Resumo: O objetivo deste artigo é avaliar se, e em qual medida, a desindustrialização da economia brasileira afetou a geografia do voto nos pleitos eleitorais das últimas duas décadas, em particular, nos interessando examinar a inflexão do voto petista. O trabalho considera a desindustrialização como um choque econômico exógeno que, alterando a renda e a natureza do emprego disponíveis nas localidades, afeta o apoio eleitoral ao partido nacionalmente incumbente. Nossas principais fontes de dados empíricos são: o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE); e nossas unidades espaciais de análise, os municípios. Nossos resultados confirmam a hipótese de que a desindustrialização afetou negativamente a votação do Partido dos Trabalhadores. Ressaltamos, ainda, as características regionais de tal processo, fundamentais, sobretudo, à compreensão do resultado eleitoral de 2018. A originalidade do artigo está em preencher uma lacuna da literatura de estudos eleitorais ao tratar das mudanças estruturais no capitalismo brasileiro como vetor explicativo primordial.
Palavras-chave: Desindustrialização, economia brasileira, Partido dos Trabalhadores, geografia do voto.
Abstract: The goal of this article is to assess whether, and to what extent, the deindustrialization of the Brazilian economy has affected the geography of voting in the last two decades. Particular interest is given to examining the inflection of the vote in the Workers’ Party (PT). The study considers deindustrialization as an exogenous economic shock that, by changing the income and nature of employment available in localities, alters electoral support for the nationally incumbent party. Our main sources of empirical data are: the Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) and the Superior Electoral Court (TSE); and our spatial units of analysis are municipalities. Our results confirm the hypothesis that deindustrialization negatively affected the Workers’ Party vote. We also emphasize the regional characteristics of this process, which is fundamental, above all, to the understanding of the 2018 electoral result. The article is original because it fills a gap in electoral studies by treating structural changes in Brazilian capitalism as a primordial explanatory vector.
Keywords: Deindustrialization, Brazilian economy, Workers’ Party, voting geography.
Resumen: El objetivo de este artículo es evaluar si, y en qué medida, la desindustrialización de la economía brasileña ha afectado la geografía del voto en las últimas dos décadas, en particular, con interés en examinar la inflexión del voto del PT. El trabajo considera la desindustrialización como un choque económico exógeno que, al cambiar los ingresos y la naturaleza del empleo disponible en las localidades, altera el apoyo electoral para el partido en el poder a nivel nacional. Nuestras principales fuentes de datos empíricos son: el Instituto Brasileño de Geografia y Estadística (IBGE) y el Tribunal Superior Electoral (TSE); y nuestras unidades espaciales de análisis son los municipios. Nuestros resultados confirman la hipótesis de que la desindustrialización afectó negativamente el voto del Partido de los Trabajadores. Destacamos también las características regionales de tal proceso, fundamentales, sobre todo, para la comprensión del resultado electoral de 2018. La originalidad del artículo radica en llenar un vacío en la literatura de los estudios electorales cuando se trata de cambios estructurales en el capitalismo brasileño como un vector explicativo primordial.
Palabras clave: Desindustrialización, economía brasileña, Partido de los Trabajadores, geografía electoral.
Resumé: L'objectif de cet article est d'évaluer si, et dans quelle mesure, la désindustrialisation de l'économie brésilienne a affecté la géographie du vote au cours des deux dernières décennies, en particulier, avec un intérêt à examiner l'inflexion du vote du PT. L'article considère la désindustrialisation comme un choc économique exogène qui, en modifiant les revenus et la nature des emplois disponibles dans les localités, altère le soutien électoral au parti au pouvoir au niveau national. Nos principales sources de données empiriques sont : l'Institute brésilien de géographie et de statistique (IBGE) et le Tribunal supérieur électoral (TSE) ; et nos unités spatiales d'analyse sont les municipalités. Nos résultats confirment l'hypothèse selon laquelle la désindustrialisation a affecté négativement le vote du Parti des Travailleurs. Nous soulignons également les caractéristiques régionales d'un tel processus, fondamentales, avant tout, pour la compréhension du résultat électoral de 2018. L'originalité de l'article réside dans le fait de combler une lacune dans la littérature des études électorales face aux changements structurels du capitalisme brésilien comme vecteur explicatif primordial.
Mots-clés: Désindustrialisation, économie brésilienne, Parti des Travailleurs, géographie électorale.
ARTIGO ORIGINAL
Desindustrialização e a Dinâmica das Eleições Presidenciais no Brasil (2002-2018)
Deindustrialization and the Dynamics of Presidential Elections in Brazil (2002-2018)
La desindustrialización y la dinámica de las elecciones presidenciales en Brasil (2002-2018)
Désindustrialisation et la dynamique des élections présidentielles au Brésil (2002-2018)
Recepção: 25 Janeiro 2023
Aprovação: 22 Setembro 2023
Os efeitos de choques econômicos sobre o comportamento político local são ponto focal da literatura que explora o poder explicativo da dinâmica econômica nas variáveis políticas (Margalit, 2019), abordagem que vem, crescentemente, servindo de base ao entendimento do processo político-eleitoral brasileiro (Campello; Urdinez, 2021; Ogeda; Ornellas; Soares, 2021). De que maneira mudanças significativas na configuração econômico-produtiva, no que tange, em especial, ao emprego e à renda, impactam a decisão de elites e de eleitores? Eis a questão de fundo. Em verdade, em linha com o debate referente aos “perdedores da globalização”, tal literatura identifica que os impactos negativos na estrutura econômica, em decorrência de aberturas comerciais, conduzem seja ao aumento do conservadorismo, seja à perda de votos destinados a partidos de esquerda (McQuarrie, 2017; Berman; Snegoyava, 2019; Fetzer, 2020; Gamez, 2021; Ogeda; Ornellas; Soares, 2021; Vlandas; Halikiopoulo, 2022).
A literatura referente à interação entre tais mudanças econômicas e o comportamento político permite pensar em vários mecanismos de transmissão entre esses fenômenos. Um deles, em particular, será testado neste artigo com enfoque primordial: o efeito incumbente derivado dos impactos deletérios da desindustrialização sobre a performance econômica.
Tal mecanismo deriva diretamente da teoria do voto econômico. Nessa perspectiva, a hipótese central é a de que uma piora na performance econômica geraria uma punição ao partido incumbente (Lewis-Beck; Stegmaier, 2000). No caso dos governos petistas, por exemplo, a hipótese foi corroborada por Veiga et al. (2019) ao analisarem a popularidade da Presidente Dilma Rousseff no ano de 2015. Os autores verificaram que a probabilidade de um respondente avaliar o governo federal como péssimo ou ruim era muito superior, relativamente àqueles que avaliavam positivamente o governo, entre os que consideravam a situação econômica como péssima. Isto é, havia correlação entre a popularidade presidencial e a percepção dos eleitores sobre a economia.
Desse modo, os efeitos deletérios da desindustrialização na economia devem ser considerados como um dos fatores determinantes para a perda de votos do PT. Tais efeitos são bem documentados em análises debruçadas sobre países desenvolvidos, as quais apontam a desindustrialização enquanto fenômeno conducente: 1º) ao menor ritmo de crescimento ou estagnação dos salários e dos rendimentos, em vista da menor produtividade dos segmentos não-manufatureiros; 2º) ao deslocamento de força de trabalho de setores com maior para os de menor remuneração (serviços); 3º) ao enfraquecimento da barganha coletiva vinculada à menor densidade sindical; e 4º) em alguns clusters dos EUA, até mesmo à re-ruralização (Bluestone; Harrison, 1982; Rowthorn; Ramaswany, 1997; Lee, 2005; Palma, 2014; Rodrik, 2016; Tregenna, 2016; Rodden, 2019; Beatty; Fothergill, 2020)5.
Neste artigo, por sua vez, entendemos a desindustrialização como uma espécie de choque econômico exógeno, além de variável explicativa central para o entendimento da dinâmica recente nas eleições presidenciais brasileiras. Avançamos como hipóteses: (1) que a desindustrialização exerce efeito causal negativo no desempenho eleitoral do PT; (2) que esse efeito é mais profundo nas regiões Sul e Sudeste, bastante afetadas pela desindustrialização; ademais, (3) como mecanismos de transmissão que contribuem para explicar o processo através do qual a desindustrialização influencia o voto, postulamos que o efeito direto é mediado pela perda de emprego industrial e pela consequente punição ao PT como partido incumbente (efeito incumbente).
Com base na abordagem metodológica de retornos potenciais (potential outcomes), utilizamos Matching com Propensity Score como estratégia de identificação. Esse método, ao possibilitar o balanceamento entre os grupos de tratamento e controle, permite estimar a Média do Tratamento entre os Tratados (ATT, na sigla em inglês), comparando os municípios que se desindustrializaram com contrafactuais. Após o matching, computamos os retornos potenciais com g-computation a partir de um modelo especificado para captar a relação entre o tratamento e o resultado, de modo a testar as hipóteses centrais. Para estimar os efeitos do mecanismo de transmissão supracitado, usamos análise de mediação com “Modelagem por Equações Estruturais” (SEM – Structural Equation Modeling). As unidades de análise são os municípios brasileiros, excluindo-se os que foram criados após 2002. Os dados empregados nas análises foram coletados para os anos eleitorais entre 2002 e 2018. A variável de tratamento é uma medida binária que separa os municípios onde houve desindustrialização (1) daqueles em que não ocorreu desindustrialização (0) no intervalo de um ano eleitoral para o outro. A variável de resultado é a porcentagem de votos recebidos pelo PT no primeiro turno das eleições presidenciais.
As análises confirmam nossa hipótese central, com evidências robustas indicando que a desindustrialização exerceu efeito causal negativo no desempenho eleitoral do PT; revelando também que o efeito se acentua a partir de 2010 e com corroboração parcial de nossa segunda hipótese no caso dos efeitos regionais. De fato, a região Sul do país desponta como aquela em que a desindustrialização mais afetou a votação do PT. Todavia, os efeitos estimados para as regiões Norte e Centro-Oeste são mais negativos do que o coeficiente da região Sudeste. No que tange ao mecanismo de transmissão, os resultados demonstram que a perda de emprego e o consequente efeito incumbência são variáveis relevantes para explicar como e por que a desindustrialização impacta o voto.
O artigo encontra-se organizado em quatro seções, além desta introdução. Na seção seguinte, nos debruçamos sobre as particularidades da desindustrialização brasileira e consideramos os efeitos econômicos e políticos gerais da desindustrialização que dão argamassa às hipóteses apresentadas. Na terceira seção, por sua vez, apresentamos a estratégia empírica da pesquisa, contendo a estrutura causal proposta, a estratégia de identificação e a descrição das variáveis e dos dados. Na quarta seção, apresentamos os resultados alcançados, bem como o teste de robustez com estimativas de erros-padrão e intervalos de confiança com bootstrap. A quinta e última seção conclui o artigo com algumas impressões e possibilidades para essa agenda de pesquisa.
Ao longo do que se convencionou chamar de ciclo nacional-desenvolvimentista (1930-1980), o Brasil logrou um importante catching-up com relação aos países centrais. Contudo, diante da crise da dívida, a partir da virada da década de 1980 para a de 1990, o país adentrou em uma pronunciada e contínua trajetória de desindustrialização, com o setor manufatureiro – particularmente a indústria de transformação – gradualmente perdendo espaço no regime produtivo nacional, tanto em termos de peso sobre o PIB quanto em termos de composição da força de trabalho e da pauta de exportações (Morceiro, 2012; Nassif; Feijó; Araújo, 2013; Bresser-Pereira, 2014; Oreiro; Paula, 2021). O Gráfico 1 ilustra tal perda:

Entre 1988 e 2018, o peso do setor manufatureiro sobre o PIB e sobre a pauta exportadora caiu de 29,97% para 10,52% e de 53,66% para 32,35%, respectivamente. Além disso, a população economicamente ativa empregada no setor secundário, que se ampliou de 10,3% para 25,3% entre 1940 e 1980, declinou pelas décadas seguintes até atingir 11,47% em 2018 (Serra, 1982; IBGE, 2022; World Bank, 2022). Duas dimensões, que ressaltamos a seguir, são fundamentais à compreensão das particularidades da desindustrialização brasileira: a primeira se refere a três momentos-chave na política econômica nacional; a segunda tange ao caráter regional desse impacto, uma vez que as regiões Sudeste e Sul foram especialmente afetadas.
Quanto à primeira dimensão, antes dos governos petistas, dois eventos foram de particular importância para a acentuação desse fenômeno. O primeiro se deu no início dos anos 1990 nos governos dos presidentes Collor de Mello e Itamar Franco, com a redução drástica das tarifas de importação de uma média de 32,2% em 1990 para menos de 17,1% em 1993, fazendo a participação da indústria doméstica sobre o PIB cair de 30% em 1988 para 23,3% em 1992 (Castro, 2011; Cano, 2012; Bastos; Ferraz, 2021)6. Posteriormente, em concomitância ao Plano Real, o então governo Itamar também adotou uma política comercial que intensificou a abertura comercial iniciada por Collor. Em agosto de 1994, portanto, o governo reduziu ainda mais as tarifas de importação até um máximo de 20% para mais de 4.000 produtos (Paula, 2011).
O segundo evento, por sua vez, é pertinente aos primórdios do Plano Real e ao primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998); quando a instauração do regime de câmbio semifixo, ao levar à apreciação excessiva da moeda doméstica (em decorrência da paridade), induziu a uma perda considerável da competitividade externa, o que, somado à liberalização comercial e à inundação de bens importados, intensificou o debilitamento da indústria nacional (Cano, 2012; Bresser-Pereira, 2014; Saad Filho; Morais, 2018; Araújo; Gentil, 2021). Durante esse período, o setor de serviços assume de vez a hegemonia inconteste no perfil da economia brasileira, com a indústria sendo severamente prejudicada (Diniz; Boschi, 2004; Bresser-Pereira, 2014).
Um terceiro momento chave, central a esse trabalho, começou a se manifestar ao longo do governo Lula, adquirindo tração e intensidade sobretudo a partir de seu segundo mandato, como mostra o Gráfico 1 já visto antes e o Gráfico 2 a seguir:

De 2003 até 2016, o peso do setor manufatureiro no PIB caiu de 14,45% para 10,78%; a participação de bens industriais nas exportações caiu de 51,07% para 36,12%; e, por fim, a participação do emprego manufatureiro com relação ao emprego total declinou de 18,1% para 12,84%. Portanto, uma inconteste desindustrialização com rotundo lastro empírico (Nassif; Feijó; Araújo, 2013; Bresser-Pereira, 2014; Saad Filho; Morais, 2018; Silva, 2019).
Essa etapa do choque econômico da desindustrialização se dá no contexto de admissão da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em dezembro de 2001, com o consequente boom dos preços das commodities, perdurando quase toda a década, o que possibilitou ao governo petista não só maiores taxas de crescimento econômico, como também margem para promoção de políticas sociais e de geração de empregos (Bresser-Pereira, 2014; IPEA, 2017; Saad Filho; Morais, 2018; Santos; Moura, 2020).
Não obstante, tais resultados econômicos positivos escamotearam uma profunda alteração estrutural e regressão no regime produtivo brasileiro, com reprimarização da pauta exportadora e intensificação da desindustrialização causada pela incapacidade de competição com a China e pela crescente apreciação cambial, que levou o real a se valorizar de R$ 3,08 por US$ 1 em 2003 para R$ 1,67 por US$ 1 em 2011 (World Bank, 2022). Tal apreciação cambial, tendência que também afetou outros países da América do Sul, ampliou a perda de competitividade exportadora do setor manufatureiro doméstico e, de quebra, barateou bens de consumo estrangeiros que, junto ao aumento da renda no curso da década de 2000, retroalimentou as importações de bens de maior valor agregado, incluindo os chineses (Palma, 2014; Rodrigues; Moura, 2019; Gala, 2020).
No entanto, a desindustrialização não impactou de forma homogênea todas as regiões do país. Dada a concentração regional da base manufatureira nacional no eixo Sudeste-Sul, que representava 84,89% do total da indústria de transformação doméstica e 84% do emprego no setor em 1995, é natural que a desindustrialização tenha incidido com maior intensidade sobre essas regiões (Silva, 2019). Entre 1995 e 2015, parte substantiva da desindustrialização nacional foi puxada, portanto, pela região Sudeste seguida, em menor medida, pela Sul (Gráficos 3 e 4):


Desse modo, a desindustrialização no país envolveu, por um lado, um processo contínuo de enfraquecimento da indústria doméstica desde os anos 1990, aprofundando-se nos anos 2000 em diante; e, por outro, um impacto que incidiu, sobremaneira, nas regiões Sul e Sudeste, onde as unidades mais pujantes deste setor encontram-se estabelecidas. É sobre o elo entre o impacto regional da desindustrialização e seus possíveis efeitos na geografia do voto que nos debruçamos na próxima subseção.
Em 2002, Lula foi eleito presidente numa vitória esmagadora no segundo turno contra o candidato José Serra do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) por 61,27% contra 38,73% dos votos7. Embora Lula tenha vencido em todos os estados da federação excetuando Alagoas, cumpre notar que tanto ele como o Partido dos Trabalhadores tiveram um desempenho excepcional em grandes municípios urbanos e industriais no eixo Sudeste-Sul (Soares; Terron, 2008; Terron; Soares, 2010). Até mesmo o estado de Santa Catarina, hoje associado ao forte conservadorismo e a uma profunda rejeição ao PT, deu a Lula 56,6% e 64,14% dos votos válidos para presidente no primeiro e segundo turnos, respectivamente8.
Contudo, a partir de 2006, e se acentuando em larga medida nos pleitos seguintes, a geografia do voto no país mudou, com a hegemonia de Lula em bases geográficas tradicionalmente coesas nos territórios metropolitanos mais industriais e populosos do Sul e do Sudeste se desfazendo. Os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, onde Lula e o PT obtiveram altos percentuais de votos em 1994 e 1998, por exemplo, retraíram fortemente seu apoio eleitoral a partir de 2006. A base de apoio presidencial petista, assim, rumou às regiões Norte, Nordeste e aos grotões de maior pobreza no Brasil, interiorizando seu suporte nos pleitos executivos (Soares; Terron, 2008). Soma-se a isso um fator decisivo e inédito para a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018: a votação expressiva que o candidato obteve nos estados do Sudeste, sobretudo no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, onde o PT, pela primeira vez desde 2002, foi derrotado no segundo turno presidencial (Nicolau, 2020).
A mudança na geografia eleitoral brasileira em eleições presidenciais é fartamente documentada na literatura, sendo a preocupação mais presente, nos estudos empiricamente mais sólidos, a detecção das razões do sucesso do PT por estrato social e também onde esse partido passou a receber mais votos, vale dizer, na região Nordeste (Carreirão, 2007; Nicolau; Peixoto, 2007; Power; Hunter, 2007; Rennó, 2007; Singer, 2009; Bohn, 2011; Peixoto; Rennó, 2011; Zucco; Power, 2013; Amaral; Ribeiro, 2015; Samuels; Zucco, 2018).
Todavia, não encontramos, no mesmo conjunto de análises, os motivos pelos quais, nas regiões Sul e em partes da região Sudeste, as candidaturas de esquerda e de centro-esquerda foram perdendo hegemonia. Argumentamos que a perda de votos pelo PT nessas regiões tem, como uma de suas variáveis explicativas, choques econômicos locais advindos da desindustrialização que afetaram, sobremaneira, municípios do Sudeste e do Sul. De acordo com Margalit (2019), “choques econômicos” constituem mudanças relevantes em uma dada configuração produtiva no que tange aos impactos, sobretudo, sobre renda e emprego; e sua centralidade para a explicação do caso brasileiro está em linha com estudos que corroboram seu elo com alterações no comportamento político em localidades por eles afetadas (Campello; Urdinez, 2021; Ogeda; Ornellas; Soares, 2021).
Nesse sentido, a Figura 1 mostra tanto a mudança da geografia eleitoral no país quanto a distribuição, entre 2006 e 2018, da desindustrialização dos municípios brasileiros e o desempenho eleitoral do PT nessas localidades. É possível visualizar nos mapas de calor que, em 2006, embora muitos municípios tenham se desindustrializado, o desempenho do PT entre eles não foi tão intensamente negativo, a não ser em partes da região Centro-Oeste. Na região Norte, ao contrário, o desempenho foi positivo, não obstante a desindustrialização de muitos municípios. O mapa de 2010, contudo, sugere, com exceção de partes do Nordeste e do Norte de Minas Gerais, um desempenho mais fraco do partido entre os desindustrializados. Em 2014, assim como em 2006, apesar do número grande de municípios que se desindustrializaram, a performance do PT entre eles não foi adversa. Já o mapa de 2018, por último, sugere que esse foi o ano, entre os analisados neste artigo, em que a desindustrialização mais se generalizou quantitativamente entre os municípios e mais afetou a votação do partido.

Com relação às mudanças no perfil da força de trabalho, de fato, desde o início do longo percurso de desindustrialização brasileira a partir do final da década de 1980, elas se deram em concomitância tanto à consolidação da hegemonia do setor de serviços na economia (que salta de 40,6% do PIB em 1986 para 62,8% em 2020) quanto à tendência de precarização do mercado laboral nacional9. Precarização associada ao fato de que se antes, durante as décadas de 1970 e 1980, a geração de postos de trabalho, por faixa de remuneração, era um pouco mais balanceada (como ilustra o Gráfico 5), a partir dos anos 1990 e principalmente da década de 2000, os novos empregos criados eram majoritariamente no setor de serviços com baixa remuneração.

Ou seja, mesmo durante parte substantiva dos governos petistas (ao longo de todo o governo Lula até o ano de reeleição de Dilma), não obstante melhorias importantes no mercado de trabalho, tais como a queda do desemprego e a crescente formalização da mão de obra, o tecido trabalhista foi precarizado conforme os postos laborais gerados eram de baixa remuneração e concentrados no setor de serviços de baixa complexidade, ao passo que os postos de trabalho de maior remuneração decresceram. Ademais, entre 2006 e 2018, os postos de trabalho remunerando acima de 2 salários-mínimos se retraíram em mais de 6 milhões, sendo a perda de dinamismo do segmento industrial, que é onde estão concentrados os melhores empregos, e a consolidação do setor de serviços, com salários mais baixos, fatores essenciais para deflagrar tal tendência (O Globo, 2020).
Desse modo, a centralidade da hipótese da teoria do voto econômico para a relação entre desindustrialização e comportamento político diz respeito ao fato de ela encontrar-se associada a menores salários e perspectivas de remuneração, bem como ao deslocamento de trabalhadores para postos de trabalho mais precários. Assim, sugerimos que a redução da qualidade de vida e de emprego dos trabalhadores das regiões afetadas geraria um efeito incumbente, no que tange à punição aos partidos à frente da gestão econômica do governo nacional.
Por fim, com relação à dimensão sindical, ela se vincula a uma robusta literatura debruçada sobre a relação entre desindustrialização (industrialização) e perda (aumento) da densidade sindical; que, por sua vez, diminuiria (ampliaria) a barganha coletiva e os recursos de poder dos atores políticos mais à esquerda no espectro ideológico (Ingham, 1974; Cameron, 1978, 1984; Stephens; Wallerstein, 1991; Crouch, 1994).
A importância dos sindicatos se dá pelo fato de contribuírem decisivamente para moldar as visões políticas de seus filiados, e, assim, afetar diretamente suas posições com relação a uma série de tópicos, tais como legislação laboral, política salarial, liberalização comercial, desigualdade de renda etc. Ainda que, é claro, esse efeito varie substancialmente e de forma não linear entre diferentes setores econômicos e indústrias. Em via inversa, declínios sistemáticos e/ou longevos da densidade sindical contribuem para uma oposição pública relativamente mais fraca no que tange a medidas regressivas pertinentes aos tópicos mencionados (Kim; Margalit, 2017).
Tal relação é constatada por Ogeda, Ornellas e Soares (2021), que analisaram a relação entre as reduções tarifárias ocorridas no Brasil na década de 1990, a redução de empregos formais e manufatureiros e o consequente enfraquecimento dos sindicatos. De acordo com os autores, esse processo seria um fator explicativo da perda de votos, entre 1994 e 2018, dos partidos historicamente vinculados aos movimentos sindicais nas localidades impactadas pelo choque econômico advindo da abertura comercial. A desindustrialização, de acordo com McQuarrie (2017), também seria um dos fatores explicativos para a vitória eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos, sendo o resultado da revolta dos residentes de áreas do Cinturão da Ferrugem (Rust Belt) com o Partido Democrata. Segundo o autor, a desindustrialização que aplacou a região teve como resultado a desestruturação da economia local, a marginalização de sua comunidade e o desmantelamento da ordem social na região, no que diz respeito, também, aos sindicatos, que conectavam os trabalhadores industriais ao Partido Democrata. Com isso, de acordo com McQuarrie (2017), teria sido possível a desmobilização de parte do eleitorado e o engajamento para os Republicanos de eleitores brancos da classe trabalhadora, por meio de um discurso revanchista, haja vista sua perda de status e riqueza material.
No caso brasileiro, a consideração da dimensão sindical assume relevância potencial ainda maior em função dos fortes vínculos históricos do PT com os sindicatos. Afinal de contas, a gênese do partido se encontra ainda no final da ditadura militar com o surgimento do Novo Sindicalismo e a intensificação dos movimentos trabalhistas, sobretudo, no estado de São Paulo (Keck, 2010). Tais vínculos prosseguiram ao longo das décadas seguintes, particularmente com a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e, no âmbito do governo, nos mais diversos escalões (Cardoso, 2014; Campos, 2019). Ademais, os achados de Meneguello e Bizarro Neto (2012) sobre o aprofundamento e consolidação da presença do PT em municípios paulistas de perfil mais industrializado ao longo das décadas de 1980 e 1990, passando a declinar a partir de 2002 (quando o partido chegou ao governo federal), jogam luz na direção do caminho argumentativo proposto neste artigo.
Embora, por razões de escopo, não tenhamos feito testes empíricos sobre o elo entre a desindustrialização e o enfraquecimento dos sindicatos no Brasil, no que tange aos dados sobre essa dimensão, três evidências tornam bastante intuitiva essa analogia: a) Redução da taxa de sindicalização entre trabalhadores formais: entre 2003 e 2013, a sindicalização nacional declinou de 29,7% para 21,9% no mesmo interregno; b) Declínio do setor industrial e da taxa de sindicalizados no setor industrial: além da queda da participação do setor industrial no total de postos de trabalho formais, ainda se deu uma redução concomitante dos filiados aos sindicatos, mesmo no bojo dos empregos formais remanescentes no setor; c) Redução da taxa de sindicalização regional: em todas as regiões do Brasil, a taxa de sindicalização caiu ao largo das últimas duas décadas, com maior veemência a partir de 2006. A região Sul, que detinha, no início do governo Lula, o maior percentual de trabalhadores formais associados aos sindicatos (33% em 2003), foi a que apresentou a maior queda na taxa de filiação: quase 10 pontos percentuais entre 2003 e 2013; cedendo a posição de região de maior sindicalização para o Nordeste de 2012 em diante. No Sudeste, caiu de 29,86% dos trabalhadores formais vinculados aos sindicatos em 2004 para apenas 12% em 2018 (Silva, 2019; IBGE, 2020)10.
Portanto, os dados mobilizados, intuitivamente, caminham na direção de nosso argumento, embora não tenhamos logrado testá-los neste artigo. Na próxima seção, “Estratégia Empírica”, focamos no mecanismo de transmissão do efeito incumbente como consequência dos impactos econômicos locais da desindustrialização. Passamos, enfim, à elucidação de nossa estratégia empírica e sua operacionalização.
Conduzimos nossas análises empíricas por intermédio da abordagem de retornos potenciais (potencial outcomes), tendo como tratamento a desindustrialização ou não dos municípios brasileiros e como resultado o desempenho eleitoral do PT. Nessa abordagem (Splawa-Neyman), 1990 [1923]; Rubin, 1974), os efeitos causais são estimados a partir da comparação entre dois retornos potenciais (e ), ex ante, para a mesma unidade i, sendo um realmente realizado () e o outro contrafactual (), como mostra a equação (1) a seguir:
O principal problema de inferência causal, neste caso, é que o contrafactual () não é observável ex post e precisa ser estimado (Morgan; Winship, 2015; Imbens; Rubin, 2015; Cunningham, 2021). Na sequência desta seção, detalhamos a estratégia de identificação utilizada para estimar os contrafactuais e os efeitos causais de interesse da pesquisa.
O Diagrama Causal Acíclico (DAG, na sigla em inglês) exposto na Figura 2 permite a visualização de uma estrutura causal relativamente complexa do fenômeno. Trata-se de uma etapa importante com vistas à estratégia de identificação adotada. Na Figura 2, é possível verificar que existem quatro caminhos causais hipotéticos entre desindustrialização e desempenho eleitoral do PT: (1) T→ Y; (2) T→A→Y; (3) T→A→B→C→Y; (4) T→A→D→Y. O caminho (1) expressa o efeito total da desindustrialização sobre o desempenho do PT enquanto os caminhos (2), (3) e (4) dizem respeito aos mecanismos de transmissão que podem ser especulados como relevantes (3 e 4) e aquele cujo efeito indireto de mediação é estimado neste artigo (2). Além disso, no DAG, é possível verificar quatro variáveis de confusão11 – “Nível de industrialização”, “PIB”, “População” e “Região” – que devem, necessariamente, ser controladas para fechar os backdoors12 entre o tratamento e o resultado.

Nota: Círculos ligados por linhas em negrito indicam o ajuste mínimo que é necessário para estimar o efeito total; o retângulo com contornos em negrito representa a variável de mediação cujo efeito é estimado; retângulos com contornos cinzas apontam variáveis para as quais não há dados; números e linhas pontilhadas simbolizam os caminhos causais; letras mostram as arestas do triângulo de mediação.
Nos concentramos somente na estimação dos caminhos causais (1) e (2), pois não dispomos de dados sobre densidade sindical, oferta de candidaturas de esquerda e mudança ideológica para todos os municípios, o que compromete a operacionalização empírica completa para fins comparativos.
O Gráfico 6 mostra que, ao dividirmos os casos da nossa amostra entre desindustrializados (tratamento) e não desindustrializados (controle), é possível verificar que os municípios que estão no primeiro grupo apresentam menores médias de votação no PT do que aqueles que fazem parte do segundo grupo. A diferença de médias de aproximadamente 3 pontos percentuais, todavia, não pode ser tomada como efeito causal. Como explicita o DAG na Figura 2, para se ter interpretação causal, é necessário fechar os backdoors de modo a assegurar que essa medida não seja viesada pelos efeitos exercidos pelas variáveis de confusão (unconfoundedness). Para lidar com esse problema de identificação, estimamos coeficientes condicionados pelas variáveis de confusão, utilizando Matching com Propensity Score (PSM, na sigla em inglês).

Matching é um método não paramétrico de pré-processamento de dados empregado antes da análise paramétrica com o objetivo de, se não eliminar, pelo menos reduzir vieses oriundos de covariáveis observadas. Funciona por meio da imputação de retornos potenciais, do uso de unidades próximas do grupo de controle ou da ponderação de médias com subclassificação (Ho et al., 2011; Cunningham, 2021). Propensity Score, por sua vez, é uma forma de calcular a probabilidade de exposição a determinado tratamento a partir de um conjunto de covariáveis (Joffe; Rosenbaum, 1999). Essas duas técnicas, utilizadas juntas como PSM, apresentam consistência largamente demonstrada na literatura. Ao possibilitar o balanceamento entre os grupos de tratamento e controle, eles se tornam comparáveis, o que é essencial em estudos observacionais (Rosenbaum; Rubin, 1983; Austin, 2011; Gedolf et al., 2020).
Especificamente, neste artigo, utilizamos o método Generalized Full Matching (GFM), que é uma forma de subclassificação na qual todas as unidades (tratamento e controle) são atribuídas a uma subclasse e recebem ao menos um "match". O uso de GFM se deve a dois motivos principais. Em primeiro lugar, porque o pré-processamento realizado com GFM apresentou balanceamento mais preciso do que o matching por "vizinho próximo" (nearest neighbor). No Apêndice 1, é possível verificar a comparação do balanceamento realizado com os dois métodos. Em segundo lugar, porque o GFM é uma variante do "full matching" cuja virtude é a de utilizar um algoritmo que acelera drasticamente o processo de balanceamento. No nosso caso, o FM se mostrou muito custoso em termos computacionais. De fato, a capacidade do GFM de adaptar o uso de matching a amostras grandes, como argumentam Sävje et al. (2020), se mostrou satisfatória.
A partir do GFM, estamos interessados em estimar médias do tratamento entre os tratados (ATT), como formalizado na equação (2). No caso do nosso artigo, entendemos ser de maior interesse, para compreender a dinâmica do voto, considerar como subpopulação alvo somente o grupo que realmente recebeu o tratamento, de modo a poder compreender o potencial de votação, em média, que poderia ser adicionado (efeito marginal) caso os municípios não tivessem se desindustrializado (contrafactual).
Para estimar os ATTs, usamos g-computation. Esse método, a partir da especificação de um modelo, computa os valores preditos para cada unidade como retornos potenciais, calcula as médias para cada grupo (equação (1)) e faz o contraste entre elas, estimando o efeito de tratamento com erros robustos e clusterizados (Greifer, 2022a, 2022b). O modelo especificado é do formato da equação (3):
Nessa equação, Y é a porcentagem de votação do PT, o indicador de tratamento T igual a 1 caso o município i tenha se desindustrializado, e X representa um conjunto de covariáveis. A presença de X em interação com o tratamento é relevante, porque mostra que empregaremos nas estimações um método de robustez chamado de doubly robust method. Embora após o pré-processamento com GFM seja esperado que os vieses oriundos das covariáveis observadas sejam eliminados ou bastante minimizados, há sempre a possibilidade de que restem resíduos. Dessa forma, incluir no modelo que estima o ATT as mesmas covariáveis usadas para fazer o balanceamento é altamente recomendado pela literatura (Funk et al., 2011; Li et al., 2016).
Com a estratégia estipulada acima, podemos estimar o efeito total da desindustrialização sobre o desempenho eleitoral do PT relativo ao caminho causal (1). Todavia, estamos interessados, também, nos efeitos heterogêneos do tratamento de modo a poder identificar quando, sob quais condições, como e por que o efeito ocorre, de acordo com as hipóteses e os mecanismos de transmissão previamente estabelecidos e formalizados na Figura 2. Para isso, fizemos análises de moderação (quando e sob quais condições) e de mediação (como e por que). Como explica Blair (2022), análises de moderação testam a influência de uma terceira variável na relação entre duas variáveis de interesse, e podem reforçar, enfraquecer ou reverter a natureza da relação identificada no efeito total. No caso da análise de mediação, há, também, interesse em compreender o impacto de uma terceira variável. No entanto, nesse caso, o objetivo é testar cadeias causais hipotéticas por meio de efeitos indiretos que descrevam o processo através do qual o efeito total ocorre.
Testamos, como moderadores, os anos eleitorais (2006, 2010, 2014 e 2018) e as regiões do país. Foram criados bancos separados por ano e região, a partir dos quais foram realizados balanceamentos e análises com os dados desagregados, estimando os efeitos do tratamento (ATT) de acordo com a equação (3). Com relação aos anos, é esperado que o efeito total identificado varie entre os pleitos. No que tange às regiões do país, a expectativa é que o efeito negativo seja mais acentuado nas regiões Sul e Sudeste, contribuindo para explicar, em parte, a mudança da geografia do voto a partir do choque econômico provocado pela desindustrialização que, como vimos, afetou mais essas regiões.
A análise de mediação se concentra em estimar o caminho causal (2), que envolve a variável “Menos emprego industrial”. O coeficiente de interesse é o efeito médio de mediação causal (ACME, na sigla em inglês). Do ponto de vista operacional, as análises de mediação são realizadas por meio de "Modelagem por Equações Estruturais" (SEM – Structural Equation Modeling) (Jo et al., 2011). Os efeitos são estimados de acordo com as equações (4) e (5):
A equação (4) estima o efeito do tratamento , condicionado às covariáveis observadas , no mediador ; a equação (5) estima o efeito do mediador no resultado , condicionado ao tratamento e às covariáveis (b), e o efeito do tratamento no resultado , condicionado ao mediador e às covariáveis (c'). Importante notar que, na equação (5), há uma interação entre o mediador e o tratamento . O objetivo é identificar o ACME específico para o grupo de tratamento, o que é importante levando em consideração que a estimativa do efeito total do tratamento no resultado é o ATT.
Nossa variável de tratamento é uma medida binária que classifica, com base no saldo industrial dos municípios, os casos da amostra onde houve desindustrialização (1) e aqueles em que não ocorreu desindustrialização (0). O saldo industrial dos municípios foi formulado para ser uma medida de economia política. A partir da variável “Peso da indústria no PIB”, que indica a participação da indústria no PIB municipal, o saldo industrial é calculado como a diferença do peso da indústria de um ano eleitoral para o outro. Por exemplo, o saldo para o ano de 2006 é o peso da indústria desse ano menos o de 2002. O objetivo é mensurar o quanto muda o nível industrial dos municípios de um ciclo eleitoral para o outro de modo a analisar se essas variações potencialmente diminuem o desempenho eleitoral do PT que, por sua vez, é mensurado com a porcentagem de votos que o partido obteve no primeiro turno das eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010, 2014 e 2018. Como para calcular o saldo industrial são necessários dados do ano eleitoral anterior, as análises subsequentes foram realizadas considerando os anos de 2006, 2010, 2014 e 2018. Os dados acerca dos níveis industriais são do IBGE e os dados eleitorais foram coletados no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Entre as covariáveis, os dados para o tamanho da população estimada e para o PIB dos municípios são do IBGE. No que se refere à religião, a medida utilizada é a porcentagem de população evangélica dos municípios. Para raça, usamos a porcentagem de população branca dos municípios. Com relação ao nível educacional, empregamos como medida a porcentagem da população dos municípios com ensino fundamental completo. Para essas três variáveis, os dados são dos Censos de 2000 e 2010. Nesses casos, como não há dados para todos os anos, utilizamos para 2006 os dados do Censo de 2000 e, para 2010, 2014 e 2018, os indicadores do Censo de 2010.
A razão para a escolha de tais covariáveis é poder controlar e evitar possíveis distorções nos testes estatísticos. A escolha da covariável “tamanho da população” permite, por exemplo, mitigar ou diluir potenciais efeitos da clivagem entre grandes metrópoles e pequenos municípios, em termos de comportamento político.
Com relação à covariável “religião”, essa se deve à ascensão do fenômeno do voto evangélico, em decorrência do aumento considerável, ao longo das últimas décadas, tanto da população autodeclarada vinculada a tal religião quanto dos representantes políticos nacionais associados ao pentecostalismo13. Também é válido frisar, nesse sentido, que a questão religiosa foi pauta fundamental no pleito presidencial de 2018, mobilizada, sobretudo, pelo candidato vencedor Jair Bolsonaro (fato que se repetiu no pleito de 2022), e também que, desde a eleição de 2014, o PT tem perdido apoio significativo dessa parcela do eleitorado (Nicolau, 2020).
A inclusão da covariável “raça” se atribui ao fato de o PT ter vínculo histórico com as pautas e as demandas do movimento negro e por expressar de forma mais veemente – vis-à-vis as demais forças políticas que lhe antagonizaram nos pleitos presidenciais – sua defesa de políticas afirmativas e outras políticas públicas voltadas à população autodeclarada preta (Rodrigues; Pereira, 2022). Nas eleições para presidente de 2006, 2010, 2014 e 2018, o/a candidato/a petista venceu nos dez municípios com maior proporção de população autodeclarada preta (TSE, 2023)14. Também é válido destacar que Zanotti, Rama e Tanscheit (2023) encontraram evidências quanto à relevância analítica e estatística da variável “raça” na predição do comportamento eleitoral no pleito de 2018 entre Haddad e Bolsonaro.
A covariável “nível educacional”, por sua vez, em linha com as anteriormente mobilizadas, foi inserida para controlar possíveis efeitos estatísticos, uma vez que, desde as eleições presidenciáveis de 2006, o PT tem perdido apoio/preferência entre os eleitores mais escolarizados, sobretudo os detentores de ensino superior (Singer, 2012; Nicolau, 2020).
No que tange à variável utilizada na análise de mediação para estimar o efeito indireto do tratamento, os dados do saldo de emprego industrial geral são do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED). Na Tabela 1, são apresentadas as estatísticas descritivas das variáveis utilizadas na pesquisa:

Balanceamento
Como vimos, uma das funções mais importantes do uso de PSM é produzir o balanceamento entre os grupos de tratamento e controle com relação às covariáveis observadas. Nas últimas duas colunas da Tabela 1, é possível notar que há, de fato, desbalanceamento das médias das variáveis entre os grupos. O Gráfico 7 mostra que o processo de balanceamento reduziu efetivamente as diferenças de médias a próximo de zero para a análise realizada com os dados agregados. No Apêndice 1, é possível verificar os resultados dos balanceamentos empregados nas análises de moderação por ano e região.

A Tabela 2 mostra os resultados das análises com os dados agregados e utiliza os anos eleitorais e as regiões como moderadores. O ATT com o efeito total no primeiro modelo confirma a hipótese estabelecida no caminho causal (1). O efeito causal estimado indica a diminuição média esperada de -1.704 na votação do PT no primeiro turno das eleições presidenciais, com significância estatística no nível de 0,1%, o que nos dá segurança da precisão do coeficiente. Nesse caso, considerando o contrafactual estimado (), a análise sugere que o PT poderia ter alcançado a média de 49,91% dos votos caso os municípios do grupo de tratamento não tivessem se desindustrializado, o que, em eleições competitivas, é uma diferença relevante. Importante, ainda, notar que o resultado apresentado é uma média. Portanto, em alguns municípios, o efeito estimado é ainda mais profundo.

Conforme o previsto, os efeitos são heterogêneos entre os anos eleitorais e as regiões do país. No que tange aos anos, em 2006, o contraste de médias é bastante pequeno e não é estatisticamente significativo. Em 2010, o efeito é significativo no nível de 1% e chega próximo de um ponto percentual negativo. No ano de 2014, o coeficiente é reduzido e não é estatisticamente significativo. Já em 2018, a estimativa de efeito de -1.201 ponto percentual é estatisticamente significativa no nível de 0,1%, mostrando que neste ano o impacto da desindustrialização alcança o ponto de maior intensidade. Esses resultados ano a ano evidenciam, portanto, que a influência da desindustrialização não tem crescimento contínuo no período analisado, mas apresenta flutuação entre os pleitos.
Com relação às regiões, os resultados mostram que, com efeito negativo de mais de três pontos percentuais e estatisticamente significativo no nível de 0,1%, a região Sul, de fato, é onde o PT teve o desempenho, em média, mais prejudicado pela desindustrialização. No Sudeste, o efeito negativo de -1.549 também é significativo no nível de 0,1%. Os resultados para essas duas regiões confirmam parcialmente nossa hipótese, dado que, apesar de ser negativo, o impacto médio estimado da desindustrialização na votação do PT no Sudeste é comparativamente menor do que nas regiões Norte e Centro Oeste, -2.754 e -2.053, respectivamente. Apenas no Nordeste o PT parece estar imune ao efeito negativo da desindustrialização. Essas estimativas trazem insights importantes sobre a dinâmica regional da economia política do voto, que serão mais bem explorados nas considerações finais.
Tendo demonstrado que a desindustrialização exerce efeito direto negativo no desempenho do PT e que essa influência é heterogênea quanto aos anos eleitorais (quando) e quanto às regiões do país (onde), a Tabela 3 traz resultados que evidenciam a relevância da perda do emprego e o consequente efeito incumbente para a compreensão do processo através do qual a desindustrialização afeta negativamente o voto (como e por quê).

O efeito médio de mediação causal estimado da perda de emprego é negativo e estatisticamente significativo, sugerindo que, de fato, essa variável intermedeia a relação entre desindustrialização e desempenho eleitoral do PT, como preconizado no efeito causal (2) proposto. Esse resultado fornece suporte à hipótese segundo a qual entre os municípios de tratamento há uma espécie de punição ao partido incumbente devido aos correlatos socioeconômicos da desindustrialização. O efeito de mediação e a proporção mediada relativamente pequenos encontram-se dentro do esperado, dado que o mediador é bastante específico.
Na literatura acerca do uso de matching para inferência causal, há intenso debate sobre a forma mais eficiente de cálculo de erros-padrão e intervalos de confiança. Abadie e Imbens (2008), em trabalho constantemente citado, apontam falhas no uso de bootstrap. Todavia, posteriormente, Austin e Small (2014) e Abadie e Spiess (2022) sugerem que, para matching sem substituição (replacement) – o que é o caso deste artigo –, o uso de bootstrap clusterizado (cluster bootstrap) é consistente. Para testar a robustez das estimativas apresentadas na Tabela 2, além do doubly robust method já empregado, utilizamos esse método para estimar os erros-padrão e os intervalos de confiança do tipo BCa. No caso das análises de mediação, estimamos os erros-padrão e os intervalos de confiança BCa a partir da opção ofertada diretamente pelo pacote mediation para o software R (Tingley et al., 2014). Os resultados aparecem nas Tabelas 4 e 5:


Os coeficientes não variam substancialmente quando estimados com bootstrap. As variáveis de interesse para explicar a queda no apoio eleitoral ao PT em eleições presidenciais, no agregado, por eleição, por regiões e o saldo do emprego industrial como mediação mantêm o sinal e a significância. Assim, podemos dizer que nossas hipóteses centrais e aquela derivada do mecanismo de transmissão testado (efeito incumbente) possuem lastro nas evidências disponíveis. Vale dizer, a desindustrialização tem, de fato, efeito na queda da votação desse partido por município, sendo tal efeito mais forte na região Sul, mas também substancial nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste. Tal efeito encontra-se mediado pela perda de emprego como efeito incumbente.
Dois processos concomitantes são distintivos no Brasil ao longo das últimas duas décadas. O primeiro iniciou-se com a vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, galgando, à presidência do país, o Partido dos Trabalhadores. Após o apogeu do PT à frente da República Federativa, dois pontos de inflexão marcaram nossa história política: o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016, finalizando os 13 anos consecutivos em que o partido esteve à frente da gestão nacional; e a imprevisível eleição do candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro (PSL), em 2018, que se seguiu ao aumento significativo da rejeição ao PT e ao recrudescimento conservador no país.
O segundo processo, por seu turno, refere-se à desindustrialização. Definimos tal fenômeno de duas formas distintas, embora não excludentes: como redução da participação da indústria de transformação sobre o PIB e como perda da participação do setor manufatureiro no emprego nacional total (Palma, 2014). Não obstante suas raízes se encontrem no início dos anos 1990, durante a gestão petista, a desindustrialização se intensificou no país.
A principal contribuição deste artigo é mostrar como tais processos encontram-se relacionados, isto é, como a intensificação da desindustrialização pode ser um dos fatores explicativos para a perda de apoio do Partido dos Trabalhadores e o aumento da força eleitoral da direita nas eleições presidenciais. Surpreende observar como a mesma literatura que analisa o padrão de apoio e rejeição ao PT e destrincha a inflexão geográfica do voto petista ocorrida a partir de 2006 ignora as mudanças no capitalismo brasileiro como possível vetor explicativo. A pergunta sobre por que aumenta o contingente de apoiadores na região Nordeste quase nunca é acompanhada pelo questionamento sobre por que se reduz drasticamente esse mesmo contingente na região Sul e em partes do Sudeste (Nicolau; Peixoto, 2007; Power; Hunter 2007; Soares; Terron, 2008; Bohn, 2011; Zucco; Power, 2013; Samuels; Zucco, 2018). Quando isso ocorre, hipóteses interessantes são levantadas, embora sem esforço mais sistemático de comprovação.
Neste artigo, confirmamos a hipótese de que há relação entre a desindustrialização brasileira e a perda de voto do Partido dos Trabalhadores e ressaltamos, ainda, as características regionais de tal processo, tão fundamentais para compreendermos, sobretudo, o resultado eleitoral de 2018.
Tal conclusão poderia ser aprimorada, ainda, por meio de testes futuros de outros dois mecanismos de transmissão aludidos (porém não testados aqui), referentes aos efeitos da desindustrialização no comportamento político, considerando o gradual enfraquecimento dos sindicatos e aspectos ideológicos. De potencial heurístico, nos parece, mas ainda igualmente desprovido de comprovação na presença de controles, que são os efeitos da desindustrialização sobre a vida e as práticas sindicais.
A importância dessa dimensão se refere à sua capacidade explicativa no que tange ao porquê não tem sido neutra a mudança no comportamento político nas localidades onde ocorre a desindustrialização, mas em favor de partidos à direita, complementando, desse modo, a teoria do voto econômico na análise do caso brasileiro. Trata-se, por certo, de mais uma avenida de investigação aberta após os resultados alcançados neste artigo.
No que tange à segunda dimensão, Cardoso (2020) sugere que, no Brasil, a virada à direita de frações da classe média seria, em parte, uma reação à perda dos seus signos de distinção frente a classes mais abaixo da pirâmide econômica, o que ajudaria a explicar a polarização no país e a eleição de Jair Bolsonaro. Em suas palavras, essas frações da classe média, “na luta pela manutenção de seus signos de distinção, ou apenas de suas posições recém-adquiridas, têm mostrado pouco apreço pela democracia política ou social, aqui e em outros países do mundo” (Cardoso, 2020, p. 280-281). Embora Cardoso (2020) não trate especificamente dos trabalhadores industriais, entendemos que sua hipótese pode ajudar a explicar o porquê de, nessas regiões, ter ocorrido um giro à direita. Isto é, na medida em que a desindustrialização reduziu o status social e material desses trabalhadores e que estes, por seu turno, perderam também seus signos de distinção, eles podem ter sido mobilizados por discursos revanchistas não só contra o Partido dos Trabalhadores, mas também contra pautas progressistas, em linha com a hipótese de McQuarrie (2017) mencionada anteriormente. De novo, contudo, trata-se de hipótese ainda em busca de verificação sistemática. O fato de os nossos resultados, não reportados aqui, encontrarem-se relacionados a níveis de renda, sendo mais pronunciados nas faixas mais elevadas, indica que investigar o efeito da desindustrialização sobre a sensação de perda de status da classe média consiste em caminho altamente promissor.
Por fim, cabe considerar de maneira mais precisa o significado dos testes realizados. Analisar como alterações na configuração econômico-produtiva, no que tange, em especial, ao emprego e à renda, afetam a decisão de eleitores nos pareceu o caminho teórico mais indicado para fins da nossa análise e os resultados foram consistentes. Importante notar, contudo, que não necessariamente numa determinada região onde a desindustrialização seja particularmente forte o voto na esquerda diminuirá mais do que em outras regiões. O Sudeste, por exemplo, foi mais afetado pela desindustrialização porque é mais industrializado, mas o efeito da desindustrialização sobre o voto revelou-se mais forte nas regiões Norte e Centro-Oeste.
É fundamental considerar que a desindustrialização produz efeitos relevantes e negativos na votação em partidos de esquerda mesmo que o desempenho desses permaneça forte em determinada região, o que parece ter sido o caso da região Nordeste. Quer dizer, a despeito do efeito negativo da desindustrialização, o PT mantém seu bom desempenho na região, por motivos outros não relacionados a mudanças no regime produtivo local. Isso não anula o fato de que os resultados sugerem que a desindustrialização ajuda a explicar a perda de votos do partido nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Apenas demonstra que o efeito negativo da desindustrialização nessas regiões não foi contrabalanceado por estratégias compensatórias – como parece ter sido o caso do desempenho do Partido Democrata nas regiões mais urbanizadas dos EUA, tal como analisado recentemente por Rodden (2019).
De todo modo, se voltamos à pergunta inicial, de que maneira mudanças significativas na configuração econômico-produtiva, no que tange, em especial, ao emprego e à renda impactam a decisão de elites e eleitores, cremos ter mostrado que a desindustrialização exerceu efeito causal negativo sobre o desempenho eleitoral do PT; que o efeito se acentuou principalmente a partir de 2010; e que foi mais profundo na região Sul, mas também relevante nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste. Apenas no Nordeste, o PT parece estar imune aos efeitos negativos da desindustrialização. E, finalmente, avançamos teoricamente ao detectar que o processo por meio do qual a desindustrialização influencia o voto passa pela perda de emprego industrial e consequente punição ao PT como partido incumbente no período pertinente.





O autor agradece pessoalmente ao graduando em Ciências Econômicas Igor Padilha (UERJ) pelo valioso trabalho de coleta de dados empíricos para a execução do presente artigo.







Nota: Círculos ligados por linhas em negrito indicam o ajuste mínimo que é necessário para estimar o efeito total; o retângulo com contornos em negrito representa a variável de mediação cujo efeito é estimado; retângulos com contornos cinzas apontam variáveis para as quais não há dados; números e linhas pontilhadas simbolizam os caminhos causais; letras mostram as arestas do triângulo de mediação.











