Resumo: Este ensaio teórico tem como objetivo refletir sobre as relações interorganizacionais (RIOs) com base na estratégia como prática social (EPS), contribuindo para o debate acerca da necessidade de considerar racionalidades alternativas à instrumental também nos estudos a respeito de estratégias interorganizacionais. Para tanto, resgatam-se pressupostos teóricos críticos da estratégia e dos estudos organizacionais. Parte-se da ideia de que as RIOs se dão no cotidiano, por meio das interações entre os diferentes agentes, considerando a análise dos microprocessos inerentes e complementares às análises em nível meso e macro. A justificativa é que a racionalidade instrumental inerente à ciência social dominante no Ocidente, tradicionalmente usada para explicar as RIOs, não é suficiente para contemplar o debate no campo das estratégias interorganizacionais, de forma a considerar o contexto social e o pensamento decolonial, que requerem um olhar para além do utilitarismo econômico.
Palavras-chave: Relações interorganizacionais, Estratégia como prática social, Racionalidades, Microprocessos.
Abstract: This theoretical essay aims to reflect on interorganizational relations (IORs) from the idea of strategy as social practice (SSP), contributing to the debate on considering rationalities other than the instrumental in studies on interorganizational strategies. Therefore, critical theoretical assumptions of organizational strategy and organizational studies are reviewed. It is assumed that the IORs occur in everyday life through interactions between different agents, considering the analysis of micro-processes as inherent and complementary to analysis at the meso and macro level. The justification is that the instrumental rationality inherent to the dominant social science in the West, traditionally used to explain IORs, is not enough to contemplate the debate in the field of interorganizational strategies to consider the social context and the decolonial thought, which requires a look beyond economic utilitarianism.
Keywords: Interorganizational relations, Strategy as social practice, Rationalities, Microprocesses.
Resumen: Este ensayo teórico tiene como objetivo reflexionar sobre las relaciones interorganizacionales (RIOs) desde la estrategia como práctica social (EPS), contribuyendo al debate sobre la necesidad de considerar racionalidades alternativas a la instrumental también en los estudios sobre estrategias interorganizacionales. Para ello, se recuperan los supuestos teóricos críticos de la estrategia y los estudios organizacionales. Se parte de la idea de que las RIOs ocurren en la vida cotidiana, mediante interacciones entre diferentes agentes, considerando el análisis de microprocesos como inherente y complementario a los análisis a nivel meso y macro. La justificación es que la racionalidad instrumental inherente a la ciencia social dominante en Occidente, utilizada tradicionalmente para explicar las RIOs, no es suficiente para contemplar el debate en el campo de las estrategias interorganizacionales a los efectos de considerar el contexto social y el pensamiento descolonial, que requieren una mirada más allá del utilitarismo económico.
Palabras clave: Relaciones interorganizacionales, Estrategia como práctica social, Racionalidades, Microprocesos.
Artigo
As relações interorganizacionais na perspectiva da estratégia como prática social
Interorganizational relations from the perspective of strategy as social practice
Relaciones interorganizacionales desde la perspectiva de la estrategia como práctica social
Recepção: 04 Fevereiro 2021
Aprovação: 24 Setembro 2021
As relações interorganizacionais (Rios), cada vez mais, vêm sendo uma prática recorrente (Agostini, Nosella, & Teshome, 2019; Lazzarini, 2007; Liou & Daly, 2021; Palumbo & Manna, 2018; Verschoore, Bulgacov, Segatto, & Bataglia, 2014). A pressão do ambiente competitivo tem levado ao estabelecimento de diferentes tipos de Rios, com formatos e características diversificados (Balestrin & Verschoore, 2008; Schruijer, 2020; Todeva, 2006; Verschoore, Klanovicz, Durayski, & Vieira, 2016), os quais se estabelecem numa rede de significantes (Camillis, Bignetti, & Petrini, 2020). Como já afirmavam Cropper, Ebers, e Huxham (2008), assim como Verschoore et al. (2016), os diferentes ganhos aos agentes envolvidos nas Rios colaborativas, inclusive, se tornam uma alternativa importante. No entanto, a maior parte dos estudos brasileiros sobre relações de cooperação interorganizacional segue a racionalidade instrumental e a visão econômica, como apontam Kirschbaum e Guarido (2011); Szapiro, Lemos, Lastres, Cassiolato e Vargas (2017); Verschoore et al. (2014); e Vizeu, Guarido, e Gomes (2014).
Como bem pontuado por pesquisas desenvolvidas por Vizeu et al. (2014) e Souza, Lima, Coelho, Oliveira, e Milito (2015), faz-se necessário olhar outras dimensões da Rios para além do capital, ou seja, as dimensões sociais, ambientais e de sustentabilidade, as quais também criam valor. Como dizem Souza et al. (2015), as Rios fortalecem as empresas envolvidas e favorecem a geração de empregos e renda. Nessa lógica, seguindo a tendência internacional, alguns estudos brasileiros apontam para a necessidade de pensar além da visão instrumental e da natureza sistêmica. Em nível internacional, Cropper, Ebers, Huxham, e Ring (2014) salientam que os estudos devem ser enriquecidos por diferentes concepções teóricas, como a sociológica, a psicológica, a política, a evolucionária e a crítica, mas também além das fronteiras organizacionais (Jarzabkowski, Bednarek, Chalkias, & Cacciatori, 2019). Em nível nacional, Balestrin, Verschoore, e Perucia (2014); Tescari e Brito (2018); Tureta e Lima (2011); e Vizeu et al. (2014) podem ser citados como exemplos de estudiosos que se valeram e apontam outras perspectivas de análise, considerando dimensões sociais, ambientais e sustentáveis.
Diante da complexidade que envolve as Rios e da necessidade de debater essas relações sob outras lentes, este ensaio teórico tem como objetivo refletir sobre as Rios sob uma estratégia de prática social (EPS). O propósito é contribuir para o debate acerca da relevância de considerar racionalidades alternativas à instrumental também nos estudos sobre Rios e para um entendimento mais completo e integrado dos relacionamentos. Para tanto, resgatam-se pressupostos teóricos críticos da estratégia e dos estudos organizacionais, assumindo a visão relacional da estratégia. Essa visão vem ganhado cada vez mais força, justamente por trazer ganhos aos envolvidos e se contrapor à perspectiva dominante (Balestrin et al; 2014; Dyer, Singh, & Hesterly, 2018; Adami, Verschoore, & Antunes, 2019), a qual vai na linha da sociologia relacional (Dépelteau, 2018a), em busca de elucidar complexidades e expor paradoxos interorganizacionais, como fizeram Jarzabkowski, Bednarek, e Lê (2018), além de Jarzabkowski et al. (2019), em razão de ter como foco as relações sociais.
Assim, equiparado aos estudos de estratégia como prática (Dias, Rosseto, & Marinho, 2017; Jarzabkowski, 2005; Jarzabkowaki & Bednarek, 2018; Johnson, Langley, Melin, & Whittington, 2007; Tureta & Lima, 2011; Vaara & Whittington, 2012; Whittington, 2006), parte-se da ideia de que as Rios se dão no cotidiano por meio das interações entre os diferentes agentes que mantêm interesses similares e antagônicos/paradoxais, não sendo diretamente acessíveis, observáveis e mensuráveis, o que exige lentes com potencial de revelar a dinâmica que se dá além das fronteiras organizacionais, como pontuam Jarzabkowski et al. (2019). Dessa forma, entende-se que o nível micro de análise ganha força, tendo como foco microatividades e interações entre os diferentes agentes em relações interorganizacionais. Assume-se ainda a realidade oriunda das práticas, das relações e do efeito de diferentes agentes, os quais, conforme descrevem Alcadipani e Tureta (2009), além de Camillis et al. (2020), se associam e desassociam em diferentes arranjos.
Nessa lógica, os questionamentos, o pensamento crítico, a dialética e o pensar sob a visão relacional da estratégia, em nível e sentido propostos por Adami et al. (2019); Balestrin et al. (2014); Cropper et al. (2014); Dias et al. (2017); Dyer et al. (2018); Hohnson, Melin, e Whittington (2003); Jarzabkowski, Kavas, e Krull (2021); Johnson et al. (2007); Tescari e Brito (2018); Tureta e Lima (2011); Vizeu et al. (2014); e Whittington (2006), fazem-se necessários. Apesar de o debate nacional e internacional já ter avançado em diferentes perspectivas para a análise das Rios, as correntes funcionalistas continuam predominando nos estudos empíricos, sendo trabalhadas na visão utilitarista da vantagem competitiva de Porter (1998), com o intuito de atingir os fins meramente econômicos. Assim, não contemplam o debate sobre de que modo as práticas moldam e são moldadas por seu contexto social (Jarzabkowski et al; 2019), assumindo que o local tem algo de global, e vice-versa (Vizeu & Gonçalves, 2010), nem consideram o social como algo que está sendo agregado às Rios durante a translação (Bin, 2018; Whittington, 2006).
Golsorkhi, Rouleau, Seidl, e Vaara (2015) buscaram explicar a reconceituação da mudança ontológica oriunda da quebra da noção tradicional de que a estratégia é algo de propriedade das organizações, mas que as pessoas fazem no dia a dia de suas rotinas laborais nas organizações. Os autores destacam que a EPS confirma importância e legitimidade no campo desde 2000, alegando que trabalhos mais recentes focam a análise no nível micro das estratégias organizacionais. Assim, ressaltam que a EPS consiste numa abordagem de pesquisa emergente.
Sob a visão relacional da perspectiva da EPS, temas emergentes que perpassam as Rios necessitam de aprofundamento epistemológico, a exemplo de relações de confiança, ações coletivas, interdependência, conflitos, capital social, questões de poder e aprendizagem interorganizacional (AIO). A análise desses microprocessos, sem a negação dos níveis meso e macro, sob a lente teórica da EPS, pode elucidar e facilitar o olhar macro nas relações estabelecidas em diferentes espaços e além das fronteiras das Rios. Também pode representar uma aproximação do campo com o viés decolonial do conhecimento em gestão (Alcadipani & Faria, 2014) e uma alternativa para “coconstruir o amálgama pluriversal de conhecimentos” (Cooke & Faria, 2013), até então impossibilitados pela modernidade eurocêntrica (Alcadipani & Faria, 2014; Cooke & Faria, 2013; Islam, 2012; Lander, 2005; Quijano, 2005; Rodrigues & Hemais, 2020; Sauerbronn & Faria, 2009) e pela centralidade do pensamento norte-americano (Souza & Oliveira, 2019).
Os resultados dessas reflexões são apresentados a seguir, iniciando-se o debate sobre as Rios e a predominância da perspectiva funcionalista e da racionalidade instrumental nos estudos sobre o tema. Na sequência, trabalha-se a EPS como uma possibilidade alternativa ao mainstream, salientando os microprocessos nas Rios, visto que a lógica relacional na análise desses microprocessos em tais relações é uma possibilidade alternativa à racionalidade instrumental e à visão utilitarista do fenômeno. Depois, apresenta-se a EPS como alternativa aos estudos das Rios, com o desdobramento numa agenda de pesquisa. Por fim, são delineadas as considerações finais.
A predominância da racionalidade instrumental e do prisma funcionalista nos estudos organizacionais e interorganizacionais não pode ser negada. No que tange a esse ponto de vista, Mozzato e Grzybovski (2013, p. 506) escrevem:
O funcionalismo apresenta pressupostos teóricos relacionados à regulação e à objetividade orientando-se pelos métodos das ciências naturais para compreender os indivíduos e se apresentando como racionalista e pragmático, com foco na estrutura, baseado em uma ordem social regulada. Nesse sentido, busca prover soluções práticas e objetivas calcadas no determinismo.
O determinismo da perspectiva funcionalista está impresso tanto nos estudos desenvolvidos na área da estratégia e dos estudos organizacionais quanto nas Rios. Da mesma forma, os exames desenvolvidos no contexto brasileiro seguem a perspectiva funcionalista, indicando aceitação aos pressupostos eurocêntricos e norte-americanos, marginalizando os estudos latino-americanos e aceitando o “imperialismo do Atlântico Norte” (Cooke & Faria, 2013). Dessa forma, não são abertos espaços para formulação de novas questões, como propõem Alcadipani e Faria (2014), e não se contribui para produzir conhecimentos de gestão com base na identidade brasileira (Islam, 2012) nem se consideram ontologias das práticas sociais (Santos & Silveira, 2015), numa demonstração clara em direção à superação do individualismo presente nas ontologias construídas pelo pensamento weberiano ou pelo estruturalismo, por exemplo. Assim, os ensinamentos de Schatzki (2005) podem corroborar a analisar e explicar as práticas sociais, já que oferecem uma lente com capacidade para revelar relações/fenômenos/elementos imbricados no contexto social e na sua dinâmica.
Na mesma lógica, Nicolini, Gherardi, e Yanow (2003) afirmam que a prática requer um fazer imbricado num saber do qual resulta a aprendizagem. Portanto, para Golsorkhi et al. (2015), a abordagem da EPS se apresenta com potencial para romper as fronteiras paradigmáticas tradicionais e revelar quem são, o que fazem e como fazem os estrategistas, bem como identificar as consequências de suas ações. Assim, estudos das Rios apenas sob a concepção funcionalista e da racionalidade instrumental tendem a seguir a colonialidade do saber, a qual é tema de debate entre pesquisadores situados tanto no centro - pensamento eurocêntrico e norte-americano - quanto nas periferias da produção da geopolítica do conhecimento nas ciências sociais, caracterizando-se pelo conhecimento produzido fora dos centros hegemônicos (Abdalla & Faria, 2017; Assis, 2014; Ballestrin, 2013; Carvalho, Ipiranga, & Faria, 2017; Dussel, 2000, 2005; Lander, 2005; Leal & Moraes, 2018; Quijano, 2005). Por meio de um legado epistemológico eurocêntrico centralizador, patriarcal e racialista inicial (Dussel, 2005; Lander, 2005), ao qual se soma o pensamento norte-americano alguns séculos depois (Souza & Oliveira, 2019), a práxis colonizadora e irracional da modernidade sobre os “não modernos” se justifica (Dussel, 2005) e limita os estudos nas ciências sociais, motivo pelo qual são compreendidos com base em realidades próprias e desenvolvidos pela geo-história específicas e interconectadas (Abdalla & Faria, 2015; Walsh, 2007). Assim, os desafios se impõem no âmbito das práticas da pesquisa empírica e ao ensino em administração, como apontam Carvalho et al. (2017), Leal e Moraes (2018) e Santos e Silveira (2015).
Apoiando-se em Tenório (2009), apresenta-se a proposição de renovação na gestão, contrapondo-se ao enfoque funcionalista, à racionalidade instrumental e ao pensamento eurocêntrico e norte-americano, seguindo outros teóricos críticos na história da teoria das organizações no contexto nacional, como Alcadipani e Faria (2014), Cooke e Faria (2013), Guerreiro Ramos (1965, 1981), Islam (2012). Guerreiro Ramos (1965, 1981) já assumia essa visão crítica sobre a racionalidade instrumental, propondo um método de observação da realidade social tal como ela é posta, visando à sua melhor e real compreensão. Ballestrin (2013, p. 89) e os demais membros do Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), por sua vez, propõem a “radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de ‘giro decolonial’”. Contudo, amparado na crítica formulada por Oliveira (2020) à obra de Go (2018), há de ter cuidado, nesse campo de disputas ontológicas e epistemológicas, para não radicalizar uma pretensa independência intelectual. Como alternativa a isso, Oliveira (2020, p. 988) aponta um conjunto de cientistas sociais latino-americanos que, desde o início dos anos 1990, estão construindo um “terceiro elemento da dialética ‘modernidade/colonialidade’, isto é, um espaço de reconstrução de histórias, racionalidades e utopias negadas pela episteme imperial”.
A renovação da gestão também impõe pensar a história social contemporânea e nela incluir as diferenças e os contrários presentes no sistema social, a decolonialidade do saber, a complexidade das Rios e a natureza da EPS nos estudos de estratégia como uma sinalização em direção à transmodernidade no sentido expresso por Dussel (2005) e Souza e Oliveira (2019). O pensamento pós-colonial antropofágico (Islam, 2012) contribui para desenvolver abordagem alternativa ao modo de gerar conhecimento, podendo trazer avanços também aos estudos sobre Rios, sendo um dos caminhos possíveis na direção de uma sociedade melhor e mais justa.
Há concepções epistemológicas alternativas ao funcionalismo ortodoxo, especialmente, racionalidades que se impõem e devem ser consideradas e pensadas como possíveis na perspectiva de mudanças no fazer ciência com responsabilidade em relação ao ser humano e à sociedade (Mozzato & Grzybovski, 2013, p. 516).
Nessa lógica, entende-se como pertinente a EPS, cujos estudos têm como percussor Whittington (1996), que busca uma abordagem alternativa para a estratégica, tendo o bem social como algo essencial. Mais tarde, em 2006, o mesmo autor propõe a tríade conceitual da EPS: a) práxis de estratégia, que diz respeito ao que as pessoas fazem na prática; b) práticas de estratégia, que se refere às rotinas comuns e cotidianas por meio das quais a práxis se materializa; e c) praticantes de estratégia, que diz respeito aos envolvidos na práxis estratégica, aqueles que realizam as práticas. Para o autor, esta tríade - práxis, práticas e praticantes - deve ser considerada nas análises dos trabalhos desenvolvidos na perspectiva da EPS, de forma a contemplar a complexidade que envolve o fenômeno em análise e ser capaz de refletir o contexto social em que ocorre (Jarzabkowski & Bednarek, 2018; Whittington, 2006).
No viés da EPS, analisa-se estratégia como algo que as pessoas fazem (Johnson, Langlyey, Melin, & Whittington, 2007), admitindo que o contexto social assume importância ímpar (Nicolini, 2012; Schatzki, 2005) e que as Rios que nele se desenvolvem são de difícil compreensão, com metodologias ortodoxas/utilitaristas (Jarzabkowski et al; 2019). Com base nos ensinamentos de Corradi, Gherardi, e Verzelloni (2010), afirma-se que as práticas se tornam locus em que os pesquisadores estudam as atividades dos praticantes e representam um termo descritivo dos fenômenos sociais ligados à visão cognitiva não racional do conhecimento. Assim, segundo Jarzabkowski, Balogun, e Seidl (2007), Jarzabkowski e Spee (2009) e Whittington (2006), a análise da estratégia precisa considerar cada pessoa, as práticas de cada organização, as atividades (práxis) da estratégia e o contexto social. Nessa lógica, a estratégia requer uma opção decolonial na perspectiva transmoderna (Abdalla & Faria, 2017; Go, 2018). Inclusive, Go (2018) desobscurece a relação entre a teoria pós-colonial e a sociologia relacional. Embora possam parecer opostos, ambos concedem primazia ontológica e analítica nas relações constitutivas.
Tureta e Lima (2011) trabalham o conceito de redes interorganizacionais partindo do estrutural para o relacional, seguindo a EPS, com foco nas práticas cotidianas e na abordagem de Johnson et al. (2003, 2007) e Whittington (2006) no campo da estratégia. “A EPS se apresenta como uma alternativa às perspectivas macro que relegavam a dimensão micro ao segundo plano e não consideravam como centrais as relações entre as pessoas e suas práticas desempenhadas no cotidiano das organizações” (Tureta & Lima, 2011, p. 78).
Diante da complexidade que envolve as Rios e a necessidade de considerar racionalidades alternativas à instrumental, a visão relacional da estratégia vem ganhando cada vez mais força nas pesquisas (Adami et al; 2019; Balestrin et al; 2014; Tureta & Lima, 2011). Ao pensar com base na visão relacional da estratégia (Adami et al; 2019; Balestrin et al; 2014; Cropper et al; 2014; Dias et al; 2017; Hohnson et al; 2003; Johnson, Langley, Melin, & Whittington, 2007; Tescari & Brito, 2018; Tureta & Lima, 2011; Vizeu et al; 2014; Whittington, 2006), entende-se que existe um olhar ampliado sobre a realidade dos diferentes contextos que mantêm Rios.
Nessa lógica, Dépelteau (2015, 2018b) evidencia a relevância da sociologia relacional centrada no pensamento processual e na ideia de interdependência e coprodução, destacando questões importantes, como poder e agentes não humanos. Para o autor, a sociologia relacional consiste numa abordagem que tem crescido em diferentes áreas do conhecimento, inclusive nas ciências sociais. O manual editado por ele (Dépelteau, 2018a) tem como principal objetivo elucidar a complexidade e o escopo da crescente abordagem da sociologia relacional, possibilitando a redefinição e um olhar sobre os princípios epistemológicos e ontológicos básicos. A sociologia relacional retoma dilemas e questões fundamentais, tendo como foco as “relações”, lançando, inclusive, luzes sobre como devem ser interpretadas as características das relações sociais na atualidade.
As Rios compreendidas pela visão relacional da estratégia têm como foco a cooperação, e não a competição, mesmo não se negando a esta (Nalebuff & Brandenburger, 1997). Trata-se de uma visão que vai além do olhar econômico nas Rios e de uma noção utilitarista que tem como base os fundamentos teóricos porterianos (Porter, 1998). Assim, pode contemplar a perspectiva sociológica, por exemplo, a qual Kirschbaum e Guarido (2011, p. 17) pontuam em direção aos “aspectos econômicos da ação estratégica” e que Kirschbaum (2010) salienta em relação à construção das instituições, como padrões de interação entre grupos e de construção/transformação de laços sociais.
Se por um lado a perspectiva sociológica das Rios, na lógica apontada por Kirschbaum (2010), Kirschbaum e Guarido (2011), tem conquistado espaço no campo da estratégia, como se observa nos trabalhos de Balestrin et al. (2014) e Vizeu et al. (2014), por outro lado há de considerar a EPS como uma perspectiva alternativa, que não nega o aspecto econômico, e sim rejeita a exploração econômica intensiva. Para tanto, vários aspectos precisam ser respeitados de fato, a exemplo da cultura local, regional e nacional, como bem pontuam Matos, Amaral, e Costa (2017), ou mesmo individual, como refere Bin (2018). Os autores fazem referência a Celso Furtado quanto ao fato de que “o desenvolvimento substantivo passa pelo cultivo e pelo fortalecimento dos valores da própria cultura” (Matos et al; 2017, p. 233). Em sentido semelhante, estudos como os de Szapiro et al. (2017) destacam a importância de mais textos orientados pelos fundamentos da sustentabilidade, o que se dá por meio do reconhecimento do social como fonte do fazer e do saber. No que tange à realidade brasileira e latino-americana, afirmam quão importante é considerar o local e o social na elaboração das estratégias como modo de superação do predomínio do pensamento norte-americano e eurocêntrico, como descrevem Vizeu e Gonçalves (2010).
Cropper et al. (2014) assinalam alguns temas nos quais os estudos sobre Rios precisam avançar: confiança, capital social, interdependência, poder, AIO, mudanças e temporalidade. Nessa lógica, a dimensão dos microprocessos se torna central, lançando olhar sobre as relações entre as pessoas, possibilitando, assim, pesquisar como e por que os eventos acontecem, com as consequências respectivas.
Com base nos temas de estudo apontados como emergentes por Cropper et al. (2014) nas Rios, entende-se que os microprocessos que envolvem a interdependência colaborativa, a AIO e as trocas de conhecimento precisam ser mais bem estudados e compreendidos sob a visão relacional, na lógica da EPS, e relacionado com meso e macroprocessos. Na visão relacional, a sociedade se torna a referência. Como tal, as mudanças nas relações são impactadas pelos movimentos do global e do local. Ao fazê-lo, passa-se a considerar também a perspectiva decolonial, tendo em vista que o local tem o que dizer para o global.
Nesse ponto de vista, Bin (2018, p. 546) defende que “o desafio que se coloca é o de como integrar uma reflexão teórica em nível global com a pesquisa local [...]. A questão é como integrar a pesquisa local à necessidade contemporânea de criar teorias de longo alcance”. Como bem pontua o autor, essa dialética é uma realidade e precisa ser respeitada, visto que o local não está desconectado do todo e que esse todo interfere no local. Ou seja, as expressões locais são moldadas e ajudam a moldar esse todo. “É cada vez menos possível acreditar que tanto o Estado nacional como o indivíduo são tão autônomos quanto se pensava” (Bin, 2018, p. 561).
Ao tratar mais especificamente dos microprocessos, na lógica da EPS, a AIO e a troca de conhecimentos são facilitadas, ainda mais quando se considera a interdependência colaborativa, que exige, como pontuam Nohria e Eccles (1992) e Rusbult e Kubacka (2009), atitudes coletivas e comprometidas, prevalecendo o objetivo coletivo. Conforme Lubatkin, Florin, e Lane (2001) e Muthusamy e White (2005), a interdependência diz respeito à vinculação entre os diferentes agentes, podendo ser tanto referente aos objetivos - comuns entre os diferentes agentes, evidenciando interesses convergentes - quanto aos recursos - interdependência de recursos entre os agentes, referindo-se à partilha ou à utilização conjugada de recursos, havendo receptividade e trocas em razão das necessidades para a realização de dado negócio -, assim como na complementaridade na realização das tarefas - interdependência entre os agentes no que tange a tarefas conjuntas, havendo receptividade e trocas no sentido de complementar as tarefas.
A interdependência de objetivos e de recursos ou complementaridade na realização de tarefas revela um compromisso recíproco entre os parceiros que mantêm relações interorganizacionais (Lubatkin et al; 2001; Muthusamy & White, 2005), consolidando a interdependência colaborativa. Como pontuam Human e Provan (1997) e Muthusamy e White (2005), as informações fazem parte da interdependência, e o parceiro necessita estar receptivo a elas e ao aprender, o que influencia positivamente na capacidade de absorção, culminando na suscetibilidade para o aprendizado por meio das relações interorganizacionais.
Autores internacionais (Crossan, Lane, White, & Djurfeldt, 1995; Crossan, Mauer, & White, 2011; Gibb, Sune, & Albers, 2017; Greve, 2005; Inkpen & Tsang, 2007; Nooteboon, 2008) e nacionais (Balestrin & Verschoore, 2008; Estivalete, Pedrozo, & Cruz, 2008; Mozzato & Bitencourt, 2014; 2018) apontam que a AIO é um tema emergente que necessita de ampliação e aprofundamento. Como assinalam Mozzato e Bitencourt (2014, 2018), seguindo a visão relacional da estratégia, a AIO é entendida como parte de um contínuo de aprendizagem organizacional (AO) e analisada sob uma abordagem menos cognitiva e mais social-comportamental. Assim, a AO é um processo que ocorre em diferentes níveis - individual, grupal, organizacional e interorganizacional (Antonello, 2007; Chan, 2003; Correia-Lima, Loiola, Pereira, Costa, & Leopoldino, 2019; Neves & Steil, 2019) -, contemplando a abordagem teórica da aprendizagem baseada nas práticas (Corradi et al; 2010) e seguindo a perspectiva sociológica de acordo com os pressupostos de Silvia Gherardi.
No viés sociológico, o processo da AO é socialmente construído na medida em que o indivíduo interage nas atividades cotidianas (Gherardi & Strati, 2014). A aprendizagem acontece com a participação das pessoas em atividades sociais, e a reflexividade está diretamente ligada a essa participação, ocorrendo no fluxo das experiências do dia a dia (Gherardi & Nicolini, 2001). Nessa lógica, o conhecimento é resultado da contínua construção, das conexões em ação, do conhecer e do fazer na participação (Gherardi, 2000). Assim, o conhecer não se encontra separado do saber (Antonello & Azevedo, 2011; Nicolini, 2012). Antonello e Azevedo (2011) afirmam que a aprendizagem e o conhecimento são vistos como processos na ação das atividades das pessoas, assim percebidos de maneira mais crítica e analítica. Conferem-se, portanto, evidências às realizações coletivas, resultado das interações entre humanos e não humanos (Bertolin, Cappelle, & Brito, 2014; Gherardi, 2015). Como bem pontua Bispo (2013), a perspectiva sociológica pressupõe que não há como as pessoas aprenderem algo que não esteja posto num espaço social de interação, o que contrapõe a perspectiva mais pragmática da estratégia.
As práticas são ações que acontecem no fluxo cotidiano das atividades, tanto em espaços sociais estruturados (situações formais) quanto não estruturados (informais/casuais), desencadeando a aprendizagem (Corradi et al; 2010; Janowicz-Panjaitan & Noorderhaven, 2008; Nicolini, 2012; Sandberg & Tsoukas, 2011). Em situações formais e informais de aprendizagem, a participação se dá pela interação entre indivíduos em diferentes espaços sociais, os quais envolvem comunicação, diálogo e reflexividade (Larsson, Bengtsson, Henriksson, & Sparks, 1998; MacDonald & Crossan, 2010; Nicolini, 2012; Pimentel & Nogueira, 2018).
Em tais espaços sociais, a interação social pode produzir conflitos, um microprocesso com múltiplas dimensões que inclui questões políticas, motivações, pessoas e mudanças no contexto. Desse modo, apoiando-se em Guiddens e Sutton (2017), o conflito se configura como um processo de luta e envolve tensões, fazendo parte das interações sociais, não se configurando, necessariamente, como negativo. Inclusive, a AIO pode ser resultado de tais tensões, uma vez que sua resolução requer negociação e acordos entre os agentes.
Para haver aprendizagem nos espaços sociais de interação, um elemento central são os laços de confiança entre os envolvidos nas Rios, ficando evidente que ela necessita ser gerada, desenvolvida e mantida (Hibbert, Huxham, Sydow, & Lerch, 2010). Portanto, relações de confiança explicam as de cooperação, facilitando a compreensão das trocas (Bachmann & Zaheer, 2008; Woolthuis, Hillebrand, & Nooteboom, 2005). Sobretudo a confiança relacional, derivada de interações repetidas das partes ao longo do tempo, gera expectativas positivas sobre as intenções das partes (Rousseau, Sitkin, Burt, & Camerer, 1998) e pode influenciar positivamente a cooperação. Além disso, o processo coletivo de aprendizagem é fortalecido por relacionamentos de longo prazo baseados nas relações de confiança (Larsson et al; 1998).
Questões relativas ao poder também fazem parte das Rios (Giglio, Pugliese, & Silva, 2012; Yeung, 2008), podendo, inclusive, haver assimetria entre os diferentes agentes envolvidos. Como refere Yeung (2008), o poder se constitui num elemento inerente às Rios, caracterizando-se pela habilidade de influenciar, controlar ou resistir às ações dos outros e podendo ser usado de maneira positiva ou negativa (Huxham & Beech, 2008). O poder pode ser coercitivo, mas, quando utilizado positivamente, auxilia na resolução de conflitos, na liderança e na criação de conhecimentos.
Como pontua Nahapiet (2008), o capital social assume importância ímpar nas Rios, impactando positivamente nas relações estabelecidas, aumentando a confiança e a cooperação. Assim, cria-se valor por meio das conexões entre agentes e redes de relacionamento constituídas nos diferentes espaços sociais, alinhando o conceito de capital social à perspectiva teórica de imersão (embeddedness) posta por Coleman (1988) e Putnam (2000). Nahapiet (2008) afirma que laços (amizade, parentesco) são recursos valiosos para a condução de relações sociais. Nessa lógica, ela entende o capital social como a soma dos recursos atuais e potenciais disponíveis e derivados dos relacionamentos estabelecidos.
Em adição, os laços sociais potencializam ações coletivas, a exemplo de exportações e/ou compras conjuntas, campanhas publicitárias etc. Tais práticas requerem uma estrutura de governança relacional, trabalhada na lógica de Giglio, Ryngelblum, e Jabbour (2020) e Grandori (2009). No processo de governança e nas Rios como um todo, a responsabilidade e a confiabilidade interorganizacional assumem importância ímpar (Ramanujam, 2018; Sydow, Schübler, & Helfen, 2021).
As Rios, analisadas sob a óptica da EPS, são arranjos relacionais entre atores humanos e não humanos, superando a lógica tradicional centrada em nós e laços, bem como sustentando que os fenômenos sociais requerem um esquema conceitual que contemple a ontologia objetiva e subjetiva. Do ponto de vista da ontologia relacional, apoiando-se em Searle (1995), reconhece-se a capacidade dos agentes humanos de atribuir funções a objetos ou a fenômenos, que podem ser agentivas (intencionais) ou não. De igual forma, reconhece-se que as Rios são resultado de práticas e efeitos de diversos agentes dispostos num contexto social, o qual foi por eles construído em contínuos movimentos de translação, no sentido descrito por Alcadipani e Tureta (2009) e Camillis et al. (2020), ajudando na construção de uma realidade local, porém não única, na medida em que contém algo do global, como afirmam Vizeu e Gonçalves (2010).
Nas Rios, os agentes humanos se comprometem com uma conduta cooperativa e são capazes de compartilhar estados mentais (crenças, desejos, intenções). Trata-se da intencionalidade coletiva (Searle, 1995), que é diferente da intencionalidade individual, pois agrega intenções individuais e depende da capacidade humana de simbolização para adquirir existência. A simbolização se dá nas interações que ocorrem em diferentes espaços sociais (estruturados e não estruturados), entre humanos e/ou não humanos.
Buscando superar as alternativas da racionalidade instrumental é que se propõe também a análise de microprocessos nas Rios. Os microprocessos a serem investigados são aqueles que ocorrem nos laços das Rios, a exemplo de AIO, relações de confiança, ações coletivas, interdependência, conflitos, capital social, questões de poder, por mais que não se neguem os nós. Contudo os microprocessos só vão impactar as rotinas organizacionais se houver suscetibilidade ao aprendizado e intencionalidade coletiva nos termos descritos por Searle (1995). As relações sociais, por sua vez, ocorrem tanto nas organizações (nível organizacional) quanto nas relações entre organizações (nível interorganizacional), permeadas pelo contexto (local e global).
Na Figura 1, demonstra-se esses microprocessos das Rios sob a lente teórica da EPS com o propósito de incentivar os pesquisadores a olhar para as Rios sob outras perspectivas teóricas. Ao considerar a ontologia relacional na análise, não se assume a realidade como dada, e sim como resultado de práticas, de relações construídas por humanos, que continuamente se associam/desassociam em diferentes arranjos. Para tanto, é preciso considerar que as Rios ocorrem num contexto social de um lugar (dimensão local), mas contêm conteúdos do global, estão estabelecidas numa rede de significantes e em diferentes espaços sociais (físicos ou não). Elas se dão em espaços sociais em movimento (dinâmicos), razão pela qual exigem um olhar atento do pesquisador ao que ocorre no seu interior, a exemplo dos conflitos, do poder e de outros fenômenos sociais (microprocessos) resultantes dos diferentes arranjos entre agentes.
Para orientar o olhar do pesquisador no processo de análise dos microprocessos das Rios, utiliza-se metaforicamente a lente da EPS (Dias et al; 2017; Jarzabkowski, 2005; Jarzabkowski & Bednarek, 2018; Jarzabkowski et al; 2007; Jarzabkowski & Spee, 2009; Johnson et al; 2007; Vaara & Whittington, 2012; Whittington, 2006). Contudo, isso não significa distanciamento do pesquisador, ou seja, assumir a realidade como dada, e sim considerar a EPS para entrar no campo. Porém, é preciso se despir de preconceitos - não fazer distinção entre sujeito e objeto - e apreender as relações nas transações. A racionalidade presente é alternativa à instrumental, seguindo abordagens semelhantes às trabalhadas por Adami et al. (2019), Balestrin et al. (2014), Jarzabkowskiet et al. (2019), Liou e Daly (2019), Tureta e Lima (2011) e Vizeu et al. (2014).
Apoiando-se nos pressupostos da ontologia relacional, é possível apreender o cotidiano, as relações, o coletivo e o contexto social para além das fronteiras organizacionais, decolonizando a realidade social tal como ela posta (Aldadipani & Faria, 2014; Dulcel, 2005; Fchatzki, 2005; Nicolini, 2012; Souza & Oliveira, 2019).
Nessa lógica, propõe-se que os estudos sobre as Rios sejam desenvolvidos à luz da perspectiva da EPS, seguindo a ontologia relacional, numa visão para além do utilitarismo presente na corrente teórica da vantagem competitiva. Como referem Golsorkhi et al. (2015), a concepção da EPS tem potencial para romper as fronteiras paradigmáticas tradicionais, permitindo reconhecer o sistema social como complexo, multifacetado e paradoxal. Na lógica da visão relacional, a sociedade é a base de referência, e as mudanças nas relações revelam movimentos do local no global, e vice-versa. Consequentemente, entende-se que a EPS abre perceptivas para novos estudos também no campo das estratégias interorganizacionais. Dessa maneira, vislumbram-se outras racionalidades, possibilitando, inclusive, o revigorando da agenda de pesquisa nas Rios e na própria EPS.
Nesse contexto, novas possibilidades de pesquisa são aqui apresentadas. Inicialmente, destaca-se a possibilidade de pesquisas sobre os microprocessos das Rios sob a lente teórica da EPS, como está explicitado na Figura 1. Quando se privilegia a EPS, tais microprocessos necessitam de pesquisas isoladas (um a um), assim como combinadas. Ademais, nessa lógica, diferentes espaços sociais podem ser pesquisados, de forma a explorar além das fronteiras das relações, configurando estudos com viés mais crítico, nos quais a realidade global não se sobreponha a local. Assim, percebe-se como pertinente a investigação das diferentes micropráticas que ocorrem nas Rios numa perspectiva longitudinal - desde o início da formação até sua consolidação -, sem ignorar que o social se encontra em movimento e que tais movimentos devem ser agregados no processo analítico.
Também fica notória a importância do desenvolvimento de pesquisas que explorem a “razão do outro” na perspectiva transmoderna no contexto dos estudos brasileiros da EPS. Desenvolvimento de estudos mais aprofundados sobre o impacto do global no local, e vice-versa, considerando as Rios na perspectiva da EPS, serão muito reveladores.
Em relação aos métodos de pesquisa, salienta-se a necessidade de mais estudos longitudinais e comparativos em diferentes configurações interorganizacionais, além, é claro, de metodologias diversas, inclusive combinadas. O desenvolvimento de análises etnográficas em diferentes realidades práticas, com a imersão no campo, tem importância ímpar na EPS. De maneira semelhante, a pesquisa-ação pode ser trabalhada nessa perspectiva.
Pesquisas que analisem o impacto das Rios em cada agente participante, utilizando a EPS, podem trazer importantes resultados. Aprofundar os estudos sobre os diferentes espaços sociais nas Rios, estruturados e não estruturados, tendo como foco os relacionamentos e as práticas, também podem trazer resultados reveladores.
Por fim, dado o caráter prático e relacional da EPS, apresenta-se como sugestão de pesquisa estudos com foco na prática e no espaço, este último como uma construção social, conectada à história e à produção cultural. Em lógica semelhante, não se poderia deixar de falar das necessárias investigações em espaços diferenciados, a exemplo dos virtuais.
Tais sugestões de pesquisas são apresentadas no intuito de instigar mais pesquisas nessa área, com vistas a robustecer aquelas no campo das Rios e da EPS, possibilitando que a EPS ganhe maior legitimidade nos estudos organizacionais. Desse modo, vislumbra-se outra racionalidade, que não a instrumental.
Ao fim deste ensaio teórico, após reflexões sobre a necessidade de análise das Rios sob diferentes perspectivas, fica evidenciado a necessidade de considerar racionalidades alternativas à instrumental e puramente econômica, resgatando noções teóricas críticas da estratégia organizacional e dos estudos organizacionais. Portanto, defende-se a necessidade de mais debates sobre estratégias interorganizacionais que prezem pelo lugar do social, pelas relações estabelecidas nas práticas e pela forma como se interligam ao contexto social. Assim, demonstrado os limites e a superação do uso da racionalidade instrumental para estudos das Rios, deve-se recorrer a construtos e teorias ainda pouco consideradas pelo mainstream da estratégia também em nível de análise interorganizacional, sendo a EPS uma alternativa.
Dessa forma, não se rejeita a abordagem econômica, mas se circunscrevem pressupostos mais abrangentes, desvela-se a complexidade presente nas Rios e a natureza da EPS, alinhando-se ao debate presente - por exemplo, na óptica sociológica, como afirmam Kirschbaum e Guarido (2011). Assim, a sociedade é a base de referência para estudos das Rios, mas alinhados às contribuições sociológicas pós-coloniais no sentido descrito por Go (2018), de forma a se libertar da episteme imperial que ainda subjazem à sua racionalidade. De igual modo, as práticas precisam ser reconhecidas como (de)marcadas por fazeres e dizeres, como contextualiza Schatzki (2005) e referendam Santos e Silveira (2015). Busca-se, assim, um olhar para além do utilitarismo econômico também nas Rios, podendo estas ser inclusivas, como refere Kirschbaum (2015).
Argumenta-se que a EPS, como uma das opções epistemológica, auxilia no desenvolvimento das pesquisas para decolonializar as práticas de cada organização e se colocar como alternativa ao eurocentrismo e ao imperialismo norte-americano presente na corrente principal dos estudos de estratégia, como descrevem Vizeu e Gonçalves (2010). Quando o pesquisador conduz seus estudos sobre Rios considerando a transdisciplinaridade na análise do objetivo e os microprocessos no contexto brasileiro, com todas as suas particularidades e especificidades, evitam-se generalizações simplistas e contribui-se para decolonizar a razão. Dessa forma, a expectativa é de maior valoração da produção das pesquisas desenvolvidas no Brasil por meio do consumo destas pelos pesquisadores brasileiros e também de outros países; o local tem algo a dizer para o global, rompendo a imposição norte-sul. Como bem pontua Bin (2018), por mais que as teorias se construam globalmente, é na realidade local que elas são utilizadas para explicações de fenômenos, portanto o desafio está posto quando se entende como necessária a consistência nessa (inter)conexão entre o global e o local.
Nessa lógica, é preciso entender o local a partir da sua realidade particular, estudando os conflitos e os movimentos sociais inerentes, “mergulhando” no cenário real, tal como ele se apresenta. Assim, o foco fica direcionado para o social, em que é possível e necessário analisar os diferentes estágios de cada configuração interorganizacional desde o surgimento, passando pelo fortalecimento, até chegar a um estágio mais evoluído. Nessa linha, os processos de governança territorial, por meio do estabelecimento de práticas democráticas locais, da participação de inúmeros agentes em diferentes níveis e dos processos de decisão, reforçam mutuamente as demandas legítimas, de acordo com as particularidades de cada local, alinhando o entendimento à concepção de poder posto por Quijano (2005).
Por mais que se tenha dado enfoque, inclusive na Figura 1, a alguns dos microprocessos que se dão no cotidiano relacional das Rios, entende-se que outras variáveis são inerentes, o que torna essencial considerar que as Rios ocorrem em sistema social complexo, mas que a natureza sistêmica é apenas o princípio central, como afirmam Jarzabkowski et al. (2019). Portanto, ao analisar os microprocessos nas Rios, todo o cuidado para não realizar análises ingênuas se faz necessário. Assumir a ontologia relacional da perspectiva da EPS auxilia nesse sentido.
Sem a pretensão de apresentar conclusões definitivas, ao fim deste ensaio teórico, acredita-se ter ampliado a perspectiva teórica e instigado debates mais aprofundados e pesquisas empíricas que trabalhem as Rios sob a visão da EPS, as quais tendem a ser mais adequadas à realidade de cada fenômeno estudado, além de mais justo, em razão da orientação para o social. Acredita-se que tais contornos possam auxiliar na minimização da derrocada que o capitalismo em crise impõe à sociedade. Portanto, ao lançar luz a oportunidades alternativas de pesquisa, contribui-se para o entendimento da necessidade de reflexões e aprofundamento de questões essenciais nas pesquisas sobre a temática, ficando evidente que não há necessidade de aceitação do imposto pelo mainstream.
Agradecemos à Fapergs, pela concessão de recursos para a pesquisa por meio do Edital FAPERGS 05/2019 - Programa Pesquisador Gaúcho-PQG.