Resumo: Este texto reconhece uma dinâmica interna às instituições de ensino secundário no Império do Brasil. O seu desenvolvimento se dá por meio da observação da dinâmica pedagógica de três colégios considerados chave: o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, capital do Império; o Ginásio Baiano, de Salvador; e o Culto à Ciência, em Campinas. Tal dinâmica partilha elementos comuns, como a regularidade no ensino, a ênfase nas humanidades e o funcionamento em regime de internato, mas também possui variações que teriam relação com o contexto no qual cada colégio se insere. Assim, tomado de Ann Swidler, o conceito de repertório permite articular aspectos da cultura - neste caso, pedagógica - às dinâmicas políticas de cada contexto, iluminadas pela atuação de docentes como Abílio Borges e João Köpke.
Palavras-chave: educaçãoeducação,políticapolítica,mediaçõesmediações.
Abstract: This text recognizes an internal dynamics in secondary education institutions in the Brazilian Empire. Its development takes place through the observation of the pedagogical dynamics of three key schools: Colégio Pedro II, in Rio de Janeiro, capital of the Empire; Ginásio Baiano, in Salvador; and Culto à Ciência in Campinas. These dynamics share common elements, such as regularity in teaching, emphasis on the humanities and functioning in boarding school, but also has variations that would be related to the context in which each college is inserted. Thus, taken from Ann Swidler, the concept of repertoire allows articulating aspects of culture - in this case, pedagogical - to the political dynamics of each context, illuminated by the work of teachers such as Abílio Borges and João Köpke.
Keywords: education, politics, mediations.
Resumen: Este texto reconoce una dinámica interna en las instituciones de educación secundaria del imperio brasileño. Su desarrollo se realiza a través de la observación de la dinámica pedagógica de tres escuelas claves: el Colégio Pedro II, en Río de Janeiro, capital del Imperio; Ginásio Baiano, en Salvador; y Culto à Ciência en Campinas. Estas dinámicas comparten elementos comunes, como la regularidad en la enseñanza, el énfasis en las humanidades y el funcionamiento en el internado, pero también tiene variaciones que estarían relacionadas con el contexto en el que se inserta cada universidad. De este modo, tomado de Ann Swidler, el concepto de repertorio permite articular aspectos de la cultura - en este caso pedagógica - a la dinámica política de cada contexto, iluminada por el trabajo de profesores como Abílio Borges y João Köpke.
Palabras clave: educación, política, mediaciones.
Résumé: Ce texte reconnaît une dynamique interne dans les établissements d'enseignement secondaire de l'Empire brésilien. Son développement se fait par l'observation de la dynamique pédagogique de trois écoles clés: le Colégio Pedro II, à Rio de Janeiro, capitale de l'Empire; Ginásio Baiano, à Salvador; et Culto à Ciência à Campinas. Ces dynamiques partagent des éléments communs, tels que la régularité dans l'enseignement, l'accent sur les humanités et le fonctionnement en internat, mais aussi des variations qui seraient liées au contexte dans lequel chaque collège est inséré. Le concept de répertoire permet ainsi d'articuler des aspects de la culture - en l'occurrence pédagogique - à la dynamique politique de chaque contexte, éclairée par le travail d'enseignants comme Abílio Borges et João Köpke.
Mots-clés: éducation, politique, médiations.
ARTIGOS
CONTEXTOS, PRÁTICAS E INSTITUIÇÕES: O ENSINO SECUNDÁRIO E A ORGANIZAÇÃO DE REPERTÓRIOS PEDAGÓGICOS NO SEGUNDO REINADO
CONTEXTS, PRACTICES AND INSTITUTIONS: SECONDARY EDUCATION AND THE ORGANIZATION OF PEDAGOGICAL REPERTOIRES IN DOM PEDRO II´S REIGN IN BRAZIL
CONTEXTOS, PRÁCTICAS E INSTITUCIONES: EDUCACIÓN SECUNDARIA Y LA ORGANIZACIÓN DE REPERTORIOS PEDAGÓGICOS EN EL REINADO DE DON PEDRO II EN BRASIL
CONTEXTES, PRATIQUES ET INSTITUTIONS: L'ENSEIGNEMENT SECONDAIRE ET L'ORGANISATION DES REPERTOIRES PEDAGOGIQUES DANS LE REGNE DE DOM PEDRO II AU BRESIL
Recepção: 15 Janeiro 2017
Aprovação: 20 Fevereiro 2017
“Educar o povo”: o lema comum nos escritos sobre instrução no período imperial brasileiro tendeu a oscilações nas abordagens da historiografia.1 Ora o projeto educativo promovido pelo governo imperial parecia louvável, apesar de apresentar problemas pontuais, na esteira da discussão proposta por Fernando Azevedo em seu A Cultura Brasileira, cuja primeira edição é de 1943; ora ele careceria de amplitude, pois se resumiria a projetos sem efetivação, na visão de Maria José Garcia Werebe em texto sobre a educação no quarto volume do tomo II da História Geral da Civilização Brasileira, publicado em 1960. Dentre as leituras mais marcantes, ficou a que considerava o ensino secundário pautado por lógicas estranhas a ele, como a sua subordinação ao ensino superior, proposta de Maria de Lourdes Haidar no clássico O Ensino Secundário no Império, de 1972. Há alguns problemas, no entanto, nessas análises.
O primeiro toma o ensino superior, ademais organizado ainda nos anos 1820, como mote de análise. Dele decorrem perspectivas que consideram aquele espaço como lócus privilegiado de formação e homogeneização das elites políticas nacionais até pelo menos os anos 1870. (CARVALHO, 2003). Nesse sentido, a marca do ensino superior seria tal que, ao concentrar as atenções do governo imperial, que ali buscava preparar e reproduzir quadros burocráticos, o ensino secundário e o de primeiras letras seriam relegados a segundo plano. Esse ponto serve de mote às análises do segundo tipo, que tomam o ensino secundário como apêndice do ensino superior, posto que o interesse das famílias que buscavam preparar seus filhos teria como alvo final o acesso às faculdades imperiais. (HAIDAR, 1972).
O que se propõe neste trabalho é uma alteração nessa perspectiva, ao reconhecer, no espaço do ensino secundário, uma dinâmica que lhe era própria. Tal dinâmica residiria na seleção e organização propriamente pedagógica de temas e questões políticas debatidos durante o período imperial brasileiro, especialmente durante o Segundo Reinado, de maneira a apresentá-los aos alunos durante sua formação de nível secundário, socializando-os num ambiente intelectualmente rico. A atuação de docentes junto aos alunos e a relevância do contexto no qual se inseriam as instituições de ensino ganham relevância na análise aqui proposta, reforçando o aspecto do dinamismo das instituições de nível secundário, nelas reconhecendo uma cultura escolar específica. Ao apresentar três casos que se aproximam desse padrão - o Colégio Pedro II, colégio oficial e mais importante do país; o Ginásio Baiano, em Salvador; e o Culto à Ciência de Campinas -, este trabalho aponta aspectos de renovação cultural promovidos naqueles espaços por meio da organização, lá, do que aqui se chama de repertórios pedagógicos.2
Nesse sentido, após a discussão e apresentação da formação desse repertório pedagógico, chamado de imperial, pelo governo da monarquia no seu colégio oficial, o Colégio Pedro II, será feita sua comparação com outros contextos. Assim, esse repertório pedagógico imperial será abordado a partir de lógicas pautadas por inovações sobre ele promovidas nos outros dois colégios aqui escolhidos para análise. Essas inovações foram consideradas como um repertório pedagógico modernizante. Em que pesem as diferenças no tempo e no contexto - o Ginásio Baiano foi fundado em 1858 em Salvador, na Bahia, e o Culto à Ciência em 1872 em Campinas, São Paulo -, os colégios manejavam o mesmo repertório e possuíam aspectos renovadores comuns - como a adoção de novos métodos e materiais para o ensino. Por isso, outra questão-chave que permeia esta análise é o aspecto geracional da renovação das ideias promovida naqueles espaços institucionais, explorado através da observação da atuação de Abílio Borges e João Köpke, ambos docentes no colégio baiano e campineiro, respectivamente.
Daí o encaminhamento da discussão para os aspectos cotidianos dos colégios aqui estudados, como seu plano de estudos e a atuação de docentes, tomando como horizonte a prática política dos egressos, o que sugere o acerto da aposta dos aspectos inovadores a partir de um modelo voltado para a formação dos cidadãos ativos. A adesão de egressos dos colégios a causas caras ao regime, como a abolição da escravidão, promovida pelo diretor do Ginásio Baiano e seus docentes, e a República, questão fundamental aos membros do Culto à Ciência, não era um dado óbvio, resultado do “clima de opinião” da época ou de filiações partidárias. A crítica a uma possível adesão a ideias apenas porque elas estariam “na moda” é sugerida, neste trabalho, por meio da análise dos aspectos renovadores promovidos por docentes e diretores dentro do espaço institucional escolar por meio do manuseio e da promoção de inovações no repertório pedagógico - ele próprio uma forma de agir politicamente.
Por isso, este trabalho também argumenta pela relevância do conceito de cultura escolar, uma vez que com ele é sinalizada a necessidade de se compreenderem dinâmicas específicas às instituições de ensino, como sua organização burocrática e as formas de representação social ali gestadas. É nesse sentido que o conceito aqui proposto de repertório pedagógico busca contribuir para a análise, na medida em que supõe a cultura não como representação em si mesma (ou como símbolos cujo significado possuiria uma fundamentação interna), mas preferencialmente como resultado de situações sociais específicas e contextos históricos que as tornam inteligíveis. Assim, pensar o ensino secundário no Segundo Reinado é também uma forma de entender dinâmicas intelectuais e políticas próprias daquele momento, como será argumentado no decorrer deste texto.
O ensino de primeiras letras, desde a lei de 15 de outubro de 1827,3 parecia garantir a todos os meninos e, nas maiores vilas e cidades, também às meninas, o acesso à educação escolar. Aí parece estar o centro de todo o quiproquó: os estudos que se seguiram assimilaram a nuance propriamente geracional do processo educativo - um ensino para crianças - mas não a questão política que lhe é central - só teriam acesso à educação os cidadãos. (SOUZA, 2010). Apesar da existência de estudos que apontam para a presença de negros, escravos ou não (FONSECA, 2009), ou mesmo de escolas que recebiam, gratuitamente, crianças em estado de mendicância (VEIGA, 2011), pouco se atentou para esta dimensão.
Assim, o governo da monarquia não necessariamente se oporia, por exemplo, à presença de escravos enquanto alunos. Ocorre que tanto a questão escrava quanto a questão do acesso à cidadania ativa correram de forma bastante complexa na Câmara e no Senado durante todo o regime. Faria Filho reconhece tais problemas na análise da educação no Império. Propondo “a relativização do papel e do lugar do Estado”, o autor percebe tanto dinâmicas locais de organização do ensino quanto a existência de hierarquias que limitavam o acesso dos mais pobres apenas ao ensino de primeiras letras. (FARIA FILHO, 2007, p. 135-139). Hoje, em eventos sobre a relação entre história e educação no Brasil, tem sido relativizada também a ênfase apenas na instituição escolar - sua existência ou não, a falta de verbas, de insumos, de alunos - na análise do processo educacional, enquanto se atentam para outros fatores que seriam também intervenientes, como o acompanhamento da trajetória de alunos e professores e suas relações intra e extraescolar.
Deixando de lado o contexto, certa história da educação, geralmente escrita por memorialistas até meados do século XX, carece daquilo que Pocock (2003) aponta ser central na análise de discursos políticos: a diversidade de vozes. Assim, falas ganham sentido dentro de contextos linguísticos que as tornam inteligíveis. O entendimento desses contextos garantiria ao pesquisador a inteligibilidade das performances em disputa, permitindo reconhecer nas falas mais difundidas posições de autoridade construídas em disputas prévias. (POCOCK, 2003, p. 66-68). No caso do Império do Brasil, pode-se identificar a existência de uma corrente, bastante forte politicamente, que questionava a centralização do ensino proposta pela monarquia nas décadas de 1830 e pós-1870. Para entender a emergência dessas correntes críticas, há de se considerar o momento histórico de abertura política que facilitou o aparecimento de uma pluralidade de vozes e o incentivo à proposição de debates que pensavam a organização provincial do ensino em reação à centralização pedagógica do governo da monarquia - neste caso, as regências e o contexto de crise da monarquia, respectivamente. Alguns analistas até agora vêm se fiando nos discursos hegemônicos;4 trata-se aqui de atentar para a presença de outros discursos dissonantes.
Após a independência, ainda que tematizada frequentemente, a necessidade de se instruir o povo por meio da gestação de um sistema de ensino - questão associada à proposta de formação de um ideário nacional (GUIMARÃES, 2011) - encontrava problemas para sua implementação. Apenas quando da lei de 1827 estimulou-se a criação de escolas, assim como se sugeriu a importância do ensino de Língua Portuguesa e de história pátria nos programas de ensino. Com o Ato Adicional de 1834, porém, já no período regencial, houve a possibilidade das assembleias provinciais se gerirem de forma mais autônoma, deixando ao cargo das províncias a abertura de aulas de primeiras letras e também de ensino secundário.5 No geral, faltaram políticas neste sentido, exceto na província de Minas Gerais e no município neutro do Rio de Janeiro, capital do Império. Enquanto Minas Gerais criava escolas pelas vilas e cidades, obtendo números expressivos de alunos no ensino primário e até no secundário (FARIA FILHO, 1999), a cidade do Rio de Janeiro via ser criado em 1837 o Colégio Pedro II. O prestígio da instituição extrapolava o espaço da cidade e chegava até as mais distantes províncias, de onde partiam alunos das camadas mais abastadas em busca do prestigioso título de Bacharel em Letras, título recebido pelos seus alunos após concluídos os sete anos de estudo e que garantia o acesso às faculdades imperiais sem necessidade de prestar exames. (DORIA, 1997, p. 55).
A questão que se apresenta após isso é a tentativa, por parte do governo monárquico após a restauração do fazer político no Rio de Janeiro e que deu início ao Segundo Reinado em 1840, de centralização também na organização do ensino no país, visto que a instrução, considerada como um processo de educação do cidadão, era pensada como peça fundamental na organização e divulgação de temas e símbolos que identificassem os membros do país à nação. Ainda que resistentes à tentativa do governo monárquico de educar suas crianças, os filhos das “boas sociedades” provinciais acabavam sendo levados por seus pais aos colégios mais prestigiosos de suas regiões - caso do Colégio Pedro II na Corte e na província fluminense, além do Ginásio Baiano na Bahia e do Culto à Ciência na região de Campinas. Pode-se identificar aí um tipo de relação que pretendia reforçar laços entre membros de elites locais e grupos mais próximos do poder central, constituindo a tentativa de um “consumo de prestígio” típico de sociedades de corte. A “Casa”, identificada ao poder local, segundo Ilmar Mattos (1987, p. 129-191), perderia assim sua influência sobre a formação do futuro cidadão ativo da nação6, aquele que daria continuidade ao processo de construção nacional e de reprodução de sua camada superior.
Nessa discussão, ganharam importância as análises sobre a constituição das escolas superiores brasileiras, especialmente as de Direito e Medicina. A necessidade de se formar quadros burocráticos para o então nascente país acabou norteando os debates. Ao mesmo tempo, a lógica fortemente hierárquica daquela sociedade fazia da posse do título de bacharel em Direito ou Medicina um diferencial mesmo entre iguais, os cidadãos. Ser bacharel garantia acesso privilegiado a uma série de benesses dentro do mundo da boa sociedade imperial, muito como resultado do espaço de socialização comum e dos vínculos surgidos nos tempos de faculdade, como destacado por José Murilo de Carvalho. (2003). As redes, fortalecidas pela vivência comum em instituições como as aqui estudadas, que recebiam alunos preferencialmente em regime de internato, é uma questão central.
Posto isso, ainda que nem sempre centradas num tipo de formação academicamente metódico, como sugerido por Sérgio Adorno (1988) em seu estudo sobre a Faculdade de Direito de São Paulo, as faculdades imperiais cumpriam sua função principal que era a de reproduzir a boa sociedade ao mesmo tempo em que habilitava quadros para a construção do Estado. Da mesma forma, especialmente nos anos finais do Império, a organização de alunos e professores em “igrejinhas” ligadas a intelectuais de renome à época, voltadas às questões políticas de então e tecendo duras críticas ao regime imperial, reforçava a centralidade das faculdades - mesmo que enquanto esfera apenas formal e de formação de redes - nas discussões dos rumos do país. (ALONSO, 2002).
Assim, poderíamos pensar o “bacharel” como um grupo relevante entre os homens livres. Segundo Schwarz,
Bacharel, durante o Segundo Reinado, aos poucos transformou-se em termo que carregava, além de uma qualificação, um capital simbólico fundamental [...] São os advogados sem clientes, os médicos sem clínicas, os escritores sem leitores, os magistrados sem juizados, que fazem do diploma uma distinção, uma forma de sobrevivência estável e facilitada. (SCHWARCZ, 2007, p. 119).
Já dizia Gilberto Freyre que o reinado de Dom Pedro II “foi o reinado dos bachareis”. Em seu livro Sobrados e Mucambos, o autor ressalta a força motriz operacionalizada pelo bacharel dentro de uma nova situação social que se desenrolava durante o século XIX brasileiro: a decadência do patriarcalismo rural. Novos estilos de vida se desenvolviam e estariam encarnados nos bachareis, alguns recém-chegados da Europa cheios de ideias novas ou que saíam das faculdades imperiais também repletos delas. Os bachareis e doutores ganhavam prestígio e tornavam-se arautos de um processo de mudança política: valorizados pelos seus estudos e pelo seu título, os bachareis faziam uma “meia reconciliação” entre o repertório europeu (tanto o político, como “novas teorias de Liberdade, de Estado, de Direitos do Homem, de Contrato Social”, quanto o cultural, voltando tão sofisticados da Europa) e seu contexto de origem, que gerava censuras aos hábitos da terra tão arraigados entre os mais velhos, especialmente o patriarca, que começaria a sair de cena. (FREYRE, 2006, p. 711-722).
Emília Viotti da Costa (2007, p. 14) tende a diminuir a importância do bacharel ao sobrevalorizar o seu papel de mediador, menos um arauto das ideias novas e mais ligado a relações de compadrio das quais dependeria para alçar posições de prestígio. O próprio Freyre (2006, p. 723-730) parece, no entanto, relativizar tal conclusão ao destacar, dentro da formação dessas redes via casamento ou alianças políticas pelos bachareis, seu forte potencial renovador, especialmente entre os bachareis mulatos e entre aqueles “insubmissos”. Tânia Bessone Ferreira (1999, p. 19-21; 52-54), estudando práticas de leitura e de formação de bibliotecas no Rio de Janeiro de finais do XIX, ressalta a maciça presença de bachareis e doutores que possuíam em suas prateleiras vasta bibliografia para além de livros relacionados às suas atividades profissionais, geralmente ligados a temas da política europeia e obras clássicas, realçando, via análise dessas bibliotecas particulares, um potencial de escolha pessoal na seleção das obras. Some-se a isso a presença comum em espaços de sociabilidade como livrarias, saraus e concertos teatrais que potencializariam a circulação de textos e o debate de ideias.
Tanto os debates políticos que ganharam a cena nos anos 1830, por exemplo, quanto algumas experiências pedagógicas anteriores7 ao Colégio Pedro II e/ou organizadas fora do circuito Rio de Janeiro - São Paulo - Salvador - Recife, as cidades-sede das faculdades, parecem reforçar, no âmbito que interessa aqui, a circulação de ideias e práticas que tomavam a educação como pauta politicamente relevante. É neste sentido que se quer fazer tal debate em termos de um repertório pedagógico. O conceito, adaptado de Ann Swidler (1986; 2001), busca relacionar a esfera da prática pedagógica organizada em instituições de ensino secundário a discussões mais amplas, como a formação política nacional e de seus cidadãos. Assim, se em Swidler repertório é pensado como uma forma de articulação entre cultura e política,8 aqui é seu aspecto pedagógico que ganha relevância.
Assim, tanto o Colégio Pedro II, ao adotar um plano de estudos regular, organizado ao redor de vasto currículo baseado nas humanidades, quanto os outros colégios fundados nas províncias posteriormente e voltados para a formação dos cidadãos em âmbito local, como o Ginásio Baiano e o Culto à Ciência, tinham como interesse não apenas a socialização de seus alunos num ambiente comum, mas também sua inserção no mundo oficial da Monarquia, no mundo da cidadania plena - a cidadania ativa. O currículo escolar fortemente humanista era um diferencial positivo. Como destacara Carvalho, sendo a retórica a arte da persuasão, todo momento era passível de sua utilização. A argumentação, central para o bom orador, tinha em vista não apenas ensinar, ilustrar um ponto, mas convencer o ouvinte quanto a ele, no que o uso de parábolas e fábulas fazia-se frequente. (CARVALHO, 2000). Retórica e poética eram parte do plano de estudos das instituições aqui discutidas. E não eram requisito formal para ingresso nas faculdades, aliás.
Dados de inserção socioprofissional dos egressos dessas instituições parecem confirmar o argumento da educação secundária como fator de distinção social, especialmente no caso do Colégio Pedro I. Entre 1843 e 1880, 11 ex-alunos da instituição foram ministros, 7 conselheiros de estado, 1 foi senador e 23 foram deputados.9 Segundo levantamento feito por Cunha Jr. (2008, p. 61-66), 51% dos egressos no período tiveram ocupação dentro da burocracia imperial. Outros 44% foram médicos, advogados, engenheiros, escritores ou jornalistas10 e o restante, 5%, proprietários ou comerciantes. O que se busca reforçar a partir desses dados é que o espaço de socialização escolar promovido por colégios como o Pedro II servia a grupos de elite, encaminhando seus filhos para as faculdades, via o prestigioso título de bacharel e, portanto, auxiliando no seu processo de reprodução. Mesmo que outros alunos chegassem às faculdades, o uso que eles poderiam fazer de seu título dependeria, ainda, das redes sociais das quais faziam parte. Alunos já socializados entre elites no secundário parecem sair na frente, não só no caminho rumo à burocracia e ao mundo da cidadania ativa, mas também no uso político das ideias que, “em revoada” nos anos 1870, foram usadas de maneiras bastante criativas por diferentes bachareis em prol de causas que iam da abolição à república.
Nos outros colégios aqui elencados a situação é parecida. Em ambos, em que pese o uso de um referencial comum, adotando o padrão curricular do Colégio Pedro II, há importantes aspectos referentes à adoção dos métodos de ensino. No Ginásio Baiano, na Salvador dos anos 1860, a tão temida palmatória fora abolida. Questionava seu diretor, Abílio Borges: “Pois a ciência é coisa que se introduza no espírito a força de pancadas?” Para ele, a educação deveria se dar pelos sentidos: daí a adoção do método intuitivo, que valorizava a experiência a criança e buscava se aproximar de seus fazeres cotidianos para deles educá-las. (VALDEZ, 2006, p. 140). Seus cinco livros de leitura, que apenas nos tempos do Império teriam visto circular mais de 400 mil exemplares e cuja fama chegou até o início do século XX, partiam de historietas e fatos do cotidiano (o primeiro livro) para, após o amadurecimento do aluno, apresentar-lhe temas mais complexos, como a organização sociopolítica do país e também elementos do mundo natural, por exemplo (o terceiro livro).
Já no Culto à Ciência, fundado na década de 1870 em Campinas por sociedade homônima e composta por maçons, positivistas e republicanos - uma redundância -, comungava-se do pensamento que via a sociedade em termos hierárquicos. Importa frisar que os três colégios eram pagos, custando anualmente em torno de 350 mil Réis, sem contar taxas extras, como o enxoval dos alunos internos. O Culto à Ciência contava em seu plano de estudos com aulas práticas de ciências naturais, ministradas em laboratórios com equipamentos especiais. O progresso, tão caro ao discurso republicano, fazia-se prática cotidiana nas aulas junto a professores como Alberto Salles, considerado um dos pensadores do regime republicano brasileiro. O corpo docente e administrativo da instituição também divulgava suas ideias para além dos muros escolares: era comum o recurso à divulgação de palestras e textos realizados no colégio em jornais de ampla circulação no período, como A Província de São Paulo, entre outros de circulação mais restrita à região de Campinas. (MORAES, 1981).
Nas três instituições, a mediação cultural promovida pelos docentes teria também auxiliado na divulgação de questões da política da época. No Colégio Pedro II, por exemplo, parte dos docentes de história pátria possuía vínculos com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), espaço no qual primeiro se incentivou a pesquisa em história do Brasil. Lá pensada e discutida, essa história ganhava forma pedagógica por meio da atuação de professores-autores como Joaquim Manoel de Macedo, que atuou no colégio do imperador. Abílio Borges, por sua vez, aproveitava momentos de confraternização como saraus e exames finais como plataforma de divulgação de uma causa que lhe era cara: o abolicionismo, ainda nos anos 1860. Castro Alves e Rui Barbosa, campeões da causa pela libertação dos escravos, foram seus alunos, possuindo relação próxima a Borges. Em Campinas, o professor João Köpke promovia as ciências naturais para além do discurso, incentivando a organização de laboratórios com materiais importados por ele. Os professores aparecem, nesse sentido, como centrais na formação não meramente pedagógica dos alunos que por eles passaram. Seu papel, para além do ensino de matérias, passava pela educação desses jovens cidadãos - e não eram os conceitos sinônimos no período. (GUIMARÃES, 2011, p. 246-252).
Os casos das instituições acima expostas, também discutidas por Haidar, sinalizam para um tipo de dinâmica particular na esfera do ensino nos tempos do Segundo Reinado. Os momentos de suas criações, a atuação política de seus fundadores e professores, os programas de ensino, todos conjugavam um tipo de discussão que tinha como horizonte formas de participação política no regime. Ser aluno e depois bacharel por colégios como o Pedro II não apenas somavam prestígio, como punham seus portadores em contato com aspectos caros da cultura e da política de então pela mediação promovida, ainda nos bancos escolares, por professores através de aspectos curriculares por eles trabalhados.
Tal dinâmica propriamente pedagógica reforça a presença e circulação de discussões sobre educação para além da Corte - por isso a ideia de repertório pedagógico que, manipulado nas províncias e em momentos diferentes, adquire aspectos modernizantes, partilhando alguns pressupostos com o governo imperial, mas avançando sobre ele. Tais pressupostos, aposta-se aqui, eram políticos: dotar grupos de elites locais de um repertório de temas comuns, mesmo que não lhes garantissem acesso pleno ao fazer político oficial, fazia deles agentes privilegiados na leitura e interpretação do regime. Porque alunos de colégios secundários, tais rapazes já eram cidadãos. E porque bachareis, já nos anos finais da monarquia, estava-lhes garantido o acesso à palavra e ao embate com seus pares, nas ruas, nos jornais ou nos parlamentos.
Em minha dissertação de mestrado (2010), busquei reforçar a centralidade do Colégio Pedro II na constituição de quadros das camadas superiores no Império, especialmente no período entre sua criação, 1837, e o início dos anos 1860, considerado pela historiografia o momento de consolidação da Monarquia. Nesse sentido, a análise da formação ali proposta e o reconhecimento de que parte dos egressos se inseria na burocracia ia de encontro às análises que viam no ensino secundário um “esboço de organicidade” comprometido pela influência dos exames de acesso aos estudos superiores. (HAIDAR, 1972, p. 14; 19). Ainda que, de fato, parte dos egressos cursasse os estudos superiores antes de ingressar na burocracia, não parecia óbvio que todos os alunos de todas as faculdades tivessem passado por colégios que buscavam apenas encaminhá-los às faculdades por meio do ensino das matérias cobradas no exame.
A observação, nesse sentido, dos programas de estudo e currículos escolares do Colégio Pedro II (doravante CPII) indicava um interesse do governo monárquico nas coisas da educação. O colégio, ademais frequentado pelo imperador, tinha em seus quadros docentes que eram chavões do regime, como Joaquim Manoel de Macedo, Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias nos primeiros anos de sua fundação e Capistrano de Abreu e Sílvio Romero já nos anos finais da monarquia. Todos tiveram papel central nos debates políticos, cada um à sua maneira. Circulando entre locais como o IHGB ou a Câmara, alguns desses docentes traziam questões caras ao regime, como a formação dos cidadãos e da nacionalidade, para seu fazer docente. Tal marca, por exemplo, foi impressa por Macedo em suas aulas de história no colégio. Seu método de ensinar história, desenvolvido a partir das aulas no CPII, articulava uma narrativa mais fluida a questionários pautados na memorização de questões consideradas relevantes. (MATTOS, 2000). Assim, não parecia faltar organicidade àquele nível de ensino, pelo menos no colégio oficial da monarquia.
A obra de Haidar, no entanto, teve como objeto de análise o ensino secundário em todo o Império. De fato, se observados os anúncios de colégios em jornais e almanaques como o Laemmert, do Rio de Janeiro, o que se oferecia era, de fato, uma mera preparação aos exames de acesso às Academias. Na edição para o ano de 1879, por exemplo, havia três páginas para a divulgação nominal de colégios para meninos.11 No entanto, havia também outros que, tanto na Corte quanto a nível provincial, se distanciavam dessa lógica. Tal era o caso do Ginásio Baiano, de Abílio Borges em Salvador, e do Culto à Ciência, mantido por republicanos de Campinas, em São Paulo.
No caso do Ginásio Baiano, fundado em 1858, há proximidades com o plano de estudos do CPII, como o regime de internato e organização em classes de estudos12 baseadas em níveis de aprendizagem e idade distintos. Havia regularidade no ensino para promoção às classes seguintes e, ao fim do curso, receber o diploma. Além disso, tal qual o CPII, os alunos eram incentivados a participar de momentos de criação literária e celebração das efemérides nacionais, como o 7 de setembro e, na Bahia, também o 2 de julho, data da independência da província e de sua integração à monarquia. (BORGES, 2000, p. 25-53).
Da mesma forma, o Culto à Ciência, cujas atividades foram iniciadas em 1874, enfatizava os estudos em humanidades, compostos por matérias como retórica, oratória, literatura e línguas estrangeiras (como latim, grego, francês, alemão, italiano). Também se costumava promover premiações aos melhores alunos ao final do ano de estudos. Tal proximidade do plano de estudos proposto pelo governo da monarquia no CPII teria como objetivo, aposta-se aqui, consolidar a formação de grupos das camadas superiores - neste caso, filhos de fazendeiros do oeste paulista, região que se desenvolvia economicamente no período - dentro de uma lógica comum que lhes facilitasse o acesso ao “mundo do governo”, ou seja, à camada dirigente, composta pela “boa sociedade” imperial. (MATTOS, 1987, p. 109-129). Lembre-se que tal fora, ademais, a política levada a cabo pelos conservadores fluminenses nos anos finais das regências, buscando integrar mesmo opositores no “mundo do governo”, comungando a necessidade de se manter a ordem imperial, fundamentada no tripé monarquia centralizada, cafeicultura escravista e classe senhorial. (MATTOS, 1987, p. 57-68). A frequência a autores comuns, o gosto por discursos e longas exposições, a produção artística e a circulação entre iguais que as instituições aqui estudadas promoviam faziam delas um espaço com uma dinâmica bastante própria, refutando o argumento que as via como espécie de apêndice do ensino superior.
Havia, ao mesmo tempo, distanciamentos ao plano de estudos do CPII. No colégio de Borges, as inovações por ele promovidas não foram poucas: livros autorais com proposta claramente didática (os seus cinco livros de leitura para a infância), a inclusão de matérias como gramática filosófica, o reforço do ensino de ginástica como necessário para a boa aprendizagem global (apenas um corpo são permitiria ao aluno dedicar-se com prazer aos estudos) e uma relação mais próxima e dialogada com os alunos. Borges promoveu o método intuitivo, conhecido também como lição de coisas, entre seus alunos, envolvendo-os, pelos seus sentidos, na aprendizagem daquilo que lhes era próximo. Daí o uso de globos terrestres e mapas no ensino de Geografia ou de aparelhos aritméticos para as contas de matemáticas. (VALDEZ, 2006, p. 130). Borges ampliava na Bahia o plano de estudos do CPII partindo que questões que, para si e segundo o contexto em que se inseria, faziam mais sentido.
Idem para o caso campineiro: o colégio fundado por republicanos, ainda que também voltado às camadas superiores e com forte tom aristocrático em seu ensino, incluiu em seu plano de estudos o ensino e a prática de ciências naturais - que, aliás, até o final dos anos 1870 não eram exigidas para ingresso nas academias. Ao dotar a instituição de aparelhos científicos para o ensino daquelas ciências, como termômetros, a direção do colégio facilitava a difusão de repertórios políticos em voga na região gerados pela propaganda republicana. Composta inteiramente por positivistas e maçons - uma redundância naquele momento, mas que reforça os aspectos de inovação -, a Associação que controlava o colégio selecionava docentes afinados à sua causa política, mesmo que, segundo diziam, não houvesse interesse político na organização do colégio. (SOUZA, 2015, p. 196). Também dentro do currículo de humanidades houve inovações: se no CPII os manuais de história de Joaquim Manoel de Macedo realçavam continuidades entre a colonização portuguesa e a organização política da monarquia, colocando-a como herdeira de uma tradição com tendências civilizatórias, os livros de História adotados no Culto à Ciência promoviam curvas nesse discurso, ao promover ações de grupos provinciais paulistas na organização - e num possível questionamento - dessa mesma ordem monárquica. (SOUZA, 2015, p. 201).13
Por isso, neste trabalho, argumenta-se pela existência de repertórios pedagógicos em circulação no Segundo Reinado no Brasil, ao articular a teoria dos planos de estudos às práticas pedagógicas locais. Se nas discussões sobre currículo abria-se alguma margem para a improvisação, posto que o currículo seria prescritivo e organizado a partir de dinâmicas postas pelo espaço escolar (GOODSON, 1995), faltava chegar à observação dessa prática. Assim, o conceito de repertório em seu viés pedagógico permite partir da prática para se considerar a relação entre as instituições estudadas e seus atores com o discurso pedagógico reinante.
Aqui, avança-se sobre o conceito de cultura escolar, evidenciado, dentre outros, por Dominique Julia (2001). Pensado a partir de uma tradição socioantropólogica francesa, o conceito, ainda que busque atentar à esfera da prática em detrimento das normas, esbarra na esfera interna às instituições de ensino, cuja forma seria responsável pela interiorização de dinâmicas sociais mais amplas. Nessa tradição, a força de conceitos de matriz durkheimiana, como socialização, fica evidente nas análises a partir de categorias como representações e internalização de elementos sociais pelo sujeito. Nesse sentido, ainda que se busquem compreender as práticas desenvolvidas, no caso de Julia, na esfera escolar, a sobrevalorização do espaço escolar propõe a observação de aspectos inventivos apenas, ou preferencialmente, na esfera institucional (JULIA, 2011, p. 11) - o que é um ganho, mas não dá conta do entendimento do jogo entre educação e política como peças jogadas no mesmo tabuleiro, como se argumenta aqui. O próprio autor percebe a necessidade de se atentar às retraduções promovidas por aqueles que passaram pelas instituições de ensino em outros espaços sociais. (JULIA, 2011, p. 37). Invertendo a lógica, pode-se aqui argumentar por um ensino secundário que não se subordinava ao superior, pois nele se promoveram temas e questões que não buscavam apenas levar o aluno às Academias.
Da mesma forma, a adoção do conceito de repertório pedagógico reconhece a centralidade de demandas locais, específicas a cada contexto, na organização das ideias. Retirando a cultura de uma lógica sistêmica que garantiria legitimidade às ideias, desconsiderando as apropriações e seus usos por atores em momentos específicos, aponta-se aqui para um dinamismo que não necessariamente seria exclusividade dos membros da geração de 1870 (ALONSO, 2002) ou, como argumentam alguns, de momentos como as Regências dos anos 1830. (MOREL, 2003). Guardadas as proporções, relativas especialmente às questões de abertura e oportunidades políticas nelas geradas e que de fato se ampliaram naqueles dois momentos, há dinâmicas próprias que em outros momentos não necessariamente são corolário das movimentações dos anos 1830 ou antecessoras das “ideias em revoada” dos anos 1870. A atuação de docentes como Abílio Borges e João Köpke, nesse sentido, serve de mote para se compreender os usos da cultura na prática, além das variações - e modernizações - promovidas sobre o repertório pedagógico imperial proposto pela monarquia no CPII.
A consideração de marcos tomados de uma história política - as regências dos anos 1830, a consolidação monárquica dos anos 1850 ou a crise política dos anos 1870 em diante - subsumiu, neles, a esfera educacional dos debates em voga nessas épocas. Assim, as discussões políticas pela mudança ou manutenção do status quo de cada época teriam como derivações proposições pedagógicas com o intuito de ampliar tais projetos. Esse olhar é nítido em abordagens como as de Roque Spencer Barros (1986) que, ao fazer um apanhado das proposições de grupos como positivistas, republicanos e conservadores, reconhecia os aspectos educacionais daqueles projetos, mas os colocava subordinados a uma lógica maior - a política.
O que se vem discutindo aqui é a consideração da educação como, ela própria, uma esfera de discussão política, fazendo de ambos lados da mesma moeda. Assim, a atuação de docentes como Abílio Borges e João Köpke, os dois sem atuação política na esfera governamental, não deixava de ter efeitos políticos uma vez que divulgavam e ampliavam, junto aos seus alunos, aspectos renovadores da cultura por eles compartilhados. A esfera geracional, portanto, parece um mote interessante para pensar lances de transmissão, circulação e apropriação de ideias. As proposições de Karl Mannheim (1993) acerca das relações entre gerações interessam para o argumento aqui proposto, especialmente ao descolar aspectos da cultura de questões temporais, que têm nos mais velhos bastiões do conservadorismo e nos mais novos, a renovação. Ao fazê-lo, o autor permite questionar olhares que tomam tradição e modernidade como matizes distintos de um processo social.
Diversamente do que ocorre em alguns estudos em história das ideias ou de aspecto biográfico, cuja ênfase acaba por recair nas ações do sujeito analisado, são realçados aqui tanto as relações que Borges e Köpke construíram - seu capital social - quanto aspectos dos contextos em que eles se inseriam e que davam inteligibilidade às ideias por eles postas em cena. Assim, considera-se o contexto para que as ideias ganhem sentido para além de um dom que seria próprio do sujeito que as selecionou. Como já destacara Bourdieu (2004) sobre os riscos e limitações do trabalho biográfico, a renovação pedagógica proposta por Borges e Kökpe contou com o apoio de docentes e diretores de instituições por onde ambos passaram e mais: contou também com o apoio de brasões da política local ou mesmo nacional e, o que amplia a questão, dos pais dos alunos que apostaram a formação de seus filhos a ambos.
Isaías Alves (1936), em obra sobre a vida de Borges, tendeu a reforçar a novidade promovida pelo personagem no campo da educação ao alçá-lo à posição de grande pedagogo, “amigo dos meninos” ainda que sofrendo de incompreensões por parte de seus contemporâneos, que não teriam visto em suas inovações pedagógicas aspectos dignos de nota. Em comemoração ao centenário de Borges, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia promoveu em 1924 uma série de atividades que homenageavam esse grande vulto baiano. A revista do Instituto, ao reunir as palestras e homenagens feitas em edição do primeiro semestre de 1925, lançava as bases da análise de Alves, que participou da homenagem: Borges parecia ser, pelo que se depreendia dos textos reunidos naquela edição da revista, um homem fora do seu tempo porque à frente dele. Em meio a experiências pontuais e consideradas fracassadas de ensino, os colégios de Borges seriam uma luz na escuridão em que se encontrava a educação no Brasil até pelo menos o começo do século XX.
De fato, mesmo na Corte, a cidade do Rio de Janeiro, capital do Império e “centro difusor” das luzes da civilização, o Colégio Abílio de Borges14 parecia acentuar a novidade que o diretor traria à formação da mocidade imperial. Isso porque a cidade já contava com outras instituições não menos renomadas, como o CPII, “queridinho” do imperador Dom Pedro II. Formado em medicina pela faculdade daquela cidade, Borges poria em prática em seus colégios os preceitos da medicina higienista que tanto valorizavam a amplitude do espaço físico da instituição - grandes janelas, boa iluminação e ventilação - quanto facilitavam a formação física do aluno. (GONDRA; SAMPAIO, 2010). Esse era, aliás, um dos “lemas” de Borges: “mens sana in corpore sano”.
Borges manteve-se afinado a uma diversidade de discussões, não apenas na área de educação. Além de participar de grupos literários e jornais, fundou associações políticas, como de apoio à causa abolicionista. A variedade de questões nas quais ele se colocava pode ter incentivado seu olhar sobre uma proposta educativa mais ampla, ao mesmo tempo em que promovia articulações entre os temas ensinados. Matérias como geometria, geografia, geologia e outras da área de ciências naturais casavam-se com a proposta do diretor de apenas ensinar aquilo que ativasse a natural curiosidade da criança. Para tal, uma diversidade de materiais de ensino foi por ele criada para facilitar o processo educativo dos meninos.15 Seu diagnóstico, pautado em sua experiência na área de educação, era que o ensino baseado na memorização fazia das crianças meras repetidoras daquilo que mestres no geral imprudentes exigiam, por vezes fazendo uso da violência - a temida palmatória, outra campanha contra a qual se levantou Borges.
Quanto ao Colégio Culto à Ciência, uma questão é notória desde sua fundação, em 1874: a instituição receberia apenas docentes afinados à causa republicana, que tinha na difusão da instrução a consecução de objetivos políticos bastante claros: “o alargamento das bases de participação política no país, [e] a conformação da cidadania, indispensáveis à legitimação do Estado Republicano” que se esperava fundar em breve. (MORAES, 1981). João Köpke foi também protagonista nessa história. “Apóstolo da civilização”, “mestre dos mestres”: esses são alguns dos elogios a Köpke, considerado ainda um verdadeiro entusiasta da educação, de espírito reformador, ao mesmo tempo em que bondoso e gentil. (PANIZZOLO, 2006, p. 169). Baseado no princípio positivista que tinha a escola como anexo da família, principal responsável pela formação intelectual da criança, Köpke, assim como Borges, defendeu a adoção de novos métodos de ensino aos mais jovens, empregando também o método intuitivo e sugerindo a adoção de materiais diversos especialmente no ensino de leitura e de ciências naturais. Também como Borges, Köpke atuava em campos diferenciados com o mesmo fim: o da expansão da instrução. Assim, publicou livros de leitura, escreveu peças de teatro e adaptou contos e histórias infantis estrangeiras, além de proferir palestras com temática pedagógica e organizar na primeira estação de rádio do Brasil já no século XX, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, o programa A Hora das Crianças, no qual divulgava suas ideias e obras visando combater o analfabetismo. (PANIZZOLO, 2006, p. 159).
Nascido em Petrópolis, Kökpe veio de família já com experiência no campo da educação: seus pai e tio fundaram na cidade o Colégio de Petrópolis, também conhecido como Colégio Köpke, no qual realizara seus estudos. Formado advogado pela faculdade de direito de São Paulo em 1875, para onde se transferira após iniciar os estudos na faculdade do Recife, divulgava-se como advogado em anúncios de jornal após breve período como promotor público na cidade de Itapeva da Faxina16 e na própria capital.17 Atuava ainda como docente particular de Geografia18 e das cadeiras de Filosofia, História e Retórica no curso anexo à Faculdade de Direito a partir de 1879.19 E, tal qual Borges, teria sido sua devoção e experiência à causa da educação que lhe teria valido a fama: “João Köpke foi um pedagogista, um homem que dedicou parte significativa de sua vida à criação de teorias, práticas e instrumentos que fossem capazes de educar os cidadãos que um dia guiariam a República”. (PANIZZOLO, 2006, p. 41).
Havendo elaborado o seu Método rápido para aprender a ler em 1874, quando ainda era estudante de Direito, Kökpe teve dificuldades em divulgar sua obra. Apenas em 1879, quando de sua segunda edição, resultado em parte de sua recomendação por presidentes de províncias como a de São Paulo, que recomendava, em Lei de 4 de maio de 1879, a contratação de Köpke como fornecedor de “cartões, aparelhos e o que mais necessário for para a adoção do ‘Método racional e rápido de aprender’ nas escolas públicas primárias”, segundo Moacyr (1939, p. 385), foi que seus materiais começaram a ser amplamente divulgados.20 Tal qual Borges, alguma proximidade com o poder lhe valera a divulgação de suas ideias e ainda o financiamento de outras - segundo essa mesma lei, o governo pagaria a Kökpe o valor de 6 contos de Réis.
Abílio Borges e João Kökpe foram ambos educadores exemplares: não se questiona aqui a importância de ambos na esfera da educação no Segundo Reinado. Pelo contrário: ao valorizar suas experiências como educadores, pôde-se clarear um aspecto considerado aqui chave para se pensar as relações entre cultura e política no Segundo Reinado: o do dinamismo das ideias no Império do Brasil. Tal dinamismo, encarado fora de uma chave que toma ou as ideias como “fora do lugar” ou apenas a geração de 1870 como dinamizadora da cultura no país e percebido, no caso aqui em questão, na esfera da educação, ilumina aspectos fundamentais do processo de renovação e transição política da Monarquia para a República. Muito além de mera “conciliação” ou de uma mudança de fachada “para inglês ver”, as inovações no repertório político do período apontam para a gestação de visões de mundo bastante originais.
Neste texto, categorias como cultura escolar, currículo e métodos de ensino foram considerados na análise como esferas da cultura da época, ou como parte de um repertório pedagógico. Ao não encerrar o debate à esfera educacional, sugeriu-se a articulação das ações pedagógicas às propostas de renovação política e cultural que ganhavam força, especialmente no Segundo Reinado. No entanto, diversamente do que fazem crer estudos que tomam a educação como corolário de projetos que seriam especificamente políticos, como o republicano ou o positivista (BARROS, 1986), entende-se aqui a educação ela mesma como aspecto central dos debates daquele momento. Lembre-se que a intervenção nos debates intelectuais à época significava agir politicamente, uma vez que essas esferas se sobrepunham. (ALONSO, 2002, p. 29-30; 38).
Nesse sentido, os processos de socialização escolar promovidos no Colégio Pedro II, no Ginásio Baiano e no Culto à Ciência - todas as três instituições voltadas às camadas superiores daquela sociedade - foram encarados como espaço de ampliação do capital social do agente. O conceito de capital social enfatiza a possibilidade de formação de redes pelo sujeito em momentos de sua vida, de forma que se poderia ampliar seu capital cultural e, da mesma maneira, promover mudanças em seu habitus, que é, afinal, um sistema de disposições oriundo de práticas ao mesmo tempo em que sinalizador de estratégias. (BOURDIEU, 2009, p. 77-95). Todos são conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu. Na esfera dos estudos em educação, porém, apenas seus conceitos de habitus e de capital cultural vêm sendo priorizados como matizes analíticos. Uma vez já inseridos na cultura oficial, que seria mais uma vez legitimada pela escola, os meninos que tiveram Borges ou Köpke como diretor ou professor foram apresentados a novos repertórios a partir dos quais poderiam cultivar novas habilidades de leitura e compreensão do mundo ao seu redor. A abertura política que o momento de crise da monarquia oferecia a diferentes grupos das camadas superiores daquela sociedade ampliava as esferas de interação para além dos tradicionais espaços da política institucional: grupos intelectuais reuniam-se ao redor das variadas “igrejinhas” localizadas em livrarias e cafés da Rua do Ouvidor ou em salões da boa sociedade, por exemplo.
Uma das propostas deste trabalho reconheceu no espaço escolar de nível secundário um ambiente de formação de redes, geralmente associadas ao período de estudos nas faculdades imperiais. A vivência em comum em colégios que no geral funcionavam em regime de internato e por vários anos seguidos foi considerada experiência marcante se considerarmos a relação professor-aluno que ali se construía cotidianamente.
A bibliografia disponível vem questionando o espaço institucional das faculdades como aspecto central no processo de formação intelectual daqueles que por elas passaram devido às frequentes faltas de alunos e professores, além de imperícia didática por parte de alguns mestres. A formação desses alunos se realizaria, portanto, preferencialmente por meio das associações e grupos dos quais os alunos das faculdades faziam parte - fora daqueles espaços institucionais, portanto.
Os colégios secundários como os de Borges ou aqueles nos quais atuou Köpke, por sua vez, colocariam os alunos em contato com aspectos não canônicos da cultura, como o ensino de ciências naturais via experimentação e a promoção de temas caros àquela sociedade, incluindo a abolição da escravidão. E é isso que se pretende destacar aqui: como a seleção de aspetos didáticos - a organização curricular - somada às experiências entre professores e alunos podem ter contribuído para a renovação intelectual pela qual passava o país na segunda metade do século XIX. Borges, em seus colégios, promovia um repertório pedagógico de tom modernizante, que reunia tanto questões intelectuais nas quais ele próprio se colocava como ativo interlocutor quanto aspectos de sua ação política, como na sua defesa da causa abolicionista. A seleção das matérias de ensino por ele promovida sugere, portanto, que o espaço escolar era aspecto central do processo de mudanças políticas pelo qual passava a monarquia no país.
Maiores avanços podem e devem ser obtidos se considerada a trajetória dos egressos das instituições de ensino. Por vezes, os trabalhos reforçam os aspectos propriamente inovadores do colégio estudado sem atentar à dinâmica mais ampla da sociedade. Assim, por exemplo, perceber o ensino secundário como antessala das faculdades imperiais pela chave da desorganização do plano de ensino - posto que orientado apenas pelas matérias cobradas para ingresso nas faculdades - deixa de fora aspectos caros à sociedade imperial, como a dinâmica das hierarquias sociais e os símbolos de prestígio e de diferenciação social. Poucos alunos foram bachareis pelo Colégio Pedro II, de fato, mas poucos eram os cidadãos ativos daquela sociedade. Não necessariamente o sucesso da experiência reside na amplitude de seu alcance, pelo contrário: neste caso, quanto menos aqueles que têm poder de mando, melhor para a tão cara manutenção da ordem.
Dentro dessas hierarquias, porém, havia movimentações, e as experiências provinciais aqui expostas as demonstram. Reconhecendo na manutenção da ordem uma questão comum, grupos das elites baiana e paulista souberam se aproveitar do repertório comum proposto pela monarquia e avançar sobre ele, fazendo uso do mesmo a partir de demandas locais. Assim Borges fez dos filhos das elites sociais baianas bachareis quase tão prestigiados como os do Pedro II. A Sociedade Culto à Ciência, em que pese suas críticas à Monarquia, também entendeu que era possível renovar dentro da ordem, dotando os filhos da nova elite econômica local de um linguajar comum aos filhos de outras elites, especialmente aquelas do Rio de Janeiro. Se o enfrentamento que se pretendia fazer tinha nos fluminenses e na dominação saquarema o alvo, era necessário lidar com o adversário de igual para igual, para além da imagem do matuto paulista que viria a ser trabalhada posteriormente.
Por último, ao revisitar algumas sugestões levantadas por Antonio Candido (1971, p. 7-18) para os estudos em Sociologia da Educação - especialmente uma maior atenção não à análise de todo o processo educacional, mas às estruturas e dinâmicas internas aos colégios, incluindo as tensões geracionais -, teve-se como objetivo neste texto avançar sobre o conceito de cultura escolar, enfatizando a esfera das práticas pedagógicas que o conceito de repertório ilumina. Assim, a atuação de docentes como Borges e Köpke parece ser um sinal de inovação não apenas na esfera educacional, mas também política no Segundo Reinado.
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