Resumo : Este artigo pretende examinar a visão de modernidade encenada no projeto poético de Francis Ponge, levando em consideração alguns modelos literários e culturais presentes na tradição francesa. Trata-se, assim, de tentar entender de que modo o poeta problematiza a ideia que temos da poesia ao escapar das dicotomias que caracterizariam as definições de modernidade em oposição a certo passado. Para tanto, pretende-se investigar a articulação entre os textos “rascunhados” de Ponge - que compõem os livros Comment une figue de paroles et pourquoi e La Table - e o desenvolvimento do olhar lançado à matéria na era do surgimento da anatomia a partir do século XVI. Tal aproximação permite também um diálogo com o conceito de serendipidade, cujo paradigma indiciário aponta para a linguagem como conjunto de indícios a serem seguidos.
Palavras-chave: Francis PongeFrancis Ponge,poesia modernapoesia moderna,serendipidadeserendipidade,anatomiaanatomia.
Abstract: This article seeks to examine the vision of modernity staged in Francis Ponge’s poetic project. taking into account some of the literary and cultural models present in the French tradition. It is thus an attempt to understand how the poet problematizes the idea we have of poetry by escaping from the dichotomies that would characterize the definitions of modernity in opposition to a certain past. To this end, we aim to examine the articulation between Ponge’s “drafts” - which form part of his books Comment une figue de parole et pourquoi and La Table - and the development of a gaze fixed on matter in the era of the appearance of anatomy from the sixteenth century onwards. Such an approach also enables a dialogue with the concept of serendipity, whose indicium paradigm points to language as a set of pointers to be followed.
Keywords: Francis Ponge, modern poetry, serendipity, anatomy.
Résumé: Cet article a pour but d’examiner la vision de modernité mise en scène dans le projet poétique de Francis Ponge, en prenant en compte quelques modèles littéraires et culturels présents dans la tradition française. Il s’agit donc, d’essayer de comprendre de quelle manière le poète problématise l’idée qu’on fait de la poésie tout en évitant des dichotomies qui caractériseraient les définitions de modernité en opposition à un certain passé. Pour ce faire, il faut investiguer la relation entre les “brouillons” de Ponge - qui composent les livres Comment une figue de paroles et pourquoi e La Table - et le développement du regard vers la matière à l’époque de l’avènement de l’anatomie à partir du XVIe siècle. Tel croisement permet également d’établir un dialogue avec le concept de sérendipité, dont le paradigme indiciaire montre le langage comme un ensemble d’indices à être poursuivis.
Mots-clés: Francis Ponge, poésie moderne, sérendipité, anatomie.
Artigos
Para uma outra modernidade: Francis Ponge e os deslocamentos da tradição
For another modernity: Francis Ponge and the displacements of tradition
Recepção: 16 Janeiro 2018
Aprovação: 15 Julho 2018
Desde seu primeiro livro, Le Parti pris des choses (1942), Francis Ponge, ao estabelecer uma relação entre palavra e coisa, propõe um outro espaço de discussão sobre o fazer poético. Longe dos versos rítmicos da tradição e da efusão sentimental do poema romântico, a sua obra foi, em sua época, uma das que mais lançou a suspeita de que seria preciso rearranjar o lugar da subjetividade na escrita. Nesse movimento de tensionar a poesia, lançando a figura do poeta para fora de sua persona lírica, Ponge trilha um novo trajeto em relação ao eu e à linguagem. Em Comment une figue de paroles et pourquoi (1977)1, por exemplo, um universo de experimentação do figo pela língua(gem) vai se construindo juntamente com o poema, a começar pela apresentação do fruto, como podemos perceber nesse fragmento: “Grosse perle de caoutchouc, petite poire baroque. Ma chère amie, pourquoi ne nous donnez-vous pas plus souvent à manger des figues sèches? C’est si bon!”2 (PONGE, 2002a, p. 763).
O modo como a fruta e o encontro com ela são descritos aqui introduz o leitor em um ambiente pouco comum. O figo é designado primeiramente como uma “perle de caoutchouc”, depois como uma “poire baroque” e, por último, como o próprio fruto, mas na sua forma seca, quebrando a expectativa recém construída pelas comparações anteriores. Essa variedade de imagens aproximativas do figo o insere em uma existência verbal própria da poética pongiana, em que palavra e coisa se afetam criando uma dinâmica incessante de renovação dos sentidos. Passada a descrição do fruto, a pergunta que dá ritmo à estrofe parece lançar um tom irônico ao texto, transportando o leitor para uma outra cena: a do homem diante da árvore e da oferta do fruto proibido3, espelhando, assim, a metáfora bíblica de Adão e Eva.
Nesse fragmento, a associação à história bíblica se realiza em meio a uma distorção sutil da mensagem religiosa, - em que o sagrado e o maldito se conectam para desvendar a origem do ser humano. A descrição é a de um encontro sem remorsos entre o poeta, sua amiga e o fruto. Nessa versão da história, a queixa ocorre ao avesso, dada ao fato de a oferta do fruto ser pouco frequente. Desse modo, o autor constrói um ambiente de deleite, como podemos comprovar com esse outro trecho em que ele descreve a fruta da seguinte forma:
Nous l’aimons comme notre tétine, dont la véritable particularité serait celle-ci: {d’être /elle est} juste à point desséchée, {Qu’on peut / de façon qu’on puisse}, en accentuant seulement un peu incisivement la pression des dents, y mordre, franchir son élasticité et s’en nourrir, s’en sucrer, s’y délecter.4 (PONGE, 2002a, p. 773)
O impacto tátil e gustativo que Ponge traz à cena nessas citações e no decorrer de todo o poema sobre o figo se realiza através de uma escrita que intenta reacomodar as coisas em um plano concreto e palpável do real. Um método de escrita que Bernard Veck, em Le Parti pris des choses Francis Ponge, ratifica explicando que, “[...] para Ponge, o ser humano não pode ser autossuficiente. Ele estabelece com o mundo dos objetos ‘un rapport à l’accusatif’5, renovado a cada instante.” (PONGE, 1994, p. 10). A transitividade com o mundo das coisas e a objeção à efusão de um eu romantizado parecem ser algumas das características da poesia pongiana mais discutidas pela crítica. Jean-Marie Gleize (2000, p. 56), em Prenez et mangez, (Fragment d’un manifeste réeliste), chega a vincular esses aspectos da obra de Ponge a um projeto específico de modernidade. Para o crítico, seu método de escrita visaria a “[...] fundar uma poética do real, uma poética objetiva, [...], ou seja, uma arte poética para a modernidade”.
Essa modernidade que propõe a reconfiguração da função da poesia e do poeta nos permite refletir também a respeito de um trabalho com a língua e da proposição de novas relações com o mundo material. Contudo, apesar da constatação da existência de um claro diálogo de sua poesia com a discussão sobre o moderno em sua época, a constante referência a certo passado conduziu-me à seguinte desconfiança crítica: em que medida esse recurso, o qual não deixa de se dar nos modos de uma releitura de certa tradição, poderia configurar um contraponto em sua poética? Ao percorrer a obra de Ponge, pode-se observar que o poeta não hesita em colocar em diálogo a sua prática com a de escritores de outras épocas, a exemplo de Malherbe, que foi reconhecidamente um modelo para ele6. Em um de seus textos críticos, Littérature du XVIIe siècle (1972)7, o poeta explica sua admiração por esses autores da seguinte forma : “[...] les mots employés par les écrivains classiques à partir de Malherbe sont parfaitement employés dans leurs significations sortant de leur racine latine”8 (PONGE, 2002a, p. 1412).
Essa declaração de Ponge aponta para a construção de seu método a partir da relação com certo paradigma do pensamento existente nos séculos XVI e XVII, e sobre o qual será possível refletir à luz de certas ideias de Michel Foucault, em As Palavras e as coisas. Segundo Foucault (2000), cada época apresentaria a sua epistémê, isto é, modos de ver e sentir que agenciariam o conhecimento sobre o mundo e as formas de existência dos seres e das coisas. Nesse sentido, a escolha de Ponge por esses textos e autores permitiria arriscar a aspiração por um retorno provocativo ao passado, afetando, pela escrita, um outro modo de se pensar o homem e a sua relação com o mundo. Os princípios da poética pongiana, construídos ao longo de sua obra, revelam-se na releitura do antigo, trazendo à cena pressupostos que permitiriam forjar outros paradigmas para a poesia moderna e contemporânea.
Em relação a essas referências clássicas na obra de Ponge, uma articulação já bastante explorada pela crítica é a que se constitui entre sua escrita e as fábulas do século XVII. Bernard Beugnot (1990, p. 81), em Poétique de Francis Ponge, assinala a importância desse gênero para a poética pongiana: “[...] a fábula pongiana é por natureza associada à formulação da arte poética, lição criptografada de poética que reflete, descreve ou elucida o projeto textual.” Partindo dessas indicações quanto ao poeta fabulista, pretendo estabelecer outros pontos de contato com o passado, estendendo essa rede de comparação para além da fábula. Sendo assim, gostaria de passar a uma breve discussão em torno da poesia pongiana e dos Blasons domestiques do século XVI, textos curtos em que as partes da casa e os objetos que a compõem são descritos com um fundo didático e moralizante. Vejamos, a título de exemplo, um fragmento do Blason de la Table, de Gilles Corrozet:
Table claire, table luisante,
Table sur deux tréteaux […]
Table qui cause le désir
De prendre savoureux plaisir […]
O table honnête et très notable
Table de bois, O belle table,
Je prie à Dieu qu’il te munisse
Tant bien t’apprête et te garnisse
Qu’à tout jamais par ton moyen
Ayant son pain quotidien.9
Fonte: CORROZET, 1539, p. 48-4
Nesta passagem, podemos perceber como o objeto se torna o centro de interesses do poeta. Trata-se de locuções que se dirigem à coisa: “O table honnête et très notable”. Além disso, há nesse tratamento do objeto uma atenção à própria matéria: a mesa é de madeira, “claire” e “luisante”, sustentada por “deux tréteaux”. Não é somente a sua descrição que é colocada em jogo no apontamento dessas características. Ao falar da matéria que compõe a mesa, um aspecto moral de apoio e solidez vai se construindo. O aprofundamento dessa comparação permitiria expor melhor a dimensão da materialidade de Ponge e mostrar, ao mesmo tempo, o que o poeta estaria propondo de peculiar em seu modo de ir às coisas. Essa hipótese parece corroborada por um fragmento de La Table, publicação póstuma de 1991:
III Table, à propos de “question”, tu es la roue (mais rectangulaire) (mais horizontale) sur laquelle je mets les mots à la question, table de dissection (la leçon d’anatomie) les roue, les écartèle les écoute.
IV Table est l’établissement de la désinence able, la mise sur pied […]
V Table contient sa matière (le bois). Quand elle est en verre ou en pierre (par ex.) C’est l’exception il faut le préciser [...]
Ô table, ma console et ma consolatrice, table où je me console, où je me consolide
et qui me consolide
Fonte: (PONGE, 2002a, p. 917; 942)
Nesse poema, o estudo da palavra table (mesa) vai se desenvolvendo a cada característica que o poeta percebe no objeto ou na palavra. Ponge passa da realidade verbal à realidade concreta, tratando uma e outra quase que simultaneamente. Table, ao mesmo tempo coisa e linguagem, é posta em questão: seu conteúdo pode ser “able” (ável), uma desinência que pressupõe habilidade (abilis em latim, como o poeta vai reiterar em outra parte do poema). Elementos que falam da mesa (objeto) e levam o escritor a tratar, no decorrer do poema, da mesa escrita, da “mesa-poema” (das mãos que a fabricam), da mesa que se pode recitar, ler em voz alta (boca e orelha) e ler em voz baixa, em silêncio.
É necessário, porém, pensar para além das correlações possíveis entre Ponge e os autores de blasons. Aliás, uma diferença parece clara e importante de ser melhor compreendida: para Ponge, deve-se ir às coisas e descrevê-las até extrair delas algo de novo. Sendo assim, é preciso investigar o objeto, dissecá-lo, observando-o como se nele houvesse pistas a serem seguidas para o seu próprio desdobramento por meio da exploração da linguagem. Nesse estudo detalhado da mesa, sua “consolatrice”11, Ponge parece escrutar a extensão tanto da coisa quanto dos sentidos que ela solicita. A mesa é um estudo científico, minucioso e contínuo. Para ele, a construção de um poema-estudo sobre a mesa dá a ver aquilo que constitui o homem, sua matéria. Daí também todo um léxico que parece colocá-lo como parte integrante do descrito, peça de um maquinário cíclico de permanência e transformação do mundo material: o corpo em extensão à mesa, “La table sert d’appui au corps de ce scripteur.”12 (PONGE, 2002a, p. 939). Essa rede de associação tem como fio condutor a escrita posta à mesa, a “leçon d’anatomie” do corpo. Mesa onde Ponge prepara a dissecação ao mesmo tempo do homem e de seus objetos.
Essa breve exposição justifica, assim, a necessidade de se traçar uma ponte entre o método de Ponge e a prática da anatomia, a qual ganhou força a partir do século XVI. Esta coloca o homem (corpo/matéria) na mesa para dissecá-lo, para ver o que há em seu interior de real, de concreto. Em Le Regard de l’anatomiste, Rafael Mandressi explica o advento desta ciência e seu desdobramento para outros campos do conhecimento da seguinte maneira:
Prática científica mas também prática cultural, no sentido mais largo dessa expressão, os efeitos desse extraordinário desenvolvimento [...] ultrapassaram enormemente os limites da esfera exclusivamente médico. [...] Os séculos XVII e XVIII foram a era do corpo seco, do solidismo, que se impõe em paralelo com a identificação das partes corporais a “peças” - as peças de uma máquina. (MANDRESSI, 2003, p.12; 16)
Ora, se a modernidade de Ponge parece em certos aspectos em clara comunhão com o cânone moderno, como o status de material investigativo atribuído à linguagem, ela se dá também ao propor um retorno ao legado de escritores e pensadores que foram, muitas vezes, desconsiderados por esse mesmo cânone. Desse modo, a aproximação do método de Ponge com um certo olhar que começa a se configurar com o advento da anatomia nos permitiria mais uma vez relacionar seu trabalho com a linguagem às reflexões de Foucault a respeito de determinadas características próprias à epistémê do século XVI. No livro citado anteriormente, o filósofo afirma que, nessa época, a linguagem não é vista como “um sistema arbitrário; está depositada no mundo e dele faz parte porque, ao mesmo tempo, as próprias coisas escondem e manifestam seu enigma como uma linguagem e porque as palavras se propõem aos homens como coisa a decifrar” (FOUCAULT, 2000, p. 47).
Nesse sentido, sendo as palavras um invólucro de onde se deve desgarrar uma mensagem escondida, poderíamos conceber que o poeta seria aquele em condições de manusear com habilidade os signos, expondo as possibilidades de sentido do mundo. Ao sugerir essa rede de articulação em que Ponge dramatizaria o papel do cientista e do dissecador, acredito ser possível pensar em que medida o poeta segue desdobrando os efeitos disso em sua poética em pleno século XX.
A operação investigativa do anatomista permite ler os poemas dos livros La Table ou Comment une figue de paroles et pourquoi à luz de uma outra noção cujos fundamentos também remontam ao passado, uma época importante para o desenvolvimento da própria ciência médica13: a de serendipidade. Em relação a essa palavra, Sylvie Catellin, em Sérendipité et Réflexivité, explica que ela foi definida por Wapole, no século XVII, como o fato de “descobrir, por acaso e sagacidade, coisas que não se procuravam.” (apud CATELLIN, 2012, p. 74). Seria mais ou menos nesse movimento acidental que Ponge descobriria a extensão de seus objetos: é o caso do encontro inesperado com a igreja em ruínas de Comment une figue de paroles et pourquoi: “Ainsi, avez-vous pu, comme moi, rencontrer dans la campagne, au creux d’une région, quelque église ou chapelle romane, comme un fruit tombé.”14 (PONGE, 2002a, p. 848). Mas é preciso entender esse movimento aliado ao rigor “científico” que moveria de fato o poeta em seu ímpeto de busca obsessiva e atenção aos sinais contidos nas coisas. Um procedimento que funcionaria como um dispositivo para a formulação, como ele diz, de novos sentimentos ao homem (PONGE, 1999, p. 202).
Em La Pratique de la littérature, de Méthodes (1961), por exemplo, ao procurar um adjetivo que desse conta da nuance de um certo rosa para caracterizar a paisagem de Sahel, na Argélia, o poeta segue simultaneamente os rastros da coisa e das palavras, como podemos ver em seu relato: “Rose cyclamen, non, non, rose polisson, coquin, à cause du fard, à cause du côté sensuel de la chose”. E nesse movimento de questionar o léxico e escrutar o objeto como quem procura vestígios, o poeta acaba por se deparar com o que procurava: “Finalement j’ai trouvé un mot, il existe, je ne l’ai pas inventé [...], alors: sacripant, un rose sacripant” Para daí chegar à prova : “[...] je vais au dictionnaire plusieurs semaines plus tard. Sacripant: de Sacripante, personnage de l’Arioste, tout comme Rodomonte. Rodomonte qui signifie ‘rouge montagne’ et qui était roi d’Alger. Voilà la preuve.”15 (PONGE, 1999, p. 681-682.)
Essa chave de leitura através dos conceitos de anatomia e de serendipidade possibilita pensar o método investigativo presente sobretudo em seus textos curtos e inacabados. Vistos como evidências de sua técnica de inspeção e estudo das coisas, essa abordagem permitiria entender as especificidades da relação entre forma e poema na encenação do projeto poético pongiano. Como nos diz o poeta, em Pour un Malherbe, “[...] il est bien sûr que mon particulier est là: essayer d’arriver au poème bref (texte bref, cru et adéquat) et en même temps fait à ce propos de longues études”16 (PONGE, 2002a, p. 56).
Vale pontuar ainda que as partes de La Table e Comment une figue de paroles et pourquoi citadas aqui são trechos inacabados e fragmentados dos livros, em que uma série de anotações aparece no decorrer das páginas. Essa prática evidenciaria primeiramente a dimensão material do trabalho de escrita de Ponge, pois a cada etapa inconclusa, o poema retoma o jogo verbal anterior para a ele acrescentar um novo aspecto que acaba por contorcer a coisa em um sentido novo, uma versão outra de si própria. Esse cenário transfere o leitor para uma espécie de ateliê aberto, ou para a mesa do relojoeiro, como Ponge gostava de definir seu espaço de criação, sendo o texto, o objeto de manuseio do artista e as palavras, as peças a serem rearranjadas (PONGE, 2002a). Por fim, é uma espécie de rascunho com repetições, anotações e acréscimos que encontramos na configuração das páginas.
Gérard Farasse, em L’Âne musicien (1996), explica que geralmente o rascunho é um tipo de acesso interdito ao texto, e mesmo, à intimidade do autor, uma vez que essa etapa de seu trabalho não é considerado inicialmente como parte da obra. Entretanto, o crítico assinala que, para Ponge, a ideia de um texto em estado de rascunho não parece ter o mesmo significado de intromissão no seu processo autoral. Ao contrário, ele deseja exibi-lo como parte integrante da própria obra. Um outro aspecto sinalizado por Farasse deste tratamento dado ao rascunho é que o poeta parece não decidir por uma expressão em detrimento de outra. Como conclui o crítico, Ponge “[...] não apaga, ele conserva [a opção anterior], tratando a escrita como uma palavra que só é possível voltar atrás acrescentando algo” (FARASSE, 1996, p. 89).
Em entrevista com Jean Ristat, em 1978, ao falar de seus rascunhos e às partes inacabadas que os rascunhos expõem, Ponge explica seu processo da seguinte forma:
[...] quand j’ai l’impression que je déraille ou que je sors vraiment du sujet, eh bien, à ce moment-là je m’arrête. C’est pour ça qu’il y a des pages qui s’arrêtent comme ça, de façon parfaitement abrupte. Et puis le lendemain, je repars en plein dans le truc.17 (PONGE, 2002a, p. 1424-1425)
Os textos inacabados de Ponge, com toda sua encenação em relação aos rascunhos, são irrefutavelmente inovadores por apresentarem uma reconfiguração do estatuto formal do poema em relação à tradição, pois que, neles, o modelo de verso e rima e mesmo o de uma prosa poética nos moldes modernos não se realizam. Porém, sem negar o frescor dessa característica em sua obra, é possível ressaltar também, nesses rascunhos, a forte presença do antigo, sugerindo mais uma vez, via a forma do poema, suas suspeitas em relação às encenações de modernidade normalmente veiculadas na poesia contemporânea. Assim, em Ponge, os textos redirecionam o leitor para uma incompletude que se realiza não somente como inacabamento formal, mas que, através deste, também dá a ver uma dimensão temporal da escrita, sugerindo a heterogeneidade de tempos que operariam em seus “rascunhos”. Como assinala Farasse (1996, p. 89), “[...] por ser inscrito no tempo, um texto tem um passado (às vezes carregado), e uma memória”. Com a descrição do figo, uma cena intertemporal é construída: o fruto se abre em partes reluzentes como o altar de uma igreja, cujo estilo romano afeta um passado remoto da civilização francesa e ativa as histórias de Símaco, de Boécio, dos primórdios do cristianismo e da língua latina:
LA FIGUE
ou la Consolation Matérialiste
Symmaque, grand païen de Rome, se moquait de l’empire devenu chrétien: “Il est impossible, disait-il, qu’un seul chemin mène à un mystère aussi sublime.” Il n’eut pas de postérité spirituelle, mais devint beau-père de Boëce, auteur de la Consolation philosophique. Tous les deux furent mis à mort par l’empereur barbare (et chrétien) Théodoric, en 525. […]
Et je parlerai pour finir de cette façon de sevrer le fruit de la branche - comme aussi l’esprit de la lettre - et du petit rudiment, du petit bouton irréductible qu’il en reste.
Tel soit mon poème.18
Fonte: (PONGE, 2002a, p. 780)
No poema de Ponge, os grãos do figo que brilham como um altar de igreja persistindo na boca como sedimentações de rocha, como um “petit rudiment”, evocam o registro das palavras no tempo: o poema aqui é rastro, indício, “bouton irreductible” da linguagem, inscrição do homem nas coisas pela palavra. É nesse sentido que as rasuras, os acréscimos, as repetições parecem encenar o dinamismo desse tempo inscrito no texto. Tempo que é o da escrita e o da duração da obra, da inscrição dela nas coisas assim como de tudo que a atravessa ao longo da História. Ou seja, o aspecto moderno desse empreendimento de Ponge residiria em conceber pelo poema um presente permeado pelo passado, e um futuro em constante prosseguimento, estabelecendo assim uma correlação entre a ideia de inacabamento e a de continuidade. Nessa perspectiva, seus rascunhos encenariam a construção de uma obra contínua pois que a não conclusão de um texto, o seu caráter interminável, o transformaria em um dispositivo dinâmico em relação ao tempo, promovendo a operação de uma obra aberta e à disposição dos que por ela passaram/passarem.
Para Ponge, o poema seria assim o método de inscrição de si na História. Portanto, tendo em vista a poética do anatomista e os escritos em estado de inacabamento que se estabelecem na poética pongiana, considerando também que sua obra sugere quando menos a reformulação da ideia que fazemos de poesia, acredito que o retorno a certo passado deve significar uma possibilidade de se dispor ao novo, reconectando poema e homem ao que os constitui: tempo e matéria.