Resumo: As metas de Aichi, das quais o Brasil foi signatário, previam que, até 2020, pelo menos 17% de áreas terrestres e águas continentais e 10% das áreas marinhas e costeiras fossem englobados em áreas protegidas. Finalizado o prazo da meta, o Brasil conta, oficialmente, com 30% da área continental e 27% da área marinha protegidas, todavia distribuídas desigualmente em seu território. Neste estudo, computou-se a cobertura de 98 UCs e um corredor ecológico no estado do Ceará (CE) e foi avaliada sua distribuição entre os vários ambientes naturais do estado. Destarte, buscou-se avaliar a representatividade da conservação promovida pelas UCs em relação aos diferentes ecossistemas estaduais. Os resultados apontam que 92,4% da área protegida corresponde ao regime de Uso Sustentável, distribuída prioritariamente em ecossistemas de exceção do bioma Caatinga, como as áreas costeiras e encraves úmidos e sub-úmidos. Essas áreas apresentam relevância ambiental com rica biodiversidade e geodiversidadade, com interesse socioeconômico, mas o desenho atual de UCs deixou pouco protegida a vegetação de caatinga, ecossistema predominante do estado. Ademais, a predominância de UCs de uso sustentável trazem menos proteção jurídica para salvaguardar a biodiversidade, especialmente aquelas com baixo grau legal de proteção, como a categoria Área de Proteção Ambiental que corresponde à maior cobertura estadual. Conclui-se que a configuração espacial das UCs estaduais ainda está distante do ideal em termos de extensão e representatividade, com poucas áreas protegidas na vegetação de caatinga e pequena extensão de UCs de proteção integral.
Palavras-chave: Planejamento, Conservação, Semiárido, SNUC, Protocolo de Aichi.
Abstract: Among the targets of the Aichi Accord, of which Brazil was a signatory, was the commitment to protect at least 17% of its terrestrial and continental waters and 10% of all marine and coastal areas by 2020. When the target window closed, Brazil had 30% of those projected continental and 27% of the marine areas protected. Those areas, however, are unevenly distributed throughout the country, with the Amazon region exceeding 30% of the projected protection, while only approximately 8% of the Caatinga region has been considered. In this study, we computed the coverage of 98 designated Conservation Areas (CAs) and an ecological corridor in Ceará State (CE) and evaluated their distributions among that state’s various natural environments. Our results indicated that 92.6% % of the total officially protected areas corresponded to Uso Sustentável categories (US), which means sustainable use in English ,largely distributed among ecosystems outside the Caatinga domain, including coastal areas and humid and sub-humid enclaves. Those CAs contain rich bio- and geo-diversities of significant socioeconomic interest, although they do little to protect caatinga vegetation - the predominant ecosystem in the state. Additionally, the predominance of US CAs provide limited legal safeguards to biodiversity, especially among those CAs with low levels of legal protection, such as the category of Área de Proteção Ambiental (APA), which means Environmental Protection Areas in English, which account for the greatest coverage in the state. We conclude that the spatial configuration of state CAs is distant from ideal in terms of their extensions and representativeness, with few areas of protected caatinga vegetation and limited areas with full protection.
Keywords: Planning, Conservation, Semiarid, SNUC, Aichi Protocol.
Artigos
Representatividade ecológica e extensão total de áreas protegidas pelas unidades de conservação no estado do Ceará, Brasil
Ecological representativeness and total area protected by natural reserves in Ceará State, Brazil
Recepção: 01 Fevereiro 2022
Aprovação: 23 Março 2022
Publicado: 06 Setembro 2022
O planeta está passando por uma crise de biodiversidade, com elevadas taxas de extinção de espécies e perda de cobertura vegetal generalizada, resultantes da ação humana, especialmente aquela ligada à destruição direta dos habitats, poluição e disseminação de espécies exóticas invasoras (VITOUSEK et al., 1997; ROYAL BOTANIC GARDENS, KEW, 2016). Uma das estratégias mais eficientes para a conservação da biodiversidade e da geodiversidade tem sido o estabelecimento de áreas protegidas (JUFFE-BIGNOLI et al., 2014).
O mais recente relatório publicado pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) reforça que a manutenção da resiliência da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos em escala global depende da conservação efetiva e equitativa de aproximadamente 30% a 50% das áreas terrestres, de água doce e oceânicas da Terra, incluindo atualmente ecossistemas quase naturais (IPCC, 2022).
Áreas protegidas são espaços geográficos claramente definidos, reconhecidos, com objetivos específicos e geridos por meios eficazes, sejam jurídicos ou de outra natureza, para alcançar a conservação da natureza no longo prazo, com serviços ecossistêmicos e valores culturais associados (DAY et al., 2012). Nesse mote, as Unidades de Conservação (UCs) repercutem importante estratégia brasileira para proteger as espécies nativas e reduzir as pressões humanas sobre dado território (JUFFE-BIGNOLI ET AL., 2014).
No Brasil, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), criado pela Lei Federal nº. 9.985 (BRASIL, 2000), estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das UCs. A normativa estabelece 12 categorias de UCs, distribuídas em dois regimes de uso dos recursos naturais: as de Uso Sustentável (US), com uso direto dos recursos; e de Proteção Integral (PI), admitindo-se apenas o uso indireto. Estratégias de conservação como essas são reconhecidas para proteção da biodiversidade e de paisagens naturais, em especial para a Caatinga, que já perdeu metade da sua cobertura vegetal total (BRASIL, 2015; ANTONGIOVANNI et al., 2018).
A Caatinga representa um bioma brasileiro adaptado ao clima majoritariamente semiárido, com vegetação predominante de caatinga sensu stricto, mas que também abriga encraves de outros tipos de vegetação em seus limites, como florestas úmidas (majoritariamente associadas às serras), savanas, campos rupestres e uma região costeira com campos, arbustais, savanas, manguezais e florestas semidecíduas costeiras (MORO et al., 2015; 2016). A mesma sofreu uma grande alteração na sua paisagem ao longo da ocupação europeia, com progressivo desmatamento para produção de lenha, abrir áreas para agricultura, pecuária ou expansão urbana, com destruição significativa da vegetação nativa (ANTONGIOVANNI et al., 2018; IBGE, 2020). O Bioma Caatinga enfrentou redução de seis milhões de hectares de vegetação nativa apenas entre 1985 a 2020, a maior parte das perdas para a agropecuária (PROJETO MAPBIOMAS, 2021). Assim, estratégias para o planejamento e gestão dos ecossistemas, como unidades de conservação, se mostram cada vez mais urgentes.
O emprego de geotecnologias para o planejamento em conservação da biodiversidade elucida e evidencia padrões espaciais, de forma a subsidiar a tomada de decisão. Em concordância, Picuno et al. (2019) acrescentam que a inclusão de ferramentas de Sistemas de Informações Geográficas (SIGs) é, do ponto de vista metodológico, adequado e eficiente porque pode incluir, tanto no espaço quanto no tempo, informações diversificadas das dinâmicas do espaço e paisagem.
Nessa perspectiva, a estimativa mais recente feita pela International Union for Conservation of Nature (IUCN, 2020) aponta que 15% de área terrestres e 7% dos mares e oceanos são mundialmente destinados a áreas protegidas. No âmbito da 10ª Conferência das Partes (COP10), que representa os encontros internacionais multilaterais para discutir as políticas de conservação dos países signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica, buscou-se estabelecer ações concretas para deter a perda da biodiversidade planetária em 20 metas, chamadas de Metas de Aichi, a qual o Brasil é signatário. A meta de Aichi 11 determina que, até 2020:
“Pelo menos 17% de áreas terrestres e de águas continentais e 10% de áreas marinhas e costeiras, considerando interesses para conservação, serviços ecossistêmicos, equidade e eficiência na gestão de áreas protegidas, representatividade ecológica e conectividade” (UNFCCC, 2010, p. 10).
No Brasil, 30% da área continental e 27% da área marinha são consideradas Áreas Protegidas, o que inclui, além das Unidades de Conservação, os Territórios Indígenas e Quilombolas (UNEP-WCMC, 2021). Embora pareça ser um número adequado, essas áreas protegidas estão distribuídas desigualmente no território, com alguns biomas, como a Amazônia, com uma cobertura maior de UCs, enquanto outros, como a Caatinga, têm uma cobertura de UCs bem menor. Além disso, nem todas essas áreas têm ferramentas concretas de gestão, fazendo com que parte delas constitua áreas protegidas legalmente que não têm efetividade real na proteção aos ecossistemas. Globalmente, apenas 11,2% das UCs terrestres e 0,54% das marinhas apresentam de fato efetividade de gestão (UNEP-WCMC, 2021; IUCN, 2020). Além disso, sua distribuição entre os diferentes biomas brasileiros é bastante desigual (BRASIL, 2015).
No levantamento feito por Teixeira et al. (2021) verificou-se que apenas 8% da Caatinga encontra-se legalmente protegida por algum tipo de UC, e que apenas 1,3 % do território da Caatinga está em UCs com regime de proteção integral. A distribuição dessas áreas na região não segue um princípio de representatividade, havendo maior cobertura em alguns ecossistemas (inclusive com sobreposição de duas UCs no território) e lacunas em outros.
Embora a meta 11 de Aichi seja mais referenciada com relação à porcentagem de área protegida, no seu texto é sabiamente explicitado que essas áreas sejam “ecologicamente representativas”. O termo representatividade, no contexto biológico, se refere à intenção de proteger a biodiversidade genética, de espécies e táxons superiores, incluindo os processos ecológicos e evolutivos (SPALDING, 2007). Pensando na representatividade dentro do contexto do Ceará, considera-se que uma rede adequada de UCs deveria cobrir uma parte representativa dos diferentes tipos de ecossistemas espalhados pelo estado, desde a vegetação de caatinga, o tipo de ecossistema mais extenso, passando pelas florestas úmidas, savanas e ecossistemas costeiros e marinhos (MORO et al., 2015).
As metas de Aichi foram assumidas oficialmente pelo governo federal, mas na conjuntura brasileira, os estados têm autonomia para, em parceria com os governos federal e municipais, planejar políticas de proteção ao meio ambiente, podendo criar e gerir UCs e assim colaborar para a salvaguarda dos ecossistemas (BRASIL, 2015). É importante observar que, apesar do Ceará estar contido 100% no Bioma da Caatinga (IBGE, 2020), em escala de maior detalhe, encontram-se diferentes tipos vegetacionais em seu território, condicionados pela geodiversidade (serras, região costeira, Depressão Sertaneja etc.) e pelos gradientes climáticos. A maior parte do território cearense é dominado pelas terras baixas da Depressão Sertaneja, com a presença de serras que podem chegar a 800-1100 m de altitude na forma de maciços residuais. Já o oeste, sul e nordeste do estado apresentam bacias sedimentares extensas e a região costeira os terrenos planos sobre a formação barreiras (MORO et al., 2015). O clima predominante é semiárido, mas no barlavento dos maciços residuais há formação de chuvas orográficas e há também maior precipitação na região costeira, condicionando diferentes tipos de vegetação sobre diferentes partes do estado, de acordo com a geomorfologia e clima (MORO et al. 2015).
Assim, a vegetação de caatinga sensu stricto é a mais amplamente distribuída no Estado, nas terras baixas da Depressão Sertaneja, mas há também florestas úmidas no barlavento das serras, florestas secas no sotavento das serras, caatinga do sedimentar sobre os terrenos arenosos das bacias sedimentares, savanas, e vegetações costeiras (MORO et al., 2015). Desse modo, a avaliação da representatividade da cobertura de UCs, distribuídas entre as várias unidades fitoecológicas do Ceará, demonstra importante contribuição para o planejamento e gestão da conservação da natureza, bem como identificar os principais tipos de ecossistemas protegidos legalmente no Ceará. Com isso, este trabalho objetivou mapear a distribuição das UCs no território cearense e avaliar a distribuição das UCs entre os diferentes tipos de ecossistemas do estado.
No contexto nordestino, o Ceará abriga certa diversidade de paisagens naturais em seus 148.894,44 km2 (CEARÁ, 2017) e uma estimativa de 9.240.580 habitantes (IBGE, 2022). Geologicamente, a unidade ambiental principal são os terrenos pré-cambrianos do embasamento cristalino, onde ocorrem as formas de relevo de maior abrangência espacial, as depressões sertanejas e maciços residuais (DA COSTA et al., 2020; LIMA et al., 2000). A diversidade estrutural e litológica tem implicações diretas na composição de um mosaico de paisagens, tais como: as paisagens semiáridas da Depressão Sertaneja e das bacias sedimentares interiores, os maciços residuais úmidos e as paisagens costeiras (BRANDÃO; FREITAS, 2014; DA COSTA et al., 2020). Embora a vegetação de caatinga das áreas cristalinas seja o tipo de vegetação predominante do estado, há vários outros tipos de vegetação, mapeados pelo Atlas do Ceará como “unidades fitoecológicas”, que, em conjunto, representam a diversidade de ecossistemas terrestres do Ceará (FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PLANEJAMENTO DO CEARÁ, 1998; MORO et al., 2015), além dos ecossistemas marinhos.
Para sobreposição espacial cartográfica, foi empregado o shapefile das unidades fitoecológicas do estado do Ceará, modificado por Moro et al. (2015) a partir do Atlas do Ceará (FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PLANEJAMENTO DO CEARÁ, 1998), juntamente com os arquivos de Unidades de Conservação disponíveis pelo Cadastro Estadual de Unidades de Conservação (CEUC) atualizados até dezembro de 2021, disponibilizados pela Secretaria de Meio Ambiente do Ceará (SEMA). No contexto das águas jurisdicionais, foi adotada a distância de 12 milhas náuticas (aproximadamente 22 km) da linha de base (BRASIL, 1993), de forma a estimar a área marinha sob tutela estadual.
Os dados foram tratados no software Quantum GIS TM, versão 2.18.24. A projeção empregada foi SIRGAS 2000/UTM 24S. As unidades fitoecológicas do Ceará (FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PLANEJAMENTO DO CEARÁ, 1998) foram definidas como categorias de análise da paisagem (Figura 1), possibilitando a análise de representatividade ecológica estabelecida pela Meta 11 de Aichi. Foi adotada a divisão de unidades fitoecológicas proposta por Moro et al. (2015), modificado de Figueiredo (1997), em que se divide os ambientes naturais do Ceará em 11 categorias de ecossistemas e em corpos hídricos continentais.
Como é permitida a sobreposição de UCs de diferentes categorias no território (por exemplo, a existência de uma RPPNs dentro de uma APA), as sobreposições entre UCs foram eliminadas seguindo hierarquicamente os seguintes critérios: quando duas áreas se sobrepunham, consideramos apenas o Regime de uso mais restritivo (Proteção Integral > Uso sustentável - ou seja, um PN dentro de uma APA teve sua área contabilizada apenas como um PN); 2) Se duas UCs eram de uso sustentável, consideramos apenas a categoria de UC mais restritiva de acordo com o SNUC (BRASIL, 2000) no cômputo de área (por exemplo, se uma RPPN está dentro de uma APA, contabilizamos a área protegida como RPPN); 3) Nos casos de sobreposição de UCs de mesma categoria, consideramos a maior abrangência de gestão (Federal > Estadual > Municipal). Os dados suplementares estão disponibilizados no repositório Figshare, no seguinte link: https://doi.org/10.6084/m9.figshare.18780662.
Contabilizou-se um total de 98 unidades de conservação e um corredor ecológico para o estado do Ceará, criadas até 2021 e cadastradas nas bases de dados do CEUC (Tabela 1; Figura 1). Desse montante, 76 (77,6%) são UCs de Uso Sustentável, sendo que 37 são RPPNs, 28 são APAs e o restante está distribuído entre Reserva Extrativista (RESEX), FN e Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE). Já o grupo de Proteção Integral, categoria com maior proteção legal à biodiversidade, somou apenas 22 (22,4%) UCs: 9 são Parques (nacionais, estaduais ou naturais municipais) e o restante está distribuído entre Refúgio da Vida Silvestre (REVIS), Monumento Natural (MONA) e Estação Ecológica (ESEC).

Ao se contabilizar a área total de cada unidade fitoecológica, excluindo-se as sobreposições de corpos hídricos, como por exemplo os espelhos d’água do rio Jaguaribe e do açude Castanhão, verifica-se maior abrangência espacial, respectivamente, da caatinga do cristalino, recobrindo quase 70% do estado (Tabela 2).
No total, o Ceará tem 1.165.426,64 hectares de seu território recoberto por UCs em áreas terrestres e em águas continentais, que correspondem a 7,87% do território estadual coberto por alguma categoria de UC; e 85.423,88 hectares em áreas marinhas, que correspondem a 3,09% dos ecossistemas marinhos sob jurisdição estadual. Evidencia-se, assim, a grande lacuna para atingir a meta 11 de Aichi, tanto em ambientes terrestres quanto marinhos.
No ambiente terrestre, as UCs do grupo de proteção integral somam no Ceará uma área total de apenas 83.320,67 ha, divididos em quatro tipos: Parque, ESEC, MONA e REVIS (Tabela 1). Somadas, as UCs de proteção integral representam apenas 0,60% da extensão geográfica dos ecossistemas terrestres do estado.
Por outro lado, a área total de UCs do grupo de uso sustentável é de 1.082.105,97 ha, apresentando cerca de 7,27% da extensão de ecossistemas terrestres do estado. As UCs de uso sustentável representam 92,85% da cobertura protegida por UCs do estado, já excluindo as sobreposições (Tabela 1). A maior parte dessa soma está concentrada na categoria de APA, que é a categoria brasileira com menor restrição legal ao uso humano, seguida por FN, RESEX, RPPN e ARIE, categorias com mais restrições de uso no grupo das UCs de uso sustentável.

Na Figura 3 pode-se observar que nas UCs de uso sustentável a unidade fitoecológica com maior porcentagem de proteção em relação à sua área total são os cerrados interiores, em que 78,1% da sua área total está englobada por alguma UC. Mas destacamos que esses são ambientes de pequenas dimensões no estado. A segunda unidade fitoecológica com mais cobertura é a mata úmida do cristalino, com 55,7% de sua área incluída em UCs (majoritariamente protegida por APAs). O grupo menos protegido são os cerrados costeiros, com apenas 0,003%, protegidos (Figura 3 e Tabela 2). O ecossistema marinho conta apenas com 3,10% de proteção. Assim, de modo generalizado, as UCs de proteção integral representam uma proporção muito pequena de áreas protegidas em todas as unidades fitoecológicas do estado, representando apenas frações restritas da extensão dos territórios ocupados por cada tipo de ecossistema.

A maior parte da cobertura de UCs no Ceará está no grupo de US, especialmente na categoria APA. Olhando exclusivamente para a categoria de PI temos um quadro mais restrito, com apenas 0,56% do território cearense protegido por UCs dessa categoria (Tabela 2). As unidades fitoecológicas com maior porcentagem de cobertura de UCs de proteção integral em relação à sua área total são os cerrados e cerradões interiores (3,39% protegidos por UCs de PI) e o manguezal, com apenas 3,02% protegidos (Tabela 2). Tipos de vegetação como a mata seca do cristalino não são sequer protegidas por UCs de proteção integral e a caatinga do sedimentar foi protegida por UC de proteção integral apenas recentemente, com a criação de um novo parque estadual na Ibiapaba. Juntamente com a Mata Úmida do Cristalino e os Cerrados Costeiros, esses ecossistemas figuram entre os menos protegidos por unidades do grupo de proteção integral.

As fitofisionomias com maior volume de precipitação, que constituem ambientes diferentes da caatinga típica predominante no estado, como o complexo vegetacional costeiro, os cerrados costeiros, a mata úmida do cristalino e mata úmida do sedimentar, bem como as matas secas do cristalino e do sedimentar, tem 0,78% de seu território protegido por unidades do grupo de PI. As fitofisionomias mais áridas do estado do Ceará, como a caatinga do cristalino, caatinga do sedimentar, carnaubal e cerrados interiores somam apenas 0,44% de sua totalidade sob esse tipo de proteção, evidenciando um déficit de proteção para essas fitofisionomias.
É importante salientar que essas unidades fitoecológicas típicas do semiárido, juntas, são responsáveis por 77,28% do território cearense, evidenciando a necessidade premente de estabelecer UCs em áreas de fitofisionomias da caatinga strictu sensu.

A Unidade de Conservação na categoria ESEC, a mais restritiva, recobre apenas 1,19% do total de UCs de Proteção Integral. Com relação à área total do estado abrange apenas 25.276,292 (0,016%) hectares representando as fitofisionomias do complexo vegetacional costeiro e da caatinga do cristalino e caatinga do sedimentar. A categoria MONA abrange 30,09% de todas as UCS de Proteção Integral, e recobre áreas representantes do complexo vegetacional costeiro, da caatinga do cristalino, do cerrado e cerradões interiores e da mata seca do sedimentar. A Categoria Parque é a mais comum, representa 37,83% de todas as UCs de Proteção Integral e recobre a maior parte das fitofisionomias, com exceção das matas úmida e seca do cristalino e a caatinga do sedimentar. A categoria REVIS abrange apenas 0,75% da área de todas as UCs de Proteção Integral, e abriga as unidades fitoecológicas da caatinga do sedimentar, e matas úmida e mata seca do cristalino.
As unidades de conservação que se encontram em situação próxima a de um mosaico de UCs geralmente estão associados a brejos de altitude, matas úmidas associadas aos terrenos mais elevados de serras como a da Ibiapaba, Baturité e Araripe. À exceção das UC da Serra de Baturité que tem a conectividade com outras áreas planejada através do Corredor Ecológico do Rio Pacoti com as unidades situadas no complexo vegetacional costeiro, próximas a Região Metropolitana de Fortaleza, os outros conjuntos de UCs se encontram desconexos e descontínuos, restritos às áreas úmidas, seguindo um modelo tal como ilha, envolto a degradação.

Trazendo agora a análise para as categorias de Uso Sustentável, a distribuição das APAs no Ceará mostra uma ampla ocorrência nas diferentes fitofisionomias do estado. É a UC mais amplamente representada, justamente por ser aquela com menor grau de proteção e menor custo de implantação. A categoria ultrapassa os 17% sugeridos por Aichi em 5 formações vegetais do Ceará. Elas são: mata úmida do cristalino (55,49%), cerrados interiores (48,97%), manguezal (40,02%), carnaubal (34,77%) e mata seca do sedimentar (24,74%). A distribuição das FLONAs mostra que elas estão sobre os cerrados interiores (31,7% dessa unidade fitoecológica, com destaque para a Floresta Nacional do Araripe), a mata seca do sedimentar (0,57% dessa unidade fitoecológica), caatinga do sedimentar (0,24% dessa unidade fitoecológica) e caatinga do cristalino (0,01% dessa unidade fitoecológica).As RPPNs recobrem a Mata seca do Sedimentar (0,57%), a mata úmida do cristalino (0,24%), o complexo vegetacional costeiro (0,19%), a mata seca do cristalino (0,05%) e o carnaubal (0,004%). Cerrados costeiros, manguezal e cerrados interiores não têm representação nessa categoria. As ARIEs são caracterizadas por sua pequena extensão territorial (BRASIL, 2000), sendo necessária a análise em três casas decimais para que sejam registradas as suas ocorrências sobre as unidades fitoecológicas. Elas ocorrem no complexo vegetacional costeiro (0,02%), caatinga do cristalino (0,003%), cerrados costeiros (0,6%) e carnaubal (0,002%). O Ceará possui apenas duas RESEX em todo o seu território, que ocorrem no complexo vegetacional costeiro (0,06% de sua extensão protegida por essa categoria) e no ambiente marinho. A extensão das RESEX fica 3,97% sobre o complexo vegetacional costeiro, e o restante em ambiente marinho, como discutido mais abaixo.
Ao contrário das UCs de proteção integral, que possuem áreas bastante pequenas, as de uso sustentável ocorre em todos os ecossistemas, conseguindo superar os 10% de proteção de algumas unidades fitoecológicas, individualmente. Na contramão desse feito, a maioria das UC desse grupo se concentra na categoria de APA, uma das categorias com menor restrição de uso e com pouca efetividade de proteção. As APA de maior dimensão estão sobre os Brejos de altitude, como Araripe, Aratanha, Baturité e Ibiapaba, não havendo nenhuma grande unidade desta categoria sobre a caatinga do cristalino.
Em relação ao ambiente marinho, o Parque Nacional de Jericoacoara possui 27,33% de sua área sobre os ecossistemas marinhos, correspondente a 2.347,4 ha, enquanto o Parque Estadual Marinho da Pedra da Risca do Meio está completamente sobre o mar.
No grupo de UCs de uso sustentável, a categoria com maior ocupação marinha é a RESEX (90,06%), seguida pelas APAs (70,95%). Ainda assim, somando todas as UCs, apenas uma pequena fração do ambiente marinho é atualmente protegida no estado do Ceará.
Segundo o IBGE (2016) o Brasil possui 2.500 UCs cadastradas na base de dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA), das quais 798 são de proteção integral e 1.702 são de uso sustentável. Observa-se no Ceará uma situação semelhante, com UCs de uso sustentável dominando o total de UCs e o total de área protegidas pelas UCs. Aqui, entretanto, há um quadro mais acentuado de predominância de UCs de uso sustentável. Enquanto o Brasil apresenta 68,6% do total de UCs no grupo das de uso sustentável, no Ceará há 92,4% da área protegida total nesse grupo. Quanto às de proteção integral no Ceará, a porcentagem de área protegida é mais de quatro vezes menor que a do país: 7,6% do total da área protegida por UCs de proteção integral do Ceará contra e 31,9% do total das UCs brasileiras, respectivamente. Esse fato evidencia o quão frágil é o sistema de proteção da biodiversidade cearense, uma vez que o grupo de uso sustentável, figura como amplamente majoritário na conservação dos ecossistemas do estado e, mesmo assim, não atingem os 17% propostos pelas metas internacionais.
Destaca-se que UCs de uso sustentável podem ser importantes mecanismos de conservação, que podem ter como aliada das políticas de conservação a população humana residente ou usuária das UCs, seja na forma das comunidades tradicionais que habitam ou exploram sustentavelmente UCs como Floretas, RESEX e RDS, seja como proprietários de terras que criam e mantêm RPPNs. Terras indígenas e quilombolas também podem efetivamente proteger os ecossistemas, mas na realidade do Ceará terras indígenas e quilombolas demarcadas constituíram uma fração muito pequena do território.
Feita essa ressalva sobre a importância da participação popular na gestão de UCs de uso sustentável, destacamos que de todas as categorias as APAs são aquelas com proteção mais frágil aos ecossistemas e são justamente a categoria mais amplamente criada no estado. Analisando o caso das APAs do Ceará, vemos que elas enfrentam uma série de complicadores para a conservação dos ecossistemas: a maior parte delas é constituída por terrenos privados, com atividades econômicas degradadoras como agricultura, pecuária, mineração, etc, além de áreas urbanas próximas ou mesmo no seu interior.
Assim, destacamos que embora as UCs de uso sustentável possam ser mecanismos importantes para conservação aliando a gestão pública com as comunidades, vemos na prática um resultado limitado das APAs em resguardar os ecossistemas. Há casos recentes de expansão de urbanização ou de obras de infraestrutura com intensa degradação dentro de APAs, resultando em perda de cobertura vegetal. Essas ações são legais, se licenciadas pelos órgãos ambientais, mas mostram como a existência de grandes APAs não garante a perpetuidade da conservação dos ecossistemas. Apesar disso, é justamente na categoria APA onde está desproporcionalmente a maior extensão no território protegido por UCs, revelando o grau limitado de proteção que os ecossistemas têm atualmente.
Conforme levantamento realizado por Ziegler et al. (2019), as UCs estaduais de uso sustentável apresentam um excesso proporcional de APAs, sendo indicada a criação de UCs de usos sustentável de outras categorias de manejo e UCs de proteção integral para diminuir essas distorções.
Vale destacar que a distribuição das UCs nos ecossistemas do território cearense não se dá de forma realmente representativa também na distribuição dos ecossistemas protegidos. A maioria das unidades fitoecológicas está pouco representada na cobertura de UCs. E quando se avalia a cobertura de UCs de proteção integral, justamente as com mais garantias e proteção legal para a biodiversidade, vemos uma cobertura inexpressiva. Várias das UCs cearenses, inclusive, possuem pequena extensão, o que pode reduzir sua capacidade de manutenção da fauna de maior porte. Em um estudo realizado na Mata Atlântica, por exemplo, Chiarello (2000) pontua que áreas protegidas superiores a 20 mil hectares tem capacidade de sustentação para populações viáveis de mamíferos com peso superior a 1 kg. Em caso de mamíferos com peso superior a 50 kg, as áreas protegidas devem possuir no mínimo 100 mil hectares (TERBORG, 1992; NEWMARK, 1995; PAVIOLO et al., 2009). Além disso, não há conectividade entre várias das UCs, com exceção das unidades interligadas pelo Corredor Ecológico do Rio Pacoti.
A espacialização dessas áreas protegidas no Ceará se concentra em alguns pontos característicos. A caatinga do cristalino, também chamada de caatinga sensu stricto (MORO et al., 2015) é a maior unidade fitoecológica em extensão e possui apenas 0,48% do seu território protegido por UCs de proteção integral. Vemos que as UCs do estado se concentram em ambientes de exceção para a Caatinga, como as serras úmidas e o litoral, fato notado também por Menezes et al. (2010). Não por acaso, há uma certa sobreposição de UCs com os limites do Ceará protegidos pela Lei da Mata Atlântica, lei 11.428, de 2006 (BRASIL 2006), que já possuem o uso restrito por força dessa lei.
Vale destacar que algumas UCs possuem dimensões territoriais bem pequenas, com 11 delas abrangendo menos de 20 hectares, sendo oito RPPNs, duas MONAs e uma ARIE. Embora saibamos que pequenos fragmentos de vegetação possam abrigar biodiversidade relevante, de um modo geral essas áreas têm capacidade de manter apenas espécies de menor porte da fauna. Apesar disso, é reconhecida a importância de áreas pequenas, uma vez que essas reservas têm potencial para operar como trampolins ecológicos e habitat para pequenos animais, conectando a paisagem e auxiliando na funcionalidade do fluxo gênico (LELES, 2020).
Não obstante, a configuração espacial das UCs do Ceará ainda está distante do ideal. Do ponto de vista da viabilidade logística e gerencial, ela se mostra ineficiente, em decorrência do grande distanciamento entre UCs, e extensos vazios não protegidos, o que reduz sua eficácia (MENEZES et al., 2010).
Assim, a contribuição do grupo das UCs de proteção integral do estado para o alcance das metas de Aichi é ainda pouco relevante, com menos de 1% do território cearense protegido por essa categoria. A ampliação da rede de UCs de proteção integral deve ser uma meta de conservação, localizando, mapeando e salvaguardando áreas que estejam atualmente bem conservadas, e que devem se manter protegidas para resguardar a biodiversidade do Ceará.
A representatividade dos tipos de vegetação nas categorias de manejos das UCs estaduais foi avaliada por outros pesquisadores, que destacaram que mesmo ocupando a maior parte do território cearense, a vegetação de caatinga é 34 vezes menos protegida do que os ambientes ligados à mata atlântica, como os encraves de florestas úmidas, revelando uma distorção na representatividade do sistema estadual de unidades de conservação (ZIEGLER et al. 2019).
Um estudo da cobertura de UCs em toda a extensão da Caatinga mostrou que a cobertura atual de UCs na Caatinga está em torno de apenas 8% do território protegido, a maior parte correspondendo a APAs, sendo apenas 1,3% da extensão do bioma protegido por UCs de Proteção Integral (TEIXEIRA et al., 2021). No Ceará a situação é ainda mais preocupante. Tanto a vegetação de caatinga sensu stricto, o ecossistema predominante do estado, está muito pouco protegida, quanto nossa cobertura de UCs de proteção integral atinge apenas uma cobertura mínima, abaixo de 1% do território. Embora as metas de Aichi sejam um compromisso nacional, e não estadual, elas podem servir de referência para esferas estaduais atuarem.
Se em escala nacional, o Brasil supera os 17% de seu território em áreas protegidas, é necessário destacar que a distribuição dessas UCs não é equitativa no território nacional, com o Bioma da Caatinga recoberta por apenas 8% de UCs, e apenas 1,3% da área total da Caatinga em UCs de proteção integral (TEIXEIRA et al., 2021). Vemos no presente estudo que o Ceará, dentro desse contexto, está ainda mais atrasado no estabelecimento de UCs em relação ao restante da Caatinga.
Apesar disso, está havendo uma expansão da rede de UCs no Ceará. Parte dessa expansão vem ocorrendo por criação de novas RPPNs, derivada do esforço de proprietários privados de terra, que criam pequenas UCs em suas propriedades. Mas houve também a positiva criação de novas UCs, inclusive de proteção integral, pelo governo do Estado do Ceará, com destaque para a criação do Parque Estadual do Cocó em 2017 e do Parque Estadual do Cânion Cearense do Rio Poti em 2021. Cremos que agora seria um momento propício para o governo do estado do Ceará expandir a rede pública de UCs, focando nas unidades fitoecológicas menos protegidas e, especialmente, criando mais UCs de proteção integral ou UCs de uso sustentável mais restritivas, como florestas estaduais ou ARIEs. A criação recente de UCs tanto de proteção integral quanto de uso sustentável pelo governo estadual dá uma sinalização positiva nesta direção.
Considerando os dados levantados, tem-se um déficit de UCs nas fitofisionomias típicas de ecossistemas semiáridos, como a caatinga do cristalino e, ao mesmo tempo, há forte lacuna de proteção por UCs de proteção integral em todos os ecossistemas do estado. Ressalta-se então, a necessidade de ampliar as áreas de recobertas por UCs, especialmente as de Proteção Integral, para alcançar a já atrasada meta de Aichi.
Os resultados apontam a necessidade de expansão da área de proteção das unidades de conservação em todos os ecossistemas, mas em especial de UCs de proteção integral especialmente na caatinga do cristalino e na caatinga do sedimentar. Essas seriam as unidades fitoecológicas com maior prioridade para a criação de novas UCs. Ao se pensar na criação de novas UCs de uso sustentável, seria importante priorizar aquelas com maior proteção legal à biodiversidade (Florestas ou ARIEs), já que as APAs, de um modo geral, permitem muitos usos degradantes, desde que licenciados. A criação de mais ARIEs, Florestas e RESEXs, por serem mais restritivas, poderiam ser boas estratégias.
Os autores agradecem à Universidade Federal do Ceará e a CAPES pelo apoio financeiro.
O trabalho é resultado de alguns anos de colaboração entre UFC e Sema e é encabeçado por Francisco Vladimir. Todos os autores contribuíram com a publicação, tendo as seguintes participações:
Francisco Vladimir Silva Gomes concebeu o trabalho; realizou as análises e o processamento dos dados; participou da análise dos dados e escreveu o texto. Renan Guerra realizou as análises e o processamento dos dados; participou da análise dos dados; discutiu os resultados; revisou e aprovou o texto. Ana Maria Ferreira participou da definição da estrutura e do desenvolvimento do trabalho; discutiu os dados; discutiu os resultados; revisou e aprovou o texto. Liana Queiroz participou da análise dos dados; discutiu os resultados; escreveu o texto. Marcelo de Oliveira Teles de Menezes participou da análise dos dados; discutiu os resultados; escreveu o texto. Marcelo Freire Moro concebeu o trabalho junto com o primeiro autor; liderou a equipe; participou da análise dos dados; discutiu os resultados; escreveu o texto.





