Resumo:
Introdução. A obesidade, um importante fator de risco para o desenvolvimento da insuficiência cardíaca (IC), é um fator prognóstico protetor. Esse possível paradoxo pode explicar-se pelo papel protetor do tecido adiposo marrom (BAT), das adipocinas anti-inflamatórias e pela conexão do tecido adiposo ao coração mediada pelos peptídeos natriuréticos (NPs).
Material e métodos. As evidências sobre os três mecanismos citados são discutidas.
Resultados. Em animais e em humanos, tanto obesos como em portadores de IC, há aumento do BAT mas, é menos ativo, com menor expressão de proteína desacopladora tipo 1 (UCP1), limitando seu potencial protetor. A atividade anti-inflamatória de algumas adipocinas está associada à promoção da regeneração do miocárdio, formação de novos vasos sanguíneos, redução da pós-carga, melhora dos processos metabólicos em cardiomiócitos. Recentemente demonstrou-se que NPs, além de seu papel na homeostase circulatória, têm um papel na regulação do consumo energético e na regulação do tecido adiposo, interferindo na liberação de adipocinas. Sabe-se que os NPs estão diminuídos nos obesos, por haver maior clearence ou menor secreção.
Conclusão. O papel das adipocinas anti-inflamatórias e a conexão do tecido adiposo ao coração mediada pelos NPs são mecanismos promissores para explicar o paradoxo da obesidade na IC. Localizamos somente dois estudos sobre o papel anti-inflamatório das adipocinas, com evidências diretas. Apesar da existência de inúmeros estudos sobre os NPs, as evidências são menos consistentes. Trata-se de uma área que merece ser acompanhada na tentativa de compreender o paradoxo da obesidade na IC, o que poderia permitir uma melhor abordagem ao paciente acometido por essa síndrome.
Palavras-chave:Tecido adiposoTecido adiposo,Paradoxo da obesidadeParadoxo da obesidade,Insuficiência cardíacaInsuficiência cardíaca,AdipocinasAdipocinas,Peptídeos natriuréticosPeptídeos natriuréticos.
Abstract:
Introduction. Obesity, an important risk factor for the development of heart failure (HF), is a protective prognostic factor. This paradox can be explained by the protective role of brown adipose tissue (BAT), anti-inflammatory adipokines and the crosstalk between adipose tissue and heart mediated by natriuretic peptides (NPs).
Material and methods. Evidence for these three mechanisms is discussed.
Results. In animals and humans models, in both, obese and patients with HF, there is an increase in BAT, but it is less active, with lower expression of uncoupling protein type 1 (UCP1), limiting its protective potential. The antiinflammatory effect of some adipokines is associated with myocardial regeneration, production of new blood vessels, reduction of afterload and potentiation of metabolic processes in cardiomyocytes. It has been shown that NPs, in addition to their role in circulatory homeostasis, play a role in the energy tightening and regulation of adipose tissue, interfering with the release of adipokines. It is known that NPs are decreased in obese, due to a greater clearance or lower secretion.
Conclusion. The role of anti-inflammatory adipokines and the crosstalk between adipose tissue and heart mediated by NPs are promising mechanisms to explain the paradox of obesity in HF. We found only two studies on the antiinflammatory role of adipokines, with direct evidence. Despite the existence of numerous studies on NPs, the evidence is less consistent. This area deserves to be followed in an attempt to understand the paradox of obesity in HF, which could allow a better care to the patient affected.
Keywords: Adipose tissue, Obesity paradox, Heart failure, Adipokines, Natriuretic peptides.
ARTIGO ORIGINAL
O papel do tecido adiposo na obesidade e na insuficiência cardíaca
The role of adipose tissue in obesity and heart failure

Recepção: 06 Fevereiro 2019
Aprovação: 09 Maio 2019
Apesar da obesidade ser um importante fator de risco para o desenvolvimento da insuficiência cardíaca (IC)1, estudos vêm demonstrando que, após o desenvolvimento desta síndrome clínica, o prognóstico revela ser mais favorável nos indivíduos classificados como obesos2. A despeito da obesidade apresentar efeitos adversos mais graves que o cigarro, o álcool e a pobreza3, a relação paradoxal entre o aumento nos valores de Índice de Massa Corporal (IMC) e a maior sobrevivência tem sido observada para diversas doenças crônicas4
Muitos estudos procuram entender como os obesos podem apresentar melhor prognóstico na IC, uma vez que a obesidade gera alterações hemodinâmicas, hormonais e funcionais no coração. Os possíveis mecanismos que justificam tal fenômeno ainda não são totalmente conhecidos e não existe um consenso na literatura se realmente há um paradoxo, ou ele é simplesmente fruto de falhas metodológicas5,6,7,8.
As hipóteses sobre os mecanismos que poderiam levar a obesidade ser um fator protetor no prognóstico da IC giram em torno de três pontos principais: o possivel efeito protetor da gordura marrom em obesos com IC, os efeitos antiinflamatórios de algumas citocinas e a conexão do tecido adiposo ao coração mediada pelos peptídeos natriuréticos (NPs)4,9.
Esta revisão apresenta os conceitos mais recentes sobre o tecido adiposo e seu principal componente os adipócitos e discute as evidências sobre um possível papel protetor da obesidade em pacientes com IC.
Considerado o principal reservatório energético do organismo, o tecido adiposo é apontado como um órgão complexo e dinâmico que exerce uma diversidade de funções em níveis celulares, teciduais e sistêmicos e pode apresentar efeitos profundos no sistema cardiovascular10. O tecido adiposo é um tecido extremamente flexível capaz de expansão, redução ou transformação, frente a estímulos apropriados11. Estudos atuais sugerem que tanto o fenótipo do adipócito quanto a distribuição da gordura corporal podem ser maiores determinantes de desfechos desfavoráveis em pacientes obesos do que a adiposidade total12.
As principais células do tecido adiposo são denominadas adipócitos. Além dos adipócitos, o tecido adiposo é constituído pela fração de estroma vascular (FEV), por outras células como os pré-adipócitos, células do sistema imune como macrófagos e linfócitos, além de fibroblastos e células do endotélio vascular. Três tipos de depósitos de gordura são conhecidos em mamíferos, sendo frequentemente classificados de acordo com a coloração apresentada: gordura marrom (BAT, brown adipose tissue), gordura branca (WAT, white adipose tissue) e a gordura bege ou brite (bAT, brown-like adipose tissue)11.
Em circunstâncias fisiológicas, a existência de WAT e BAT nos numerosos depósitos de gordura sugere existir uma transformação direta de pré-adipócitos diferenciados em células maduras com diferentes características morfológicas e funcionais, de acordo com sua localização anatômica13.
Encontradas nas regiões gluteofemoral (regiões anatômicas inferiores), subcutânea (imediatamente abaixo da derme), e em áreas viscerais14, a WAT está essencialmente envolvida no armazenamento e mobilização de energia. Este órgão possui característica multifuncional definida pela sua atividade endócrina, que é expressa pelos fatores que ele secreta como adiponectina, leptina, angiotensina, resistina, visfatina, proteína estimulante da acilação (ASP), esteróides sexuais, glicocorticóides, fator de necrose tumoral α (TNF-α), interleucina-6 (IL-6), ácidos graxos livres (FFA), entre outros15. Além das funções supracitadas, a WAT atua na regulação do apetite, na coagulação, imunidade e metabolismo lipídico, reprodução, angiogênese, fibrinólise, homeostase do peso corporal e controle do tônus vascular15,16.
Já a BAT é encontrada em quantidades abundantes na infância, enquanto que em indivíduos adultos seu volume é pequeno e geralmente situa-se nas regiões suprarenal, paravertebral e supraclavicular, bem como próximo aos grandes vasos17. Adipócitos marrons são ricos em mitocôndrias. Estas contém a proteína desacopladora 1 (UCP1, uncoupling protein-1), componente único da membrana interna da mitocôndria. O UCP1, ao desacoplar a fosforilação oxidativa da síntese do ATP, gera calor no lugar de ATP, permitindo que adipócitos marrons oxidem substratos para produzir calor19. A termogênese mediada pelo BAT mostrou ser um fator protetor contra a obesidade, promovendo o gasto energético19. Observou-se também que essa proteína atua na melhora da resistência insulínica20 e da hiperlipemia, drenando os substratos metabólicos para a oxidação21. O bAT, terceiro tipo de depósito de gordura, apresenta características intermediárias entre WAT e BAT e expressa uma quantidade intermediária de mitocôndrias. Os adipócitos beges poderiam ser originados de pré-adipócitos pluripotentes localizados nos vários depó-sitos de WAT, ou por transdiferenciação de adipócito branco em adipócito bege (e mais tarde marrom).
No entanto, sob condições de maior gasto energético, células semelhantes à adipócitos marrons (carreando UCP1 e talvez oferecendo outros mecanismos de oxidação e produção de calor) aparecem nos sítios de WAT, especialmente em depósitos subcutâneos. Isto também é chamado de “browning”, ou embejamento do WAT. Células lembrando adipócitos marrons que surgem desse processo são chamadas de “bege” ou “brite” (do “brown-in-white”)23. O embejamento das células adiposas pode ocorrer em outras condições, por exemplo, a IC.
Estudos com animais apontam que há uma correlação negativa entre obesidade e atividade do BAT23, que seriam menos vascularizados quando comparados aos não obesos24. Foi observado também que em camundongos obesos os adipócitos marrons eram maiores, uniloculares e predominantemente UCP1-negativos24. Em um estudo retrospectivo25, avaliaram a atividade do BAT, em humanos, por parâmetros metabólicos (atividade máxima, volume total e glicólise total) através de 1060 tomografia por emissão de pósitrons/tomografia computadorizada (PET/CT) padrão de 1031 pacientes. O BAT metabolicamente ativo foi encontrado somente em 5,1% dos indivíduos examinados, predominantemente mulheres. As mulheres mais jovens e esguias possuíam maior percentual de BAT ativo, com maior atividade metabólica. Observou-se uma correlação negativa entre a atividade do BAT, a idade e o IMC. Leitner e colegas (2017)26 mapearam o BAT humano utilizando uma nova técnica de processamento de imagens, indicando sua distribuição anatômica e capacidade metabólica. Os autores observaram que pessoas obesas têm menos BAT ativo que os normopesos (média, 130 mL vs 334 mL), e em contrapartida, mais depósitos de gordura contendo BAT (média, 1.646 mL vs 855 mL). Foram descritas seis regiões anatômicas contendo BAT ativo, sendo que 67 ± 20% do total de BAT ativo se concentra numa camada de fáscia contínua na parte superior do torso, compreendendo a região cervical, supraclavicular e axilar.
Quando o balanço energético é positivo, ou seja, quando a ingestão de alimentos é maior que o gasto energético, o tecido adiposo branco se expande. Esta expansão ocorre via aumento no volume dos adipócitos pré-existentes, bem como a formação de novos adipócitos brancos27. Esses adipócitos brancos recém-formados derivam não só de pré-adipócitos, mas também da transformação dos adipócitos marrons em brancos28,29. Seguramente, a exposição crônica a um ambiente obesogênico pode induzir a um clareamento desses adipócitos marrons30. O acúmulo de energia induz o BAT a auxiliar o WAT a armazenar mais energia (i.e. induz a transdiferenciação dos adipócitos marrons em brancos)31.
A obesidade pode possibilitar mudanças no tecido adiposo e promover a transição a um fenótipo metabolicamente disfuncional. À medida que o corpo ganha peso e desenvolve obesidade, os adipócitos hipertrofiam devido ao acúmulo de triglicérides, gerando um estado inflamatório de baixo grau32. O estresse local e a disfunção do tecido adiposo podem levar a morte de muitas células, o que induz a maior produção de adipocinas pró-inflamatórias e agentes quimiotáticos, que por sua vez promovem a infiltração de células inflamatórias33. Em resumo, a atividade do BAT parece ser metabolicamente protetora, levando os substratos metabólicos para oxidação, já o WAT estaria associado a alterações metabólicas sistêmicas, tais como a hiperglicemia, a resistência insulínica e a dislipidemia21,34.
As adipocinas são citocinas, peptídeos que sinalizam o estado funcional do tecido adiposo ao cérebro e outros órgãos alvo. No tecido adiposo disfuncional, a secreção de adipocinas está alterada e isso pode contribuir para uma gama de condições associadas à obesidade, incluindo, a doença cardiovascular. Apenas uma pequena porção de citocinas é produzida exclusivamente pelo tecido adiposo. Algumas adipocinas apresentam efeito anti-inflamatório e cardioprotetor levando à pesquisa sobre o uso terapêutico das adipocinas. Até o momento, a leptina é a única adipocina administrada com sucesso em pacientes com mutação no gene da leptina e lipodistrofia35.
Em organismos com funcionamento metabólico normal verifica-se um equilíbrio entre a produção de adipocinas pró-inflamatórias e adipocinas anti-inflamatórias. Com o aumento da obesidade, em especial a perivascular e a visceral, os adipócitos se encontram sobrecarregados por triacilgliceróis e energia, produzindo quantidades crescentes de adipocinas pró-inflamatórias e acarretando diversas consequências cardiovasculares negativas35. Dentre as adipocinas pró-inflamatórias identificadas até o momento podem ser citadas TNF, leptina, IL-6, resistina, proteína de ligação ao retinol (RBP4), lipocalina 2, interleucina do tipo 18 (IL-18), angiopoietina do tipo 2 (ANGPTL2), dentre outras, as quais são reguladas positivamente na obesidade36.
Sabe-se que as adipocinas têm efeitos no sistema cardiovascular, incluindo um papel regulatório na função miocárdica por meio do envolvimento no metabolismo miocárdico, hipertrofia do miócito, morte celular, e mudanças na estrutura e composição da matriz extracelular. Foi demonstrado também seu papel na regulação dos componentes de remodelamento miocárdico37.
Em contrapartida, algumas outras adipocinas cujas concentrações se relacionam diretamente com o conteúdo do tecido adiposo, ou seja, estão mais presentes nos obesos, apresentam efeito cardiovascular favorável. Em sua revisão, Sawicka e colegas (2016)38, ressaltaram alguns desses efeitos benéficos, relacionados a diferentes citocinas: o efeito inotrópico positivo, promovido pela apelina, que leva ao aumento do débito cardíaco; a angiogênese, promovida por apelina, CTRP3, quemerina, progranulina e leptina, estaria relacionada a uma melhor reação à hipóxia e à isquemia; a limitação ou inibição da apoptose de cardiomiócitos e células endoteliais, por ação da apelina, vaspina, CTRP3 e visfatina; a dilatação arterial, incluindo as artérias coronarianas, estimulada pela apelina e leptina; a atenuação da hipertrofia celular e fibrose, por efeito da apelina; e a atividade antiaterosclerótica por meio da redução do acúmulo de colesterol em macrófagos e por outros mecanismos, provocado pela apelina, vaspina e progranulina, o qual também foi descrito por Nakamura e colegas (2014)36.
O tecido adiposo é considerado anti-inflamatório, inicialmente, liberando adipocinas protetoras. Mas parece haver um limite de expansão, pois o fenótipo inicial anti-inflamatório não favorece a neovascularização. Então, quando ocorre maior demanda pelo oxigênio do tecido adiposo hipertrofiado, ocorreria algum grau de hipóxia tecidual que vai levar a morte celular e liberação de lipídeos no meio extracelular, estabelecendo-se um estado de estresse metabólico. Sendo assim, vão ser gerados mediadores pró-inflamatórios e haverá um maior recrutamento de leucócitos do sangue. Esses leucócitos recrutados apresentam fenótipo inflamatório e há uma amplificação desse estímulo, o que também induz a redução da sensibilidade à insulina39. Assim, as células em necrose liberariam um conteúdo nuclear, o HGMB-1 que promoveria um cerco pelos macrófagos em formação semelhante a uma coroa40.
Uma questão crítica a ser considerada quando se fala de macrófagos como elementos chave da inflamação do tecido adiposo é sua heterogeneidade conforme o tecido. Apesar do intenso estudo da ontogenia do sistema mononuclear fagocitário, nem todas as etapas de diferenciação estão definidas41. Como recentemente revisado por Gordon & Plüddemann (2017)42, há macrófagos que migram durante a embriogênese e se especializam de tal maneira que chegam a ter fenótipos tão distintos como células dendríticas, osteoclastos e células da microglia. Portanto, nos tecidos sempre há uma heterogeneidade de macrófagos especializados e recém-chegados pela circulação, oriundos da medula óssea. Essa heterogeneidade não é só morfológica, mas também funcional, pois depende da maior ou menor exposição previa a microrganismos. Por isso, macrófagos de órgãos internos têm um limiar de reatividade mais baixo, enquanto macrófagos em constante contato com o meio externo apresentam limiar mais alto42.
A massa de macrófagos subcutânea é maior que a visceral. A origem dos macrófagos no tecido adiposo ainda não está clara43. No entanto, estudos demonstram aumento de macrófagos M1 circulantes em comparação aos M2 em pessoas obesas com resistência insulínica. A indução direta dos adipócitos no fenótipo dos macrófagos foi demonstrada em estudos de co-cultura44,45. Como os macrófagos são responsáveis pela reciclagem do material celular, temos que considerar o papel do ferro acumulado em adipócitos e macrófagos contribuindo para deixar o tecido adiposo inflamado46.
Após a ação inicial, esses mesmos macrófagos que passam a expressar fenótipo M1, passariam a recrutar outros leucócitos. As células T residentes do tecido adiposo apresentam predomínio de fenótipo Th2 e os linfócitos recrutados aumentariam o fenótipo Th147.
A troca entre os adipócitos brancos e as células imunes infiltradas no WAT parece desempenhar um papel maior na fisiopatologia da obesidade. Evidências indicam que as células imunes, com destaque para os macrófagos, atuam nos depósitos de gordura intervindo na ativação termogênica e no recrutamento de tecido marrom e bege. As células imunes controlam a atividade dos tecidos adiposos atuando na ativação simpática e talvez, por outros mecanismos ainda desconhecidos48.
Os efeitos negativos das células pró-inflamatórias na atividade do BAT são mediados por citocinas pró-inflamatórias que inibem sinalização noradrenérgica. Macrófagos também atuam sobre o tônus noradrenérgico por meio da degradação da norepinefrina localmente e pelo aumento da inervação simpática de longo prazo. Apesar das evidências indicando que células imunes têm um papel no desenvolvimento e atividade dos tecidos adiposo marrom e bege, ainda não é possível entender completamente os mecanismos e fatores moleculares que mediam a comunicação entre as células imunes e os adipócitos marrom e bege e seus precursores49.
A IC se apresenta com dois fenótipos: a IC com fração de ejeção reduzida (HFrEF) e a IC com fração de ejeção preservada (HFpEF). Essas causadas ou exacerbadas por diferentes comorbidades cardíacas ou não50,51.
Nos dois casos, a ativação neuroendócrina desempenha um papel significativo por meio do sistema nervoso simpático (SNS) e dos NPs. Os NPs têm um papel compensatório, visando auxiliar a ejeção cardíaca e aumentar a vasoconstrição periférica em um empenho para manter a homeostase circulatória52.
A obesidade está associada a outras comorbidades que, por sua vez, associam-se aos dois fenótipos da IC: hipertensão, arritmias, diabetes, dislipidemia e doença coronariana53. Além disso, a obesidade tem efeitos deletérios no sistema cardiovascular mediados por mudanças do volume circulante, da carga cardíaca, da utilização do substrato energético, do metabolismo tecidual e a ocorrência de inflamação sistêmica. Em seu conjunto, esses fatores promovem a progressão da disfunção cardíaca54,55. A obesidade é associada a mudanças estruturais e funcionais do coração: hipertrofia do ventrículo esquerdo, aumento do átrio esquerdo, disfunção sistólica esquerda subclínica e disfunção diastólica56. Tanto na HFpEF, quanto na HFrEF, há um grande aumento no tecido adiposo esquelético, mesmo em pacientes sem obesidade, que contribuem para a intolerância ao exercício, especificamente na HFpEF. Esse aumento do conteúdo lipídico na musculatura esquelética pode alterar a perfusão e a função mitocondrial, reduzindo a densidade capilar57. Outro mecanismo que liga a obesidade tanto à HFpEF, quanto à HFrEF é a produção, pelo tecido adiposo, de substâncias cardioativas, incluindo a angiotensina II e a aldosterona que levam ao remodelamento cardíaco58. A deposição ectópica de lipídeos especialmente no coração pode exercer um efeito lipotóxico pela secreção de citocinas e adipocinas53. O aumento da gordura paracardíaca está associado a eventos cardíacos e alterações adversas na função miocárdica59. Esses efeitos deletérios, associados à deposição ectópica de lipídios em tecidos não adiposos, são atualmente denominados lipotoxicidade60.
Evidências de que o BAT aumenta na IC são antigas. Shellock et al. (1985)61 demonstraram que, em pacientes com IC crônica secundária à doença coronariana, ocorre acúmulo de BAT, o que também foi observado por Soares e colegas (1991)62 com indivíduos com Doença de Chagas. Aqueles com manifestação cardíaca apresentavam maior acúmulo de BAT quando comparados a pacientes com a forma digestiva. Os pacientes com manifestação cardíaca já com IC, foi o grupo com maior acúmulo de BAT. Interessante notar que entre os pacientes com doença de Chagas não foi observada correlação entre o BAT e o estado nutricional do paciente. Baseado nesses dados, Soares e colegas (1991)62 propõem que a hipóxia crônica pode ser o mecanismo responsável pelo acúmulo de BAT em pacientes com IC na doença de Chagas.
Mais recentemente, em um estudo com modelos animais comparando camundongos UCP1−/− com e sem injúria cardíaca, surgiram evidências que o BAT, quando funcional, atua na proteção contra a injúria dos cardiomiócitos e o remodelamento cardíaco provocados63. Dois artigos publicados em 2016 com modelos animais, comparando camundongos com IC induzida com controles mostraram resultados são discordantes. Valero-Muñoz e colegas (2016)64 induziram a HFpEF no grupo experimental. Não houve diferença entre o peso corporal dos dois grupos e em ambos não se observou sobrepeso. Nos camundongos com HFpEF houve uma substituição do WAT pelo BAT: os depósitos de tecido adiposo branco pesavam menos, mas com um aumento relativo do peso do BAT. Em relação à morfologia do WAT foi observada uma mudança nos camundongos com HFpEF, com adipócitos de menor tamanho, com múltiplas gotas de lipídios, característica do processo de embejamento das células. À nível molecular houve um aumento na transcrição de UCP1, característico também do embejamento do tecido e por outro lado, houve uma diminuição de marcadores típicos do tecido adiposo branco tais como a leptina, a resistina e mesmo a adiponectina. Ainda em relação ao BAT, a despeito do seu aumento de peso, observou-se um decréscimo acentuado na expressão de UCP1. Os autores mostraram que apesar do embejamento do WAT ser usualmente associado a efeitos benéficos como aumento da sensibilidade à insulina ou perda de peso, também está associado à perda de peso que leva à caquexia, o que é negativo. Ressaltam que no caso dos camundongos com HFpEF o embejamento aparentemente não foi benéfico. Valero-Muñoz e colegas (2016)64 atribuem o embejamento observado nos camundongos com HFpEF ao aumento dos níveis circulantes de peptídeo natriurético do tipo B (BNP) e peptídeo natriurético atrial (ANP). No estudo de Panagia e colegas (2016)65, camundongos com disfunção cardíaca mostraram um menor volume de BAT (avaliado por ressonância magnética), com menor conteúdo de gotas de lipídeos e maior quantidade de mRNA UCP1. Estes resultados parecem ser contradizer o descrito por Valero-Muñoz e colegas (2016)64. Os autores ressaltam a necessidade de futuros estudos para esclarecer se a ativação do BAT na IC é um processo adaptativo ou mal adaptativo.
Os peptídeos natriuréticos compõem uma família de hormônio com efeitos pleiotrópicos. Incluem principalmente o ANP, BNP, peptídeo natriurético do tipo C (CNP) e seus receptores66. Os peptídeos têm ação diurética, natriurética, e antihipertensiva, e exercem sua ação inibindo o sistema renina-angiotensina-aldosterona. Apresentam também atividade simpática sistêmica e renal. Além da natriurese, diurese, e vasodilatação, os peptídeos natriuréticos liberados pelo coração aumentam a lipólise e a mobilização lipídica67. Os cardiomiócitos, fibroblastos, células endoteliais, células do sistema imune (neutrófilos, células T e macrófagos) e células imaturas (por exemplo, stem cells embrionárias, células satélite musculares e células precursoras cardíacas) também sintetizam e secretam os peptídeos natriuréticos66.
Os níveis de BNP em um paciente podem ser alterados por gênero e idade68, hipertensão69, doença renal70, e fibrilação atrial71. O aumento nos níveis NPs com a idade provavelmente reflete a diminuição na capacidade do ventrículo esquerdo72 e taxa de filtração glomerular73. Os níveis de BNP circulante são relativamente baixos em estado normal, mas aumentam em patologias relacionadas à retenção de fluidos, como na IC74. O estiramento mecânico atrial ou ventricular (estresse da parede ventricular) são os mais importantes indutores à secreção de ANP e BNP, respectivamente75,76.
Níveis elevados de NPs, além de serem marcadores prognósticos para risco cardiovascular, estão correlacionados com a severidade da IC e têm se estabelecido como biomarcadores para o diagnóstico da IC, particularmente BNP e o pró-peptídeo NT-proBNP77.
Os efeitos dos NPs são atenuados na IC crônica78,79,80. Vários fatores podem ser responsáveis pela redução da eficácia do sistema peptídico natriurético (NPS) na IC: há disponibilidade reduzida de formas ativas de NPs, nomeadamente o BNP; a responsividade do órgão alvo fica diminuída; e, por fim, os hormônios contra-reguladores do Sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona (SRAA) e do SNS e a endotelina-1 tornam-se excessivamente ativados79.
Já se sabe que NPs são importantes reguladores do consumo energético e do metabolismo, apontando para uma “conexão do tecido adiposo ao coração” 81. Receptores de NPs (NPR) são expressos no tecido adiposo humano e os NPs podem estimular a lipólise, promover o embejamento dos adipócitos e, também, modular a secreção de adipocinas e a ingestão alimentar81,82,83,84,85,86,87,86. Essas evidências corroboram para a ideia de que o coração pertence à rede de órgãos endócrinos que regulam a utilização de energia e metabolismo87.
Nos adipócitos humanos in vitro, o ANP inibe a liberação de leptina e ambos, ANP e BNP, aumentam a secreção de adiponectina via receptor A do peptídeo natriurético (NPR-A)84. O ANP reduz ainda a secreção de IL-6, TNF-. e MCP-186.
Esses achados sugerem que a ativação do NPR-A deve reduzir a resistência insulínica, pois modula a secreção de adipocina e tem um efeito benéfico na inflamação de baixo grau do tecido adiposo87. Por outro lado, a perda de peso aumenta os níveis de NT-proBNP88.
Uma correlação linear negativa entre os valores plasmáticos de IMC e NP tem sido consistentemente relatada em estudos epidemiológicos87, o que é chamado de “natriuretic handicap”80. Ambos BNP e NT-proBNP estão inversamente associados com a gordura visceral e hepática (perfil de distribuição menos favorável) e positivamente associado com a gordura corporal inferior gluteofemoral, segundo dados do Dallas Heart Study89. O “natriuretic handicap” é definido como a combinação da redução da secreção ou aumento do clearence dos peptídeos natriuréticos. A redução do nível plasmático dos peptídeos natriuréticos parece ser reversível80. A redução dos níveis de ANP e BNP na obesidade pode ocorrer tanto por uma menor síntese, quanto por um maior clearence. A primeira hipótese é sustentada pela redução na expressão de mRNA cardíaco de ANP e BNP em ratos obesos e camundongos db / db90,91.
A primeira hipótese que exploramos foi a possibilidade do BAT, com seus efeitos protetores já evidenciados na intolerância à glicose e mesmo na obesidade, pudesse apontar caminhos na explicação do paradoxo da obesidade na IC. Mas, de um lado observou-se, tanto em animais, quanto em humanos23,24,25,26, que em obesos há menos BAT ativo. Por outro lado, o WAT do obeso é inflamado, rico em macrófagos que atuariam inibindo a sinalização noradrenérgica e aumentando a inervação simpática a longo prazo49, o que aumentaria a sobrecarga cardíaca. Há inúmeros estudos apontando para o aumento do BAT na IC61,62,64, no entanto, assim como na obesidade, é um BAT menos ativo, com menor expressão de UCP1. Outra observação fala contra a participação do BAT no paradoxo da obesidade na IC: sua presença foi relacionada à caquexia. Não encontramos nenhum estudo que examinasse a característica do BAT em obesos com IC. As evidências ainda são pontuais e difíceis de serem relacionadas. Os resultados não são promissores para apontarmos o BAT como explicação do paradoxo da obesidade na IC.
A segunda hipótese investigada foi a do papel das adipocinas com efeitos anti-inflamatórios. Encontramos dois estudos sobre o tema, no entanto, revisam adipocinas diferentes36,38. A atividade anti-inflamatória dessas adipocinas está associada à promoção de processos de regeneração do miocárdio, formação de novos vasos sanguíneos, redução da pós-carga, melhora dos processos metabólicos em cardiomiócitos e função contrátil do miocárdio, inibição da apoptose e fibrose do miocárdio. É interessante observar que essa é uma área ao mesmo tempo promissora e pouco explorada.
A terceira hipótese examinada foi o possível papel dos NPs. Os NPs têm também um papel na regulação do consumo energético e na regulação do próprio tecido adiposo, estando envolvido no embejamento dos adipócitos e interferindo na liberação de adipocinas81,82,83,84,85,86.
Sabe-se que os NPs estão diminuídos nos obesos, não se sabendo ao certo se por haver maior clearence ou menor secreção80. Se de um lado os NPs tem um papel compensatório visando garantir a homeostase circulatória52, de outro estão aumentados em doenças relacionadas à retenção de fluidos, como na insuficiência cardíaca74, aumento esse proporcional à severidade da condição77. Sua menor concentração nos obesos poderia implicar em uma vantagem? A revisão do papel do NP tanto na IC, quanto na obesidade, mostrou que se trata de um caminho igualmente promissor na compreensão do paradoxo da obesidade. Por outro lado, ficou claro também que devido às inúmeras interações com diferentes sistemas no organismo, este conhecimento avança mais lentamente.
Essa revisão teve o objetivo de examinar o possível papel protetor do tecido adiposo no paradoxo da obesidade na IC. Abordamos três hipóteses principais, duas delas se mostraram promissoras: o papel das adipocinas anti-inflamatórias e a conexão do tecido adiposo ao coração mediada pelos NPs. No primeiro caso, as evidências são mais diretas, embora haja poucos estudos sobre o tema. No caso dos NPs, apesar da existência de inúmeros estudos, as evidências são menos consistentes. Trata-se de uma área que merece ser acompanhada na tentativa de compreender o paradoxo da obesidade na IC, o que poderia permitir uma melhor abordagem ao paciente acometido por essa síndrome.
Os autores declaram não haver conflitos de interesses pertinentes.
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
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