Resumo: O artigo analisa a trajetória política de 62 mulheres que, ao longo de 17 legislaturas, exerceram no mínimo três mandatos de deputadas, sendo pelo menos um como deputada federal, com o objetivo de responder a seguinte questão: quais são os requisitos necessários para as mulheres chegarem a ter carreiras parlamentares exitosas em um país que está em 151° entre os 187 países analisados quanto à participação das mulheres nos parlamentos em 2017? O artigo está dividido em duas sessões: a primeira faz um apanhado geral do universo das mulheres eleitas deputadas estaduais e federais entre 1950-2014, no total de 653 deputadas; a segunda ocupa-se das 62, foco central do trabalho. A análise da trajetória das 62 deputadas demonstrou que suas carreiras políticas longevas seguem caminhos tradicionais de políticos homens e este achado constitui-se uma das principais razões da escassa presença das mulheres na vida política brasileira.
Palavras chave: carreiracarreira,LegislativoLegislativo,deputadasdeputadas,mulheresmulheres,capital políticocapital político.
Abstract: This article analyzes the political trajectory of 62 women who, during 17 legislatures, exercised at least three terms, with at least one being in the position of federal representative, in order to answer the following question: what are the necessary requirements for women to have successful parliamentary careers in a country that places 151st among 187 countries reviewed in terms of women's participation in parliaments in 2017? The article is divided into two parts: the first part gives a general overview of the universe of women elected state and federal representatives between 1950 and 2014, a total of 653 deputies. The second part focuses on the 62 women who at least once reached the federal congress, the main focus of this study. The analysis of the trajectories of the 62 deputies showed that their long political careers follow the same traditional paths as their male peers, a finding that points to one of the main reasons for the scarce presence of women in Brazilian political life.
Keywords: career, legislative branch, deputies, women, political capital.
Resumen: En este artículo se analiza la trayectoria política de 62 mujeres que durante 17 legislaturas ejercieron como mínimo tres mandatos, con al menos uno en posición de representante federal, para responder a la siguiente pregunta: ¿cuáles son los requisitos necesarios para que las mujeres tengan carreras parlamentarias con buen éxito en un país que ocupa el lugar 151 entre los 187 países examinados en términos de participación de las mujeres en los parlamentos en 2017? El artículo se divide en dos partes: la primera parte aporta una visión general del universo de mujeres elegidas representantes estatales y federales entre 1950 y 2014, un total de 653 diputadas. La segunda parte se centra en las 62 mujeres que al menos una vez llegaron al congreso federal, enfoque principal de este estudio. El análisis de la trayectoria de las 62 diputadas demostró que sus largas carreras políticas siguen caminos tradicionales de políticos varones y este hallazgo constituye una de las principales razones de la escasa presencia de las mujeres en la vida política brasileña.
Palabras clave: carrera, Legislativo, diputadas, mujer, capital político.
Résumé: Cet article analyse la trajectoire politique de 62 femmes qui, au cours de 17 législatures, ont exercé au moins trois mandats, avec au moins un de ces mandats au poste de représentant fédéral, afin de répondre à la question suivante: quelles sont les exigences nécessaires pour que les femmes aient des carrières parlementaires réussies dans un pays qui occupe la 151e place sur 187 pays en matière de participation des femmes aux parlements en 2017? L'article est divisé en deux parties: la première partie donne un aperçu général de l'univers des femmes élues représentants étatiques et fédéraux entre 1950 et 2014, soit un total de 653 députés. La deuxième partie porte sur les 62 femmes qui ont fait partie au moins une fois du congrès fédéral, l'objet principal de cette étude. L'analyse de la trajectoire des 62 députés a montré que leurs longues carrières politiques suivent les chemins traditionnelles des hommes politiques et cette constatation est l'une des principales raisons de la faible présence des femmes dans la vie politique brésilienne.
Mots clés: carrière, Législatif, députés, femmes, capital politique.
ARTIGOS
Mulheres com carreiras políticas longevas no legislativo brasileiro (1950-2014)
Women with long political careers in the Brazilian legislative branch (1950–2014)
Mujeres con largas carreras políticas en el legislativo brasileño (1950-2014)
Les femmes ayant de longues carrières politiques dans le leégislatif brésilien (1950-2014)
Recepção: 9 Agosto 2017
Aprovação: 28 Março 2018
O presente artigo tem como objetivo fazer um estudo sobre um conjunto de deputadas de carreiras políticas longevas, que, ao longo de 64 anos, da legislatura que começa em 1951 e vai até a que se inicia em 2015, foram eleitas três ou mais vezes para os legislativos estaduais e federal, e pelo menos uma vez para o federal. São 62 deputadas que representam 9,5% de todas as mulheres eleitas nas 17 legislaturas do período. Ao longo dessas legislaturas, 653 mulheres se elegeram para as casas legislativas estaduais e para a Câmara dos Deputados; destas, 138 o conseguiram por três vezes (duas reeleições) e apenas 62 delas chegaram à Câmara dos Deputados 1 .
A questão a ser respondida neste artigo é aparentemente simples e está estreitamente relacionada com a peculiar posição do Brasil no ranking internacional de participação política das mulheres: quais são os requisitos necessários para as mulheres chegarem a ter carreiras parlamentares exitosas, em um país que está em 151° lugar entre os 187 países analisados quanto à participação de mulheres nos parlamentos em 2017 ( IPU, 2017 ). Ao estudar a trajetória dessas mulheres, é possível entender por que elas são exceções e também quais são os limites para a existência de uma representação mais robusta de mulheres nos parlamentos.
Os dados sobre as deputadas foram coletados a partir de uma ficha comum para as 653 mulheres, dividida em três grandes blocos: (1) dados pessoais e familiares; (2) atividades profissionais e políticas, estas últimas quando distintas das eleições legislativas; (3) produção legislativa em comissões, cargos nas mesas, projetos de lei e leis. A coleta desses dados teve diferentes graus de dificuldade, variando com a distância no tempo do mandato, com a carreira pública da deputada e com o fato de ter sido ou não deputada federal. Para as mulheres que são foco específico deste artigo, a coleta foi facilitada por serem pessoas de carreira pública longeva e serem deputadas federais 2 .
O estudo de carreiras políticas no Brasil tem expressivo acúmulo de trabalhos, principalmente a partir dos anos 2000, tanto entre os que focam na política nacional como entre aqueles que tratam de especificidades regionais. Contudo, os artigos mais citados e reconhecidos não incorporam a questão de gênero. É bastante provável que isso aconteça por duas razões: a primeira, e mais óbvia delas, é a presença rarefeita das mulheres no mundo público; a segunda, e mais grave, é a tendência de não se tomar em consideração a questão de gênero nos estudos das instituições políticas e de seus atores no Brasil ( Leoni, Pereira e Rennó, 2003 ; Borges e Sanches Filho, 2016 ).
Todavia, nos estudos de gênero, a questão da presença ou ausência das mulheres na política tem sido analisada desde os primeiros trabalhos, ainda na década de 1980, de Tabak (1983 , 1989 , 2002 ). Há estudos importantes sobre a presença das mulheres, com foco regional, como os de Costa (1998) para as políticas baianas, de Ferreira (2002) para as pernambucanas e de Orsato (2013) para as gaúchas. Sobre mulheres na elite política brasileira, temos o alentado estudo de Avelar (1996) . E mais, Alves, Pinto e Jordão (2012) coordenaram extensa pesquisa sobre as eleições presidenciais de 2010.
Em relação a carreiras propriamente ditas, há os artigos de Araújo (2001 , 2009 , 2012 ), inclusive fazendo uma análise comparativa entre Brasil e Argentina ( Araújo, 2010 ), e os de Marques (2010) e de Miguel e Biroli (2010) . Também cabe mencionar um importante acúmulo de trabalhos que buscam explicar as dificuldades e mesmo a ausência das mulheres na política; os textos citados de Clara Araújo são exemplos dessa discussão ao tratar dos limites da lei de cotas 3 no Brasil para o incremento da participação das mulheres na política.
Portanto, uma produção muito significativa busca entender a grande dificuldade encontrada pelas mulheres para entrar no campo da política, mormente quando trata da disputa por cargos eletivos nas democracias ocidentais, tanto no norte enriquecido como nos países emergentes do sul. Para discutir as razões desse repetido cenário, uma noção fundamental é a de paridade, desenvolvida por Fraser e Honneth (2003) . Para esses autores, só é possível participar da vida social e política de forma justa se houver paridade entre seus membros. Isso está calcado na superação da desigualdade econômica e cultural, seja por redistribuição ou por reconhecimento. No caso do gênero, eles identificam uma condição bidimensional em que a desvantagem econômica – derivada das dificuldades de entrada no mercado de trabalho, dos salários menores em relação aos dos homens ou da divisão sexual do trabalho – combina-se com as desvantagens culturais, expressas em sexismo, racismo ou LGBTfobia, que atribuem qualidades negativas às mulheres, aos negros e à comunidade LGBT. Segundo Fraser e Honneth, há um círculo vicioso em que a má distribuição alimenta o falso reconhecimento e este, a má distribuição. As mulheres são constituídas, no discurso sexista, como menos habilitadas ao trabalho, o que se reflete em suas possibilidades de inserção no mercado nas melhores posições ( Fraser e Honneth, 2003 ). A falta de paridade é central para explicar o espaço das mulheres nas disputas eleitorais, começando pelas posições que ocupam dentro das próprias estruturas partidárias 4 .
A mulher é desencorajada a chegar ao espaço político, não construído como dela. É um espaço masculino, em que o mundo do poder e da política lhe impõe múltiplas barreiras. O cenário é fortemente não paritário em termos de reconhecimento, o que determina, entre outras consequências, a má distribuição de recursos econômicos e o menor acesso aos recursos partidários e às doações privadas.
Se há grandes dificuldades para chegar até o mundo da política e às listas partidárias, estas não são as maiores barreiras para a eleição de mulheres. No Brasil, a partir das eleições de 1988, os partidos vêm enfrentando dificuldades para completar listas com o número de mulheres exigido pela lei e a representação feminina nas casas legislativas não se alterou significativamente. Araújo e Alves (2007) , ao examinarem o fraco resultado da lei de cotas para mulheres nas eleições legislativas, chamam a atenção para o fato de que, caso se mantenham todas as outras múltiplas causas de exclusão, não há possibilidade de sucesso das cotas. Há razões que derivam das condições das mulheres na sociedade, ou seja, de seu não reconhecimento como cidadã igual, mas também há razões que se relacionam com o sistema político-partidário brasileiro e o grande número de partidos, com as estruturas oligarquizadas, que tendem fortemente à reprodução das suas elites, o alto custo das campanhas políticas e o seu financiamento pelo setor privado ( Araújo e Alves, 2007 ; Sacchet e Speck, 2012 ).
A trajetória das mulheres na disputa eleitoral no Brasil é uma história dos entraves, da busca por explicações para essa repetida exclusão. O presente artigo não foge a essa preocupação, mas se propõe examinar a questão por outro ponto de vista. Parte da constatação de que, nesse universo masculino, um pequeno grupo de mulheres alcança o sucesso eleitoral, o que lhes permite fazer uma carreira política longeva. A questão que se coloca, portanto, é: que condições, que trajetórias de vida permitiram a essas mulheres perfazerem carreiras tão marcadamente masculinas? Tiveram estratégias originais? Seguiram trajetórias tradicionais, legitimadas pelo campo político partidário?
Ainda nesta Introdução cabe uma nota de caráter metodológico. A pesquisa com grupos excluídos ou minoritários na vida pública, como é o caso das mulheres, envolve muitos gargalos metodológicos, derivados do pequeno número de indivíduos que atuam nessa esfera em relação aos grupos dominantes ou/e majoritários, assim como da escassez de fontes de dados. Duas questões são relevantes no caso do estudo da participação das mulheres na política, e seriam igualmente importantes em estudos sobre a participação das mulheres nas elites empresariais e cargos executivos. A primeira é a necessidade de agregar dados de períodos mais longos de tempo para se obter um grupo significativo de casos para analisar. Certamente, ao examinarmos mais de 60 anos, como é o caso do presente artigo, é possível incorrer em imprecisões. Entretanto, como apontamos, sempre que necessário, as condições políticas específicas do país em diferentes períodos da história política recente, entendemos que esse conjunto de 62 mulheres permite conhecer a atuação das mulheres com carreiras longevas, diferentemente de estudos feitos com homens, em que legislaturas, partidos, posições político-ideológicas ou regiões do país podem ser recortados. Isso, no caso das mulheres, reduziria o estudo a números irrelevantes. A segunda questão concerne à comparação com os homens. Em primeiro lugar, fazer uma análise que inclua gênero, que inclua mulheres, não envolve uma abordagem obrigatoriamente comparativa. No caso em pauta, nosso universo é composto por 62 mulheres ocupantes de 246 cadeiras ao longo das 17 legislaturas que contaram com 7.400 cadeiras 5 . Isto é, as mulheres que tiveram carreira longevas ocuparam 3,32% das cadeiras disponíveis. O que nos interessa é entender como, em um cenário tão adverso para as mulheres, visto que até o presente são menos de 10% da Câmara de Deputados, esse grupo teve condições de se reeleger e ter carreiras longevas. Uma comparação com as carreiras longevas de homens no mesmo período envolveria a análise dos ocupantes de 7.154 cadeiras, o que, além de ser materialmente muito difícil de ser feita, pouco agregaria ao que pretendemos neste estudo.
Este artigo está organizado em duas seções. A primeira, “Panorama das mulheres eleitas deputadas selecionadas”, constitui um mapeamento das 653 mulheres eleitas nas 17 legislaturas, em que são consideradas as variáveis de tempo, localização regional e espectro político. A segunda seção, “As mulheres que fizeram carreira política”, é dedicada ao estudo das 62 mulheres que consideramos a elite das deputadas brasileiras. Aqui, trabalhamos com o mesmo tipo de dados da primeira parte, acrescidos de um estudo da composição de capitais de que essas mulheres dispuseram para entrar na vida política 6 .
Na obra Réponses – Pour une anthropologie reflexive , Bourdieu e Wacquant (1992) são muito enfáticos em afirmar que capitais (econômico, cultural, social, político, religioso) só fazem sentido dentro de um campo 7 que, por sua vez, irá se estruturar mais fortemente à medida que o capital necessário para sua constituição tenha independência em relação a outros capitais. Por exemplo, um campo artístico que dependa do capital econômico e não do capital cultural para existir e se reproduzir terá pouca independência. Da mesma forma, o campo político que depender de outros capitais.
No caso do Brasil, quando se aplicam esses pressupostos bourdieuanos para a análise de trajetórias políticas, deve-se ter um especial cuidado, pois o campo político tem fronteiras muito tênues e está longe do modelo proposto pelo sociólogo francês. Em nosso país, junto com o capital propriamente político, que daria independência ao campo, os capitais familiar, econômico, religioso e cultural (midiático) têm presença marcante na vida política.
Ao longo de 17 legislaturas, foram eleitas 653 mulheres em todos os estados brasileiros e em todos os partidos com tradição política, sempre representando uma ínfima parte dos políticos eleitos em níveis estadual e federal 8 .
O Brasil de 1950 a 2014 experimentou três períodos bem definidos em sua vida política: um período democrático interrompido pelo golpe militar de 1964; o regime militar que se estende até a posse do primeiro presidente civil em 1985; e um novo período democrático a partir de então. Para a análise específica neste artigo, incluímos, no terceiro período, as eleições de 1982 – as primeiras após a reforma partidária que pôs fim ao bipartidarismo imposto pelos militares 9 . Tomando esses três períodos, o número de eleitas é pequeno para os dois primeiros, não chegando a 10% do total (59 mulheres). Mesmo que rarefeita, a presença das mulheres se deu de forma mais regular após 1982, o que está relacionado às mudanças comportamentais ocorridas no mundo e refletidas no Brasil a partir dos anos 1970, ao próprio movimento feminista e ao novo clima político instaurado no país na década de 1980 ( Tabela 1 ):

A análise dos dados para o conjunto das 653 eleitas desafiam alguns sensos comuns sobre a carreira política de mulheres no Brasil, como mostra a Tabela 2 , cuja variável é a região de origem:

Levando em consideração as populações dessas regiões, é significativa a presença das mulheres nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, menos desenvolvidas, mais agrárias e que teriam, em princípio, menor abertura para a participação das mulheres na política. A região Sudeste, proporcionalmente, é a que tem menos deputadas. A título de ilustração, tomamos os dados do Censo de 2010 para a população brasileira e assim estabelecemos um parâmetro de comparação entre esta e a distribuição das 653 deputadas por região do país ( Tabela 3 ) 10 :

A Tabela 3 possibilita que sejam apontadas duas tendências: a primeira é que há maior possibilidade de as mulheres se elegerem quanto menos concorrida e menos democrática for a campanha eleitoral; a segunda é que urbanização, menor desigualdade social e melhores índices de educação não determinam, no Brasil, maior presença das mulheres na política. Tomando as regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, temos duas situações distintas de concorrência eleitoral: enquanto as duas primeiras têm povoamento mais recente e menor tradição política, a terceira é a região mais antiga do país, com alta densidade populacional e elites e famílias políticas muito bem estabelecidas. Essas duas realidades, aparentemente tão distintas, têm características comuns, pois concentram, por razões diversas, a disputa eleitoral nas mãos de poucos grupos políticos, ou seja, a disputa é restrita e, portanto, menos democrática, no sentido de existir um número menor de candidatos às listas partidárias. Já nas regiões Sudeste e Sul, a disputa intrapartidária e entre partidos envolve um número muito maior de pretendentes, daí ser muito mais acirrada a disputa para conquistar a posição de candidato, o que poderia tornar mais difícil a presença das mulheres 11 . Entende-se, aqui, por menos democrática a menor concorrência, no interior dos partidos, por um lugar na lista de candidatos. Isso não implica afirmar que, em regiões ou países com democracias consolidadas, os espaços estejam fechados para as mulheres, mas indica que não é garantida, por força do regime, a sua maior participação. As possibilidades de entrada no mercado eleitoral dependem de uma rede de condições muito complexa, como já foi apontado anteriormente, que varia de acordo com regiões em um mesmo país e em diferentes países 12 .
Em relação à filiação ideológica, a distribuição das 653 mulheres é apresentada na Tabela 4 :
Como observamos na Tabela 4 , não há uma relação direta entre o que se poderia chamar de espaço progressista da esquerda e mulheres eleitas. A distribuição é bastante equitativa nesse sentido, mas muda quando analisamos as regiões separadamente, como mostra a Tabela 5 :

Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, notamos predomínio dos partidos de direita na distribuição das deputadas eleitas, o que pode estar relacionado ao pertencimento dessas mulheres ou a sua ligação com as elites e famílias políticas da região, notadamente integrantes de partidos à direita do espectro político.
Na segunda seção deste artigo, quando examinamos o grupo de elite das 62 mulheres, verificamos distinções entre deputadas de cada um dos grandes espectros ideológicos. Mas o que se evidencia até aqui é que a direita partidária elege tantas mulheres quanto a esquerda, não havendo uma relação direta entre conservadorismo político e preconceito contra o voto em candidatas mulheres.
Como vimos na Introdução, as mulheres que fizeram carreira política durante as 17 legislaturas em exame somam 62 deputadas, representando a totalidade dos estados brasileiros. A grande maioria delas iniciou carreira após o regime militar, distribuindo-se por todo o espectro ideológico. Isso ocorreu quando da reforma partidária de 1979, que pôs fim ao bipartidarismo em vigor. Antes do golpe de 1964, apenas 4 mulheres do grupo de 62 haviam se elegido 14 . Durante o bipartidarismo, essas mulheres se reelegeram e mais 3 delas se tornaram deputadas 15 .
Nos parece evidente, portanto, que a redemocratização e o pluripartidarismo a partir das eleições de 1982 abriram maior espaço para as mulheres que desejavam empreender uma carreira política. Antes dessa época, é considerada acidental a existência de mulheres com carreiras políticas longevas, como já observamos anteriormente a respeito da história do conjunto das 653 deputadas. A distribuição das mulheres políticas de longa carreira pelas regiões do país traz novidades em relação ao grupo maior, como vemos na Tabela 6 :

Se compararmos os dados da Tabela 6 com os da Tabela 3 referentes ao universo das mulheres deputadas, observarmos que houve uma redistribuição que equilibrou a participação da região Sudeste. Entretanto, no que concerne à região Norte, mantém-se a mesma alta proporção de eleitas em relação à população. Quase 20% das mulheres eleitas com carreiras longevas estão em uma região com cerca de 8% da população brasileira. É possível levantar algumas prováveis causas dessa presença: é uma região de estados novos, como Acre, Roraima, Rondônia e Amapá, com menor possibilidade de existência de oligarquias e currais eleitorais; com população rarefeita e classe média também pequena (de onde provém a quase totalidade das mulheres eleitas), o que diminuiria a disputa por uma vaga em listas partidárias no mercado eleitoral; há forte presença, em alguns desses estados, de partidos de esquerda e centro-esquerda, como PT, PCdoB e PSB, teoricamente mais abertos às mulheres como militantes capazes de fazerem carreiras políticas. Em relação ao espectro ideológico, as deputadas com carreira se distribuem conforme a Tabela 7 :

A presença de mulheres de partidos de esquerda e centro-esquerda entre aquelas que fizeram carreiras longevas é bastante altos se comparados ao conjunto das 653 deputadas (da Tabela 4 ), sugerindo haver maior profissionalização das mulheres na política nesse espectro. Elas representam quase 50% do grupo. Comparado ao total de mulheres, é perceptível esse deslocamento da direta para a esquerda. Naquele universo, a distribuição era equitativa entre os três espectros ideológicos. Os dados referentes ao grupo de elite nos permitem apontar que: as mulheres de esquerda tendem a ter carreiras políticas mais sólidas porque os partidos de esquerda tendem a ter militâncias mais constantes, possibilitando a construção de capital político próprio. Vejamos, na Tabela 8 , o número de deputadas por partido 16 :

Entre os três maiores partidos brasileiros – PT, PMDB e PSDB –, o mais à esquerda, o PT, é o que tem maior número de deputadas ao longo destes 64 anos. Porém, o que chama a atenção é a forte presença de mulheres no PCdoB e no PSOL, que têm, ao longo de suas histórias, bancadas bastante pequenas. Pode se ter uma ideia da importância dessa presença quando confrontamos os dados referentes às deputadas em pauta com as bancadas desses dois partidos em 2010 e 2014. O PCdoB tinha 15 deputados em 2010 e reduziu sua bancada para 10 em 2014; o PSOL tinha 3 e passou para 5 em 2014 ( Congresso em Foco, 2014 ). Se compararmos esses números com a presença das mulheres ao longo dos 64 anos, esse resultado é surpreendente, principalmente se tomarmos em consideração que o PSOL foi fundado em 2004 e que o PCdoB foi legalizado em 1985.
Para avançarmos na caracterização desse grupo de mulheres deputadas com carreiras longevas, utilizaremos a categoria capital desenvolvida pelo sociólogo francês Bourdieu (1979) . Há muitas nuances no uso dessa categoria. Luis Felipe Miguel, Danusa Marques e Carlos Machado, por exemplo, trabalham com fontes de capital político, em que incluem capital familiar, econômico, midiático, político, entre outros ( Miguel, Marques e Machado, 2015 ). Para os propósitos desta análise usaremos uma distribuição um pouco distinta, apontando três tipos de capital: o político, o familiar e o midiático.
O primeiro tipo de capital, o político, é classificado por Bourdieu de duas maneiras: o pessoal e o delegado. O primeiro pertence a cada indivíduo, é constituído pelo acúmulo de capital ao longo de uma carreira e inclui a militância estudantil, sindical, partidária juvenil e nos movimentos sociais. É um capital “de notoriedade e de popularidade – firmado no fato de ser conhecido e reconhecido” ( Bourdieu, 1989 , p. 190). O capital delegado é produto de uma transferência provisória (apesar de renovável, por vezes vitaliciamente) de capital detido e controlado pela instituição e só por ela ( Bourdieu, 1989 , p. 191). É o capital advindo de cargos públicos ou partidários. No caso das mulheres, um bom exemplo é a ocupação de cargos em secretarias municipais ou estaduais de Educação.
O segundo tipo de capital, o familiar, é considerado aqui o parentesco sanguíneo ou por casamento, e tem particular importância no exame das carreiras políticas femininas. Estudos que analisam conjuntos de legislaturas têm mostrado que esse capital é mais importante para as mulheres do que para os homens, em que pese ser uma forma bastante comum de entrada na política para ambos 17 .
O terceiro tipo é o capital midiático, que, no caso específico das mulheres estudadas, é a conversão de popularidade adquirida em rádio e televisão para a carreira política.
Desprezamos os chamados capital social e capital cultural, pelo simples fato de que, para o conjunto das 62 mulheres em questão, eles não são importantes como fatores explicativos. Em termos de capital cultural, essas mulheres não se diferenciam de forma significativa: 50 delas, isto é, 80,6%, têm ensino superior completo, 9 possuem ensino médio completo ou superior incompleto e apenas uma tem ensino fundamental 18 .
Se compararmos esses dados com os publicados pela Câmara dos Deputados para a legislatura que se iniciou em 2015, veremos que os números são praticamente os mesmos: “Cerca de 80% (410 candidatos) dos eleitos (...) para o cargo de deputado federal possuem nível superior, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Dos 513 deputados eleitos, apenas 4 (1%) sequer terminaram o ensino fundamental” ( Brasil, 2014 ). Os dados sobre educação permitem inferir um corte de classe que não se diferencia entre homens e mulheres. As possibilidades educacionais dos homens e das mulheres que chegaram à Câmara dos Deputados são as mesmas. As classes populares, que não chegam ao nível superior de escolaridade, têm raras chances de êxito no mercado eleitoral. Certamente se encontram, entre essas deputadas e deputados, pessoas oriundas das camadas mais pobres da população, mas que tiveram alguma oportunidade de ascensão social através da educação.
Os dois capitais preponderantes são o propriamente político e o familiar. O capital midiático aparece apenas como residual. Um número razoável de deputadas acumula mais de um tipo de capital político ou ainda somam o capital familiar com o político:

O capital político opera a partir do conjunto de atividades que são basicamente de quatro naturezas: militância estudantil e sindical; militância em movimentos sociais ou partidária juvenil; cargos eletivos municipais; cargos não eletivos nos executivos estadual e municipal.
Do grupo de 62 mulheres, 51 delas chegaram à vitória eleitoral como deputadas estaduais e federais após perfazerem uma trajetória de militância política. Esse número é muito significativo e aponta para um profissionalismo na política bastante alto. Entre as que não acumularam capital político antes de chegarem à Assembleia Legislativa ou à Câmara dos Deputados, 12 possuem capital familiar.
A Tabela 10 mostra a importância da militância estudantil e/ou sindical na formação de quadros femininos na esquerda:

Os estudos sobre carreiras políticas em geral apontam a influência da militância no movimento estudantil e em sindicatos como a porta de entrada na política 19 . É nesse ambiente que ocorre o encontro entre as futuras deputadas e os partidos. Não é possível averiguar, salvo fizéssemos entrevistas com as mulheres ou as pessoas que as conheceram, o que acontece primeiro, se foram para o movimento estudantil porque estavam ligadas a partidos ou o inverso, se tornaram militantes partidárias dentro do movimento estudantil. A mesma questão pode ser posta para a participação nos sindicatos. Mas o que devemos reter é que essa militância indica uma relação com a política ainda quando essas mulheres eram muito jovens.
No que se refere ao capital oriundo da militância estudantil e sindical, é forte a preponderância do segundo, com cargos de direção em sindicatos. Entre as 5 deputadas do PCdoB, 3 foram dirigentes sindicais: Perpétua Almeida (Acre) foi presidente do Sindicato dos Bancários do seu estado, Alice Portugal (BA) foi dirigente da Associação de Funcionários da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e Jandira Feghali (RJ) foi presidente da Associação dos Médicos Residentes do Rio de Janeiro, presidente da Associação Nacional dos Médicos Residentes e diretora do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro. No PT, das 12 deputadas, 6 tiveram militância em sindicatos, sendo a grande maioria em cargos de direção: Erika Kokay foi presidente do Sindicato dos Bancários de Brasília; Sandra Starling foi secretária-geral do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Petróleo de Minas Gerais; Cida Diogo foi diretora do Sindicato Médico de Volta Redonda e do Sindicato dos Profissionais da Saúde Fluminense; Maria do Carmo Perpetuo foi fundadora e diretora do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Betim; Fátima Bezerra foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Rio Grande do Norte; Moema Gramacho foi presidente do Sindicato dos Químicos e Petroquímicos de Salvador; Maria do Rosário foi militante do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul e membro de vários comandos de greve. Das 3 deputadas do PSOL, Maria José Maninha foi presidente do Sindicato Médico de Brasília e Luiza Erundina foi presidente da Associação Profissional dos Assistentes Sociais de São Paulo.
Muitas deputadas do campo da esquerda também militaram na CUT, nas CEBs (comunidades eclesiais de base) e no movimento estudantil. Neste último, destacam-se Vanessa Grazziotin, que foi presidente do Diretório Central de Estudantes (DCE-Ufam); Lídice da Mata, presidente do DCE da UFBA; e Manuela D’Ávila, vice-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes).
Fora do campo da esquerda, apenas Fátima Pelaes e Maria Abadia tiveram esse tipo de militância, a primeira nos grupos de base da Igreja Católica e a segunda no movimento estudantil do Distrito Federal.
É mister pontuar que, na pesquisa realizada sobre a vida das deputadas anterior ao primeiro mandato legislativo, praticamente não se encontrou nenhum envolvimento dessas mulheres com movimentos feministas ou movimentos de mulheres. Como não analisamos suas atuações no interior do movimento estudantil, dos sindicatos e movimentos sociais, não podemos afirmar que não defenderam causas feministas nas suas militâncias, mas certamente não o suficiente para aparecer em suas biografias. Encontramos duas exceções, ambas de Minas Gerais, mas com trajetórias muito distintas. A primeira, a deputada Maria Elvira de Sales Ferreira, do PMDB. Seu caso é especialmente interessante porque se trata de uma mulher intelectualizada, que estudou no exterior, pertencente a uma família de empresários. Trabalhou antes de ser deputada em um instituto universitário de propriedade do pai e teve papel de destaque em associações empresariais e comerciais daquele estado 20 . Maria Elvira foi nomeada para o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM) pelo então presidente da República José Sarney, em 1985, e, no ano seguinte, se candidatou a deputada estadual. Em sua biografia, nota-se que seu envolvimento com a Confederação Nacional das Mulheres já acontece como deputada. Antes de 1985, ela tinha destaque na área empresarial. Não se pode afirmar que Elvira tenha tido militância no movimento feminista, nem tampouco que sua nomeação para o CNDM tenha lhe facilitado a eleição. Mesmo com essas ressalvas, deve-se pontuar que ela é a única mulher com algum ponto de contato institucional com o feminismo.
O segundo caso é o de Jô Morais, do PCdoB, uma militante de esquerda histórica, presa, viveu na clandestinidade durante o regime militar. Sua militância feminista é indubitável; em sua biografia, percebe-se seu envolvimento com as causas das mulheres desde os primeiros momentos da redemocratização no Brasil 21 .
Além da militância em sindicatos, movimento estudantil e movimentos populares, 19 deputadas foram vereadoras ou prefeitas antes de chegarem ao Legislativo estadual e federal, sendo 13 delas do campo da esquerda 22 . As demais 4 são do campo da direita e 2 do centro 23 . Em relação a esses dois tipos de capital, ter sido vereadora e ter sido prefeita, é interessante pontuar aquelas que acumularam os dois e que tiveram o que se poderia chamar de uma carreira política profissional. São 9 deputadas nessa condição, 8 delas pertencentes a partidos de esquerda e apenas 1 do centro, indicando que as mulheres que fazem carreira no campo da esquerda têm militância muito próxima à dos homens, são quadros formados dentro dos partidos.
Ainda dentro do que estamos identificando como capital político, há um pequeno grupo de mulheres que, antes de serem deputadas, ocuparam cargos de secretárias municipais ou estaduais. Elas se dividem entre os três espectros políticos. Entre elas, o caso mais interessante é o da deputada gaúcha Yeda Crusius, que não havia se envolvido em política partidária até ser convidada por um amigo e colega, membro do governo Itamar Franco, para o importante cargo de ministra da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Coordenação, onde permaneceu por quatro meses. Havia sido convidada pelo ministro da Fazenda Paulo Haddad e, quando este perdeu o cargo para Eliseu Rezende, Yeda renunciou. Em três meses, a desconhecida professora de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul tornou-se uma mulher popular no estado, conseguindo com isso se eleger no pleito imediato a deputada federal.
Portanto, no que concerne às mulheres deputadas com carreiras longevas, percebe-se facilmente que o capital político é fundamental; 51 mulheres de uma forma ou de outra o possuem e o que deve ser destacado é que mais de um terço delas militaram desde jovens em movimentos estudantis e em sindicatos, um terço delas também fizeram vida partidária como vereadoras, percorrendo um caminho de profissionalização na política.
Das 62 deputadas em pauta, 18 têm parentes próximos com cargos políticos, o que em princípio as caracterizam como possuindo capital familiar. Entre elas, 13 são casadas com políticos, 3 têm pai ou mãe com cargos políticos, 1 é irmã e 1 é sobrinha-neta de políticos. Há três aspectos importantes a serem tomados em consideração. O primeiro refere-se ao número baixo de relações de parentesco se comparado ao conjunto das deputadas e deputados federais. Essas deputadas representam 29% do universo estudado.
Os dados recolhidos por Luis Felipe Miguel, Danusa Marques e Carlos Machado apontam para um alto percentual de mulheres na Câmara dos Deputados com capital familiar: 51,2% em 2002; 55,6% em 2006 e 52,3% em 2010. Porém, o mais interessante a ser observado é que essas mulheres de carreira longeva têm menor dependência de capital familiar que o conjunto dos homens eleitos para a Câmara dos Deputados: 31% em 2002; 41,5% em 2006; 46,1% em 2010 ( Miguel, Marques e Machado, 2015 , p. 754). Essas diferenças percentuais podem estar relacionadas a duas condições: o fato de mais da metade das mulheres em análise ser representante das regiões Sudeste e Sul, com predominância na primeira, e o número significativo de mulheres no campo da esquerda. Ambas as condições colaboram para que o fenômeno das famílias políticas esteja menos presente.
As relações familiares das mulheres se diferenciam pelos graus de parentesco. Entre os deputados, a grande maioria deles é herdeira da geração anterior, mesmo que ainda em atividade política, ou seja, a figura familiar de referência é o pai 24 . No caso das mulheres, é o marido. Bourdieu (1979 , p. 127), tratando do mercado dos capitais, é enfático em afirmar que o valor do capital depende da especificidade de cada campo. Em uma estrutura patriarcal, o homem herda o capital familiar do pai, nunca esse capital virá do fato de ser “marido de”, como acontece com as esposas.
Antes de examinar cada tipo de capital familiar, vale mapear as regiões e os partidos de onde provêm as deputadas com esse capital:

Em relação às 13 mulheres casadas com políticos, algumas características de trajetória são marcantes: 9 dessas mulheres se tornaram deputadas federais sem nunca terem exercido outro mandato ou terem participado de instâncias partidárias, movimento estudantil ou sindicatos 25 . Nota-se que estamos tratando com mulheres que tiveram no mínimo 12 anos de mandato, portanto foram reeleitas no mínimo duas vezes. O comum entre elas é estarem ligadas a políticos que tiveram papel preponderante na política regional e nacional. Vale destacar que várias exerceram cargos na administração dos maridos, quando estes foram prefeitos ou governadores, o que lhes possibilitava exposição pública e acúmulo de capital para se candidatarem a cargos eletivos, por exemplo: Rita Camata exerceu o cargo de presidente da Unidade Comunitária de Integração Social quando o marido, Gerson Camata, foi governador do estado do Espírito Santo; Suely Vidigal foi secretária de Promoção Social do município de Serra (ES), no mandato de prefeito de Sergio Vidigal, seu marido; Nice Lobão foi secretária de Ação Social do Maranhão quando o marido, Edson Lobão, foi governador. Entre as outras 4 mulheres casadas com políticos, nenhuma teve militância em sindicatos e movimentos estudantis, mas todas foram eleitas, 3 vereadoras e 1 prefeita: Perpétua Almeida (Rio Branco, AC), Vanessa Grazziotin (Manaus, AM) e Janete Capiberibe (Macapá, AP), as vereadoras; e Zila Bezerra (Cruzeiro do Sul, AC), a prefeita.
As carreiras de Perpétua Almeida, Vanessa Grazziotin e Janete Capiberibe são bastante particulares nesse universo de mulheres casadas com políticos, pois não parecem derivar suas carreiras do casamento, mas as construíram junto com as carreiras dos maridos. As duas primeiras são militantes do PCdoB juntamente com os cônjuges. Como já apontamos, Perpétua Almeida foi presidente do Sindicato dos Bancários do Acre e Vanessa foi presidente de DCE. Ambas também parecem ter tido carreiras políticas mais sólidas e nacionais que os maridos, que se mantiveram na política estadual. Janete Capiberibe foi militante do PCB, tendo sido presa pelo regime militar, teve uma filha na prisão e, com o marido, exilou-se na Bolívia, no Chile, no Canadá e em Moçambique. Quando retornaram ao Brasil, ambos consolidaram carreiras políticas de sucesso. Esses casos, portanto, devem ser tratados com cuidado, pois se estaria cometendo um grave equívoco derivar as carreiras dessas mulheres de seus casamentos. É bastante mais razoável concluir que se trata de casais que militaram juntos.
Lucia Vania e Elcione Barbalho se divorciaram dos maridos; Lucia tornou-se senadora. Elcione tentou uma vaga para o Senado, perdeu as eleições e retornou à política como vereadora, chegando novamente à Câmara dos Deputados. As carreiras dessas duas mulheres indicam que, em certo momento, elas conseguiram se descolar dos maridos, mas, mesmo assim, seus nomes estavam ligados a nomes muito importantes da política regional e nacional.
Das outras 5 deputadas com relações familiares, 3 são filhas de políticos, duas delas de políticos com carreiras regionais. Andreia Zito dos Santos, do Rio de Janeiro, era filha de um político que foi vereador e prefeito de Duque Caxias (RJ) e deputado estadual; Josiniane Nunes tinha mãe e pai políticos na cidade de Gurupi no Tocantins; e a terceira, Maria Laura Carneiro, era filha do senador Nelson Carneiro – que se tornou muito popular no Brasil das décadas de 1960-1970 por sua luta pela legalização do divórcio. Resta Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getúlio Vargas, que, apesar do poderoso capital familiar de entrada na política, teve uma longa e atribulada carreira posterior à morte do presidente e bastante independente da sua memória.
Finalmente, Edna Bezerra Macedo, irmã do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. Em relação a ela, há uma interessante composição de capital, pois o bispo e empresário de telecomunicações, que nunca exerceu nenhum tipo de atividade política, transfere o capital de sua credibilidade de líder religioso para a irmã. Tem sido bastante comum pastores de igrejas evangélicas se tornarem deputados federais no Brasil. Utilizam-se de sua capacidade de convencimento, de suas congregações e recursos econômicos advindos das igrejas em suas campanhas. O interessante, no caso em pauta, é que o bispo Macedo usou de seu capital religioso para eleger a irmã 26 .
O último tipo de capital de que nos ocupamos é o midiático, não familiar, que aparece em uma proporção muito pequena no grupo em estudo. Apenas 4 deputadas se elegeram a partir de carreiras feitas no jornalismo: Cristina Tavares, Cidinha Campos, Rose de Freitas e Conceição Sampaio. A primeira, uma militante pelos direitos humanos que se tornou popular como jornalista política em Brasília, foi muito próxima de Ulisses Guimarães. Cidinha Campos trabalhou na televisão e ganhou fama com um espetáculo teatral em que conversava com a plateia, só de mulheres, sobre os problemas femininos. Esse espetáculo percorreu o Brasil de 1975 a 1978, com o título de Homem não entra , considerado fora da lei na época, sendo proibido por um tempo pelo governo militar. Apesar do incômodo que causou, Cidinha Campos nunca militou no movimento feminista ou se declarou feminista na época. Rose de Freitas começou sua longa carreira política no Espírito Santo, com um popular programa de rádio. Já Conceição Sampaio ficou conhecida através de seu trabalho como apresentadora de televisão.
A pouca presença das mulheres na política no Brasil tem sido um fato verificado em todas as instâncias da vida política do país. Nos cargos legislativos, tal cenário se apresenta de forma muito grave quando comparado com dados internacionais. Quando estudamos um grupo de mulheres que tiveram êxito na vida política, como é o caso das 62 mulheres em foco neste artigo, torna-se ainda mais patente as razões dessa quase ausência. Não considerando as mulheres que se elegeram unicamente pelo fato de serem parentes próximas de políticos ou figuras públicas, que foram minoria no conjunto, as mulheres que empreenderam carreiras longevas tiveram uma vida pública relevante antes de se elegerem deputadas. Foram líderes estudantis, ocuparam cargos de alta direção em sindicatos, ainda jovens se tornaram vereadoras e algumas delas, prefeitas.
Essas mulheres, com educação muito acima da média brasileira, romperam a barreira do mundo privado e foram lideranças em um mundo público e masculino, como o dos sindicatos de médicos, de bancários, de trabalhadores da indústria petroleira. Militaram em centros acadêmicos durante a formação universitária. Elas venceram porque lutaram na arena masculina com as armas e os valores de liderança desse espaço. Não há, entre essas mulheres, um único exemplo de militância que tenha rompido com essa escrita. Elas não foram lideranças em movimentos sociais nem militaram no feminismo. Não há notícias de que pertenceram a coletivos que construíram candidaturas. Ou seja, a presença de mulheres com carreiras políticas não indicou, até as eleições de 2014, novas formas de entrada nesse campo. O sistema político não abre espaço para experiências diferenciadas. Apenas aquelas mulheres que fizeram trajetórias tradicionais construíram carreiras sólidas. Esse é um dos gargalos centrais da escassa presença das mulheres na vida política brasileira, pois a possibilidade dessas trajetórias se abre para muito poucas em um país como o Brasil, com uma divisão de trabalho tão marcadamente sexual, com a responsabilização da mulher pela reprodução da vida familiar.
Quando se busca examinar carreiras sólidas, o número de mulheres militantes de partido de esquerda é desproporcional em relação à presença desses partidos na Câmara de Deputados. Não se trata de atribuir aos partidos de esquerda uma forma alternativa de construir seus quadros políticos, mas de pensar que mulheres de esquerda tendem a ser menos enquadradas nos esquemas tradicionais, com mais propensão a quebrar padrões de comportamento esperado de mulher, esposa e mãe. Essas mulheres pertencem a movimentos estudantis e sindicatos, viveiros de lideranças partidárias. Não encontramos nenhuma relação entre essas mulheres e o feminismo como militância. Como descrevemos anteriormente, apenas duas delas tiveram alguma relação com a luta das mulheres ao longo dos 64 anos examinados.
Para finalizar, é necessário destacar que este artigo tratou das trajetórias de mulheres que tiveram carreiras longevas com o propósito de examinar os caminhos trilhados que lhes permitiram entrar em um campo político marcadamente masculino. Não esteve em análise a performance das parlamentares como deputadas estaduais ou federais, em que se poderiam averiguar suas militâncias em causas relacionadas aos direitos das mulheres. O fato de termos encontrado só duas mulheres com envolvimento direto com o movimento feminista pode ser indicador do preconceito em relação ao movimento no interior dos partidos políticos, o que provocaria um apagamento desse tipo de militância para ter maior possibilidade de construir uma carreira política. Essa é uma hipótese que necessita de análises posteriores.
Em outras oportunidades, foi verificado que deputadas, sem nenhuma militância anterior no movimento feminista ou nos movimentos de mulheres, tornaram-se defensoras dos direitos das mulheres na Câmara de Deputados. A presença das mulheres, mesmo em número pequeno, foi de grande importância na Constituinte de 1987/1988. Na Câmara de Deputados, mesmo sem status oficial 27 , há uma Bancada Feminina que tem tratado de temas importantes concernentes ao direito das mulheres. Também no Senado Federal existe uma bancada com o mesmo padrão, além de um jornal, o Jornal do Senado Mulher , publicado desde junho de 2014, além de uma Procuradoria Especial da Mulher.

















