Acervos e documentos
A INSTRUCÇÃO PUBLICA: A REFORMA PELA FAMILIA, PELA PATRIA E PELA HUMANIDADE1
THE PUBLIC INSTRUCTION THE REFORM THE FAMILY, THE PATRIA AND FOR HUMANITY
Recepção: 26 Abril 2016
Nada de ensino obrigatorio, nem por um dia quanto mais por dez annos. Si a obrigatoriedade do ensino é cousa boa deve ser decretada ad perpetum reipublicae memoriam; si é ruim, como realmente o é, não deve ser tolerada um só dia, um só instante [...]. A acção do poder temporal cessa onde principia a acção individual e as relações da familia (Diário Popular, 8 jan., 1891).
Esse excerto, retirado de uma longa exposição em forma de artigo, do professor normalista José Feliciano de Oliveira, publicada no jornal Diário Popular, de 8 de janeiro de 1891, evidencia um dos momentos cruciais no que se refere ao debate que precedeu a primeira lei que reformou o ensino em São Paulo no regime republicano. Denominada à época de a grande reforma, suscitou intensas discussões, envolveu intelectuais, professores, políticos e outros sujeitos sociais, bem como comportou diferentes projetos de educação e visões de mundo para uma sociedade que votava grandes expectativas à República recém-proclamada.
A reforma foi promulgada pela lei n. 88, de 8 de setembro de 1892, e tinha como finalidade ampliar o acesso à escolarização formal. O sufrágio universal, adotado com a Constituição republicana de 14 de fevereiro de 1891, que estabelecia a alfabetização como condição para o exercício do voto, concorreu para ampliar o papel destinado à escola, levando à necessidade da extensão do ensino às massas populares. O modelo de escolas graduadas, o ensino simultâneo e método intuitivo se constituíram como importantes inovações naquele momento.
Pode-se afirmar que o ano de 1891, especialmente na imprensa paulista, concentrou uma intensidade debates voltados à reforma do ensino: jornais como Diário Popular, Correio Paulistano e o Estado de São Paulo se tornaram um espaço importante para a atuação dos professores públicos. Pouco referida na História da Educação, a atuação do professorado público paulista foi marcante na transição do Império para a República. Segundo Carvalho (2011), embora proclamada sem a iniciativa popular, a República despertou certo entusiasmo em algumas camadas sociais quanto às novas possibilidades de atuação. As expectativas de uma maior participação política também se fizeram sentir entre o professorado. Os jornais expressavam, em variadas notas e artigos, a visão corrente de professores, fossem da capital ou do interior, a despeito de suas distintas concepções de educação: de um Império que relegou a instrução popular a segundo plano e a de um regime sem realizações no campo da educação, visto como retrógrado, corrupto, opressor e que representava o velho, o atraso, em contraste com uma República democrática, que por meio da instrução pública levaria o povo a se autogovernar.
Logo após a proclamação os professores se organizaram em comissões para saudar o novo governo e para solicitar com urgência a reforma no Estado. O professor Carlos de Escobar, um dos integrantes da comissão escolhida pelos professores para representá-los diante a Junta Governativa, ao lado dos normalistas Arthur Breves, Pompeu Tomasini e Boa Nova, dirigiu-se ao palácio do governo no dia 18 de novembro, conforme noticiou o Correio Paulistano:
O Grêmio do Professorado [se] apresentou ao Governo Provisório da República, e pelo seu delegado, sr. Carlos Escobar, jurou em nome da Família da Pátria e da humanidade cumprir entusiasticamente o seu dever, estudando, ensinando e consolidando assim a República Federativa Brasileira. O sr. Prudente de Morais saudou a mocidade brasileira representada pelos professores públicos. (18 nov., 1889)
Poucos dias depois, outra comissão, formada estritamente de professoras, teve atitude semelhante e, num discurso proferido ao governo provisório, as normalistas Guilhermina Weltermer, Galdina Amália Lopes, Olímpia Amélia da Silva e P. Pettit ressaltaram a importância de que fossem construídos edifícios apropriados e em número suficiente para as escolas primárias e que se instituísse a equiparação de direitos e deveres entre os professores das diferentes categorias. Mais além, o papel social da mulher no novo regime político era reclamado pelas professoras:
Deixemos a vós os grandes empreendimentos: da vossa sabedoria depende achar os meios para arrancar a mulher brasileira ao acanhado molde em que até hoje está vazada a existência dela. Quiçá não haverá empreendimento mais urgente senão este, que deve mudar a posição social da cidadã, aumentando seu bem estar material e moral [...]. Ansiosas de caminhar por novos trilhos e guiadas por vossos acenos, vos saudamos em fraternal abraço e damos um viva à República. (Correio Paulistano, 29 nov., 1889)
Embora o debate sobre a reforma do ensino tenha se concentrado em 1891, já nos meses finais de 1889 vários escritos haviam sido publicados por professores nos jornais. Os textos ora estavam voltados à questão da obrigatoriedade, ora expressavam críticas à postura do governo quanto às condições de trabalho do professor. A necessidade de se tornar o ensino obrigatório dividiu a classe.
Nesse contexto de disputas pelos rumos que tomaria o projeto da reforma é que se inscreve o artigo do professor José Feliciano, publicado no Diário Popular. O professor normalista, autor do livro O ensino em São Paulo: algumas reminiscências (1932), já havia criticado a reforma da Escola Normal, empreendida pelo médico e educador Caetano de Campos no ano anterior, pelo fato de que, em sua visão, não adiantava modificarem-se os métodos de ensino sem alterar o pagamento dos professores e melhorar a sua formação2. Naquele momento se contrapunha às ideias defendidas pelo também normalista Arthur Breves, eleito deputado à Assembleia Constituinte e que teve um papel preponderante em toda a discussão sobre a reforma. Às vésperas do dia 15 de Novembro havia exposto a necessidade de se tornar o ensino obrigatório em carta constitucional, bem como defendera o fim do ensino religioso nas escolas da Província:
O ensino obrigatório é o único meio de tirar o professor dessa dependência em que está para com os alunos, dependência que o avilta, que o induz a um adulador [...]. Cada chefe de família deve compreender que a sua indiferença para com a instrução popular está cavando a ruína de seus filhos [...]. A secularização do ensino é uma das reformas mais urgentes, que já não está em prática certamente por causa desta mania de nossos legisladores, de adiar as questões. (Diário Popular, 3 out., 1889.)
Para Breves a instrução pública não podia estar separada da política, pois era o caminho para melhorar o "caráter nacional" (p. 2) do país, uma vez que sua disseminação entre a população garantiria a independência do voto. Seu pensamento remetia às ideias defendidas pelos propagandistas da República, como Silva Jardim e Lopes Trovão, que viam no novo regime o ingresso do povo na política (Carvalho, 2006).
Em 5 de janeiro de 1891 o Grêmio de Professores da Escola Normal encaminhou um documento denominado Plano de ensino a Jorge Tibiriçá. O texto, constando de dezenove páginas, foi enviado à futura comissão de Instrução Pública3. O plano de ensino gerou polêmica na imprensa, desencadeando a publicação de diversos artigos pelos quais se expressava o posicionamento de vários professores.
Logo após a publicação do documento no Diário Popular, José Feliciano apresentou um artigo contendo um plano de ensino paralelo ao do Grêmio, completamente diferente das propostas contidas naquele. Lançando uma série de artigos intitulados Instrução pública - a obrigatoriedade do ensino, defendia que era urgente e necessária uma reforma do ensino, dadas as péssimas condições em que este se encontrava, no entanto, a obrigatoriedade se constituiria em um perigo que ameaçava a liberdade espiritual e o governo não deveria jamais intervir naquele domínio. Em sua visão, os limites de ação do governo estavam circunscritos ao domínio temporal e, para melhor desenvolver este ofício, deveria deixar a reorganização das opiniões e dos costumes à livre concorrência das doutrinas capazes de realizá-las. Acreditava que para que o governo obrigasse os cidadãos a se instruírem segundo certo sistema ou doutrina, era antes necessário provar que tal sistema ou doutrina fossem os únicos capazes de produzir bons cidadãos. Caberia, outrossim, ao pai ou mãe de família fornecer ao seu filho a instrução que melhor lhe aprouvesse.
Feliciano também rebatia um dos argumentos defendidos pelos partidários da obrigatoriedade: o de que, uma vez que a ignorância era a fonte causadora de todos os vícios e crimes, o ensino obrigatório contribuiria para reduzi-los, pois tornava o indivíduo esclarecido e mais consciente de suas ações: "Consultem-se as estatísticas e veja-se em geral os maiores perversos são gente lida e às vezes perleúda em várias letras" (Diário Popular, 27 jan., 1890, p. 1). Feliciano, assim como alguns positivistas chamados ortodoxos, eram contrários à obrigatoriedade no ensino primário. O seu pensamento estava consoante à concepção dos seguidores do Apostolado Positivista de Raimundo Teixeira Mendes e de Miguel Lemos. Ambos haviam defendido esta ideia em circulares da Igreja do Apostolado como, por exemplo, no boletim Exposição da doutrina positivista em relação à obrigatoriedade do ensino e no Bases de uma constituição ditatorial federativa para a república brasileira. Teixeira Mendes já havia se posicionado contrário à obrigatoriedade de ensino para crianças de 7 a 14 anos, decretada no Paraná, em 18864.
O artigo de José Feliciano obteve grande repercussão e dividiu as opiniões de parte do professorado público, no entanto, a maioria se voltou a favor da obrigatoriedade e, acompanhando os debates na Câmara, ansiavam que os esforços se concentrassem no ensino primário5.
Localizado no Arquivo Público do Estado de São Paulo (34/0017), o artigo publicado pelo normalista se constitui em documento importante, pois expressa os conflitos e embates ocorridos naquele momento, ao passo que problematiza a visão corrente na historiografia da educação de que a reforma da instrução pública se constituiu em um projeto homogêneo resultado do consenso entre uma elite intelectual e o Estado6.
Cabe, ainda, considerar o papel importante que tiveram os professores positivistas ortodoxos. Embora tenham sido derrotados no que se refere à obrigatoriedade do ensino primário, algumas de suas ideias foram incorporadas à reforma, como a adoção de escolas ambulantes e as suas preocupações quanto à necessidade de prover o Estado de edifícios escolares para as escolas primárias7. Acredita-se que essa demanda influenciou fortemente o professorado paulista como um todo, que passou a defendê-la inconteste (Diário Popular, 11 out. 1891).
Ao se posicionarem contrários ao ensino obrigatório também apontavam para os limites de ação do Estado. Como garantir o acesso a todos? O professor Joaquim da Silveira expôs em nota que, para decretar a obrigatoriedade, seria preciso que se instituíssem profusamente escolas por todos os lugares e o governo deveria fornecer condições materiais necessárias às famílias pobres. Acreditava que a proposta de ensino de José Feliciano estava mais próximo da realidade da instrução pública paulista. O ponto principal que o fazia concordar com o colega era o fato de que a obrigatoriedade interferia na liberdade espiritual. O governo deveria apenas colocar o ensino à disposição de todos: "Não é uma verdadeira tirania obrigar um pai a mandar à escola o filho, embora não lhe mereça o professor nenhuma confiança, embora lhe repugne o programa oficial?" (Diário Popular, 28 jan., 1891).
Ciente da necessidade de ampliação da oferta de ensino José Feliciano apontava para a importância de se criarem escolas em todos os bairros, vilas e freguesias pelas representações feitas pela população. Pontos que não foram objeto de reflexão dos signatários do Plano de ensino do Grêmio e que permitem relativizar a ideia de que os seguidores do Apostolado estavam estritamente voltados a sua doutrina e não atentavam para as condições reais do ensino em São Paulo. Alguns anos posteriores, com as mudanças já em curso ocasionadas pela reforma, o projeto republicano de escolarização das massas enfrentou alguns obstáculos, como a não aceitação das escolas do Estado em alguns bairros por parte de imigrantes ou a resistência em se adotar o currículo escolar em algumas localidades, além do surgimento das escolas anarquistas, comportando projetos completamente distintos.
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