Resumo: Neste artigo propõe-se uma reflexão acerca dos modos pelos quais a circulação internacional das ideias pedagógicas estruturou a elaboração do sistema escolar francês no fim do século 19. Embora seguidamente associada ao processo de nacionalização da sociedade, a escola da Terceira República se construiu, de fato, seguindo modelos e exemplos estrangeiros. Inicialmente o artigo examina os diferentes vetores que na França permitiram a produção de um saber específico embasado nos sistemas educativos europeus. Em seguida se analisa o papel dos reformadores franceses no seio do movimento internacional de reforma da instrução pública, em especial, no contexto de congressos de ensino, das seções escolares das exposições universais e das primeiras redes mundiais criadas na virada do século. Trata, enfim, das diferentes reapropriações dos modelos estrangeiros na França, notadamente quando surgiram as reformas do ensino primário e secundário. Mostrando as diferentes estratégias de escalas que se operam entre as dimensões nacionais e internacionais, pretende-se fornecer pistas de pesquisa para repensar a história da escola republicana.
Palavras-chave: FrançaFrança,escola republicanaescola republicana,internacionalizaçãointernacionalização,circulação de discursoscirculação de discursos.
Abstract: The present article proposes a reflection on the ways in which the international circulation of pedagogical ideas structured the elaboration of the French school system at the end of the 19th Century. Although often associated with the process of nationalizing society, the school of the Third Republic was actually constructed according to foreign models and examples. The article starts by looking at the different vectors that, in France, enabled producing specific knowledge based on the European educational systems. Next the role of the French reformers is analyzed, within the international movement of public education reform, especially in the context of congresses of education, in the school sections of universal exhibitions and of the first worldwide networks created at the turn of the century. Finally, it discusses the different reappropriations of the foreign models in France, especially when the primary and secondary education reforms began. Showing the different strategies of scales that operate between the national and international dimensions, it is intended to supply clues about the research to rethink the history of the republican school.
Key-words: France, republican school, internationalization, circulation of discourses.
Resumen: En este artículo se propone una reflexión sobre las formas en que las corrientes corrientes pedagógicas internacionales influyeron en la estructura y organización del sistema escolar francés en el final del siglo 19. Aunque frecuentemente se asocia con el proceso de nacionalización de la sociedad, la escuela de la Tercera República se construyó, de hecho, siguiendo modelos y ejemplos extranjeros. Inicialmente, el artículo examina los diferentes vectores en Francia que han permitido la producción de un conocimiento específico sobre los sistemas educativos europeos. A continuación, se examina el papel de los reformadores franceses dentro del movimiento internacional por la reforma de la educación pública, especialmente el contexto de congresos de enseñanza, de las secciones de la escuela de las exposiciones universales y las primeras redes globales creadas en el cambio de siglo. Trata, al final, de las diferentes reapropiaciones de modelos extranjeros en Francia, sobre todo cuando llegó a las reformas de la enseñanza primaria y secundaria. Mostrando las diferentes escalas de estrategias que operan entre las dimensiones nacionales e internacionales, se pretende dar pistas de investigación para repensar la historia de la escuela republicana.
Palabras-clave: Francia, escuela republicana, internacionalización, circulación de discursos.
Artigos
A FRANÇA, A ESCOLA REPUBLICANA E O EXTERIOR: PERSPECTIVAS PARA UMA HISTÓRIA INTERNACIONAL DA EDUCAÇÃO NO SÉCULO 19
FRANCE, THE REPUBLICAN SCHOOL AND FOREIGN MODELS: PERSPECTIVES FOR AN INTERNATIONAL HISTORY OF EDUCATION IN THE 19TH CENTURY
FRANCIA, LA ESCUELA REPUBLICANA Y EL EXTRANJERO: PERSPECTIVAS DE LA HISTORIA INTERNACIONAL DE EDUCACIÓN EN EL SIGLO 19
Recepção: 09 Maio 2016
Aprovação: 23 Julho 2016
"Cada vez mais os países procuram no exterior informações sobre as políticas e práticas reputadas mais eficientes. Na economia globalizada, efetivamente, o sucesso não é mais medido apenas em função dos critérios nacionais, mas é também em função dos sistemas de educação de maior sucesso que se tornam rapidamente melhores" (OCDE, 2014, p. 3). Essa declaração de Angel Gurria, secretário geral da OCDE, resume bem as razões pelas quais o Programa Internacional para Avaliação de Alunos - Pisa -, criado no início dos anos 2000, se impôs como referência indispensável no campo educativo.
A comparação entre países tornou-se uma variável que influencia consideravelmente a elaboração de políticas públicas nacionais. Por isso, a publicação dos resultados desses estudos trimestrais que visam à avaliação do desempenho dos alunos nas áreas da leitura, ciências e matemática suscita numerosas controvérsias. Na França, por exemplo, historiadores como Antoine Prost (2013) não hesitaram em denunciar o que lhes parecia uma baixa real de nível. Outros viram nesses resultados a confirmação do que Christian Baudelot e Roger Establet (2009) definem como o elitismo republicano, isto é, o fato que a França aparece como um dos países cuja origem familiar e social dos alunos pesa consideravelmente no sucesso escolar.
O exemplo dos exames, principalmente o Pisa, é particularmente representativo de uma tendência que afeta consideravelmente o mundo da educação, isto é, a obsessão por todo tipo de rankings, de prêmios e de classificações internacionais. Esses são utilizados para medir e hierarquizar não somente o desempenho dos alunos, mas também das revistas acadêmicas e das universidades. Poder-se-ia discutir por muito tempo sobre a pertinência desses métodos de avaliação, mas o fato é que a obsessão por todo tipo de regressão do nível escolar dos alunos ou das universidades é seguidamente objeto de debates, apelos e alertas, tanto na França, quanto em outros países. Ora, é interessante sublinhar que esse debate bem contemporâneo sobre a validade, a pertinência e os usos sociopolíticos de indicadores que permitem avaliar a qualidade da educação possui uma profundidade histórica. É possível mesmo ir mais longe, afirmando que essa obsessão pelos rankings, essa necessidade de medir e de comparar as performances educativas entre os países é um fenômeno antigo. Encontramos sua origem no contexto particular do século 19, no momento em que as nações ocidentais se engajam simultaneamente na elaboração dos sistemas escolares modernos, criam e alimentam um vasto sistema de intercâmbios e de observações mútuas.
Tomando, assim, o exemplo da França, o objetivo do presente artigo é de propor perspectivas de pesquisa para uma história internacional da educação. Trata-se, mais precisamente, de mostrar como o contato internacional e o recurso à comparação - tão presentes nos debates públicos de hoje - constituem uma dimensão particularmente importante no processo de construção do sistema escolar moderno no século 19. O problema é de saber em que medida as experiências referentes à instrução pública efetuadas em outros países ocidentais orientaram os debates na Terceira República. Para responder a essa questão focaliza-se as reformas do ensino primário e secundário que constituem um observatório privilegiado para captar esses fenômenos. Isso por duas razões: por um lado porque esses debates, principalmente aqueles relativos à instrução obrigatória ou à modernização do ensino secundário, se inscrevem num contexto internacional e mobilizam, de uma maneira permanente, as referências estrangeiras. Por outro porque, comparando essas duas áreas, é possível esclarecer a diversidade dos costumes estrangeiros e as diferentes relações que os meios reformadores franceses conservam em relação às experiências internacionais.
Esta perspectiva de pesquisa repousa em uma mudança na escala da análise histórica. Efetivamente convém lembrar que do ponto de vista historiográfico a afirmação do modelo do estado-nação no século 19 teve como consequência impor o espaço nacional como quadro de referência dominante para estudar a história da educação. Isso não é surpreendente. Nessa época a escola tornou-se um meio para fixar a nação (Prost, 2010; Falaize, Heimberg, Loubes, 2013). Como demonstraram alguns historiadores - Eric Hobsbawm (1992) ou Ernest Gellner (1989) - essa instituição é um dos vetores pelos quais se inventa, se materializa e se consolida a ideia nacional. Os livros escolares da época - à imagem do Le tour de la France par deux enfants - são, nesse sentido, um exemplo paradigmático da função nacionalizante das políticas (Cabanel, 2010).
Essa força do binômio escola-nação foi progressivamente debatida pela historiografia a partir dos anos 1990. No caso francês os trabalhos de Jean-François Chanet (1996) e de Anne-Marie Thiesse (1997; 2001) revelam, por exemplo, a complexidade dessa relação. Na Terceira República a escola não age sempre como um rolo compressor das diferenças para homogeneizar e uniformizar a nação (Chanet, 1996 Thiesse, 1997). O trabalho cotidiano nas aulas, a formação dos professores e mesmo os livros escolares demonstram que essa se adapta às particularidades regionais e locais, na verdade, ela opera uma "patrimonialização das identidades locais a fim de valorizar a relação do indivíduo a seu meio imediato sem conflito com a integração nacional" (Thiesse, 1997, p. 120).
Trata-se de prolongar esse trabalho de desconstrução anulando a perspectiva, reconsiderando, então, a história da educação na França no fim do século 19. A ideia consiste em fazer um desvio pelo mundial a fim de examinar a relação que a escola francesa - e, de uma maneira mais ampla, o processo de nacionalização do sistema escolar - mantém com o exterior. Para isso convém deslocar os debates franceses para os circuitos europeus das ideias pedagógicas do século 19 e avaliar o papel que a dimensão internacional pode desempenhar na elaboração de um modelo francês de instrução pública (Chapoulie, 2010).
A questão de saber em que medida as construções identitárias são tributárias de contatos e circulações mundiais se inscreve num debate historiográfico mais amplo e foi objeto de numerosos trabalhos, notadamente no contexto chamado virada transnacional da pesquisa histórica (Patel, 2015; Saunier, 2013, Clavin, 2005). Anne-Marie Thiesse (2001), na sua obra sobre a criação das identidades nacionais na Europa, demonstrou, por exemplo, que o modelo de estado-nação seria ele mesmo um modelo cultural transnacional, pois os procedimentos da elaboração de entidades transpõem fronteiras e, posteriormente, se modelam segundo os contextos da recepção. Do mesmo modo, a construção dos sistemas escolares modernos no século 19 é caracterizada por projetos de reformas que suscitam uma série de questionamentos e desafios comuns. Os países ocidentais devem, de fato, enfrentar problemas similares, suscitados pela construção do estado-nação, o crescimento demográfico, a industrialização, os movimentos migratórios ou ainda a urbanização (Osterhammel, 2014).
Esses fenômenos impõem a reconfiguração do processo de socialização das novas gerações e a criação de estruturas que respondam a novas exigências educativas. Para isso os reformadores escrutam as realizações de seus vizinhos e observam com atenção as experiências em curso. O processo reformador que leva à instauração de um sistema escolar público, na maior parte dos países ocidentais, se caracteriza por intercâmbios, circulações e contatos não fortuitos entre as nações (Hofstetter, Droux, 2015; Caruso e al., 2013; Schriewer, 2007; Fuchs, 2006; Charle, Schriewer, Wagner, 2004; Caruso, Tenorth, 2002). Reproduzindo uma famosa fórmula de Anne-Marie Thiesse (2001), não haveria desde então nada mais internacional do que a definição das políticas escolares nacionais.
O caso francês ilustra muito bem as formas e as lógicas desse processo vasto e complexo, que é possível qualificar como a globalização da reforma escolar europeia (Geyer, Paulmann, 2008). Três dinâmicas especiais merecem serem estudadas com mais atenção.
Em primeiro lugar convém examinar o conjunto das atividades que ao longo do século 19 visaram a produzir e acumular um saber sobre o exterior. Um dos exemplos mais representativos é, sem dúvida, constituído pelas missões pedagógicas. A partir da metade do século 19 o ministério francês da instrução pública encarregou um número expressivo de atores, na maioria professores universitários e inspetores escolares, de efetuarem viagens em diversos países com o intuito de estudar os novos procedimentos pedagógicos, os diferentes problemas relacionados com a instrução pública e as diversas soluções ali encontradas. Eles deviam inclusive fazer uma reflexão sobre as possíveis importações aplicáveis ao sistema escolar nacional. Trata-se de uma prática que começou no início do século 19, tal como a viagem bem conhecida de Victor Cousin (1832) à Prússia em 1831. Essa prática se intensificou a partir dos anos 1870 e só foi interrompida pelo primeiro conflito mundial.
Foram mais ou menos 130 missões entre 1842 e 1914 (Matasci, 2010). A Alemanha foi o país mais procurado, seguido de perto pelos Estados Unidos, a Suíça, a Inglaterra, os países escandinavos e a Itália. A importância da Alemanha não é surpreendente, pois, ao longo do século 19 ela constitui um verdadeiro ponto de referência para bom número de reformadores franceses e europeus (Espagne, Werner, 1987). Esse país fascinava pelo prestígio de suas universidades, pelo modelo de Humboldet (Charle, 1994; Schalenberg, 2003; Schwinges, 2001), mas também em razão de suas escolas primárias e da modernidade de seu ensino secundário. Vetor maior da circulação das ideias pedagógicas, as missões desempenham uma função importante. Elas permitiram a produção de um leque de pareceres sobre os sistemas escolares estrangeiros. Responderam, assim, ao desejo de procurar nas experiências mundiais exemplos, modelos ou argumentos para justificar e legitimar propostas de reformas no plano nacional. As fontes da época avançam essa ideia de maneira bem explicita.
Os relatórios das missões ilustram bem claramente a necessidade de aprender com o exterior e de extrair das experiências de outros países soluções aos problemas internos. De volta de uma viagem à Alemanha, no fim dos anos 1860, o inspetor da instrução pública Guillaume Jost descreveu nesses termos as impressões suscitadas pela sua estada: "Seja qual for a diferente situação em que se encontram as escolas aquém ou além do Reno, nós desejamos conhecer profundamente a organização pedagógica da Alemanha para sabermos tudo e, se possível, reter o que é bom" (AN, F17/10799). Do mesmo modo, ao abordar sobre a Suíça o professor da Universidade de Montpellier, J.-B. Soussangrives, trouxe de sua viagem "a impressão geral de que temos muito a copiar da Suíça pedagógica", pois esse país constituiria "um tipo de exposição escolar permanente onde toda a Europa se encontra e que nós poderíamos consultar muito atentivamente" (AN, F17/12340).
As citações poderiam ser muito numerosas, mas basta salientar que o estudo dessas missões permite captar como se elabora concretamente um saber sobre os sistemas escolares estrangeiros. Trata-se, aliás, de uma prática que não é exclusiva da França, ela é encontrada igualmente em outros países como na Alemanha (Drewek, 2004), na Inglaterra (Phillips, 2001, 2000), na Espanha Otero-Urtaza, 2012, 2007), bem como no Japão (Duke, 2009) e na América Latina (Gondra, Sily, 2015; Camara Bastos, 2002, 2000). As informações recolhidas são restituídas sob diversas formas - relatório de missões, folhetos, artigos de revistas - mas também em obras de síntese, como a aquela publicada pelo famoso estatístico e professor do Collège de France Émile Levasseur, em 1897.
Na obra L'enseignement primaire dans les pays civilisés (1897) ele compila uma quantidade impressionante de informações históricas, legislativas e estatísticas sobre diversos países do mundo. Essa produção de saber passa igualmente por outro caminho. O Museu Pedagógico, fundado em Paris em 1879, centraliza todo tipo de documentação e objetos provindos do exterior (Fontaine, Matasci, 2015) e certas revistas da época, como a Revue Pédagogique ou a Revue Internationale de L'enseignement, que estabelecem um sistema de correspondentes estrangeiros muito denso e ramificado (Ognier, 1988; Fuchs, Drewek, Zimmer-Müller, 2010).
Na segunda metade do século 19 se desenvolveram, assim, uma série de práticas que alimentam um verdadeiro regime circulatório (Saunier, 2008) que permitiu aos reformadores franceses integrar nos seus discursos um vasto horizonte de referências internacionais. Essas atividades mobilizam o estrangeiro em função das necessidades internas ditadas pelas reformas escolares da época num contexto - não devemos esquecer - de nacionalização do sistema educativo.
Essas dinâmicas de circulação servem não somente para uma ótica de produção e de constituição de um saber, mas também à promoção do intercâmbio e até mesmo à cooperação mundial. Os reformadores franceses são efetivamente muito ativos no seio do movimento de reforma da instrução pública, criada na Europa na segunda metade do século 19, e que se dota progressivamente de estruturas próprias permanentes.
O papel da França pode ser estudado, em primeiro lugar, sob o prisma das seções escolares das exposições universais. Entre 1851 e 1915 acontecem umas vinte exposições importantes, frequentadas por milhões de visitantes, cujo objetivo é mostrar a melhoria e o progresso constantes das atividades humanas em especial nos campos industriais e tecnológicos. A partir dos anos 1860 eventos dedicados à educação e ao ensino são regularmente organizados (Dittrich, 2010; Grosvenor, 2005). Os países expõem ali documentos e objetos que possam mostrar o grau de desenvolvimento da instrução do país: textos legislativos, trabalhos de alunos, mobiliário escolar, projetos arquitetônicos de escolas, programas de estudo, livros escolares, estatísticas. As exposições constituem, assim, lugares onde é possível captar, para retomar uma noção de Martin Lawn (2009) a materialidade da educação. Essa vocação especial foi bem resumida por Ferdinand Buisson (1875) em seu relatório sobre as exposições de Viena em 1873: "Se há um serviço a esperar das exposições escolares universais é o de concentrar, em um determinado momento, todos os documentos gerais necessários para estabelecer de uma maneira oficial o estado da instrução e seus progressos em todas as partes do mundo civilizado" (p. 335).
Esses eventos testemunham uma dupla dinâmica. Por um lado o aprendizado, pois os reformadores de todos os países tinham a oportunidade de tomar conhecimento da evolução escolar internacional. Por outro a auto-representação. De fato, a França participou, de uma maneira muito especial, das exposições com o objetivo explícito de contribuir com certa diplomacia cultural, passando pela evidência das pretendidas conquistas escolares da Terceira República e respondendo à vontade de mostrar mundialmente a imagem de um país que investe na educação.
A essas duas dinâmicas se acrescenta uma terceira, centralizada na cooperação e materializada pelos congressos internacionais. Pelo menos uns vinte encontros destinados especialmente à discussão das questões educativas foram organizados no fim do século 19, muitas vezes em paralelo às exposições universais (Rabault-Feuerhahn, Feuerhahn, 2010; Rasmussen, 1995). Resultado da iniciativa das ligas de ensino ou de associações pedagógicas eles receberam a ajuda dos poderes públicos e conseguiram agrupar um número considerável de participantes oriundos de diversos países, de dezenas a milhares de inscritos (Matasci, 2015; Fuchs, 2004). Os congressos constituem verdadeiras plataformas de discussão e de comparação, espaços de elaboração e de expressão de uma demanda social. Essa função foi retomada pelos organizadores desses eventos, como em 1889, por ocasião da sessão de abertura do Congresso Internacional do Ensino Secundário em Paris: "Os espíritos de elite em todos países compreendem que, no interesse da comunidade política à qual eles pertencem, é importante não ficarem alheios às experiências realizadas fora [...] e que os intercâmbios de um país a outro se tornaram uma condição essencial de prosperidade e de progresso" (Cies, 1890, p. 5).
Além de certa retórica essa citação salienta a importância dos intercâmbios internacionais e a necessidade, exposta muito claramente, de se comparar e de se inspirar nas experiências estrangeiras para atenuar os defeitos de um sistema escolar ou para discutir problemas comuns aos países ocidentais.
Convém, enfim, precisar que todas essas atividades - congressos, exposições, missões pedagógicas - permanecem relativamente informais e pouco codificadas ao longo do século 19. A dinâmica dos intercâmbios e dos contatos internacionais começou, entretanto, a mudar na virada do século quando foram criados os primeiros departamentos e federações internacionais na área da educação. A gênese das primeiras redes permanentes se inscreveu num movimento de institucionalização que a historiadora Anne Rasmussen (2001) definiu como virada organizadora do internacionalismo.
No que diz respeito à instrução pública convém assinalar a criação de organismos como o Comitê Permanente dos Congressos Internacionais do Ensino Técnico, fundado em Bordeaux, em 1895, e composto por especialistas de grande nome. Ou ainda o Bureau Internacional do Ensino Secundário (1912), que são federações que reúnem associações nacionais de professores de diversos países europeus. Bem mais do que uma reflexão científica sobre os problemas educativos, essas redes procuraram promover e defender os interesses corporativistas dessas categorias profissionais. Eles utilizavam a centralização e a divulgação das informações em uma ótica bem mais sindicalista e não necessariamente com o objetivo de harmonizar ou uniformizar os sistemas escolares. Nesse caso, o trabalho internacional vem em apoio a estratégias reformadoras manifestadas no plano nacional, ilustrando assim a diversidade das necessidades às quais ele corresponde.
As duas primeiras partes do presente artigo apresentam uma cartografia sintética, mas relativamente completa dos vetores e das formas do processo de internacionalização da reforma escolar na França. Todavia, a simples identificação de uma série de atividades, de atores e de temas relativos ao contexto mundial permanece muito insatisfatória sob o ponto de vista analítico. É preciso questionar os usos e o impacto do conjunto das conexões internacionais criadas pelos reformadores franceses. A reapropriação dos modelos estrangeiros é, assim, uma aposta central. Constitui, aliás, um problema metodológico maior da história dita transnacional. Num artigo recente Heinz-Gerhard Haupt (2011) lembra que "é importante demonstrar o quanto a circulação transformou ou não o contexto, os valores, as estruturas e os termos do debate nas sociedades às quais ela foi destinada" (p. 180). Torna-se indispensável não limitar o estudo a simples identificação das práticas que permitem a circulação e a mobilização dos modelos escolares e propor pistas para refletir sobre sua integração nos debates e políticas educativas do fim do século 19 (Phillips, Ochs, 2004; Steiner-Khamsi, 2004).
O exame das reformas francesas do ensino primário e secundário permite esclarecer as diferentes formas de recepção e de reapropriação dos modelos estrangeiros. Esses exemplos ilustram particularmente dois usos possíveis da referência estrangeira e da comparação internacional.
Segundo uma fórmula geralmente admitida foi o professor prussiano que ganhou a batalha de Sedan em 1870 (Trouillet, 1991). Esta batalha marca a derrota da França contra a Prússia e constitui o prelúdio da bem conhecida crise alemã do pensamento francês, admiravelmente narrada por Claude Digeon (1959). Ora, a França não descobriu a Alemanha escolar após Sedan. O que se transforma é a relação ditocômica e aparentemente paradoxal de rivalidade e de imitação em relação ao vizinho. Por um lado é com patriotismo e com espírito de revanche que os reformadores franceses se propõem a restabelecer o país. Por outro lado é preciso aprender com o inimigo, pois essa mudança passa pela instrução pública, área na qual a Alemanha suscita há muito tempo uma inegável fascinação. A referência a esse país exerceria até mesmo um efeito estruturante sobre os debates franceses, como salienta o inspetor Alfred Picard em 1889:
Repetiremos como um axioma que, se fomos derrotados por tropas superiores em número e comando, devemos isso à inferioridade das nossas escolas. Esse sentimento geral, seja qual for o valor, exerceu uma ação poderosa sobre o desenvolvimento da instrução na França nos anos posteriores. (Picard, 1890, p. 357)
Assim, os debates que precedem o conjunto de medidas tomadas pelos republicanos após sua chegada ao governo em 1879, sendo as mais conhecidas as leis Ferry que instauraram, em 1881 e 1882, a instrução gratuita, obrigatória e laica, mobilizando de maneira permanente a comparação internacional. É, mais precisamente, a ideia de um atraso escolar da França que é especialmente utilizado como argumento de legitimação. Em relação a isso, a saída da guerra franco-prussiana acelerou uma dinâmica já bem instalada. De fato, muito cedo, desde os anos 1830, se desenvolveu o sentimento, no meio reformador, que a França se encontraria atrasada no plano educativo. Isso não se limitaria somente à Alemanha, mas abrangeria numerosos outros países ocidentais: um raciocínio que aparece seguidamente nos relatórios feitos pelos encarregados das missões ou das exposições universais.
Esse suposto atraso manifestar-se-ia especialmente nos dispositivos legislativos, reguladores da instrução pública, sobre a questão da obrigação escolar. Indicador seguidamente associado ao grau de desenvolvimento educativo de um país, esse princípio foi introduzido na Prússia a partir do fim do século 18 e já estava em vigor, ou, em todo caso, já fazia parte dos textos legislativos nos diferentes cantões suíços, a nível federal, em 1874, na Grande Bretanha (1870), na Itália (1877) e em alguns Estados norte-americanos bem antes das leis Ferry (Soysal, Strang, 1989; Boli, 1987; Benavot, Resnik, Corrales, 2006). Na verdade, a adoção desse princípio pode levar a realidades bem diferentes (Caspard, 1999). Ela é, entretanto, simbólica na medida em que marca uma mudança na maneira de tratar a escolarização (Novoa, 1998).
Compreendemos, assim, que nos anos 1870, no momento em que a reforma da instrução pública se tornou uma urgência nacional - porque se tratava de reerguer a França - a precocidade relativa de alguns países na instalação da instrução obrigatória constitui um argumento importante para seus parceiros. A evocação de um suposto atraso escolar se inscreve, então, em uma estratégia utilizada pelos reformadores republicanos e aparece constantemente nos debates sobre a reforma do ensino primário:
Será que devemos ficar indiferentes, conforme o exemplo que nos é dado por tantas nações com diversas instituições sociais, formas de governo e, entretanto, tão unidas na organização e na prática do ensino obrigatório? Monarquias, repúblicas, estados constitucionais e parlamentares: a Inglaterra, a Prússia, a Alemanha, a Dinamarca, a Suécia, a Noruega, a Áustria-Ungria, a Suíça, a Espanha, a Itália, Portugal, uma grande parte dos Estados Unidos, o Canadá, o Brasil e as colônias inglesas da Austrália, de perto e de longe, no Antigo e no Novo Mundo, nas leis, nos costumes, nós encontramos a instituição do ensino obrigatório aceito, praticado como condição de desenvolvimento intelectual e moral, como garantia de segurança e de poder. A obrigação se tornou regra: será que a República francesa deve ser uma exceção? (Rendu, 1883, p. 232)
A ideia fundamental é que a França deve integrar um movimento global, apresentado como universal, inelutável e consubstancial à modernidade. Com a questão da instrução obrigatória, outros indícios, como o número de escolas, as despesas para a educação pública e a taxa de analfabetismo reforçam o sentimento que o país deve se liberar de seu estado de inferioridade e se conformar com uma verdadeira conjuntura reformadora mundial. Apoiada num trabalho de coleta e de análise estatística que contribui para objetivá-la, essa relação constante com o estrangeiro participa da construção de uma urgência pública e consegue por isso orientar a agenda de reformas (Matasci, 2014). As leis Ferry constituem, assim, a concretização de um processo reformador durante o qual a evolução escolar dos países estrangeiros exerce uma pressão importante.
Esse processo é, evidentemente, complexo. Não devemos esquecer que esses dispositivos legislativos respondem também a uma visão muito precisa, específica aos projetos republicano e tributário no contexto francês. Basta pensar na questão da laicidade seguidamente associada à ideia de exceção francesa. Certamente é interessante observar que o desafio do ensino laico é também objeto de circulações e de comparações. Todavia, sobre essa questão os reformadores republicanos não conseguiram encontrar modelos ou exemplos estrangeiros convincentes, tendo em vista que sua visão de laicidade é bem mais radical daquela que já estava em vigor em outros países. Nesse caso a comparação permite reforçar o que é conscientemente apresentado como uma especificidade nacional. Assim, a partir do final dos anos 1880, consolidou-se, no contexto internacional, um modelo francês. Nos congressos e exposições universais o tríptico obrigação-gratuidade-laicidade foi realmente apresentado como o fundamento de um verdadeiro modelo francês, capaz mesmo de fazer concorrência com a Alemanha, bem como de derrubar a postura de aprendizado e a retórica do atraso escolar que tinham marcado por muito tempo os debates na França.
O segundo exemplo se refere à utilização da referência estrangeira e da comparação internacional como estratégia de aprendizagem. Em relação ao ensino primário as reformas do ensino secundário permitem evidenciar dinâmicas de transferência mais precisas que questionam não somente a divulgação de um modelo, mas, também e principalmente, sua representação. De fato, o processo reformador não repousa sobre o argumento do atraso escolar, mas sobre a necessidade de introduzir fórmulas julgadas mais inovadoras em relação às novas exigências sociais e econômicas. Tudo isso se manifestou de uma maneira particularmente esclarecedora nos debates relativos à modernização do ensino secundário.
Na segunda metade do século 19 os países europeus deviam afrontar um problema comum: adaptar as estruturas escolares, incluindo aquelas consideradas formadoras de elites, às novas exigências econômicas ditadas pelo processo de industrialização e de expansão do comércio internacional (Ringer, Müller, Brian, 1987). Segundo os contemporâneos o ensino secundário atravessaria um período de profunda crise. Inadaptados aos tempos modernos os estudos clássicos, notadamente o ensino do Latim e do Grego, são questionados em proveito de um interesse mais relevante pelas ciências e pelas línguas vivas. Demonstrando a vontade de aumentar a oferta educativa para corresponder às necessidades formativas amplas das classes médias, esse processo foi analisado por Fritz Ringer (2003). Para descrever esses fenômenos, ele propôs, principalmente, a noção de "segmentação", isto é, "a subdivisão dos sistemas de ensino em escolas e programas paralelos distintos pelo currículo e pela origem social dos alunos" (p. 6).
Na França a crise do ensino secundário se manifestou por uma estagnação de efetivos, a instabilidade dos programas e pelas polêmicas nutridas em torno de sua função social e econômica (Prost, 2008). Nas três últimas décadas do século 19 esse ensino foi objeto de reformas incessantes. Ora, nesse contexto, a referência à Alemanha estrutura particularmente os debates (Mombert, 2001). Esse país, de fato, é mobilizado não somente enquanto modelo de sucesso científico a nível universitário, mas também como modelo específico no ensino secundário e técnico.
É precisamente o exemplo da Realschule - escola real - que constitui uma das pedras angulares da comparação e dos intercâmbios franco-alemães nesse período. Criada no fim do século 18 como opção paralela ao ensino secundário clássico dispensado pelos Gymnasien, garantindo o acesso às universidades (1882), ela é considerada uma escola teórica, mas induzida a "satisfazer as necessidades da burguesia que se tornou mais forte e oferecer uma educação apropriada às condições de existência das classes médias às quais a Volksschule [escola primária] oferecia pouquíssimo, ao passo que a escola latina [Gymnasium] lhes oferecia demais e que seu ensino não tinha utilidade prática" (Rein, 1911, s/p)1. A Alemanha proporia, então, um modelo de formação real considerado bem mais em conformidade com as exigências das sociedades modernas, em razão, notadamente, do lugar dado às línguas vivas e às ciências, preservando os privilégios sociais e simbólicos associados aos estudos clássicos. Essa diferenciação pedagógica e social no nível secundário foi exaltada diversas vezes pelos encarregados de missão franceses que tiveram a possibilidade de visitar esses estabelecimentos:
Os alemães do norte estão orgulhosos de sua organização de ensino e eles têm razão. Gymnasien que dão uma instrução científica desenvolvida adequada e escolas reais de onde a cultura clássica não está excluída se dividem sem inveja favores do público e incentivos do Estado. Escolas de diversas categorias correspondem às necessidades variadas dos diferentes segmentos da sociedade. (Blerzy, 1869, p. 123)
A referência constante à Realschule acompanha, assim, o longo processo de reformas do ensino secundário francês. Ela contribui, principalmente, a legitimar a elaboração de uma nova organização pedagógica que prevê, com os liceus e os colégios, a criação de uma especialização chamada de Ensino Especial em 1865-1866 e Moderna a partir de 1891. A esse respeito é particularmente interessante indagar as dinâmicas dessa recepção, que é seletiva e parcial. De fato, a importação em bloco desse modelo não é jamais desejada. Como frisou Christophe Charle (2003), para o sistema universitário "no seio do modelo germânico, os reformadores só conservam os elementos compatíveis com as estruturas francesas [...] excluindo o que poderia passar por uma cópia servil" (p. 9). Não é questão de imitar, mas de importar o que pode se adaptar aos "costumes e às instituições francesas" (Hippeau, 1872, p. 55).
Essa postura é claramente adiantada pelos reformadores da época, como por Benjamin Buisson (1896), particularmente ativo na organização das seções escolares francesas quando das exposições universais: "nossa intenção não é de propor a imitação servil nem a importação completa de nenhum dos costumes do estrangeiro, mas de provocar, pela comparação, reflexões que possam ser frutuosas" (p. 186). Por outro lado, o contexto cultural, político e religioso impede, complica ou diminui a tradução pura e simples dos métodos e das fórmulas escolares estrangeiras, especialmente alemães. Na França o regime administrativo do ensino secundário é, fundamentalmente, diferente daquele em vigor nos Estados da Alemanha. O ensino especial foi oferecido nos mesmos estabelecimentos que o ensino clássico, tornando-se difícil, então, a criação de escolas distintas, principalmente sob o ponto de vista financeiro - a Realschule é administrativa e pedagogicamente separada dos Gymnasien.
Além disso, o Estado não detinha o monopólio do ensino secundário. Uma separação administrativa do ensino público incorreria, deste modo, no perigo de conceder vantagens ao desenvolvimento das escolas particulares, muito prósperas na França no fim do século 19. É, aliás, com esse argumento que o deputado Charles-Maurice Couÿba excluiu, em 1901, a possibilidade de uma transferência do modelo da Realschule para a França: "No nosso país, com o regime de liberdade, veríamos certamente em todos os lugares onde o estabelecimento universitário, colégio ou liceu, não oferecesse diferentes formas de ensino secundário, se estabelecer e prosperar um estabelecimento livre" (p. 189). Se a Alemanha fornece, indiscutivelmente, um quadro de referência aos meios reformadores franceses, as importações - o impacto do modelo - são finalmente provindas unicamente dos elementos aceitáveis e transferíveis no contexto nacional.
Para concluir, dois pontos merecem ser evocados. Em primeiro lugar é preciso enfatizar que a dimensão internacional constitui para os reformadores franceses uma fonte que não é antagonista ou antinômica à construção de um sistema escolar nacional, portanto, à conservação e até mesmo ao reforço das identidades culturais. A passagem pelo internacional se explica menos pela vontade de promover a cooperação com outros países do que pela necessidade de resolver problemas internos. Aqui encontramos a lógica da internacionalização. A circulação das ideias e dos modelos - a abertura para impulsos exteriores, como observa Jürgen Schriewer (2004) - responde a desafios nacionais, ela trabalha, então, para transformar o contexto nacional.
O segundo ponto refere-se à natureza e à evolução do processo de internacionalização. Durante muito tempo demasiadamente informal e relativamente pouco estruturada, a virada organizadora, no início do século 20, é testemunha de uma primeira metamorfose desse processo. Essa evolução prefigura outras mudanças maiores que aconteceram, desta vez após a Primeira e Segunda Guerra mundial, com a criação e o desenvolvimento das organizações internacionais (Kott, 2011; Iriye, 2002). A ação desempenhada pelas organizações como o Bureau Internacional de Educação (1925), a Unesco (1945), ou mais recentemente pelo Banco Mundial e pela OCDE, marca uma profunda inflexão na maneira de pensar a educação em um mundo cada vez mais globalizado (Fuchs, Schriewer, 2007).
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