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A imanência consegue explicar os conflitos sociais?12
Ernesto Laclau
Ernesto Laclau
A imanência consegue explicar os conflitos sociais?12
Can immanence explain social conflicts?
Alea: Estudos Neolatinos, vol. 20, núm. 2, pp. 279-289, 2018
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ
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A imanência consegue explicar os conflitos sociais?12

Can immanence explain social conflicts?

Ernesto Laclau3
University of Essex, United Kingdom
Alea: Estudos Neolatinos, vol. 20, núm. 2, pp. 279-289, 2018
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ

Recepção: 15 Setembro 2017

Aprovação: 30 Novembro 2017

Numa entrevista recente (vide RANCIÈRE, J. “Peuple ou multitudes: Question d’Eric Alliez à Jacques Rancière”, Multitudes n. 9, maio/junho 2002: 95-100), Jacques Rancière contrapõe sua noção de “povo” (peuple) (vide RANCIÈRE, La Mésentente. Paris: Galilée, 1995) à categoria de “multidão” como é apresentada pelos autores de Império. Como se sabe, Rancière distingue entre os dois sentidos da palavra “política” , sendo o primeiro a lógica de quantificar e designar a população a lugares diferenciados, enquanto o segundo subverte essa lógica diferenciadora por meio da constituição de um discurso igualitário que coloca em questão as identidades estabelecidas. “O povo” é o sujeito específico da política [politics] e pressupõe uma divisão expressiva no corpo social que impede o retorno a qualquer tipo de unidade imanente. A abordagem de Império, em contrapartida, faz da imanência sua categoria central e o fundamento último da unidade da multidão.

As principais linhas da crítica desenvolvida por Rancière fornecem um bom ponto de partida para o que temos a dizer sobre o livro. De acordo com Rancière, o imanentismo de Hardt e Negri teria ligação com a ética de afirmação nietzschiana/deleuziana compartilhada pelos autores, que suprime qualquer dimensão reativa ou negativa. Sob esse prisma, Império pertenceria à tradição da filosofia política moderna, que é profundamente metapolítica: “o cerne da metapolítica é reconduzir os precários artifícios da cena política à verdade de um poder imanente que organiza os seres em uma comunidade e identifica a comunidade verdadeira com a operação compreendida e razoável dessa verdade” (RANCIÈRE, 2002: 96). A partir da rejeição de Hardt e Negri de qualquer negatividade inerente aos sujeitos políticos, deduz-se que o poder inerente à multidão tem que ser um poder disruptivo, “localizado em todo estado de dominação como seu conteúdo final, um conteúdo destinado a destruir todas as barreiras. As ‘multidões’ precisam ser um conteúdo cujo continente é o Império” (RANCIÈRE, 2002:97). As forças disruptivas que operam através de um movimento puramente imanente são o que a teoria marxista denomina “forças produtivas” e haveria, de acordo com Rancière, uma estreita homologia entre o lugar das forças produtivas e aquele, descrito em Império, em que atuam as multidões. Rancière ressalta que as forças produtivas não devem ser necessariamente compreendidas em qualquer sentido produtivista: o conceito vem sendo constantemente ampliado desde o estrito economicismo do marxismo clássico até as tentativas recentes de introduzir nele o conjunto de habilidades científicas e intelectuais, passando pela tentativa leninista de suplementar, pela via da intervenção política, um papel que as forças produtivas se recusassem a assumir.

Penso que Rancière sublinha corretamente o que me parece a maior fonte das diversas fragilidades em Império, inclusive a que é central: o fato de que, dentro de sua moldura teórica, torna-se impossível pensar a política. Vou começar, então, pela discussão de sua noção de imanência, passando a vários outros aspectos teóricos e políticos da obra.

Iniciemos com a discussão feita pelos autores sobre as origens da modernidade europeia. Enquanto em geral se insiste sobre o processo de secularização, esse processo seria “em nossa opinião [...] apenas um sintoma do evento principal da modernidade: a afirmação dos poderes deste mundo, a descoberta do plano da imanência. ‘Omne ens habet aliquod esse proprium’- toda entidade possui uma essência singular. A afirmação de Duns Scotus subverte a concepção medieval do ser como objeto de predicação analógica e, portanto, dualista - um ser com um pé neste mundo e outro num reino transcendental.” (HARDT; NEGRI, 2000: 71). A insistência de Duns Scotus na singularidade do ser pode ter impulsionado uma afirmação da imanência, descrita pelos autores como um processo cujos nomes principais teriam sido Nicolau de Cusa, Pico della Mirandola e Bovillus (outros nomes citados são Bacon e Occam) e cujo ponto culminante é Spinoza. “Quando chegamos a Spinoza, na verdade, o horizonte da imanência e o horizonte da ordem política democrática coincidem por completo. O plano da imanência é aquele em que os poderes da singularidade se realizam e aquele em que a verdade da nova humanidade é histórica, técnica e politicamente determinada. Exatamente por causa disso, porque não pode existir qualquer mediação externa, o singular é apresentado como multidão.” (HARDT; NEGRI, 2000: 73). A revolução, porém, encontrou problemas: teve seu Termidor, e o resultado foi a Guerra dos Trinta Anos. A necessidade de paz levou à derrota das forças do progresso e à instauração do absolutismo.

A primeira coisa que chama atenção nessa análise é que ela nos oferece uma narrativa truncada, porque a asseveração de um imanentismo radical não começa, como Hardt e Negri parecem crer, na época de Duns Scotus, mas muito antes, durante a Renascença Carolíngia - mais precisamente, com a obra Da divisione naturae de Scotus Erigena. E em suas formulações iniciais não havia qualquer relação com o secularismo, pois se tratava de uma resposta a dificuldades estritamente teológicas. A tentativa de retornar aqui a essas origens não obedece a um escrúpulo meramente erudito. Pelo contrário, o esclarecimento do contexto das alternativas teológicas, das quais o imanentismo seria apenas uma, tem relevância direta para as questões políticas que estamos discutindo nos dias atuais. A questão teológica original - que, dentre outros, ocupava a mente de um pensador da estatura de Santo Agostinho - era como compatibilizar a existência do mal mundano com a onipotência divina. Se Deus é responsável pelo mal, ele não pode ser o Bem absoluto; por outro lado, se não for responsável pelo mal, também não será o Todo Poderoso. Nas suas formulações iniciais, o imanentismo é uma resposta a esse dilema. Segundo Erigena, o mal não existe; as coisas que consideramos más são etapas necessárias que Deus precisa vencer para alcançar sua perfeição divina. Mas isso é obviamente impossível, se Deus não estiver de alguma forma no interior deste mundo.

Desse ponto em diante, o imanentismo teve uma longa carreira no pensamento ocidental. Está muito presente no misticismo do norte europeu e em alguns dos autores discutidos em Império, como Nicolau de Cusa e Spinoza, e encontrará seu ápice em Hegel e Marx. A astúcia da razão de Hegel acompanha de perto o argumento formulado por Erigena mil anos antes. Como Hegel afirma em Filosofia da História, a história universal não é o terreno da felicidade. A versão marxista pouco difere: a sociedade devia superar o comunismo primitivo e passar por todo o inferno da divisão de classes para desenvolver as forças produtivas da humanidade. Somente no final desse processo, em um comunismo totalmente desenvolvido, é que a racionalidade desse sofrimento todo se torna visível.

O que é importante em relação a esses debates teológicos, no entanto, são as alternativas que restam caso a rota imanentista não seja seguida. Porque, nesse caso, o mal não é mais a aparência de uma racionalidade que o subjaz e explica, mas um fato bruto e irredutível. Como o abismo que separa o bem e o mal é estritamente constitutivo e não há um fundamento que reduza a seu desenvolvimento imanente a totalidade do que existe, há um elemento de negatividade que não pode ser eliminado, seja pela mediação dialética, seja pela assertividade de Nietzsche. Não estamos muito distante das alternativas a que Rancière se refere em sua entrevista. (Deve-se observar que, estritamente falando, a categoria de excesso não é incompatível com a noção de uma negatividade não dialética que estamos propondo. Somente se tentarmos combinar excesso com imanência é que se tornará inevitável a virada não política, que discutiremos em seguida.

Da mesma forma que, com a modernidade, a imanência deixou de ser um conceito teológico e tornou-se completamente secularizado, a noção religiosa do mal, com a virada moderna, transforma-se no cerne do que podemos denominar “antagonismo social”. O que este último detém daquilo que havia antes é a noção de uma disjunção radical - radical no sentido de que não pode ser reabsorvida por nenhuma objetividade mais profunda que reduzisse os termos do antagonismo a momentos de seu movimento interno próprio - como, por exemplo, o desenvolvimento de forças produtivas ou qualquer outra forma de imanência. Neste ponto, defendo que somente através da aceitação desta noção de antagonismo e de seu corolário, que é a divisão radical, somos confrontados com formas de ação social que podem ser consideradas realmente políticas. Para mostrar por que isso ocorre, considerarei um texto inicial de Marx (“Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Law: Introduction.” In: Karl Marx; F. Engels. Collected Works. London: Lawrence and Wishart, 1975: 186-87), que já discuti amplamente em outro local. (Vide LACLAU, E. “Identity and Hegemony: The Role of Universality in the Constitution of Political Logics.” In: Judith Butler, Ernesto Laclau, Slavoj Zizek. Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues on the Left. London: Verso, 2000: 44-89). Em seu texto, Marx contrapõe uma revolução puramente humana a outra meramente política. O diferencial é que, na primeira, um sujeito universal emerge em e por si mesmo. Nas palavras de Marx: “Ao proclamar a dissolução da ordem mundial até agora vigente, o proletariado meramente anuncia o segredo de sua própria existência, pois ele é de fato a dissolução daquela ordem mundial.” Dizendo isso em termos mais próximos aos usados por Hardt e Negri, a universalidade do proletariado depende totalmente de sua imanência dentro de uma ordem social objetiva que é produto do capitalismo - o qual, por sua vez, é um momento no desenvolvimento universal das forças produtivas. Mas, precisamente por esse motivo, a universalidade do sujeito revolucionário acarreta o fim da política - ou seja, o começo da decadência do Estado e a transição (de acordo com o lema sansimoniano adotado pelo marxismo) do governo dos homens para a administração das coisas.

Quanto ao segundo tipo de revolução, a política, seu traço distintivo para Marx está na assimetria essencial que existe entre a universalidade da tarefa e o particularismo do agente que a executa. Marx descreve esta assimetria em termos inequívocos: um determinado regime é percebido como a opressão universal, e isso permite que a força social específica que for capaz de liderar a luta contra a opressão se apresente como a libertadora universal - universalizando, assim, seus objetivos particulares. Aqui encontramos o verdadeiro divisor de águas teórico das discussões contemporâneas: ou declaramos ser possível uma universalidade que não é politicamente construída e mediada, ou afirmamos que toda universalidade é precária e depende de uma construção histórica que se forma com base em elementos heterogêneos. Hardt e Negri aceitam a primeira alternativa sem hesitar. Se, de modo inverso, adotamos a segunda, estamos no limiar da concepção de hegemonia de Gramsci. (Gramsci é outro pensador para quem -compreensivelmente, dadas suas [their] premissas - Hardt e Negri mostram pouca simpatia).

É interessante observar as consequências decorrentes da abordagem de imanência adotada em Império. Há um sujeito histórico real no que concebem como a realização da imanência plena: é o que eles denominam “multidão” [multitude]. A realização completa da imanência da multidão seria a eliminação de toda transcendência. Isso só pode ser aceito, é claro, se o postulado da homogeneidade e unidade da multidão como agente histórico não for posto em questão - assunto ao qual logo retornaremos. Mas alguns dos resultados dessa oposição rígida entre imanência e transcendência podem ser rapidamente detectados. Tomemos a forma como os autores lidam com a questão da soberania. Para eles, a soberania política moderna - bem ancorada na tendência contrarrevolucionária da segunda modernidade - é reduzida à tentativa de construir um aparato político transcendente.

A soberania é definida, assim, tanto pelatranscendência quanto pela representação, dois conceitos que a tradição humanista considera contraditórios. De um lado, a transcendência do soberano é fundada não em uma base teológica externa, mas apenas na lógica imanente das relações humanas. Por outro lado, a representação que opera no sentido de legitimar este poder soberano também o aliena completamente da multidão de súditos [...]. Aqui [em Bodin e Hobbes] o conceito de soberania moderna nasce em estado de pureza transcendental. O contrato de associação é intrínseco e inseparável do contrato de subjugação. (HARDT; NEGRI, 2000: 84)

Assim, a soberania foi uma estratégia essencialmente repressiva para a prevenção da revolta democrática de uma multidão indefinida. Que bela fábula! Pois, como sabe qualquer pessoa que conheça a moderna teoria da soberania, sua implementação prática envolve um processo bem mais complicado do que o mostrado pela narrativa de Hardt e Negri. Em primeiro lugar, a multidão de que falam é uma construção puramente fantasiosa. O que tivemos nos princípios da modernidade foi uma sociedade de estamentos, profundamente fragmentada, que absolutamente não se movia na direção da construção de um sujeito político unificado, capaz de estabelecer uma ordem social alternativa. A soberania monárquica foi estabelecida com lutas travadas em frente dupla: contra os poderes universalistas, a Igreja e o Império, e contra os poderes feudais locais. E muitos novos setores sociais emergentes - especialmente os burgueses - formaram a base social que possibilitou a emergência da soberania monárquica. É incontestável que a transferência do controle de várias esferas sociais para os novos estados sociais está na raiz das novas formas de biopoder, mas a alternativa a esse processo não foi o poder autônomo de uma multidão hipotética, mas sim a continuação da fragmentação feudal. Além disso, somente quando esse processo de centralização ultrapassou um determinado ponto é que algo que semelhante a uma multidão unitária conseguiu emergir mediante a transferência da soberania do rei para o povo.

Isso nos leva ao segundo aspecto da dicotomia de Hardt e Negri: a questão da representação. Quais são as condições para a eliminação de qualquer forma de representação? Obviamente, a eliminação de qualquer tipo de assimetria entre sujeitos políticos reais e a comunidade como um todo. Se a volonté générale é o desejo de um sujeito cujos limites coincidem com os da comunidade, não há necessidade de qualquer relação de representação, ou da continuação da política como atividade relevante. Isso porque, como mencionado anteriormente, a emergência de uma classe universal anunciava, para o Marxismo, o enfraquecimento do Estado. Mas, se a sociedade estiver dividida internamente, o desejo da comunidade como um todo precisa ser politicamente construído a partir de uma diversidade constitutiva, primária. Nesse caso, a volonté générale exige a representação como seu terreno principal de emergência. Isso significa que qualquer “multidão” é construída pela ação política - o que pressupõe antagonismo e hegemonia.

Hardt e Negri nem sequer se colocam essa questão, porque para eles a unidade da multidão resulta da agregação espontânea de uma pluralidade de ações que não necessitam ser articuladas entre si. Em suas palavras:

Se estes pontos devessem constituir algo como um novo ciclo de lutas, seria um ciclo definido não pela extensão comunicativa das lutas, mas por sua emergência singular, pela intensidade que as caracteriza uma a uma. Em suma, esta nova fase é definida pelo fato de que estas lutas não se conectam horizontalmente, mas cada uma se dirige, vertical e diretamente, ao centro virtual do Império. (HARDT; NEGRI, 2000: 58).

Impossível não sentir dificuldade para entender como uma entidade que não tem limites - “O conceito de Império é caracterizado fundamentalmente pela ausência de fronteiras: a lei do Império não tem limites” (HARDT; NEGRI, 2000: XIV) - possa, mesmo assim, ter um centro virtual, mas vamos deixar passar. A informação que recebemos, de qualquer forma, é (1) que um conjunto de lutas desconectadas tendem, por algum tipo de coincidentia oppositorum, a convergir em seu ataque ao suposto centro; (2) que, a despeito de sua diversidade e sem qualquer tipo de intervenção política, elas tenderão a se agregar uma com a outra; (3) elas nunca podem ter objetivos que sejam incompatíveis uns com os outros. Não é preciso muito para concluir - sendo bastante moderados - que tais suposições são altamente irreais. Elas vão de encontro às evidências mais elementares da cena internacional, que nos mostra uma proliferação de atores sociais lutando entre si por uma variedade de razões religiosas, étnicas ou raciais. E não melhora em nada a suposição de que o imperialismo tenha acabado (“Nem os Estados Unidos, nem qualquer outro estado-nação nos dias de hoje, podem formar o centro de um projeto imperialista. […] Nenhuma nação será líder mundial da forma que as modernas nações europeias o foram.”) (Ibidem: xiii-xiv), como os eventos ocorridos no mundo após o 11 de setembro podem facilmente comprovar. O que está totalmente ausente em Império é uma teoria de articulação, sem a qual a política é impensável.

Esta lacuna na argumentação é particularmente visível se considerarmos a forma com que Império lida com a distinção estratégia x tática. Para os autores, a diferença desaparece, mas fica claro que as lutas autônomas verticais pertencem mais à esfera das táticas do que ao cálculo estratégico. Quero ser bem preciso neste ponto da minha crítica porque também creio - embora por razões diversas das de Hardt e Negri - que não podemos aceitar mais a distinção entre estratégia x tática herdada da tradição socialista. Para o socialismo clássico havia uma clara diferença entre os dois termos e uma estrita subordinação da tática à estratégia. Uma suposição básica nessa visão era a de que a identidade de classe dos atores estratégicos permanecia a mesma durante todo o processo político. Para Kautsky, a estrita identidade de classe trabalhadora dos atores socialistas era um dogma fundamental. Para Lenin, as alianças de classe não alteravam as identidades das forças intervenientes (“atacar juntos e marchar separados”). E, para Trotsky, toda a estratégia da revolução permanente só faz sentido se a abordagem de tarefas democráticas pela classe trabalhadora não contamine sua natureza e seus propósitos.

É precisamente esta suposição, a meu ver, que deve ser questionada, pois a atual proliferação de uma pluralidade de identidades e de pontos de ruptura torna os sujeitos da ação política essencialmente instáveis e, assim sendo, impossibilita um cálculo estratégico que cubra longos períodos históricos. Isso não significa que a noção de estratégia tenha se tornado obsoleta, mas significa que as estratégias devam ser pensadas para curto prazo, e que as várias táticas se tornem mais autônomas. É claro, de qualquer modo, que o fator que se torna cada vez mais central é o momento da articulação política - precisamente o momento que está inteiramente ausente da análise de Hardt e Negri, em consequência da sua concepção das lutas convergindo espontaneamente no ataque a um centro sistêmico.

Outro traço característico da multidão em Hardt e Negri que requer nossa consideração é o seu inerente nomadismo, o que eles ligam explicitamente aos movimentos rizomáticos deleuzianos. O que é próprio da multidão é ser contra: “Um elemento que podemos apontar em seu nível mais básico e elementar é a vontade de ser contra. Em geral, a vontade de ser contra não parece requerer muita explicação. A desobediência à autoridade é um dos atos mais naturais e saudáveis. A nós parece completamente óbvio que os que são explorados vão resistir e - dadas as condições necessárias - vão se rebelar.” (Ibidem: 210). Hoje, porém, a própria onipresença do Império - que não é mais um inimigo externo - tornaria difícil identificar aqueles a quem a multidão se opõe. A única solução seria ser contra tudo, em todo lugar. O padrão maior deste novo tipo de luta é a deserção.

Enquanto na era disciplinar a sabotagem constituía a ideia fundamental de resistência, na era do controle imperial pode ser a deserção. Enquanto na modernidade ser contra em geral significava uma oposição de forças direta e/ou dialética, na pós-modernidade ser contra pode ser mais eficaz num posicionamento oblíquo ou diagonal. As batalhas contra o Império podem ser vencidas por meio de subtração e defecção. Esta deserção não tem um local preciso; é a evacuação dos lugares de poder. (Ibidem: 212).

Essa deserção toma a forma de migrações nômades - o êxodo econômico, intelectual e político cria uma mobilidade essencial que é o novo padrão da luta de classes. A mobilidade teria sido o terreno privilegiado do republicanismo desde o início dos tempos modernos (os exemplos citados são os socinianos do Renascimento, as migrações transatlânticas religiosas do século dezessete, a agitação dos operários do sindicato IWW (Industrial Workers of the World) nos Estados Unidos dos anos 1910, e os autonomistas europeus da década de 1970). Esses atores nômades são os novos bárbaros. O conceito de migração pode, no entanto, ser expandido: não é apenas uma questão de migrações literais, físicas, mas também de figuradas - a transformação de corpos também pode ser considerada um êxodo antropológico.

Precisamos com certeza mudar nossos corpos e nós mesmos, e talvez de uma forma muito mais radical do que os autores cyberpunk imaginam. Em nosso mundo contemporâneo, as mutações corporais estéticas agora comuns, como o piercing e as tatuagens, a moda punk e suas várias imitações, são todas indicações iniciais dessa transformação corpórea, mas elas acabam nem chegando aos pés do tipo de mutação radical necessária aqui. A vontade de ser contra realmente requer um corpo que seja completamente incapaz de se submeter a comandos. Necessita um corpo que seja incapaz de adaptar-se à vida familiar, à disciplina das fábricas, às normas de uma vida sexual tradicional, e assim por diante. (Ibidem: 216)

Dentro dessa perspectiva, os proletários do século XIX podem ser vistos como nômades, pois, embora não se deslocassem geograficamente, “sua criatividade e produtividade definem migrações corpóreas e ontológicas.” (Ibidem: 217).

Quais são as dificuldades dessa visão bastante triunfalista? Há várias. Em primeiro lugar, a afirmativa de que “a vontade de ser contra não requer muita explicação” é mera aspiração ilusória. A alternativa aqui é clara: ou a resistência à opressão é algum tipo de mecanismo natural e automático que funcionará espontaneamente em qualquer circunstância, ou é uma construção social complexa que depende de condições de possibilidade externas a ela. Para mim, a segunda resposta é a correta. A habilidade e vontade de resistir não são um presente dos céus; exigem um conjunto de transformações subjetivas que são também produto de lutas, e isso pode não acontecer. O que falta em Império é qualquer teoria coerente da subjetividade política - a psicanálise, por exemplo, está inteiramente ausente. Em grande parte por causa disso, toda a noção de ser-contra não resiste à menor análise. É fácil ver o papel que ela desempenha na economia da argumentação de Hardt e Negri: se alguém é “contra” sem definir o inimigo, fica justificada a ideia de que as lutas contra o império devem ocorrer por toda parte (e, a fortiori, temos a garantia de que as lutas verticais formariam uma coalizão em torno de um alvo único, sem qualquer necessidade de articulação horizontal). Infelizmente, as lutas sociais não seguem esse padrão simplista. Toda luta é a luta de atores sociais concretos por objetivos específicos, e nada garante que estes objetivos não baterão de frente com outros. Embora concordemos que nenhuma transformação histórica ampla é possível a menos que o particularismo das lutas seja superado e que uma “vontade coletiva” maior seja constituída, isso requer a implementação daquilo que em nosso trabalho temos denominado lógica da equivalência, que implica ações de articulação política - precisamente a ligação horizontal que Hardt e Negri deixam de lado. O “ser-contra” é, mais uma vez, uma indicação clara do viés antipolítico de Império.

Finalmente, a noção de “êxodo antropológico” é pouco mais do que uma metáfora abusiva. O papel atribuído à migração já é extremamente problemático. É verdade que os autores reconhecem que a miséria e a exploração econômica podem ser fatores determinantes para que as pessoas queiram cruzar fronteiras, mas esse elemento de negatividade é imediatamente subordinado a um desejo afirmativo de emigrar, o que acaba criando a possibilidade de um sujeito emancipatório. Desnecessário dizer que essa concepção marcial do processo migratório não corresponde a qualquer realidade: as razões que levam os vários grupos a migrar são muito diversas e não estão unificadas em torno de qualquer cruzada anti-Império. Mas, quando somos informados de que a revolta contra a vida familiar ou o desenvolvimento de capacidades proletárias no século XIX também foram concebidos como atos migratórios, a noção de migração perde toda especificidade: qualquer tipo de mudança histórica - para melhor ou para pior - pode ser entendida como migração. Uma boa metáfora é uma que, através da analogia, revela um aspecto até então escondido da realidade - mas é difícil que isso ocorra no presente caso.

Perto do final de seu livro, os autores abordam, até certo ponto, a questão central que colocamos ao longo deste texto: a articulação política. Vamos citá-los:

Como as ações da multidão podem se tornar políticas? Como a multidão pode se organizar e concentrar suas energias contra a repressão e as incessantes segmentações territoriais do Império? A única resposta que podemos dar a estas perguntas é que a ação da multidão se torna política principalmente quando ela começa a confrontar diretamente, e com a consciência adequada, as operações repressivas centrais do Império. É questão de reconhecer e atacar as iniciativas imperiais e não permitir que elas continuem a reestabelecer a ordem; é questão de ultrapassar e destruir limites e segmentações impostas na nova força de trabalho coletiva; é questão de reunir essas experiências de resistência e exercê-las em conjunto contra os centros nervosos do comando imperial. (HARDT; NEGRI, 2000: 399)

Mas como é que a proposta de “reunir essas experiências de resistência e exercê-las em conjunto” será operacionalizada? Hardt e Negri admitem não ter nada a dizer sobre as formas específicas e concretas dessa articulação política. Formulam, no entanto, um “programa político para a multidão global”, que é organizado em torno de três demandas: a demanda por cidadania global (para que a mobilidade da força de trabalho nas atuais condições do capitalismo seja reconhecida e que grupos como os sans papiers tenham acesso à cidadania plena); o direito a um salário social (para garantir renda a todos); e o direito de reapropriação (para que os meios de produção sejam de propriedade coletiva).

Só posso dizer que não discordo de nenhuma dessas demandas - embora fique claro que elas não compõem um programa político plenamente desenvolvido -, mas o que parece estranho, após toda uma análise centrada na necessidade de atacar em todas as frentes e a partir de uma posição de total confrontação com o atual sistema imperial, é que essas três metas políticas sejam formuladas numa linguagem de direitos e demandas. Tanto as demandas quanto os direitos precisam ser reconhecidos, e a instância para a qual esse reconhecimento é solicitado não pode estar em relação de total exterioridade com respeito às demandas sociais. Cada uma das três demandas, para ser implementada, exige considerações estratégicas acerca da estrutura do estado, da autonomização de certas esferas, de alianças políticas e da incorporação de setores sociais previamente excluídos da arena histórica. Ou seja, estamos no terreno que Gramsci denominou “guerra de posição.” Mas esse jogo político é estritamente incompatível com a noção de uma pluralidade de lutas verticais e desconexas, todas mirando - por algum mecanismo não especificado - um suposto centro virtual do Império. Talvez a maior incoerência deste livro seja que ele propõe fragmentos de um programa político perfeitamente aceitável, ao mesmo tempo que suas condições de implementação são negadas pelas categorias teóricas e estratégicas centrais sobre as quais sua análise se baseia. As multidões nunca são espontaneamente multitudinárias; elas só se tornam assim por meio da ação política

Material suplementar
Referências Bibliográficas
Hardt, Michael & Negri, Antonio. Empire. Cambridge, MA: Harvard UP, 2000.
Hardt, Michael & Negri, Antonio. Império. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Laclau, Ernesto. Can Immanence Explain Social Struggles? Diacritics, v. 31, n.4, 2001, p.3-10. doi https://doi.org/10.1353/dia.2004.0008
Laclau, Ernesto. “Identity and Hegemony: The Role of Universality in the Constitution of Political Logics.” In: Judith Butler, Ernesto Laclau, Slavoj Zizek. Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues on the Left. London: Verso, 2000: 44-89
Marx, Karl. “Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Law: Introduction.” In: Marx, K; Engels, F. Collected Works. London: Lawrence and Wishart, 1975: 186-87
Rancière, Jacques. Peuple ou multitudes: Question d’Eric Alliez à Jacques Rancière. Multitudes, n. 9, maio/junho 2000, 95-100.
Notas
Notas
1 Tradução de Stelamaris Coser, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória – Brasil
2 Do original inglês “Can Immanence Explain Social Struggles?”, resenha sobre o livro de Hardt e Negri, Empire (2000), publicada na revista Diacritics, The Johns Hopkins University, v. 31, n.4, p. 3-10, inverno 2001. DOI https://doi.org/10.1353/dia.2004.0008. O livro Império foi publicado no Brasil pela Editora Record (2001), em tradução de Berilo Vargas.
3 Buenos Aires, 6 de outubro de 1935; Sevilha, 13 de abril de 2014.
4 Sentidos que na língua inglesa correspondem, respectivamente, às palavras policy e politics (N.T.).
5 Discuti estes assuntos mais detalhadamente no meu ensaio “Beyond Emancipation”. In: LACLAU, E. Emancipation(s). London: Verso, 1996: 1-19. N.T.: A obra se encontra traduzida como Emancipação e diferença. Rio de Janeiro: EdUerj, 2011.
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