Resumo: Pela análise da novela O colonizador, de G. G. Diniz (2020a), discutimos a representação da simbiose entre humano-fungo e sua correspondência na realidade social latino-americana e caribenha marcada pela colonialidade do poder. A narrativa passa-se no futuro, em um planeta glacial usado pela mineradora Astra para extração de metais. Em meio à exploração, foram encontradas reminiscências de vida senciente, e, nas amostras de gelo recolhidas, havia bolhas de ar com traços de uma espécie desconhecida de fungo que seria reanimada e analisada pela equipe de exobiologia, composta apenas do Dr. Costa e de sua auxiliar, Jandira. Por meio da experiência persecutória dessa personagem, a narrativa explora o medo de contaminação na perspectiva de uma protagonista cujos marcadores sociais de diferença representam, para a cultura gótica tradicional, "desvios" raciais e de gênero tratados como "contagiosos". Assim, Diniz (2020a), como autora brasileira contemporânea comprometida com a questão ambiental e social, atualiza aquela tradição ao tensionar a ansiedade sobre a relação entre humanos e "não humanos" e a ideia de natureza como fonte de horror. Desse movimento, emerge uma alternativa ao modelo exploratório de se relacionar com o outro total do humano. Para fundamentar essa discussão, baseamo-nos no pensamento de Ochy Curiel e Generoso (2020) para relacionar o conceito de colonialidade do poder ao extrativismo. Em seguida, contextualizamos os modos como o conceito de ecogótico pós-colonial é articulado em O colonizador como uma tecnologia discursiva que serve como antídoto à ecofobia de raiz colonialista.
Palavras-chave: Ecogótico, simbiose, pós-colonial, G. G. Diniz.
Abstract: Based on the analysis of the novel by G. G Diniz's (2020a), O colonizador, the representation of symbiosis between a human and a fungus we will be discussed, in addition to its respective correspondences to the Latin America and Caribbean social reality, marked by the coloniality of power. The narrative takes place mostly in the future, on a glacial planet used by the mining company Astra for iron extraction. Amid this exploitation, remnants of sentient life were found, and in the ice samples taken, there were air bubbles containing traces of an unknown species of fungus that would be revived and analyzed by an exobiology team, composed of Dr. Costa and Jandira, his auxiliary researcher. Through their persecutory experience, the narrative explores the fear of contamination from the perspective of a protagonist whose social markers of difference represent, for traditional Gothic culture, racial and gender "deviations" treated as "contagious." Therefore, as a contemporary Brazilian author committed to environmental and social themes, Diniz (2020a) updates that tradition through tensioning the anxiety about humans and "non-human" relations and the idea of nature as a source of horror. From this movement, an alternative unfolds to the exploratory model of relating to the otherness of humans. To support this discussion, we rely on the thoughts of Ochy Curiel and Generoso (2020) to relate the concept of coloniality of power to extractivism. Then, we contextualize how the concept of postcolonial Ecogothic is articulated in O colonizador as a discursive technology against colonial-rooted ecophobia.
Keywords: Ecogothic, symbiosis, post-colonial, G. G. Diniz.
Resumen: A partir del análisis de la novela " O colonizador", de G. G. Diniz (2020a), se discute la representación de la simbiosis entre humano-hongo y su correspondencia en la realidad social latinoamericana y caribeña, marcada por la colonialidad del poder. La narración se sitúa en el futuro, en un planeta glacial utilizado por la empresa minera Astra para extraer metales. Durante la explotación, se encontraron reminiscencias de vida sentiente y, en las muestras de hielo recolectadas, había burbujas de aire con trazos de una especie desconocida de hongo que sería reanimada y analizada por el equipo de exobiología, integrado únicamente por el Dr. Costa y su asistente, Jandira. A través de la experiencia persecutoria de este personaje, la narrativa explora el miedo a la contaminación desde la perspectiva de un protagonista cuyas marcas de diferencia social representan, para la cultura gótica tradicional, "desviaciones" raciales y de género tratadas como "contagiosas". Así, Diniz (2020a), como autora brasileña contemporánea comprometida con cuestiones ambientales y sociales, actualiza esa tradición al tensionar la ansiedad sobre la relación entre humanos y "no humanos" y la idea de la naturaleza como fuente de horror. De ese movimiento, emerge una alternativa al modelo de explotación de relación con el otro humano total. Para respaldar esa discusión, partiremos del pensamiento de Ochy Curiel y Generoso (2020) para relacionar el concepto de colonialidad del poder con el extractivismo. Luego, contextualizamos las formas en que el concepto de ecogótico poscolonial se articula en " O colonizador" como una tecnología discursiva que sirve como antídoto a la ecofobia de raíces colonialistas.
Palabras clave: Ecogótico, simbiosis, poscolonial, G.G. Diniz.
Seção Tema livre
A simbiose entre humano e não humano por meio da estética ecogótica pós-colonial de O colonizador, de G. G. Diniz
The symbiosis between humans and non-humans through the post-colonial ecogothic aesthetics of O colonizador, by G. G. Diniz
La simbiosis entre humanos y no humanos a través de la estética ecogótica poscolonial De O Colonizador, por G. G. Diniz
Recepción: 28 Febrero 2024
Aprobación: 08 Agosto 2024
— Precisamos levá-lo de volta.
— Eu preferiria vê-lo incinerado, mas você é o cientista
( Alien, o oitavo passageiro).
A novelaO colonizador (2020a) é a narrativa mais longa publicada pela autora cearense G. G. Diniz, até esse ano, e a primeira em formato tradicional. Antes disso, ela publicou contos em formato digital de forma independente, além da coletânea de contos e artigos fundantes do movimento sertão punk, juntamente com os autores Alan de Sá e Alec Silva. No ano seguinte, além de participar de antologias relevantes 1, ela coorganizou com Dante Luiz a antologia de contos fantásticos As artes mágicas do Ignoto, publicada pela editora Dame Blanche em parceria com a editora Corvus. Já em 2023, ela publicou o seu primeiro romance sertão punk intitulado A diplomata.
Com base nessa breve contextualização, podemos depreender que, pela publicação de O colonizador, em formato mais tradicional, Diniz alcançou notoriedade incontestável no mercado editorial, no campo da ficção especulativa, já que a novela integra a coleção ZigZag (Plutão Livros), que historiciza a ficção científica brasileira em três ondas e reconhece assim a relevância da produção literária da autora no campo literário. Cabe salientar que a Plutão Livros apresenta, nessa coleção, o panorama de produção literária do gênero desde a obra precursora, Sobre a imortalidade de Rui de Leão, de Machado de Assis (2018), e três ondas posteriores. Entre estas, a terceira onda é a em que se insere a produção de G. G. Diniz.
Diniz, aliás, é uma autora brasileira contemporânea comprometida com a questão ambiental e social, uma vez que é recorrente nas suas narrativas, especialmente as que se passam no Ceará ("O caso dos cajueiros", Morte matada e outras histórias e A diplomata, para citar alguns), a presença de um Estado opressor aliado das elites agrárias, cujas práticas agrícolas poluem rios e mares, impossibilitando à classe trabalhadora e racializada o acesso às condições adequadas de alimentação, saneamento e saúde. A questão ecológica é abordada em futuros distantes, e não tão distantes, de modo a estreitar a relação entre política ambiental e a hierarquia social no presente, sobretudo porque suas protagonistas são majoritariamente racializadas (negras, indígenas), com identidades dissidentes (lésbicas, bissexuais) e da classe trabalhadora, representando o outro social e literário brasileiro historicamente silenciado.
Tais experiências narrativas, vivenciadas por protagonistas marginalizadas, situadas em territórios degradados e permeados de violência, envolvem uma grande quantidade de desafios pela sobrevivência, entre eles o sexismo, que se manifesta em casos de feminicídio, assédio sexual e feminilização da pobreza. Cabe ainda observar que, apesar de as mudanças ambientais desencadearem doenças desconhecidas e intratáveis, alimentos e água contaminados, a natureza não é descrita como algo temível por si mesma, ou algo a ser controlado. Ao contrário, em A diplomata, por meio da cooperação na comunidade diversificada e permeável — aberta à diferença e a pessoas estrangeiras —, tecnologias são criadas para descontaminar a água, habilidades e talentos são reconhecidos e postos a serviço da sobrevivência de todos ( Diniz, 2023). Além disso, as narrativas sempre marcam que as mudanças ambientais e as catástrofes sociais são interconectadas e decorrem da intervenção humana.
Todavia, isso não significa que, em sua autoria, a natureza está isenta de causar estranhamento e horror. No conto O ovo ( Diniz, 2020b), a estrutura familiar de um ovo de galinha fecundado se transforma gradualmente em algo não familiar, pois descobrimos que ele carrega um ser alienígena. Já em O colonizador, a natureza é mostrada de forma ambígua: comportando-se tanto como um inimigo predatório como tornando-se parte do corpo humano em uma relação simbiótica. Essa ambivalência é um detalhe importante, porque explicita o embate entre duas visões de mundo opostas: a primeira reflete a ideologia dominante (supremacista humana), e a segunda, uma visão de mundo comunal, que considera impossível que um organismo vivo seja autônomo, refletindo assim uma perspectiva mutualista (Griffiths, 2015 apudVelho, 2023).
Ambas as perspectivas sociais apresentam a transgressão de uma fronteira entre o humano e o não humano, figurada na narrativa de Diniz (2020a) pelas figuras diametralmente opostas: o pesquisador-chefe, Dr. Costa, e a auxiliar, Jandira. Esse antagonismo social e epistemológico é construído lentamente, sob o prisma de um sujeito pós-colonial, indissociável da diegese, cujo paradigma relacional é mais permeável que o do sujeito descrito. A narradora ser uma mulher já reorienta a ordem do discurso colonial, pautado na objetificação de sujeitos marcados pela diferença ( Kilomba, 2019).
A temática de fronteiras borradas entre humanos e não humanos representa ansiedades culturais ( Deckard, 2019) recorrentes na literatura gótica inglesa, porém, uma vez que essas fronteiras estão focalizadas na perspectiva de sujeitos outrora descritos como a fonte do horror, somos convocadas a refletir sobre as formas multifacetadas de dominação ( Ko, 2019). Em primeiro lugar, porque acompanhar a jornada de protagonistas racializadas e genderizadas, simultaneamente, materializa uma leitura social que reconhece a multidimensionalidade ( Ko, 2019) dos princípios normatizantes: as opressões estão conectadas, pois a supremacia branca se desdobra em diversas formas estruturais de violência: racismo, sexismo, especismo, entre outras. Segundo, porque autoras pós-coloniais — oriundas de territórios outrora colonizados, mas com resquícios daquela estrutura político-social — apresentam, com frequência considerável, enredos nos quais se destaca a compreensão de que a violência conceitual precede a violência física ( Ko, 2019). Essa mudança de perspectiva, portanto, decorre em uma proposta de reconceitualização do gênero literário tradicional. Somando a isso um enfoque ecológico, temos os indícios necessários para ancorar O colonizador numa tradição ecogótica pós-colonial ( Tidwell, 2022). Assim, temos que as
descrições ambivalentes da natureza no "ecogótico global" de tradições culturais exteriores à Euro-América podem ajudar a revelar como relações socioecológicas são inextricavelmente entrelaçadas às hierarquias de raça, classe, gênero e às ideias de alteridade natural, mas também como as experiências culturais de catástrofe natural em outras nações intersecciona com um amplo contexto como o imperialismo 2 (Deckard, 2013 apudDeckard, 2019, p. 175, tradução nossa).
Essa compreensão de que catástrofes ambientais e sociais são interconectadas porque refletem ideias socioecológicas predatórias é a divisa entre o ecogótico e o eco-horror ( Deckard, 2019; Tidwell, 2022). Enquanto o primeiro, em sua vertente pós-colonial, esmiúça os tropos góticos com um olhar histórico, com atenção à colonialidade 3, e em vistas de não apenas denunciar seu funcionamento, como desabilitá-lo, o segundo tem como ponto de partida o medo de extinção e a noção binária que categoriza a fauna e a flora como perigosos em si, prontos para revidar a violência exercida pela "humanidade" ( Tidwell, 2022).
Tal imbricamento das formas de dominação é recorrente na literatura contemporânea pós-colonial, que registra a violência e o discurso colonial remanescente, mesmo com o fim da colonização ( Curiel; Generoso, 2020). Desse modo, autoras latino-americanas e caribenhas contemporâneas, como G. G. Diniz, Silvia Moreno-García, Ana Paula Maia e Nalo Hopkinson, exploram essas preocupações ambientais e sociais entrelaçadas na diegese, atualizando gêneros especulativos sombrios como o gótico, mediante o protagonismo de sujeitos, saberes e práticas historicamente subalternizados.
A teórica feminista afro-dominicana Ochy Curiel e Generoso (2020) argumentam que, embora esse padrão de dominação, fecundo no sistema capitalista, seja descrito adequadamente pelo conceito de colonialidade do poder, é importante pontuar que seus principais teóricos invisibilizam as contribuições intelectuais e as experiências de mulheres negras e indígenas — podemos também acrescentar as demais identidades dissidentes 4. Com isso, a crítica de Curiel e Generoso (2020) desestabiliza a transparência do conceito de colonialidade, à medida que evidencia como a própria descrição da persistência do discurso e das práticas coloniais — o conceito de colonialidade — é contaminada por essas mesmas noções disciplinares androcêntricas e brancas ( Curiel; Generoso, 2020). Em concordância com as autoras, usamos a seguir o conceito de colonialidade do poder como um meio de cultura contaminado pelo paradigma patriarcal.
O colonizador passa-se no futuro indefinido, no qual a humanidade acumulou capital e desenvolvimento técnico suficientes para expandir a prospecção de recursos naturais a planetas de outras galáxias. Já a ação transcorre em uma base de pesquisas localizada na zona glacial de um planeta usado pela mineradora Astra S.A., "a maior companhia de mineração da galáxia — bom, pelo menos dos sistemas solares conhecidos" ( Diniz, 2020a, local. 92), para extração de metal. Assim como os empreendimentos da "expansão ultramarina" extraliterária, a companhia privada da novela tinha posse das ruínas porque chegou antes àquela depressão preenchida por um lago congelado e, portanto, tinha autorização para explorá-la como lhe conviesse. Para disfarçar o seu objetivo extrativista, a Astra S.A. designou uma equipe multidisciplinar para pesquisar as "construções alienígenas" ( Diniz, 2020a, local. 107).
Em meio à exploração de camadas de gelo, foram encontradas reminiscências de vida senciente 5, e, nas amostras de gelo recolhidas, havia bolhas de ar com esporos de uma espécie desconhecida de fungo, que seria reanimada e analisada pela equipe de exobiologia 6, composta apenas do Dr. Costa (uma celebridade acadêmica da internet) e de sua auxiliar, recém-formada, Jandira.
Narrado em primeira pessoa por Jandira — exceto o epílogo, mostrado em terceira pessoa —, O colonizador é repleto de situações persecutórias cujas sequências de suspense desembocam, boa parte das vezes, em cenas anticlimáticas. Tais situações, descritas de forma detalhada na primeira vez e, depois, com eventos selecionados, são um recurso narrativo recorrente na composição de Diniz e tem como finalidade expandir, para quem está lendo, a sensação da totalidade do tempo transcorrido. Essa dilatação do tempo torna a convivência do pesquisador-chefe com a sua auxiliar tridimensional e interminável, refletindo assim a sensação de confinamento espaçotemporal da heroína para justificar a urgência de que ela tem de escapar.
Após contextualizar o empreendimento, Jandira descreve o clima agonístico estabelecido pelas atitudes de Dr. Costa, que sitia e invade o seu corpo:
[Ele] baixou a máscara para logo em seguida fazer o mesmo com a minha e se inclinar para enfiar a língua na minha boca. Na cabeça dele, talvez isso devesse ter sido um beijo. Para mim, era só o ponto alto de um pesadelo que já durava quatro meses. Eu o empurrei para longe e saí correndo e enfiando meus equipamentos de proteção individual de qualquer jeito no armário antes de fugir do laboratório para me trancar no quarto, na seção residencial da base. Fiquei abraçando meus próprios joelhos na cama por algum tempo, até que ele veio me procurar ( Diniz, 2020a, local. 119).
Dr. Costa insistentemente se aproxima, toca e invade Jandira. Sem nenhum tipo de suporte emocional ou institucional, ela busca refúgio em seu quarto, apenas para ser novamente interpelada pelos pedidos de desculpas dele, que, sob a alegação de que "[n]ão sabia que [ela] ia se incomodar" ( Diniz, 2020a, local. 126), prometeu não repetir o comportamento. Por causa da conduta reiteradamente descrita pela narradora como predatória, a língua dele exerce uma função fálica, ao penetrar o corpo da personagem, como se estabelecesse uma alegoria de um ato sexual não consensual. Diferentemente da literatura gótica oitocentista que apresentava circunstâncias de violência com detalhamento, que atendia a um olhar voyeurístico, desidentificado da heroína, a novela de Diniz (2020a), por sua vez, denuncia a violência, na perspectiva da vítima, convocando quem lê a vivenciar aquela situação juntamente com Jandira, ao mesmo tempo que previne as leitoras que passaram por essa situação de serem retraumatizadas ( Wester, 2012).
Nem mesmo o alojamento individual oferece proteção suficiente para impedir a expansão e o acesso do agressor à vítima. Por essa razão, quando Jandira tenta estabelecer um limite sobre não querer trabalhar com os fungos reanimados, Dr. Costa ignora-a e deixa o processo de repicagem (isolar o fungo que está sendo analisado de outros "microrganismos indesejados") e a produção das placas de Petri com meio de cultura sob a responsabilidade dela.
Ao usar o termo "orientador" para descrever a função de Dr. Costa, a narradora levanta uma delicada questão sobre estruturas de poder na academia. Isso porque, além de não ter provas do comportamento inadequado dele, Jandira sabia que
Uma conversa com alguém do[s recursos humanos] RH não resolveria nada, porque eu teria que ficar na base até o fim do período de seis meses de qualquer modo, e o máximo que me aconteceria seria me retirarem da pesquisa. Afinal, o "especialista" era o dr. Costa. Ninguém pensaria em deixar uma recém-formada encabeçar uma pesquisa daquele porte, principalmente sem conhecer direito o doutor ( Diniz, 2020a, local. 246).
Jandira também enfatiza que não considera Dr. Costa nem brilhante, nem responsável, afinal ele foi designado para o projeto por ser uma celebridade na área de divulgação científica, não por suas contribuições acadêmicas. Isso é reflexo de ser um homem altamente escolarizado, presumivelmente branco 7 e com idade mais avançada 8, uma representação da ideia moderna de sujeito, e, por extensão, de autoridade científica, imagem ainda cristalizada como modelo no âmbito da pesquisa ( Mazak, 2022).
Com base nessa imagem do divulgador científico como um indivíduo dotado de prestígio social e acadêmico, sem que seu reconhecimento seja proporcional às suas práticas, a narrativa denuncia a disparidade social, destaca o que ela desencadeia em âmbito intelectivo e leva-nos a questionar: que tipos de saber são produzidos e propagados por indivíduos como o Dr. Costa? Qual é o papel do "patriarcado capitalista supremacista branco imperialista 9" (Hooks, 2015 apud Mazak, 2022, local. 74, tradução nossa) na organização de instituições de pesquisa? Como as práticas opressivas impedem a inserção de mulheres e outros sujeitos de grupos minoritários em carreiras científicas? De que modo barram as transformações epistemológicas e políticas?
Segundo Cathy Mazak (2022), uma vez que as instituições educacionais de nível superior não foram construídas para a maioria das pessoas, elas também são responsáveis por reproduzir as inequidades, pois, embora os campi venham se tornando cada vez mais racial e socioeconomicamente diversos, o topo da carreira é ocupado majoritariamente por professores homens e brancos, que moldam a cultura acadêmica e a epistemologia em termos que universalizam a visão de mundo do grupo social ao qual pertencem, enquanto silenciam vozes oprimidas ( Kilomba, 2019).
Essa crítica à "cultura acadêmica", que é altamente patriarcal e racista como a sociedade na qual está enraizada ( Kilomba, 2019; Mazak, 2022), ao ser ambientada na estação que replica as estruturas hierárquicas terrestres, pode ser lida paralelamente com o "ambiente de cultura de fungos" e representar uma espécie de substrato para as ações humanas que impactam o meio ambiente, compreendidas na novela. Tanto as práticas coloniais remanescentes após o expansionismo europeu como os esporos fúngicos "contaminam" humanos sem uma estrutura aparente, mas ambos os efeitos são prejudiciais, desde o ponto do ponto de vista dos "humanos". Optamos, aliás, por usar o termo "humano" entre aspas, porque nos referimos à construção social de indivíduo que é enraizada nas práticas colonialistas empreendidas pelos europeus, e não ao termo taxonômico Homo sapiens (Ko; Ko, 2017).
Por conseguinte, associamos a capilaridade colonialista nas ordens social e epistemológica e na relação com o território 10 à predisposição fúngica a decompor a matéria, expandir o território e incorporar outros seres, para investigar as formas de simbiose entre "humanos" e o fungo escarlate.
No laboratório precário, Dr. Costa impunha a Jandira um ciclo de assédio seguido de pedidos de desculpa, além de sobrecarga de trabalho e situações de insegurança, à medida que ele ignorava todos os protocolos de segurança no laboratório, até que,
ao transportar uma das placas de Petri com o fungo vivo para a estufa enquanto falava com a câmera, o braço dele esbarrou em um equipamento, e a placa caiu no chão. […] A placa havia se partido em vários pedaços, espalhando cacos de vidro, meio de cultura e fungo no chão por um raio de trinta centímetros. Essa parte em si não tinha sido culpa do dr. Costa — era bem claro que haviam cortado alguns cantos na hora de adquirir as vidrarias e equipamentos do laboratório. Uma boa placa de Petri não se quebraria assim ( Diniz, 2020a, local. 282-290).
Embora o interesse dos microbiologistas, ao reanimarem uma criatura desconhecida, se coadune ao de Victor Frankenstein num primeiro momento, diferentemente deste, eles possuem limitações tecnológicas que tornam o empreendimento mais do que improvável: perigoso. A base de pesquisas financiada pela Astra era mantida com "ar reciclado", um "laboratório péssimo" ( Diniz, 2020a, local. 133), equipamentos de segurança de baixa qualidade e recursos médicos escassos. Nesse sentido, as placas de Petri quebrarem é apenas o início de uma série de situações que desencadeiam na contaminação de toda a equipe de pesquisa. Também, diferentemente de Frankenstein ( Shelley, 2023 [1818]), em que a criatura trazida à vida era um ser vivo heterogêneo, mas produzido com tecido e órgãos humanos, O colonizador ficcionaliza o reavivamento de um ser não humano e não animal, algo para além da fronteira eu/outro compreendida com maior frequência no gênero gótico, e dotado de um reino próprio: os fungos.
Fungos, aliás, são organismos eucariontes, o que significa que possuem uma estrutura celular complexa, mas a composição da parede diverge da dos demais. Eles não são animais, tampouco plantas ou bactérias, mas a semelhança celular torna vívida a hipótese de uma origem em comum com os seres sencientes. Além disso, o reino Fungi compreende uma considerável biodiversidade de fungos, que podem se apresentar como seres de dimensões microscópicas e megascópicas, com diferentes formatos, cores, variações no modo de reprodução (sexuada e assexuada) e fonte de alimentação. Essa diversidade, somada à função decompositora, faz dos fungos seres
cruciais para a vitalidade terrestre, uma vez que são os grandes recicladores da natureza, transformando variados resíduos — vegetais, animais, minerais e até mesmo plásticos — em nutrientes fundamentais que sustentam o ciclo da vida. Esses seres moldam economias complexas, de maneira positiva e negativa. Atuam na fabricação de álcool, bebidas, panificação, fermentação industrial, produtos farmacêuticos e biotecnológicos ( Velho, 2023, p. 2).
Ciente desse amplo espectro que a relação entre humanos e os fungos terrestres pode compreender, Jandira expressa uma insegurança justificada na manipulação dos fungos alienígenas 11 extintos há três mil anos. Algo desconhecido, congelado no tempo, embora parecesse inofensivo, para ela, deveria ser analisado com cautela para evitar uma contaminação generalizada. É interessante observar que essa precaução da auxiliar em nada se assemelha ao horror de Dr. Costa; por se tratar de um sujeito típico, ele figura o medo da insurgência dos oprimidos, dado que é um invasor autoconsciente, e, além disso, representa o real interesse da Astra, que é "destruir tudo para extrair matéria-prima" ( Diniz, 2020a, local. 102).
Naquele ponto, as investidas de Dr. Costa são prenúncio de uma situação de violência física concreta, mas, antes de isso se concretizar, já farta do padrão de comportamento dele, Jandira resolve, finalmente, "não perdoar" o assediador. Depois de tanto narrar a sua "versão pessoal de tortura" ( Diniz, 2020a, local. 147), que era trabalhar apenas com o Dr. Costa assediando-a ao longo de quatro meses, por causa dessa aparente inércia inicial, no momento do desenlace, existe uma solidez que torna a sua atitude, além de credível e justificável, aguardada por quem está lendo. Ela decide deixar o trabalho de descontaminação do laboratório após o acidente, para que "ele que tinha feito aquilo ao tentar gravar enquanto trabalhava, […] que limpasse" ( Diniz, 2020a, local. 293), entretanto o pesquisador não foi capaz de fazer o procedimento de modo adequado, afinal:
Pegou os pedaços da placa de Petri, jogou-os na pia — embora o procedimento correto fosse levá-los direto ao incinerador — e tentou lavá-los. Nessa tentativa infame, acabou se cortando. A princípio, não vi o que estava acontecendo: ele fez uma careta antes de levantar a mão, pingando sangue ( Diniz, 2020a, local. 293).
Diante disso, e temendo ser contaminada, Jandira vestiu os equipamentos de proteção individual, limpou o chão e tudo ao redor da zona impactada pela queda da placa e jogou os cacos dela no incinerador enquanto o causador se eximia da tarefa. Essa sobrecarga, decorrente da irresponsabilidade de Dr. Costa, exemplifica a persistência das relações coloniais impalpáveis, já que o pesquisador transformou uma relação de trabalho em uma relação senhor/servente discursivamente e, dessa maneira, se transformou em um "senhor branco simbólico" ( Kilomba, 2019, p. 93).
Além do fato de Jandira ser submetida a violências sexistas, das quais tem certeza de que a impunidade é irrefutável, podemos depreender que ela não é branca como Dr. Costa, o opressor, nem preta como Uzoma, seu interesse romântico, mas a maneira como se atenta às questões raciais a aproxima da médica, de modo a presumirmos que também seja uma mulher negra, provavelmente parda. Desse modo, temos o microbiologista exercendo um duplo poder em relação à auxiliar, de raça e de gênero, o que propicia uma terceira faceta, que é a hierarquia profissional. Por fim, depois do acidente, Dr. Costa continuou vestindo o equipamento da proteção apenas para tirar fotos, deixando Jandira com o trabalho braçal e a invisibilidade.
Depois disso, Dr. Costa mais uma vez se comporta inadequadamente: Jandira depara com seu chefe ora se masturbando, ora sendo estimulado sexualmente por uma das pesquisadoras no escritório compartilhando, e tudo isso vai criando uma noção de que ele partiria "para as últimas consequências daquela obsessão" ( Diniz, 2020a, local. 369), que "acabou sendo pior pra ele" ( Diniz, 2020a, local. 150).
Mais uma vez, o pesquisador inicia o ciclo de desculpas e mais abusos indo até a porta do dormitório de Jandira pedindo que ela saia. Dessa vez, mais empoderada, Jandira sai do quarto e responde de modo mais objetivo às investidas dele, até que pode
ver os olhos vidrados, como se ele não visse nada mais ao redor. Olhou para mim e avançou na minha direção, segurando meu rosto com as duas mãos e tentando encostar a boca na minha. Não era o rosto de alguém que tentava forçar um beijo, mas de alguém que estava alucinando. Foi o que me fez começar a gritar e empurrá-lo para longe antes que ele pudesse me beijar de fato ( Diniz, 2020a, local. 396).
O auge da experiência persecutória dessa personagem sumariza a noção pós-colonial de monstruosidade, tensionando o que poderia ainda parecer tratar-se duma prática sexual, para um tipo de público descrente da concretude da violência que arruinava a mente dela até transparecer a forma de poder bestializada que comprometia a sua integridade física. A heroína estava decidida a sobreviver, então, decidiu que Dr. Costa "podia ser um homem, mas não era páreo para uma mulher decidida a ficar o mais longe possível dele. Ele não desistiu, mas eu também não, e continuei a gritar e me debater no corredor outrora quieto" ( Diniz, 2020a, local. 396). Com os gritos, logo chegaram um médico e uma engenheira, que conseguiram conter Dr. Costa, "que passou a se agitar como um animal raivoso" ( Diniz, 2020a, local. 396). A animalização sinaliza a passagem discursiva do estado "humano" (civilizado) para o "não humano" (incontrolável), desnaturalizando assim a equivalência aparente entre humano e Homo sapiens (Ko; Ko, 2017).
Tão logo foi contido, Dr. Costa tranquilizou-se, mas foi escoltado para a ala médica, enquanto Jandira foi acolhida por Magda, que já havia presumido o propósito da investida. E, mais uma vez, a diferença de poder se impõe na fala interior de Jandira:
Se eu decidisse denunciá-lo ou formalizar qualquer tipo de queixa, ele poderia alegar distúrbio psiquiátrico, dizer que estava se tratando. Podia falar que aquilo não tornaria a acontecer. Entretanto, mesmo antes de ele ter aparentemente enlouquecido, ele já enfiara a língua na minha garganta ( Diniz, 2020a, local. 409).
Nesse ponto, até a questão da saúde mental se torna um provável mecanismo de proteção para Dr. Costa, reforçando que, independentemente de suas ações, existe uma estrutura amorfa que o protege. No primeiro capítulo, Jandira reitera a ambiguidade que estrutura a narrativa: "Se o dr. Costa não fosse um escroto, eu teria notado mais cedo que algo estava errado" ( Diniz, 2020a, local. 150). Então, depois do agravamento das atitudes do pesquisador, paira uma ambiguidade sobre as atitudes bestiais de assédio: o descontrole é uma característica daquele indivíduo, um efeito colateral de sua confiança excessiva no sistema? Ou já indício de contaminação?
Quando foi ao consultório médico, Jandira viu Dr. Costa atado a uma cama, segurado por três pessoas, "todo mijado e sujo de saliva" ( Diniz, 2020a, local. 434), revelando a monstruosidade que ela enfrentou inúmeras vezes, sob um invólucro de cidadão exemplar. Finalmente, as ações perversas do pesquisador não estavam mais sendo contidas pelo seu corpo, muito menos reprimidas pela sua psique ou convenções morais. Essa passagem apresenta outra importante revisão do gênero gótico, porque contrasta o horror do corpo com o horror da vida real e acentua o quanto o último é mais assustador, devido ao seu caráter hodierno e, por ora, inescapável.
Embora Jandira assistisse à cena e continuasse incrédula, supondo tratar-se de uma forma de manipulação, quando ela viu seu orientador cuspir no olho da enfermeira Meili percebeu algo real naquilo. Mais uma vez, a colonialidade do poder emerge na obra: o pesquisador manteve seu comportamento sexista ao atingir uma mulher hierarquicamente subordinada ao médico (Suman). Em situação posterior, Meili, que, por sua vez, não se aproximava de dra. Uzoma por esta ser "lésbica, e isso era óbvio" ( Diniz, 2020a, local. 498), começou a aproximar-se de modo predatório, sussurrando, tocando e, com contato visual fixo, intencionando seduzir a médica.
Considerando esse novo evento, podemos desambiguar o comportamento do paciente zero: Dr. Costa. Ele, assim como a enfermeira, já tinha uma mentalidade "contaminada" pela cultura dominante do sistema capitalista, que é a hierarquia social, o substrato adequado para todas essas atitudes vis. Assim, se eles exerciam poder antes do contato com o fungo, seu comportamento impulsivo passou a explicitar-se ainda mais, com uma radicalizada suspensão dos valores morais e do controle do corpo. É significativo que a contaminação siga de uma figura que representa o topo do poder daquele contexto para alguém em posição desprivilegiada em relação a ele, mas "bem colocada" o bastante para ilustrar a expansão vertical e descendente da colonialidade.
Jandira refletiu, então, que Dr. Costa "não estava agindo de maneira estranha, a não ser que, desde o começo, tudo o que ele fizera tivesse sido devido à misteriosa doença, e não por ele ser um completo escroto" ( Diniz, 2020a, local. 443). A impressão de que havia algo alterado no olho do pesquisador era o indício da contaminação, tratada inicialmente como caso psiquiátrico, mas, quando os exames de sangue revelaram resultados que extrapolavam os limites, nenhuma explicação foi elaborada, afinal "era como se o organismo dele tivesse enlouquecido… Tentando combater uma infecção" ( Diniz, 2020a, local. 502) que apenas Jandira sabia ter se originado na colônia de uma espécie desconhecida de fungo.
Ambos os infectados figuram a diferença entre sexualidade e exercício de poder. A orientação sexual de Meili não deve ser confundida com a sua investida sexual contra a Dra. Uzoma, fato que também desnaturaliza a continuidade aparente entre a orientação heterossexual presumida de Dr. Costa e o suposto interesse sexual direcionado a várias mulheres, entre elas Jandira. É "suposto" porque não é motivado por um desejo sexual, mas pela lógica de dominação. Assim, o indício de contaminação, "debaixo das pálpebras, seus olhos estavam tomados pela cor carmim do fungo" ( Diniz, 2020a, local. 624), confirma que a interação com outro ser intensificou a sua agressividade, a fim de manifestar a visão de mundo darwinista 12, de sobrevivência do mais forte.
Noutro sentido, por meio da experiência persecutória relatada por Jandira, a narrativa explora o medo de contaminação na perspectiva de uma protagonista cujos marcadores sociais de diferença representam, para a cultura gótica tradicional, "desvios" raciais e de gênero tratados como "contagiosos". Assim, a obra discute noções de monstruosidade, expõe o fato de que a condição humana é a vulnerabilidade (fato ocultado pelas estruturas artificiais de poder) e, por fim, discute o conceito de benefício residual ( Ko, 2019) como um dos piores efeitos colaterais do colonialismo.
Esses efeitos colaterais são o que a filósofa Aph Ko (2019) conceitua como benefícios residuais. Segundo a autora, se os privilégios propiciam que a classe dominante segregue, domine, violente e explore as demais por intermédio do controle das instituições, as vantagens sociais, que se assemelham a privilégios em dado contexto, mas que carecem de suporte institucional, são benefícios residuais resultantes da imposição cultural, distintos dos privilégios. Com base na compreensão desse conceito, entendemos que as atitudes racistas e lesbofóbicas de Meili a aproximam ocasionalmente do poder, mas não fazem dela privilegiada. Em vez disso, fazem dela apenas mais uma emprenhada em formas complexas de opressão institucional que coisificam todos os tripulantes.
Se O colonizador enfocasse o ponto de vista do pesquisador, a fonte de horror seria a natureza em si, desde o clima "inóspito" (para humanos) do planeta e todos os seus aspectos desconhecidos, que escapam de definições científicas antropocêntricas, e constituiria assim um horror ecológico, propriamente um eco-horror ( Deckard, 2019). Com isso, a sua monstruosidade se manteria normalizada, porém, como a novela critica as ações humanas contra o mundo natural e subverte a ideia de natureza como ameaça, ela se filia ao ecogótico, um subgênero que se apropria dos tropos góticos para apresentar as ansiedades sobre o meio ambiente. Assim, o tropo gótico do castelo sombrio, no ecogótico, se converte numa cabana na floresta que separa as personagens da natureza ( Tidwell, 2022).
O fato de a narrativa transcorrer num futuro tecnológico atualiza aquele tropo uma vez mais: a base de pesquisa é o território conhecido, em que a "humanidade" é cultivada; o vilão é um monstro social, cujas ações grotescas prefiguram a revelação da sua repulsividade em termos de excrementos e de bestialidade; a sua presença tanto contesta a fronteira entre a humanidade e a natureza como evidencia a ecofobia, ou seja, o medo da agência do meio ambiente (Estok, 2009 apudDeckard, 2019). Enquanto Meili trata Uzoma como uma aberração por sua aparência e expressão de gênero, nem mesmo a condição desumanizada dos infectados faz Jandira pensar neles como monstros. Na perspectiva dela, letais e repugnantes eram as figuras de poder presumivelmente "saudáveis", que tomavam decisões institucionais que definiam quem vivia ou morria.
O imperialismo ecológico é a violência ( Deckard, 2019) que serve como corolário de diferentes formas de violação de Jandira, particularmente, e mais: como uma força narrativa que impulsiona a revelação do inconsciente ambiental recalcado há três milênios. Essa história, em parte, emerge quando é iniciado o processo de contaminação da equipe com uma crescente "sensação" de agência do fungo, até Jandira finalmente sugerir que "o fungo quer contaminar mais pessoas" ( Diniz, 2020a, local. 529). Uzoma completa o raciocínio: "Então esse fungo controla mentes" ( Diniz, 2020a, local. 529). A personificação do fungo filia Uzoma e Jandira a um modelo de pensamento que relativiza a centralidade do "humano", enquanto reconhece que a humanidade é parte de um sistema amplo, complexo, que é a natureza. Ainda assim:
Se analisarmos, os fungos nem sempre são benéficos em suas associações interespecíficas, uma vez que algumas dessas interações são marcadas por relações patogênicas destrutivas, enquanto outras resultam em incômodos parasitismos. No entanto, também é inegável que muitos fungos coexistem harmoniosamente com outros seres vivos. O interesse fúngico é sempre ambivalente, e sua avaliação depende da perspectiva adotada. Essa ambivalência é determinada pelo olhar sob o qual observamos essas interações. É importante notar que a presença de fungos em certos contextos e momentos não apenas reflete mudanças naturais, mas frequentemente revela transformações nas práticas humanas ( Velho, 2023, p. 6).
No contexto narrativo, o prisma pelo qual Jandira e Uzoma avaliam os efeitos da interação entre o fungo e o corpo humano reconhece a falha na tentativa de domesticação do desconhecido e até certa impotência diante dela. É nesse ponto da diegese que a colônia de fungos passa de objeto manipulado a agente e, por meio de seu revide, revela a letalidade das intervenções humanas colonialistas.
Com a definição do comportamento violento e dos movimentos corporais incomuns dos indivíduos infectados como doença, a equipe médica passa a constituir o paradigma de saúde como atitudes norteadas pela "racionalidade" e repressão dos instintos (características definidas como "humanas"). Menos de 24 horas depois da crise de Dr. Costa, a infecção havia atingido três quartos da população da base, e os padrões de comportamento foram compreendidos em estágios: iniciando-se com atitudes sexuais exacerbadas, com o intuito de contaminação, seguido pelo quadro de agitação, colapso do corpo e morte.
Segundo Jandira, o fungo alojava-se no sistema nervoso central e tomava o controle do corpo, dando um aspecto de morte aos indivíduos, cujos "olhos estavam tomados pela cor carmim do fungo" ( Diniz, 2020a, local. 622). Apesar dessa deterioração física, do ponto de vista da protagonista, parecia haver um tipo de intencionalidade antropomorfizado: "O dr. Costa — ou o que sobrara dele — parecia querer nos desafiar a ir ajudá-lo" ( Diniz, 2020a, local. 646).
Jandira continua: "O mais perturbador não era assistir à morte do dr. Costa, mas o pensamento de que o fungo estava querendo foder com a nossa cabeça" ( Diniz, 2020a, local. 651). Com isso, ela começa a usar termos cada vez mais humanizados, para atribuir uma espécie de individualidade aos fungos, como, por exemplo, "controlar o sistema neurológico dos pacientes" ( Diniz, 2020a, local. 683), e reduz os indivíduos humanos a "uma casca sob o comando do fungo" ( Diniz, 2020a, local. 677). O processo lento e detalhado de morte do doutor confere à personagem uma punição narrativa, que culmina na ficcionalização de uma das características fúngicas observáveis, o aparecimento do corpo de frutificação:
Das orelhas, da boca e dos olhos saíam brotos de braços vermelhos e flexíveis que só podiam ser o corpo de frutificação do fungo.
O fungo era resistente ao frio. Apesar de não estar frio o suficiente para congelar um cadáver por completo, estava bem frio — e a infecção avançava à toda marcha para seus estágios finais ( Diniz, 2020a, local. 712).
Essa revelação literal do fungo, às custas do corpo de Dr. Costa, desenlaça o mistério das ruínas alienígenas: a ausência de restos orgânicos é resultado do processo veloz de frutificação do organismo, mesmo sob baixa temperatura, que "devorava os restos do hospedeiro por completo, e as hastes vermelhas se arrastavam pelo chão, formando micélios e, depois, estruturas verticais" ( Diniz, 2020a, local. 721).
Embora a microbiologista tenha feito testes no laboratório com o intuito de desenvolver um antídoto para a infecção, o microrganismo extraterrestre era desconhecido para o sistema imunológico terráqueo e vulnerável ao que também humanos eram. A certo ponto, a imunidade do fungo diante da vulnerabilidade humana pareceu intimidante demais para os sobreviventes engajados. Jandira, Uzoma, Magda e Suman desenvolveram um plano de eutanásia para os infectados, que seriam descartados no gelo com sedação suficiente para evitar o sofrimento, para manter a base segura.
Enquanto Jandira e Suman realizavam a eutanásia nos infectados, ensacamento e empilhamento no carrinho de transporte, Magda e Uzoma transportavam os sacos para o caminhão. Tudo transcorria bem, até que Meili, com olhos carmim, bate no caminhão até abrir a porta e fazer o veículo capotar, reduzindo assim a lista de sobreviventes. É interessante observar que, entre os mais de 20 indivíduos sedados, foi Meili quem retornou para causar a morte da Dra. Uzoma. Essa sequência trágica confirma a prevalência da colonialidade, após uma aparente calmaria, e uma mudança de situação parece surgir. É conservador que uma personagem preta lésbica masculinizada morra para reforçar a ausência de espaço narrativo, mas essa escolha, além do efeito mimético, também denuncia a prevalência das estruturas sociais autoritárias que "adormecem", mas são reanimadas, adaptadas, como fora o próprio fungo carmim. A morte espetacularizada, lenta e sangrenta de Dr. Costa mostra o quanto as estruturas sociais parecem insuperáveis, mas são limitadas, dado o seu entrelaçamento com a vulnerável existência humana.
Os remanescentes então se juntam para perseguir uma última contaminada na base, Chandra, que tentou persuadir Suman e Jandira a sedá-la. Chandra foi ampliando as atitudes que provocavam empatia, o que levou Suman a se aproximar dela e quase ser contaminado. Chandra insistiu para que ele retirasse a máscara e, quando ele negou, passou da tristeza aparente a um estado colérico. A frieza com que Jandira encarou a cena pode denotar incredulidade com o uso de "artifícios femininos" naquela situação, mas também corrobora a hipótese de contaminação, afinal os contaminados ignoravam outros infectados e voltavam a sua atenção para possíveis alvos.
Quanto a Jandira, é observável a sua modificação gradual no modo de pensar (de fugir a matar para não morrer), acrescido de ações violentas com o propósito de sobrevivência. Isso causa dúvida quando ela pega Suman pela mão, o puxa para um abraço e "não resiste" a uma proximidade física maior. Após toda a sequência de situações traumáticas, a descontaminação da estação, o descarte das colônias e dos testes de infecção negativos e o acordo para extração, Jandira e Suman, "sedentos, [acabaram] não indo para um local apropriado" ( Diniz, 2020a, local. 954) para consumar a relação sexual e contaminar o médico. Uma vez que a personagem já havia mencionado o seu desinteresse por homens e pela "genitália masculina", podemos depreender que a sua proximidade e o ato sexual são apenas indícios de contaminação, de poder e de expansão, não de afetividade nem de atração sexual.
Após o encerramento da narrativa, Diniz (2020a) apresenta um epílogo, no qual testemunhamos a mudança do ponto de vista: Jandira deixa de contar a sua história, e quem contextualiza os acontecimentos é uma voz narrativa externa, mas onisciente. Essa voz relata uma situação breve: Jandira acabara de ter relação sexual com um desconhecido no "espaço-porto". Nesse ponto, as intervenções humanas de Astra no espaço natural atingem um novo patamar: será que a única sobrevivente se tornará um mero vetor para a "doença" desconhecida em um lugar com volume de transeuntes elevado, pulverizando o fungo em diferentes galáxias? Ou será que ela se adaptou, absorveu o organismo alienígena e conseguiu sobreviver indissociada do fungo escarlate?
Segundo a narração, o homem que Jandira acabara de contaminar se arrependia de ter acreditado numa desconhecida e de ter mantido uma relação sexual com ela sem camisinha. Ele está silenciado (a voz narrativa fala por ele) e vulnerável, ocupando um lugar simbólico de feminilização, outrora experienciado por Jandira, direcionando assim a leitura para o entendimento de que a oprimida não se libertou e, agora empoderada, passou a ser uma contextual opressora — e não apenas "ela", afinal seu corpo se transformou em algo mais complexo, por meio da simbiose.
Entretanto, depois de tudo o que Jandira narrou, esse comportamento sexual predatório orientado para a vitimização estrita — subentendida — de homens cisgêneros pode significar algo diferente, um revide racionalizado, quiçá até um projeto de extinção masculina. Fortalece esse entendimento o contraste entre a orientação modificada de Meili e sua investida contra Uzoma, enquanto a dissidente Jandira direcionou seus esforços na contaminação de homens. A sobrevivente "perder a voz" é um vestígio de sua modificação, mas seu diálogo com o desconhecido indica que não se tornou "apenas uma casca", somente que a sua sobrevivência é subsidiária da morte de outros.
Cabe ainda acrescentar que a performance da protagonista constitui uma transgressão ao imaginário racista genderizado ( Kilomba, 2019) propagada no gótico tradicional ( Wester, 2012), incapaz de compreender a pluralidade, a agência e a "autonomia erótica" ( Collins, 2019, p. 281) de mulheres negras. Assim, por meio de uma criatura híbrida que escapa a definições, a obra de Diniz (2020a) desabilita o discurso gótico tradicional, que atribuía às mulheres negras uma sexualidade incontrolável, animalesca e, portanto, irracional, e sugere que o antídoto para a colonialidade sejam a abertura radical e a cooperação com o outro: a permeabilidade.
Por fim, quando "a luz do banheiro bateu em seus olhos, e o homem viu neles um fundo vermelho opaco" ( Diniz, 2020a, local. 975), concluímos que a sobrevivente foi modificada na jornada e se tornou, de fato, uma garota final, isto é:
A única sobrevivente — superando ao ataque do monstro, e geralmente sendo a única (como Ripley em Alien: o oitavo passageiro [1979]). Como Clover explica, "ela encara a morte sozinha, [e] sozinha encontra a força para enrolar o monstro por tempo suficiente para ser resgatada (final A) ou matar o monstro sozinha (final B). A Garota Final também é uma sobrevivente — espera, habilidosa e lutadora diante do mal" ( Coleman, 2019, p. 223).
Jandira não apenas supera o monstro, Dr. Costa, para sobreviver, como também se torna uma criatura cuja agência é monstruosa, porém a persistência da supremacia branca patriarcal no contexto sociopolítico extradiegético inviabiliza, como as narrativas protagonizadas por mulheres negras em geral, a superação do "verdadeiro mal", a matriz de dominação ( Collins, 2019), isto é, a maneira como as opressões são articuladas e reificadas de modo a estruturar e fortalecer a hegemonia branca, masculina e heterossexual e habilitada. Sua vitória é elusiva, mas ela também subverte um tropo do horror negro, o da "mulher durona" ( Coleman, 2019), uma sobrevivente negra geralmente interessada em lutar pela sobrevivência dos homens. Jandira escapa a definições, afinal a narradora-personagem de O colonizador, ao contrário das mulheres duronas, não apenas "já não [se] sentia muito à vontade com a ideia de pôr a boca na circunvizinhança da genitália de um homem" ( Diniz, 2020a, local. 352), como foi destruindo cada um com quem se relacionou sexualmente.
O desfecho de O colonizador segue na direção contrária à ecofobia ao propor uma relação simbiótica entre Jandira e o fungo para além do recorte espaçotemporal compreendido na narrativa. Esse fato está implícito no modo como as situações mencionadas demonstram que Jandira tem uma perspectiva social permeável, aberta à cooperação com pessoas diferentes. Assim, ela partilha com o fungo a prática — e a intencionalidade — baseada na reciprocidade, na partilha e nas relações colaborativas, o que pode ser definido, em termos biológicos, como mutualismo ( Velho, 2023). Sobreviver, naquele contexto, é, portanto, resultado da abertura ao desconhecido, ao outro, e confirma as orientações teórico-práticas anticapitalistas como propostas de relação mais adequadas para o convívio entre espécies distintas, que também se reflete no âmbito político stricto sensu.
O sexismo é o ponto de partida de O colonizador, do qual se irradia uma série de situações agonísticas vivenciadas pela narradora homodiegética, Jandira. As violações sofridas por ela desembocam no acidente em que Dr. Costa ocasiona a proliferação dos fungos em ambiente não controlável, que contamina toda a equipe e propicia uma relação simbiótica entre organismo humano e não humano. Esse atravessamento das fronteiras entre o eu-outro é um tema convencional do gênero gótico, o que propicia uma leitura de O colonizador com base em seu subgênero interessado nas questões ecológicas: o ecogótico. Mediante a apropriação de elementos góticos, G. G. Diniz (2020a) subverte a ideologia dominante, imperialista inerente ao gênero, e faz emergir seu elemento recalcado: a vulnerabilidade do corpo humano. A ocultação desse sustentáculo da crença equivocada na autonomia desse "sujeito" em relação ao meio ambiente faz as práticas institucionalizadas de opressão parecerem onipotentes, mas a morte sangrenta de Dr. Costa destrói esse senso de onipotência e lança-o no terreno da abjeção.
Em suma, a trama é sustentada por paralelos entre colônia humana/"alienígena", imperialismo/mutualismo e homem/mulher, e dessa série de oposições emerge a simbiose entre humano e não humano, substrato para a discussão sobre colonialidade do poder. Por esse uso sofisticado dos elementos da narrativa, a obra enreda visões de mundo coloniais e anticoloniais a fim de demonstrar que elas não estão indissociadas nem, ao menos, num futuro tão próximo, estarão. Também estabelece que o que poderá superar o imperialismo é uma mentalidade adaptável, ambivalente e permeável. O fim aberto convoca o público, após a modificação que a leitura proporcionou, a pensar sobre saídas mais complexas e permeáveis para o antagonismo social presente, instituindo, portanto, uma intervenção no real extradiegético. Além disso, por intermédio dos questionamentos e das emoções suscitadas ao longo de O colonizador, o ecogótico pós-colonial de Diniz (2020a), como técnica literária, se converte em tecnologia anticolonial à medida que fornece ferramentas e materiais para a confecção de um antídoto contra a ecofobia racista, patriarcal e sexista.