Resumo: O trabalho inscreve-se no ensejo de problematizar as ausências de Práticas Integrativas em Saúde afro-brasileiras no Distrito Federal. Investigou quais relações raciais estão postas no imbricamento do racismo e epistemicídio à implementação da Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde do Distrito Federal. A partir da perspectiva decolonial, analisou a distribuição das Práticas Integrativas nos serviços de saúde, e em como a política sugere a ideia de ser, poder e saber organizada pela colonialidade. Por fim, abordou a necessidade de interação com a Política de Saúde Integral da População Negra para a implementação da Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde antirracista.
Palavras-chave: Epistemicídio, racismo, práticas integrativas em saúde.
Abstract: The work is part of an effort to problematize the absence of Afro-Brazilian Integrative Health Practices in the Federal District. It investigated which racial relations are at play in the intertwining of racism and epistemicide in the implementation of the Policy on Integrative Health Practices of Federal District. From a decolonial perspective, we analyzed the distribution of Integrative Practices in health services, and how the policy suggests the idea of being, power and knowledge organized by coloniality. Finally, we addressed the need for interaction with the National Comprehensive Health Policy for the Black Population in order to implement the anti-racist District Policy on Integrative Health Practices.
Keywords: Epistemicide, racism, integrative health practices.
Artigos - Dossiê Temático
A PERSPECTIVA DECOLONIAL EM UMA ANÁLISE ANTIRRACISTA DAS PRÁTICAS INTEGRATIVAS EM SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL, BRASIL

Recepción: 31 Octubre 2023
Aprobación: 16 Mayo 2024
Carlos Moore (2007) aponta que a raça negra foi a primeira estabelecida no mundo, e também a mais antiga a sofrer racismo. Ressalta a destituição do poder do povo negro em todo o globo, inclusive na África, já que na modernidade a branquitude detém o poder. Seguindo esta linha, este trabalho, na crítica à colonialidade vigente, engaja-se na luta contra o epistemicídio e racismo a que foi submetido o povo negro. O diálogo feito a partir da institucionalização da Medicina Tradicional no Brasil e Distrito Federal (DF) estabelece elementos para pensarmos o apagamento da cultura afro-brasileira de modo geral, e, especialmente, no Sistema Único de Saúde (SUS).
A perspectiva decolonial nos oferece caminhos e possibilidades para uma política de saúde antirracista, uma vez que reúne literaturas implicadas nos modos de fazer e viver do Sul Global. A centralidade das narrativas da população negra abarca um arsenal de lutas dos que vieram antes, possibilitando o aprendizado com quem sempre produziu estratégias de cuidado, pois a colonialidade junto a seus filhotes, racismo e epistemicídio, vêm imprimindo seu modus operandi até mesmo nas instituições que cuidam. Importa neste enfrentamento, que a Saúde da População Negra não seja apenas um nicho no SUS, mas uma metodologia antirracista de cuidado que permeie por todo o seu conjunto.
Este estudo circunda a relação entre a Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde (PDPIS) e a saúde da população negra no Distrito Federal. A pesquisa guiou-se pelo desejo de compreender em que medida as Práticas Integrativas em Saúde ofertadas pela Secretaria de Estado de Saúde do DF (SES/DF) promovem a saúde da população negra. E levantou-se como hipótese a ausência de PIS afro-brasileiras na SES/DF em decorrência do racismo e do epistemicídio.
O objetivo geral deste trabalho foi analisar as repercussões do racismo na materialização da PDPIS. Especificamente, busca-se investigar a (in)disponibilidade de Práticas Integrativas em Saúde afro-brasileiras no Distrito Federal; analisar as ausências de interações e as possibilidades de diálogos entre a Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN); observar a PDPIS por lentes decoloniais. Este estudo pretende contribuir para o repertório científico sobre Práticas Integrativas em Saúde e para a luta pela descolonização da saúde.
O artigo está organizado em apontamentos iniciais acerca do epistemicídio, práticas de saúde e corpo; metodologia utilizada; resultados da pesquisa; discussão e considerações finais.
Sueli Carneiro (2005) trabalha com o conceito de epistemicídio enquanto elemento operador do apagamento, sequestro e inferiorização intelectual da população negra no Brasil. O que fortalece e perpetua a dominação étnica e racial pela negação da racionalidade, cultura e civilização do negro, delimitando a legitimidade única do conhecimento produzido pela branquitude. A experiência da branquitude, apresentada como universal, forja o lugar do Outro pela ótica da filosofia ocidental e traça todas as possibilidades de integração e de exclusão das diversidades. Em um processo que se dá nesse modelo de sociedade a depender de um contrato racial de integração desse Outro na qualidade de subordinado minoritário (CARNEIRO, 2005).
O epistemicídio empreende além da inferiorização da intelectualidade do Outro e da fabricação da “indigência cultural” contra os povos subjugados, a forma de coibir o acesso à educação para minar qualquer possibilidade de aprender e de elaborar um conhecimento localizado, desprezando as expressões civilizatórias do negro e conjecturando ausência de condições materiais ou efeitos psíquicos na autoestima produzidos no processo de aprendizagem. A subsunção do conhecimento sugere a inclusão dos povos que o produziram, subjetiva e intersubjetivamente, surrupiando a razão, que é a exigência para existir neste mundo moderno com legitimidade, reservando-a para a branquitude (CARNEIRO, 2005).
O epistemicídio, aliado às racialidades, decide quais corpos podem viver ou morrer e promove a subjugação dos saberes e a negação do direito dos seres apontados como inferiores a criar intelectualmente. Delimita e restringe a produção do conhecimento, bem como a oportunidade de fazê-lo (CARNEIRO, 2005).
No capitalismo, a Modernidade demarca um modo de funcionamento de todas as áreas da vida (LUGONES, 2014). Culturas de povos subjugados são reduzidas e categorizadas como pré-modernas dentro da dinâmica hierárquica do capitalismo, desvalorizadas por não responder ao padrão da modernidade: eurocêntrico, homogêneo, racional, branco, cis-heteronormativo. Isso cria disputas entre saberes modernos e não modernos, caracterizando-os dentro do binarismo típico colonialista.
Em termos de violências e brutalidade, a experiência de escravização no Brasil foi a mais aviltante do Novo Mundo (NASCIMENTO, 1981), o que requereu diversas formas de atuação e de organização para a manutenção da vida. Os diferentes modos de viver o cotidiano em África, anteriores à escravização, foram estrategicamente convertidos na possibilidade de sobreviver ao Novo Mundo.
O cuidado descrito transgeracional desenvolveu práticas de sobrevivência desde a travessia do Atlântico, que entendemos como cuidado contracolonial, por compreender que contracolonização é, antes de tudo, a própria sobrevivência e humanização de corpos colonizados, perante o projeto colonial genocida; aqui, a conservação da cultura é a própria conservação do corpo-território; a conservação da memória é a conservação da saúde (PAZ, 2019).
Cuidado contracolonial é parte da resistência e de luta em defesa dos territórios [espaço, corpo, conhecimento] dos povos contra colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida praticados nestes territórios (SANTOS, 2015). O cuidado é contracolonial porque se opôs à colonização, resistiu a ela. A institucionalidade, o saber, a sociedade, sim, foram colonizados e os esforços são por um processo de descolonização. Esse cuidado ancestral, todavia, surgiu ante a colonização e se manteve, para lutar contra ela.
Destarte, menciona-se a grande influência de aspectos culturais no entendimento do processo saúde/doença por parte dos/as brasileiros/as. Como aspecto sociocultural, e por vezes de forma simultânea, combinam-se os vários tipos de tratamentos disponíveis, intercalados de maneira não linear (RABELO, 1993). Nesse sentido, são experimentadas diversas possibilidades em um singular itinerário terapêutico (MELLO; OLIVEIRA, 2013).
Para Moura (1988), o candomblé e as demais comunidades negras exerceram funções sociais no Brasil e enfatiza que uma dessas contribuições foi a prática de cura. As religiões de matriz-africana, sobretudo os terreiros de candomblé e umbanda, foram grandes hospitais sociais com alta demanda de oferta de serviços de saúde, sobretudo em um país acometido pela falta de assistência à saúde à época1 (MOURA, 1988).
Essa prática nos traz referências sobre quais as ferramentas utilizadas pela população negra para acessar cuidados em saúde na ausência de políticas do Estado e, ainda, refletir sobre quais diálogos foram estabelecidos entre as práticas sociais comunitárias de cuidado e as práticas institucionais nesse processo histórico de transição das medicinas populares afro-brasileiras para a medicina institucional pública, a partir da criação de um sistema público de saúde.
Na carência de atendimentos públicos à saúde gratuitos e de qualidade, a dimensão religiosa foi extrapolada e o objetivo primeiro de processo sincrético foi ultrapassado, dada a condição material da sociedade brasileira, atuando para que comunidades negras religiosas desempenhassem papéis sociais nos grupos pobres e marginalizados, com força para tensionar disputas e atenuar o projeto genocida, em curso desde a colonização, de desintegração social. O campo religioso transcende para abrir espaço a uma estratégia de mutação empírica da realidade (MOURA, 1988).
Nessa medicina popular abordada, componentes religiosos, além de atuarem nos serviços de saúde pontuais solicitados pela comunidade, operaram na dimensão psicológica e cultural (MOURA, 1988), no fortalecimento de uma identidade social, em termos de cuidado coletivo com práticas ancestrais, e no sentido da simbologia do aquilombamento (NASCIMENTO, 1981) como fundamental na resistência dos povos colonizados para a construção de uma narrativa própria de sociedade.
Banhos de ervas medicinais, benzimentos, defumações, preparo de alimentos, rezas, simpatias, rituais, danças, chás, garrafadas, infusões são práticas de cuidado em saúde herdadas de culturas africanas e indígenas, e atuaram quando o flagelo com os corpos, as condições insalubres, a dor, a desumanização e a negligência exigiam um arsenal rico de práticas de saúde para preservação e cuidado.
Portanto, é necessário problematizar a institucionalização da Medicina Tradicional no Brasil a partir de deliberações de organismos internacionais vinculadas às dimensões culturais estrangeiras, tendo em vista as práticas populares de saúde já existentes nesse país. No Código Penal de 1890, o Estado brasileiro criminalizou práticas de cultos afro-brasileiros, reservando-lhes dois artigos do Código Penal, o artigo 157, referente à magia e ao espiritismo, e o artigo 158, relativo à prática de curandeirismo, apontado como “medicina ilegal”.
Compreende-se a criminalização das medicinas populares, ditas como ilegais, como parte do processo de epistemicídio da população negra no Brasil. Se as religiões de matrizes africanas funcionavam justamente como grandes hospitais sociais para o povo negro (MOURA, 1988), a criminalização desses espaços funcionou como parte do projeto de “fazer morrer” essa população, de inviabilizar condições para sua existência e de implantar um modelo biomédico de cuidado aos moldes europeus2.
Historicamente, espaços e comunidades negras e indígenas foram se especializando em cuidados com estes corpos, resistindo ao projeto de genocídio empreendido no colonialismo. E mesmo após a descriminalização das práticas de culto e saúde afro-brasileira, como produto do racismo e da cosmofobia (SANTOS, 2015), o percurso da Medicina Tradicional no Brasil arraigou-se a parâmetros internacionais.
A compreensão do corpo é central dentro da prática do cuidado em saúde, na medicina ocidental, nas racionalidades médicas diversas e nos sistemas tradicionais de cura. Para cada concepção corporal há uma forma correspondente no processo saúde-enfermidade (SEPARAVICH; CANESQUI, 2010). Logo, uma tipologia de processo saúde-doença pressupõe a interpretação do corpo e de seus processos corporais.
Como as interpretações dos corpos e dos processos corporais são diversas – por condições subjetivas e intersubjetivas – as narrativas únicas, essencialistas e universais de cuidado são excludentes e descabidas pois exigem corpos impostos como naturais. Os autores Separavich e Canesqui (2010) consideram que o entendimento do corpo estabelece uma ontologia do ser. O tipo de cuidado em saúde do corpo, que é previamente interpretado de determinada maneira, refere-se à ontologia do ser presente em cada racionalidade médica ou sistema de cura. O modo de existir de um corpo, bem como sua maneira de ser cuidado, indicam uma ontologia do ser.
A Medicina Tradicional Chinesa, por exemplo, tem a noção de corpo que corresponde a um processo saúde-doença específico. Essa racionalidade milenar complexa e ampliada compreende a dimensão da natureza e protagonismo dos meridianos no fluxo da energia vital (HELMAN, 2003), e sua incorporação no SUS representa grande avanço. A ontologia do ser presente na Medicina Tradicional chinesa é subjugada por se tratar de conhecimento oriental, portanto, não eurocêntrico, no qual o sujeito está integrado à natureza, em uma lógica anticapitalista. O corpo ilustrado pela filogenética da Medicina Tradicional chinesa diz respeito ao povo que a desenvolveu. As particularidades culturais, territoriais, geopolíticas, religiosas e filosóficas também são localizadas, fazem parte daquele contexto específico em que o sistema de cura foi criado. No Brasil, os descendentes destes povos são traduzidos pela raça amarela, e representam 0,47% da população (IBGE, 2015).
O corpo é tratado como signo social, para além de sua dimensão biológica, dotado de atributos socialmente definidos como ideais, bem como de suas funções sociais delimitadas a partir da consolidação da hierarquia colonial. Corpos negros carregam a memória de um passado colonial, em que eram avaliados como mercadoria ou peças, destituídos de humanidade (NOGUEIRA, 1999). A autora Nogueira (1999) caracteriza como paradoxal a vivência desse corpo desumanizado pelo racismo alocado em um país onde se nega o racismo, enquanto estratégia da branquitude para ocultar os efeitos que o racismo confere a um corpo negro.
Uma violência que é fundante do ser colonizado é a opressão e a restrição imposta pelo colono, das suas indumentárias, religião, economia, a organização da cidade (FANON, 2005). Violada, portanto, a possibilidade de construção da imagem de si mesmo enquanto indivíduo parte de um grupo social, distingue-se demasiado da condição do branco e repercute em dimensões inclusive psíquicas – no sentido da “experiência de sofrer o próprio corpo” (NOGUEIRA, 1999). Com implicações diretas inclusive para a organização de um sistema de práticas de cura no mundo imposto pelo colonizador.
O desenvolvimento desta pesquisa qualitativa teve como orientação teórico-metodológica o pensamento decolonial, o qual considerou a matriz de dominação da colonialidade em suas três dimensões: poder, ser e saber. Considerando, nos resultados, os desafios ontológicos apresentados pela tensão entre colonialidade e descolonialidade de modo a ressaltar a complexidade de variáveis que interferem na organização do pensamento e das práticas nas sociedades do Sul Global (MARTINS, BENZAQUEN, 2017).
A colonialidade foi compreendida como a lógica vigente nas sociedades em razão da divisão de poder hierárquica denominada como modernidade (LUGONES, 2014), a partir de período histórico específico, que foi a colonização, e perpetuada no capitalismo. O pensamento decolonial apresentou-se como o eixo de análise, a promover a centralidade das Epistemologias do Sul, e na observância e crítica à agência dos desdobramentos da colonialidade no objeto de estudo desta pesquisa: a Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde.
Trata-se de uma matriz operadora de traduções de ideias, de experiências e memórias que devem funcionar horizontalmente assegurando os fluxos de disseminação e adaptação de informações produzidas a partir de diferentes contextos. Esta matriz tradutora é igualmente uma zona de contato que vem operando atualmente de forma prioritária em grandes eventos de debate como os fóruns internacionais e os encontros de grandes associações científicas. Mas agora emerge a importância de se assegurar trocas mais perenes e profundas de informações críticas. A matriz metodológica que propomos busca responder a esta demanda acadêmica e aquelas de movimentos sociais e ativistas. A importância de uma metodologia comum é a de facilitar o diálogo entre as diferentes pesquisas e dessa forma construir a representação plural e abrangente da realidade pesquisada (MARTINS; BENZAQUEN, 2017, p. 12).
Nesse sentido, com base nos dados da pesquisa de Damasceno (2022), destrinchamos a Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde e a sua materialização nos serviços de saúde, por meio do mapeamento da distribuição de Práticas Integrativas em Saúde no Distrito Federal; refletimos sobre quais filosofias, princípios, cosmopercepções e corpos perpassam o cerne da política, fundamentando a universalização do corpo branco e o epistemicídio. Outro aspecto desta pesquisa foi a aproximação feita entre a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e a Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde, em uma discussão sobre os seus distanciamentos e possibilidades de aproximações, com o objetivo de problematizar e elucidar recomendações, aos moldes de uma construção coletiva e enfrentamento ao racismo.
A análise da Política Distrital de Práticas Integrativas (PDPIS) compreendeu o período de 2014 (ano de sua publicação) até 2021. A relação do conjunto de Práticas Integrativas em Saúde dispostas pelos territórios foi extraída do site da Secretaria de Saúde do DF, em novembro de 2021. A partir disso, utilizou-se do pensamento decolonial para análise das relações de poder presas aos documentos, expressas na Política Distrital de Práticas Integrativas.
O marco para a institucionalização da Medicina Tradicional foi a Declaração de Alma-Ata da Organização Mundial da Saúde (OMS), formulada na Conferência Internacional sobre Cuidados de Saúde Primários no Cazaquistão, em 1978 (OMS, 1978). A OMS (2002) institui o conceito de “Medicina Tradicional” e passa a endossar internacionalmente a sua prática enquanto política pública no campo da atenção primária à saúde (MELLO; OLIVEIRA, 2013). No Brasil, a expressão mais sólida é a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC), de 2006.
No Distrito Federal (DF), optou-se pela terminologia Práticas Integrativas em Saúde (PIS), durante as discussões promovidas no I Simpósio de Medicina Natural e Práticas Integrativas de Saúde do SUS/DF, em 2001 (PDPIS, 2014), suprimindo o termo “complementares”. As Práticas Integrativas em Saúde do DF são regulamentadas pela Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde (PDPIS) de 2014, aberta à consulta pública e discutida pelo Conselho de Saúde do DF à época de sua implementação. A gestão é responsabilidade da Gerência de Práticas Integrativas em Saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (GERPIS/DCVPIS/SAPS) (PDPIS, 2014).
De acordo com a Política Distrital, as Práticas Integrativas em Saúde (PIS) são “tecnologias que abordam a saúde do ser humano na sua multidimensionalidade-física, mental, psíquica, afetiva e espiritual- com o objetivo de promover, manter e recuperar a saúde” (PDPIS, 2014, p. 29-30), definição que está em sintonia com os princípios do SUS na dimensão ampliada da saúde. Destaca-se que a validação das PIS no DF é confirmada pelo critério da tradicionalidade de seu uso e/ou pelas comprovações de seus benefícios por metodologias científicas contemporâneas tendo o seu desenvolvimento o caráter transversal, transdisciplinar e intersetorial (PDPIS, 2014).
A PDPIS regulamentou 14 práticas integrativas – Acupuntura, Arteterapia, Automassagem, Fitoterapia, Hatha Yoga, Homeopatia, Lian Gong em 18 terapias, Medicina e Terapias Antroposóficas, Meditação, Musicoterapia, Reiki, Shantala, Tai Chi Chuan e Terapia Comunitária Integrativa – que foram incorporadas à saúde pública do Distrito Federal em diferentes momentos históricos (PDPIS, 2014), representando a força social que as instituições vinculadas a essas práticas de cuidado exercem sobre a Política de Saúde no DF.
Assim como ocorreu com a Política Nacional (PNPIC), a PDPIS também acrescentou outras práticas integrativas anos depois da sua execução, por meio da Portaria nº 371, de 03 de junho de 2019, como a Ayurveda, Laya Yoga e a Técnica de Redução de Estresse.
No site da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, localiza-se um espaço específico para a publicização de informações sobre as PIS, com diversos informativos, guias, folders, manuais, o documento da própria Política Distrital de Práticas Integrativas em Saúde e um conjunto de documentos com a relação da oferta de PIS no SUS-DF, organizados por Regiões Administrativas e com última atualização feita em 05 de julho de 2019, à época da coleta de dados. O que significa que a principal fonte de informação de fácil acesso da oferta das PIS no DF estava desatualizada. O Quadro 1 elenca a oferta das PIS nos serviços de saúde por regiões administrativas no SUS-DF. Observa-se a ausência de Práticas Integrativas afro-brasileiras, lacuna posta desde a formulação da Política.

A tabela 1 sistematiza as Práticas Integrativas em Saúde disponibilizadas em três Regiões Administrativas com o menor percentual de renda per capita e maior contingente de mulheres negras no Distrito Federal (CODEPLAN, 2014; 2020). Os dados foram elaborados com base ao Quadro 1, no que tange à distribuição de PIS.

O Distrito Federal, oitavo maior PIB do Brasil, dispõe de um maior percentual de mulheres negras localizadas no SCIA/Estrutural (76,8%), Fercal (71,9%), Varjão e São Sebastião (ambos com 68,1%) e Itapoã (67,2%). São Regiões Administrativas conhecidas por índices menores de renda e de condições precárias de habitação (CODEPLAN, 2014). De acordo com o Atlas do Distrito Federal, em 2018, a renda per capita no SCIA/Estrutural foi quinhentos reais, a menor do Distrito Federal. Enquanto nas RAs Fercal, Varjão e Itapoã, a renda per capita esteve entre quinhentos e mil reais, e em São Sebastião, entre mil e dois mil reais. Em contrapartida, o Lago Sul representou a maior renda per capita do DF, entre sete mil e oito mil reais (CODEPLAN, 2020).
Em relação às Práticas Integrativas em Saúde, a Região Fercal não possui oferta e as Regiões Estrutural e Varjão ofertam apenas uma prática, Lian Gong e Automassagem, em apenas uma UBS cada. As regiões mais pobres e com mais mulheres negras concentraram a menor oferta de Práticas Integrativas no Distrito Federal. Considera-se ter características habitacionais específicas ou uma diferença expressiva de extensão territorial em comparação a outra RA.
A pandemia da Covid-19, iniciada no Brasil em março de 2020, trouxe repercussões sociais, políticas, históricas e econômicas que vão muito além da dimensão da própria doença e extrapolam para o abismo social já enraizado no país. Em meio à sobrecarga, o SUS mediou o processo terapêutico e de atenção aos mais de 20 milhões de casos notificados até o terceiro trimestre de 2021 (apesar da subnotificação). Isto demandou a reorganização do SUS para a atuação no enfrentamento da pandemia, inclusive da Atenção Primária em Saúde (APS), o que acarretou na suspensão parcial ou total de inúmeras atividades e serviços da APS.
Isso ocasionou implicações também para as PIS no DF. A maioria das práticas, antes abertas à comunidade, eram realizadas em coletividade. Na pandemia, as suspensões das atividades presenciais das PIS foram medidas de segurança para evitar a transmissão da Covid-19. Segundo a página oficial da Secretaria de Saúde do DF na rede social Instagram®, em uma postagem de 1º de junho de 2021, as atividades coletivas das PIS estariam suspensas para evitar aglomeração e circulação de pessoas, porém com a possibilidade de atendimentos individuais por meio de agendamento nas unidades de saúde, além das práticas ofertadas online (BRASIL, 2021). Inclusive, no site da SES-DF, havia um link que levava direto a um grupo online destinado para a Automassagem, prática destaque na oferta das RAs (2021).
O Plano Distrital de Saúde 2020-2023 estabeleceu como meta ampliar para 65,5% as Unidades de Saúde que ofertam as Práticas Integrativas em Saúde no DF até 2023, o que significaria um aumento de 10,5% no percentual, considerando o índice de 55% de 2018. Essa iniciativa parte do Eixo de Gestão das Redes de Atenção à Saúde, no seguimento da Diretriz de Fortalecimento das Redes de Atenção por meio de ações de promoção de saúde, prevenção de doenças e cuidado integral, e com objetivo estratégico de fortalecer a rede de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) (BRASIL, 2019).
A partir dos resultados da Tabela 1, considerando as desigualdades socioterritoriais inerentes à formação do Distrito Federal, lapidadas como projeto eugenista (LEMOS, 2022), problematiza-se o menor número de oferta de PIS justamente nas RAs com as menores rendas per capita e maior concentração de mulheres negras. Já o Lago Sul, Região com a maior renda per capita, em um único estabelecimento de saúde com PIS, oferece cinco tipos de práticas integrativas, sendo uma delas a de Medicinas e Terapias Antroposóficas, ofertada apenas nesta e em outra RA do DF.
A Política de Saúde da População Negra reconhece que o racismo institucional como determinante da saúde (SEPPIR, 2011) perpassa as instituições de modo geral e o cuidado em saúde, informando que as políticas de saúde são permeadas por racismo. Por isso, a PNSIPN foi implementada como potência transversal a todas as políticas públicas de saúde, no sentido de constituir esforços para o combate ao racismo no âmbito do SUS. Assim como o racismo atravessa as instituições e as relações sociais, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra foi criada para ser transversal a todas as políticas de saúde.
Em virtude de seu caráter transversal, todas as estratégias de gestão assumidas por esta Política devem estar em permanente interação com as demais políticas do MS relacionadas à promoção da Saúde, ao controle de agravos e à atenção de cuidado em saúde (BRASIL, 2009, p. 34).
Como particularidade do Distrito Federal, a Atenção Primária à Saúde abriga em uma mesma coordenação as pastas de Práticas Integrativas em Saúde e Saúde da População Negra. A Gerência de Atenção à Saúde de Populações em Situação Vulnerável e Programas Especiais (GASPVP), onde se aloca a temática de Saúde da População Negra no DF, e a Gerência de Práticas Integrativas em Saúde (GERPIS) são geridas pela Coordenação de Atenção Primária à Saúde.
Em estudo feito sobre a Atenção Primária à Saúde do Distrito Federal, a caracterização sociodemográfica dos usuários entre 2018-2019 foi de que a maioria é mulher (77,4%), com maiores percentuais de pretos e pardos (18,7% e 60%) e de rendimentos familiares em torno de 01 a 03 salários-mínimos (FURLANETTO et al., 2019). A própria pesquisa informa que um de seus objetivos é fornecer dados e parâmetros para os gestores elaborarem intervenções e políticas públicas, pois se faz urgente racializar o debate em saúde no Distrito Federal.
Segundo Caetano (2019), todas as PIS são registradas nos sistemas vinculados à APS, mesmo que elas sejam realizadas em qualquer outro nível de complexidade. Como visto, as mulheres e a população negra são os grupos que mais se utilizam da atenção básica no Distrito Federal (FURLALNETTO et al., 2019), o que reforça ainda mais a urgência de práticas integrativas que façam sentido para essa população. Viabilizar acesso é pensar nas necessidades específicas, é garantir participação social nas tomadas de decisões e espaços de poder, é também pensar os horários e locais disponibilizados para as práticas.
O inciso IV das Diretrizes Gerais da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra considera a promoção do reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde, incluindo aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas (BRASIL, 2017). Além de reforçada nas Estratégias, a preservação dos saberes populares afro-brasileiros são reconhecidas institucionalmente como cuidado em saúde.
Por sua vez, na PDPIS, a predominância da Medicina Tradicional Chinesa e a noção de pessoa sem nenhuma referência à raça, corroboram com a ideia da universalização do corpo branco, em um território onde 56,2% da sua população é negra (CODEPLAN, 2014), visto que a branquitude, ao não se posicionar como um corpo racializado, coloca-se dentro do mundo colonial como portadora de um corpo universal, e submete o corpo negro habitante da zona do não-ser (FANON, 2008). Essa invisibilidade designa quais corpos estariam localizados da noção de pessoa dentro da política, do respeito e da dignidade intrinsecamente relacionados – corroborando a ideia de colonialidade do Ser (LUGONES, 2014).
A PNSIPN (2009) é ilustrativa ao reconhecer o racismo institucional no cuidado em saúde, também arraigado à PDPIS (2014). Foram cinco anos da PNSIPN até a implementação da PDPIS, e observa-se que não houve interação entre as duas políticas, isso porque a PDPIS, uma política que regulamenta parâmetros para os saberes tradicionais em saúde no DF, não recupera as práticas populares de saúde afro-brasileiras salvaguardadas pela PNSIPN. Nesse ínterim, a colonialidade do poder (LUGONES, 2014) expressa a hierarquia de poder nas relações sociais dos espaços institucionais, no descaso e em como o Estado está forjado para que os espaços públicos oprimam racialmente.
A colonialidade do saber (QUIJANO, 2005) foi observada no epistemicídio a que foi submetida a população negra no Brasil, com o apagamento da Medicina Tradicional afro-brasileira e no conjunto de práticas integrativas em saúde estrangeiras dispostas pela Política Distrital de PIS, organizadas a partir das desigualdades socioterrioriais e promovendo o apagamento da cultura local.
Ressalta-se a incidência da acupuntura como a prática mais aplicada do DF, pertencente à Média Complexidade (CAETANO, 2019). Na Atenção Básica, há uma maior aplicação de auriculoterapia. Considerando a centralidade médica na acupuntura, dada a disputa pela prática por médicos acupunturistas, observa-se uma penetração do modelo biomédico mesmo nas Práticas Integrativas. Na Atenção Básica, a auriculoterapia é aplicada por profissionais de diferentes categorias. Discute-se a sobreposição da Atenção Secundária em uma Política que foi implementada para ser protagonizada pela Atenção Primária à Saúde (PDPIS, 2014).
Chama-se atenção para o valor de mercado atribuído às medicinas Ayurveda e Tradicional Chinesa. A partir da PNPICS, de 2006, elas foram institucionalizadas na saúde pública brasileira e ofertadas à população, o que não impediu que fossem comercializadas na esfera privada, como um estilo de vida, destacando-se a ideia de que no mercado compra-se um estilo de vida mais saudável, espiritualizado, cultural, afetivo e ancestral, especialmente em tempos de barbárie. Observa-se também a baixa visibilidade atribuída à cultura afro-brasileira, por caracterizar práticas de saúde de povos subjugados que sistematizaram e compartilharam os saberes de forma comunitária e transgeracional em uma lógica dissociada do modo capitalista de troca (NASCIMENTO, 2016).
No sentido decolonial desta pesquisa, são proposições à PDPIS: o entrelace com a Política Nacional de Saúde Integral do População Negra, para que estejam descritos na PDPIS o compromisso com o combate ao racismo institucional e o endosso a práticas de cuidado em saúde afro-brasileiras. Também são recomendações o investimento na educação continuada dos aplicadores a respeito do cuidado com o corpo negro e os saberes tradicionais afro-brasileiros e indígenas, além de orçamento estabelecido para garantir equidade e acesso, a fim de favorecer o aumento de profissionais de saúde negros como aplicadores de PIS e como gestores da política. O real apoio a hortos comunitários e populares como ferramentas de emancipação e a parceria com comunidades tradicionais quilombolas do DF para que a PDPIS possa, além de contribuir, aprender com quem sempre produziu estratégias de cuidado.
Aborda-se a ideia de que a Capoeira seja reconhecida como uma Prática Integrativa em Saúde. Ela surge no contexto da cultura afro-brasileira, arraiga-se a uma simbologia, inclusive política, no Brasil, agrega a dimensão física, cultural, espiritual, social e política do corpo negro e materializa o cuidado integral. Ainda, acreditamos na experiência de outras danças como potências na PDPIS, a exemplo da dança afro-brasileira Maculelê. O reconhecimento da Kemetic Yoga como uma PIS, instruída por aplicadores negros, também apresentaria um avanço no cuidado em saúde da população negra, pois é uma yoga de base africana pensada para estes corpos. Estudiosos apontam que a Kemet Yoga surgiu no Egito Antigo, nomeado Kemet, destarte os registros das posturas nas pirâmides, e entendem como uma tecnologia deixada pelos ancestrais africanos para o bem viver, baseada nos princípios da progressão geométrica e da respiração em quatro tempos.
O benzimento é outra iniciativa importante a ser reconhecida enquanto PIS, visto que a Escola de Almas Benzendeiras de Brasília há alguns anos vem desenvolvendo um trabalho de prática do benzimento na comunidade no Distrito Federal. Destaca-se, também, a importância dessa prática ser protagonizada por mulheres negras. Apesar de não ser reconhecida enquanto Prática Integrativa em Saúde, no DF, referida prática é feita nos espaços de algumas Unidades Básicas de Saúde.
Importante para essa discussão é a luta pelo território. Mais que institucionalizar práticas afro-brasileiras no SUS, perpassa a dimensão do Estado, no escopo de políticas públicas, a demarcação de terras indígenas e quilombolas, bem como a proteção às comunidades de terreiro que sofrem racismo religioso. Nesse sentido, serão asseguradas suas culturas, a oralidade e a manutenção feita pelo próprio povo. Isso é preservação e proteção da saúde desses povos, para além de cristalizá-los em práticas integrativas. O direito ao território é acesso à Saúde Integral.
Em 2009, a política voltada para a saúde da população negra já sinalizava para a interlocução do SUS com os saberes e as práticas populares de saúde, inclusive os cultivados pelas religiões de matrizes africanas. É descabida a ideia de que a Política Nacional de Saúde, implantada para a preservação das práticas populares de saúde, como é o caso da PNPICS, em nada se alterou para adequar-se à PNSIPN e continuou fundamentada teoricamente por princípios estrangeiros, mesmo com posteriores alterações para alargamento do conjunto de práticas. A Política Distrital de Práticas Integrativas se manteve na mesma lógica, reproduzindo o racismo institucional no campo da saúde, corroborando o epistemicídio contra os saberes da população negra.
O que se disputa aqui é a matriz teórica e a perspectiva conceitual, bem como a preservação cultural e a definição da população negra dentro da política, visando o combate às iniquidades de raça em saúde. Ainda, há de se buscar no mapeamento dos territórios outras recomendações para que junto à comunidade do Distrito Federal investiguem quais Práticas Integrativas em Saúde contribuem com seus cotidianos, suas cosmopercepções, suas necessidades e esperanças.
Compreendemos as contradições do processo de institucionalização, bem como a necessidade de pensar estratégias de proteção aos saberes tradicionais, para que a disseminação do conhecimento dessas práticas de saúde não corrobore o racismo proveniente do vilipêndio de uma dinâmica cultural. Entendendo que para além da disseminação, as políticas de saúde devem pretender, sobretudo, a proteção a essas culturas.
Porque o cuidado à memória do povo negro e indígena neste país também é prevenção, promoção e recuperação da saúde integral. O reconhecimento efetivo de práticas que dialoguem com seus corpos e suas culturas simbolizam a descolonização da saúde. Para, então, um reconhecimento da humanidade, o livre acesso à cultura transgeracional que resiste e permanece viva como ferramenta para o Bem Viver.

