ser colocado à margem, o corpo do outro deficiente é inventado, produzido, fabricado “[...] e institucionalmente governado em termos daquilo que se poderia chamar um outro deficiente, uma alteridade deficiente, ou então, ainda que não seja o mesmo, um outro anormal, uma alteridade anormal” (SKLIAR, 2003, p. 152).
Um dos elementos da normalidade deste corpo circunscreve na lesão e na deficiência. De acordo Diniz (2007, p. 18) “lesão seria um dado corporal isento de valor, ao passo que a deficiência seria o resultado da interação de um corpo com lesão em uma sociedade discriminatória”, isso significa dizer, que a lesão seria uma característica corporal medida e avaliada pela norma e a deficiência seria o resultado da opressão vivida por uma pessoa lesionada em uma sociedade extremamente capacitista.
Nota-se, que a colonialidade demarcou e demarca a surdez no campo da patologia, ao considerar o surdo como uma pessoa que não ouve e, portanto, possui um corpo incompleto. Ao representá-lo nesta colonialidade, reforçou e reforça um discurso de normalizar, de colonizar o corpo defeituoso do sujeito, demarcando sua identidade no processo de oposição ao colonizador que possui um corpo normal, completo e na média.
Pela colonialidade do corpo normativo a pessoa surda é classificada e limitada pela sua lesão, pelo nível das perdas auditivas. De acordo com Diniz (2007, p. 40) “lesão é qualquer perda ou anormalidade psicológica, fisiológica ou anatômica de estruturação ou função”. Na colonialidade do corpo normativo ser surdo, então, é perceber o seu corpo com dano, não escutar e ser objeto de reparação.
Nessa perspectiva, entende-se “a surdez como perda total ou parcial, congênita ou adquirida, da capacidade de compreender a fala por intermédio do ouvido” (LIMA; VIEIRA, 2006, p. 52). Dessa maneira, o sujeito surdo é compreendido pela sua lesão em diversos níveis de perda: quanto maior o nível da perda auditiva maior será sua dificuldade de “reabilitação” e “a cura da surdez”.
Os níveis ou graus de surdez são definidos em relação à faixa de decibéis (dB). Assim, a surdez pode ser classificada em: Leve: de 20 a 50 dB; Moderada: de 50 a 70 dB; Severa: de 70 a 90 dB; Profunda: acima de 90 dB. A partir dos níveis, concebe-se a surdez como perda fisiológica da audição, para tanto, buscou-se durante o século XX medidas e práticas designadas como oralistas para o aperfeiçoamento das tecnologias corretivas, com o objetivo de estimular a fala oral mediante a terapia da fala.
Capovilla (2000, p. 102), ao explicitar os padrões corretivos no método oralista na comunicação com pessoas surdas, ressalta que o método oralista objetivava levar o “surdo a falar e a desenvolver a Competência linguística oral, o que lhe permitiria desenvolver-se emocional, social e cognitivamente do modo mais normal possível, integrando-se com um membro produtivo do mundo dos ouvintes”.
É possível estabelecer que as técnicas mais utilizadas no método oralista são: o treinamento auditivo, o desenvolvimento da fala e a leitura labial. Nota-se, com base em Capovilla (2000) que o desenvolvimento da competência linguística oral permitirá ao sujeito surdo adequar-se e encaixar-se em um padrão normativo, pois afinal, estará mais próximo de um corpo aceitável.
Percebe-se que a colonialidade do corpo normativo ilustra os níveis da perda auditiva do sujeito surdo e as medidas corretivas para normalização do ser, bem como demarca que a perda fisiológica da audição concebe outra colonialidade — a imposição de uma língua padrão e oficial — uma língua oral. Nesse contexto, a sociedade colonial e capacitista “olha a surdez como ausência da fala. ‘Não ter fala’ pressupõe, em uma sociedade oral, a mudez; dito de outro modo, pressupõe ‘ausência’ de pensamento, ou, pelo menos, pressupõe que não tem o que dizer” (LOPES, 2007, p. 51).
Desse modo, a colonialidade do corpo normativo instaura pela ausência da linguagem oral uma outra ação opressiva sobre os sujeitos surdos: A colonialidade monolíngue.
4 A COLONIALIDADE MONOLÍNGUE
A linguagem é instrumento cultural e demarcação do ser humano no mundo. É por meio da linguagem que homens e mulheres podem dizer suas palavras, expressar suas realidades e se relacionar com outro e com o mundo. Os grupos populares expressam a sua real linguagem, os seus anseios, as suas inquietações, as suas reivindicações, sua leitura de mundo e os seus sonhos (FREIRE, 1982).
A imposição linguística de uma norma padrão ou de uma língua única é uma atitude colonial. Foi e é por meio da língua que os colonizadores instauraram a dominação colonial sobre os colonizados. A língua e/ou a forma de comunicação demarca as raízes culturais de um povo, o construto identitário dos sujeitos e, é por meio dela, que proferíamos nossa palavra ou sinal ao outro e com o mundo.
Freire (2017, p. 70) chama atenção para imposição da estrutura de dominação do opressor ao impor “sua palavra a eles, tornando-a, assim, uma palavra falsa de caráter dominador”. Quando os sujeitos, homens e mulheres, são interditados de fazer uso da palavra por meio de sua língua tornam-se seres oprimidos pelo sistema antidialógico, sendo desconsiderados como sujeitos socais e considerados como bárbaros e não civilizados.
Freire (1978, p. 169) pontua que “[...] não é por acaso que os colonizadores falam de sua língua como língua e da língua dos colonizados como dialeto; da superioridade e riqueza da primeira a que contrapõem a “pobreza” e a “inferioridade” da segunda”. A língua do colonizador é uma forma padrão da língua enquanto a língua do colonizado não tem valor e atribuída sem estruturação.
Nessa perspectiva, compreende-se que é por meio da língua e das práticas relacionais a ela envolvida que os sujeitos anunciam as suas culturas, as suas histórias, suas tradições e as suas identidades. A língua se torna um instrumento de colonização quando é utilizada como para classificar os que são e os que não são civilizados, os que são e os que não são cultos, portanto, a forma de falar do outro, do subjugado deve ser corrigida em um padrão normativo, assim o outro deve despir-se de sua língua, pois não é aceitável nas formas de dominações coloniais.
Na matriz colonial linguística a história do colonizado “iniciava” com a chegada dos colonizadores, que por meio de sua presença “civilizatória” instaura a alienação e agressão colonial, em busca da civilização dos bárbaros, dos selvagens que eram ausentes de história, de cultura e de língua.
A língua do sujeito surdo foi e ainda está sendo representada pelos moldes da colonialidade como imensamente pobre. A crença é que pelo fato do surdo não oralizar ele não teria uma linguagem estruturada, isto é, a sociedade ao olhar a surdez como ausência da fala pressupõe ausência de pensamento (LOPES, 2007).
Neste caso, o opressor impõe sua língua aos homens surdos e mulheres surdas como tentativa de normalizá-los, desconsiderando sua língua, a língua de sinais e atrelando o selo da diferença pelo prisma da inferioridade. No momento em que a língua do sujeito surdo é negada, a oralidade torna-se instrumento normatizador sobre sua forma de comunicação e seus corpos.
Somando-se a isso, Skliar (2003) descreve que no momento que a língua de sinais é desconsiderada há uma ação colonial ouvintista sobre o sujeito surdo, obrigando-o a:
Despojá-lo de sua língua. Fazer do outro um outro parecido, mas um outro parecido nunca idêntico ao mesmo. Negar sua disseminação, sua pluralidade inominável, sua multiplicidade. E designá-lo, inventá-lo, fixá-lo, para apagá-lo (massacrá-lo) e para fazê-lo reaparecer cada vez, em cada lugar que (nos) seja necessário (SKLIAR, 2003, p. 116).
Essa proibição colonial do uso da língua do sujeito surdo deu origem à filosofia oralista. De acordo com Goldfeld (2002), a concepção de educação pautada no oralismo enquadra-se no modelo clínico, destacando a importância da integração e adequação dos surdos na comunidade de ouvintes. Para isso ocorrer, o sujeito surdo deve aprender a falar oralmente. A autora destaca que:
O Oralismo percebe a surdez como uma deficiência que deve ser minimizada pela estimulação auditiva. Essa estimulação possibilitaria a aprendizagem da língua portuguesa e levaria a criança surda a integrar-se na comunidade ouvinte e desenvolver uma personalidade como a de um ouvinte. Ou seja, o objetivo do Oralismo é fazer uma reabilitação da criança surda em direção à normalidade (GOLDFELD, 2002, p. 34).
Nota-se que a filosofia oralista é a ação do capacitismo e que o capacitismo é a subalternização da pessoa surda no campo colonial. De acordo com Skliar (2010), foram inúmeras as tentativas de correção para normalização do sujeito surdo. O oralismo materializa o ouvintismo ao legitimar e organizar uma metodologia de ensino voltada para a reabilitação do ser surdo.
Centraliza-se na cura da doença e não na diferença cultural, definindo a surdez por características negativas que precisam ser corrigidas e normalizadas. Segundo Skliar (2010, p. 79) “os surdos são considerados doentes reabilitáveis e as tentativas pedagógicas são unicamente práticas reabilitatórias derivadas do diagnóstico médico cujo fim é unicamente a ortopedia da fala”.
Desse modo, o oralismo representa uma filosofia e uma educação tradicional normativa que faz uso do método oral, na reabilitação da fala, na leitura labial e na normalização do sujeito surdo. Assim, a oralidade é instaurada pela norma com o objetivo de acabar com a desordem e desarmonia social presente na comunicação do sujeito surdo. Portanto, o oralismo usa a oralização enquanto um processo normativo e a medicalização da surdez com intuito de promover a cura e assim normalizar a sociedade ouvinte oralista e monolíngue.
A colonialidade monolíngue pauta-se no reconhecimento de uma única língua padrão: a do colonizador. A língua oral foi e é apresentada ao sujeito surdo como forma normativa e corretiva para adequação social. Ser oralizado representaria um padrão aceitável de ser sujeito social, ação essa que demarca uma obrigação, uma opressão de que o outro - o surdo - deve oralizar.
Ao falar usando a língua oral, em uma relação vertical com os surdos, os defensores do monolinguismo negam a língua do outro e impõem a sua língua como única capaz de normalizar o ser surdo. Assim, a linguagem oral é tida como imposição colonial e normativa, “quanto mais se instalava a proibição da língua de sinais [...] ocasiona no corpo surdo prática de novos dispositivos disciplinares” (BENVENUTO, 2006, p. 240).
Destaca-se que a colonialidade monolíngue representa a ação colonial que obrigou os sujeitos surdos a oralizarem a língua oficial do país violando seus direitos e freando sua criatividade linguística e identitária. Essa colonialidade não representa os surdos oralizados que demarcam sua identidade com este elemento. Mas sim os surdos que tiveram sua língua desconsiderada, que sofreram e sofrem opressões para se enquadrar na sociedade majoritariamente ouvinte e oral.
Foi através das raízes da colonialidade do corpo normativo — pela ausência fisiológica da audição — que se instaura a colonialidade monolíngue. Assim, utilizam-se de práticas corretivas para curar aquilo que precisa ser curado, isto é, normalizar e colonizar o sujeito surdo.
Desse modo, as colonialidades do corpo normativo e da colonialidade monolíngue tentam narrá-lo com base em sua deficiência e encontra na normalidade justificativa para medicalizá-lo por meio de próteses auditivas, do implante coclear e do oralismo que é pautado no método oral, na reabilitação da fala, na leitura labial e na normalização do sujeito surdo.
As duas colonialidades apresentam um território constituído pelo maquinário colonial, que descrevem a normalidade mediante ao padrão do corpo e da língua, instaura o conceito de normalidade e os mecanismos capazes de transformar o desvio da anormalidade em normalidade corretiva, conforme a figura a seguir:

Com base na figura 2, nota-se que a surdez está marcada pelo maquinário colonial devido ao caráter histórico e invasivo das práticas capacitistas normativas, que fizeram e fazem uso da colonialidade do corpo normativo e monolíngue, para justificar opressão e subalternização do sujeito surdo. Essa ação circunscreve em uma dimensão estrutural e sistêmica, ao demarcar a história da medicalização da surdez e práticas de exclusão, mediante um corpo com dano e a uma língua não aceita.
A surdez descrita pelo maquinário colonial é demarcada pela falta, ausência e práticas corretivas sobre um ser anormal, colonizado e subalterno, com objetivo de reparação da normalidade inexistente.
Nesse sentido, a colonialidade do corpo normativo faz uso da medicalização para a cura do corpo imperfeito. Esse corpo é medido e avaliado pelos níveis de perda auditiva, e a partir desta identificação são utilizadas práticas corretivas oralistas para diminuir o prejuízo da normalidade e fazer com que o surdo oralize, elemento vital para integração do sujeito em sociedade.
Outro ponto a ser destacado é a coisificação do corpo com dano. Freire (2017) chama atenção que a coisificação é negação histórica e cultural do ser social. Ao ser coisificado o oprimido perde a demarcação de sua humanidade e de sua identidade e passa a ser um objetivo, mediante as práticas de opressão e invasão colonial.
A coisificação do outro está presente a partir do reconhecimento da desumanização como negação da viabilidade ontológica de homens e mulheres. Para coisificar o outro o opressor faz uso da invasão cultural e da cultura do silêncio.
A colonialidade monolíngue parte do princípio antidialógico, questionado por Freire (2017), para negação da língua e da forma comunicacional que o sujeito surdo desenvolve. Essa colonialidade é percebida no ser antidialógico — aqui entendido como opressor e colonizador — ser antidialógico é invadir a cultura do outro, é manipular e dominar o outro. O ser antidialógico impõe negação do outro provocando a invisibilidade e o silenciamento do outro negado. Assim, os oprimidos experienciam a situação de alienação, dominação e coisificação (FREIRE, 2017).
A colonialidade monolíngue é a demarcação de uma língua única, de uma língua padrão a ser seguida como língua civilizatória e autêntica para comunidade. Faz uso da filosofia educacional oralista para normatizar o outro negado.
A surdez na colonialidade do ser, do corpo normativo e do monolinguismo foi inscrita por um modelo clínico-terapêutico e pela normalidade presente na ausência de um corpo e de uma língua padrão. Assim, o ser surdo foi medicalizado para integrar a sociedade por meio da oralidade - da língua falada pelo ouvinte. O sujeito surdo foi e ainda é visto como anormal e sua deficiência foi o selo da inferioridade, portanto, o seu laudo foi a marcação biológica do ser.
Skliar (2010) descreve que o modelo clínico-terapêutico é toda prática que “anteponha valores e determinações acerca do tipo e nível da deficiência acima da ideia da construção do sujeito como pessoa integral, com sua deficiência específica” (SKLIAR, 2010, p. 7, grifo nosso). A colonialidade medicalizou a surdez, isto é:
Medicalizar a surdez significa orientar toda a atenção à cura do problema auditivo, à correção de defeitos da fala, ao treinamento de certas habilidades menores, como a leitura labial e a articulação, mais que a interiorização de instrumentos culturais significativos, como a língua de sinais. E significa também opor e dar prioridade ao poderoso discurso da medicina frente à débil mensagem da pedagogia, explicitando que é mais importante esperar a cura medicinal – encarnada atualmente nos implantes cocleares – que compensar o déficit e audição através de mecanismo psicológicos funcionalmente equivalente (SKLIAR, 2010, p. 77).
Medicalizar a surdez, então, configura-se em uma estrutura da colonialidade que impõe uma língua única, como uma língua do civilizado, adequada e válida. Destaca-se que tal ação é uma reverberação da colonialidade do ser, ao ilustrar que o poder colonial intervém diretamente nos nossos corpos, nas nossas línguas e em nossas identidades. Escolhem pelo padrão eurocêntrico e normativo os que são normais e os que não-são, são anormais.
É pertinente ilustrar que o combate à colonialidade monolíngue ocorre por meio da Libras. A Língua Brasileira de Sinais ocupa um lugar vital na construção das identidades de sujeitos surdos, ela é elemento identitário e de resistência, agrupa sujeitos surdos em torno das comunidades e no desenvolvimento das políticas linguísticas4. A partir do seu reconhecimento, possibilitou olhar a surdez no campo socioantropológico, decolonial e da diferença como alteridade, ao demarcar que os sujeitos surdos pertencem a um grupo linguístico minoritário.
Lopes (2007) descreve que foi por meio da Língua de Sinais que os sujeitos surdos se fortaleceram, assumiram sua diferença linguística e agruparam-se em torno das comunidades surdas em busca do reconhecimento de sua singularidade e identidade, como também no combate às práticas capacitistas, colonialistas e normalizadoras da surdez. Nesse sentido, a autora afirma que a Libras, ao ser reconhecida como língua pertencente à comunidade surda, afirma-se “como instrumento cultural” (LOPES, 2007, p. 28).
A Língua Brasileira de Sinais inscreve-se no lugar da diferença linguística e identitária. Nesse ínterim, destaca-se que a Libras simboliza resistência, fortalecimento, autoestima e particularidade existencial e social da comunidade surda que a usa, e a comunidade surda torna-se um movimento de resistência do direito de Ser Surdo e da valorização do pertencimento linguístico minoritário.
Portanto, a Libras apresenta-se enquanto uma língua subalterna por se oriunda de uma comunidade latino-americana linguisticamente excluída e pela sua modalidade ser contrária ao padrão eurocêntrico oral e como uma língua de identificação, repleta de sentidos e significados, com que os sujeitos surdos sinalizantes defendem-se contra a colonialidade monolíngue.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base neste estudo, percebeu-se que há duas colonialidades presentes no processo de opressão dos sujeitos surdos, são: a colonialidade do corpo normativo e a colonialidade monolíngue. Ambas tendem a mascarar a questão da diferença linguística, identitária e cultural do sujeito surdo, pois ao fazer uso do discurso normativo medicaliza a surdez e enquadra a diferença do corpo e a forma de comunicação como primitiva e inferior: as colonialidades moldam os corpos a partir do ouvido incompleto e da fala ineficiente do sujeito surdo.
O estudo partiu da premissa que existem colonialidades que formaram o ser surdo. Tanto no campo do corpo normativo, enquanto corpo deficiente, uma patologia do ser; quanto na colonialidade monolíngue, como imposição linguística da oralidade em detrimento da comunicação com base na língua de sinais.
Por fim, o estudo evidenciou que a colonialidade do corpo normativo estabelece uma ação marcada pelo desinteresse e desconsideração pelo corpo do outro, no que versa o sentindo da ação colonial, a não aceitação do outro com um ser. A colonialidade monolíngue estabelece uma ação marcada pelo desinteresse e desconsideração pela língua do outro, no que versa o sentindo da ação colonial, a não aceitação do outro com um ser. Não reconhece a forma de comunicação e a língua do oprimido.
REFERÊNCIAS
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Notas