Artigos
Recepção: 16 Janeiro 2018
Aprovação: 15 Julho 2018
DOI: https://doi.org/10.1590/1517-106X/203299319
Resumo: Este artigo analisa a importância do tráfico negreiro e da escravidão na formação identitária das Américas, mais particularmente nas ilhas caribenhas de Martinica e Guadalupe. Trata-se de observar os entrelaçamentos entre o fazer literário e a história da escravidão a partir do ciclo antilhano, projeto romanesco em curso de Simone e André Schwarz-Bart. O projeto coloca em cena a personagem Solitude, símbolo da resistência negra guadalupense, e sua linhagem feminina para compreensão do período (pós)colonial entre 1760 e 1953 na tentativa de recriar ficcionalmente os horizontes da pós-colonialidade, de promover novas versão da crônica antilhana e de suprir as lacunas e os silêncios da memória.
Palavras-chave: escravidão, memória (pós)colonial, interfaces entre literatura e história, ciclo antilhano, Simone e André Schwarz-Bart.
Abstract: This article analyzes the importance of slave trade and slavery in the formation of identity in the Americas, particularly in the Caribbean islands of Martinique and Guadeloupe. It examines the connection between the literary work and the history of slavery from the angle of the Antillean cycle, the ongoing novelistic project by Simone and André Schwarz-Bart. The project features Solitude, a character who symbolizes the black resistance in Guadalupe, and her female lineage in order to understand the post-colonial period between 1760 and 1953 in an attempt to fictionally re-create the horizons of post-coloniality, promote new versions of the Antillean chronicle, and fill in the gaps and silences of memory.
Keywords: slavery, post-colonial memory, interfaces between literature and history, antillean cycle, Simone and André Schwarz-Bart.
Résumé: Cet article analyse l’importance de la traite négrière et de l’esclavage dans la formation de l’identité composite des Amériques, plus particulièrement des îles caribéennes de Martinique et de Guadeloupe. Il s’agit d’observer les liens entre la tessiture littéraire et l’histoire de l’esclavage à partir du cycle antillais, projet romanesqueen cours de Simone et André Schwarz-Bart. Le projet met en scène le personnage Solitude, symbole de résistance noireguadeloupéenne, et son lignage féminin pour comprendre la période (post)coloniale entre 1760 et 1953 dans le but de recréer fictivement les horizons de la post-colonialité, de promouvoir une nouvelle version de la chronique antillaise et de combler les lacunes et les silences de la mémoire.
Mots-clés: esclavage, mémoire (post) coloniale, interfaces entre la littérature et de l’histoire, cycle antillais, Simone et André Schwarz-Bart.
A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional.
Joaquim Nabuco (1976)
Prelúdio: notas sobre a escravidão no Caribe e no Brasil
De filho de monarcas escravocratas à líder abolicionista e um dos fundadores da Sociedade Antiescravidão Brasileira em 1880: eis, em poucas palavras, o percurso que o pernambucano Joaquim Nabuco procura revisitar na autobiografia Minha formação, publicada em 1900. Nestas memórias, Nabuco relata em 20 capítulos sua trajetória desde a infância em Recife até os últimos anos de vida, e revisita episódios de sua atuação como político, historiador e diplomata nos Estados Unidos. Na obra, o escritor cita nada menos do que 54 vezes a palavra escravidão, procurando defender seus ideais abolicionistas e rememorando suas relações afetivas com os escravos, tendo como ponto de partida sua ama de leite. A propósito da escravatura, ele se lembra que: “[...] quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a na dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte [...]”. (NABUCO, 1976, p. 120).
Em Minha formação, Nabuco cunha a frase presente na epígrafe deste artigo, frase a ser lida como premissa e fio condutor de nossas reflexões sobre os horizontes da pós-colonialidade na obra de Simone e André Schwarz-Bart. A frase foi retomada numerosas vezes por artistas e intelectuais brasileiros, dentre os quais o cantor Caetano Veloso, que musicou um trecho do livro na canção Noites do Norte, canção que atribui nome ao álbum laureado com o Grammy Latino de melhor álbum de música popular brasileira em 2010. Além de representante entusiasta da bancada abolicionista na Câmara dos Deputados, Nabuco participou ativamente da criação da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira 27 desde sua fundação, em 1897, até seu falecimento, em 1910.
Em seu discurso de posse, exaltou a importância da literatura como manifestação da identidade brasileira, entrelaçando o fazer literário à construção identitária, tema que aprofundaremos ao longo de nossas análises. Segundo Nabuco,
[...] a formação da Academia de Letras é a afirmação de que literária, como politicamente, somos uma nação que tem o seu destino, seu caráter distinto, e só pode ser dirigida por si mesma, desenvolvendo sua originalidade com os seus recursos próprios, só querendo, só aspirando a glória que possa vir de seu gênio. (NABUCO, 1897)
Ao proclamar que “[...] a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil” (NABUCO, 1976, p. 120), o escritor compôs um adágio que em nada se limita à condição brasileira. Indubitavelmente, a escravidão permanecerá por muito como característica nacional de toda e qualquer nação, tendo experenciado a empreitada colonial, o tráfico negreiro e o trabalho experienciado e não remunerado. A escravidão se erige como marca indelével que define a configuração identitária nas Américas, espaço da alteridade em suas mais diversas formas: mosaico cultural, sincretismo religioso, plurilinguismo e crioulização. Édouard Glissant, ensaísta e escritor martinicano, explica que
[...] a Nova-América - tanto no Brasil, quanto no Caribe [...] faz a experiência real da crioulização através da escravidão, da opressão, da desapropriação pelos diversos sistemas escravagistas, [...], e através destas desapropriações e destes crimes realiza uma verdadeira conversão do ‘ser’ (NABUCO, 1996, p. 15).
Nabuco resumiu de maneira poética e emblemática a presença da escravidão como componente central da identidade brasileira (e, por analogia, dos países que a experimentaram):
A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o, como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte [...] É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte. (NABUCO, 1976, p. 120)
Salta aos olhos o protagonismo da escravidão na formação do país. Contudo, este papel principal não assume majoritariamente feições de vilão, tampouco recai na lamentação e na enumeração negativa de todos os traumas e dilemas por ele engendrados. Com uma perspectiva pós-colonial avant la lettre, Nabuco rechaça a oposição entre culpados e vítimas, foge das armadilhas maniqueístas e procura exaltar a maneira como a escravidão povoou o país. Françoise Vergès1 explica que a teoria pós-colonial buscou
[...] abordagens mais complexas, desconfiando de oposições binárias, ela quis enfatizar o entre-dois, a troca, o contato. O colonizado fala sempre pelo menos duas línguas, ele conhece sempre pelo menos duas culturas; mas ninguém considera isso uma riqueza [...] Esta riqueza, no entanto, deve ser reapropriada. (VERGÈS, 2005, p. 92).
Ao longo das enumerações, observamos substantivos de valores positivos tais como “encantamento”, “alegria” e “felicidade”. Até palavras de cunho mais negativo como “tristezas”, “lágrimas, “silêncio” são modalizadas, respectivamente, por termos como “sem pesar”, “sem amargor”, “sem concentração”. Em momento algum, o autor atribui à escravidão uma conotação raivosa ou persecutória. Trata-se, sobretudo, de passar a limpo sua presença, incorporando-a como importante pilar identitário. Ressalta-se, igualmente, o fato de a escravidão ter fomentado cultura, através de seus mitos, legendas e encantamentos. Por sua vez, as reticências evocam a impossibilidade de completude da enumeração. Em outras palavras, tais sinais de pontuação refletem a imensidão de tudo o que a escravidão forjou em terras nacionais; suas contribuições não se curvam à delimitação descritiva empreendida pelo escritor.
A definição de escravidão como “suspiro indefinível” parece-nos muito pertinente por abarcar a toda a complexidade, nos mais diversos âmbitos, que envolveu a escravidão ao longo da empreitada colonial e em todos os seus desdobramentos. Suspiro indefinível: por um lado, a menção inegável ao sobressalto, ao lamento e às fraturas identitárias que ela originou; por outro lado, a presença da “indefinição” como convite a mais e mais reflexões capazes de iluminar este obscuro período. Logo, nosso estudo do ciclo antilhano de Simone e André Schwarz-Bart deseja caminhar no sentido de uma definição da escravidão nas ilhas francesas de Martinica e Guadalupe. Não aquela definição repleta de ponderações assertivas e acusações inflamadas, porém uma definição que descreve amiúde, que levanta dúvidas, que relata cenas e contextos, que coloca em cena a necessidade de se revisitar a história colonial e, por fim, que não hesita em dar a ver novas versões do escravismo.
Simone Schwarz-Bart pondera que “[...] tudo começa com a África. Contudo, a África é maior que a África. Ela deu ao mundo toda esta diáspora que encontramos no Caribe, no Brasil, sobre o continente americano” (LE GROS, 2015). Sob este ponto de vista, o Brasil entoado por Joaquim Nabuco em nada se distancia das Antilhas exaltadas pelo casal Schwarz-Bart. Nos dois contextos, a escravidão se impõe como premissa da nacionalidade e das (re)construções identitárias a serem revisitadas na tessitura literária, uma vez que
[...] não há concepção de liberdade sem a concepção de escravidão, não há concepção de cidadão sem a de escravo, não há concepção de universalidade do direito sem a de exceção à esta universalidade, não há trabalhador “francês” sem o trabalhador colonizado, não há mulher “francesa” sem a mulher escravizada/colonizada. (KAUFMANN, 2009, p. 31)
Primeiros acordes do ciclo antilhano
Sou destes que não renegam seus ancestrais. Aimé Césaire (2004a, p. 9)
O escritor e líder político cubano José Martí (2011, p. 12), ao se debruçar sobre a Nossa América, conclama que “[...] os povos que não se conhecem tem que se apressarem para se conhecerem”. Eis a palavra de ordem do ciclo antilhano vislumbrado pelos Schwarz-Bart, que apresentaremos brevemente. Simone Brumant, filha de uma professora e de um militar guadalupenses, nasce em 1938 na pequena cidade de Saintes, na França. Aos três anos, emigra para Pointe-à-Pitre, capital de Guadalupe, onde inicia sua formação em Letras. Estuda igualmente em Paris e em Dakar. Aos 18 anos, conhece o escritor André Schwarz-Bart na capital francesa. O encontro se dá de maneira fortuita: ela perdida nas ruas da grande metrópole, e ele procurando indicar-lhe algumas direções em crioulo. Ele havia acabado de entregar à editora o manuscrito do romance O último dos juntos, consagrado em 1959 com o prêmio Goncourt. Eles se casam cinco anos depois, e Simone adota o sobrenome do marido desde então.
Filho de imigrantes poloneses judeus, André Schwarz-Bart, ou Abraham Szwarcbart em iídiche, nasce na França em 1928. Vive em uma comunidade judaica em Metz e fala iídiche até os doze anos, quando começa a estudar o francês. Durante a perseguição aos judeus empreendida ao longo da Segunda Guerra Mundial, os pais e dois de seus seis irmãos são deportados e mortos em Auschwitz. Preso e torturado, André se engaja na resistência antinazista. Após a guerra, ingressa na universidade e inicia suas atividades como escritor militante. O casal se refugia no Senegal e na Suíça antes de adotar a ilha Guadalupe como lar definitivo. O escritor falece em 2006, no mesmo mês de sua condecoração como oficial da Ordem das Artes e das Letras francesas. Simone participa ativamente da publicação, em 2009, do livro póstumo L’Étoile du matin, centrado na perseguição nazista aos judeus. Atualmente, Simone Schwarz-Bart mora em Goyave, próximo a Pointe-à-Pitre, capital da Guadalupe, se dedica à escrita do ciclo antilhano.
Desde 1959, André manifestava o desejo de desenvolver o projeto literário antilhano. Cabe ressaltar sua sensibilidade aos genocídios tanto da Shoah quanto da escravidão. O ciclo antilhano, neste sentido, aproximaria sagas marcadas pelo exílio, pela diáspora, pela opressão, pelo extermínio e pelo dever de memória e de resistência. De fato, “[...] esta associação na escrita de duas revoltas emblemáticas de povos perseguidos e humilhados, a dos escravos quilombolas das Antilhas e a dos judeus condenados do Gueto de Varsóvia, anunciava os romances do ciclo antilhano” (KAUFMANN, 2008, p. 137), ciclo centrado “[...] na lembrança, na busca identitária, na compaixão, no antiracismo e na escuta do outro” (KAUFMANN, 2008, p. 136). O escritor planejava criar passarelas literárias capazes de promover o encontro de Moritz Lévy, irmão d’Ernie Lévy, considerado “o último dos justos”, com descendentes da mulata Solitude.
A interface dos périplos se confirma na homenagem feita aos escritores Aimé Césaire e Elie Wiesel na dedicatória do romance Un plat de porc aux bananes vertes (1967). Político, ensaísta e escritor, Césaire se consolidou como a figura central no movimento da Negritude, movimento de reivindicação das origens africanas na formação identitária antilhana. Exerceu cargo político como deputado por cinquenta e seis anos, tendo sendo prefeito de Fort-de-France, capital da Martinica, e um dos responsáveis pela departamentalização da ilha em 1946. Líder incontestável, Césaire participou da formação de todos os mais ilustres intelectuais antilhanos, dentre os quais citamos Glissant, Maximin, Chamoiseau, Confiant e Bernabé. Estes três últimos o homenagearam nas páginas iniciais do manifesto Eloge à la créolité (1989): “A Negritude de Césaire é um batismo, ato primordial de nossa dignidade. Somos para sempre filhos de Aimé Césaire” (BERNABE; CHAMOISEAU; CONFIANT, 1993, p. 18).
Por sua vez, Elie Wiesel, filósofo, professor universitário e escritor judeu, escreveu mais de sessenta obras, dentre romances e narrativas não ficcionais, centradas na temática do holocausto judaico. Sobrevivente dos campos de concentração nazistas de Auschwitz e Buchenwald, criou o conselho de Holocasto americano em 1980 e o Centro de História da Resistência e da Deportação na França em 1992. Recebeu inúmeras condecorações, dentre as quais se destacam oficial da Legião da Honra francesa em 1980, prêmio Nobel da Paz em 1986 pelo conjunto de sua obra, Mensageiro da Paz pela Organização das Nações Unidas em 1988, e o título de doutor honoris causa em mais de 100 universidades em países como Inglaterra, Estados, França e Israel. Tornou-se símbolo da resistência nazista, militante pelo respeito às minorias perseguidas de relevância e reconhecimento mundiais.
Logo, ao homenagear estes dois grandes líderes, o casal Schwarz-Bart aponta para a convergência dos dramas de judeus e de negros escravizados que sofreram perseguições, exílios e massacres similares que devem ser entoados para não correrem o risco de caírem no esquecimento. No epílogo do romance La mulâtresse Solitude2, André Schwarz-Bart promove o encontro destas histórias de resistência ao mencionar turistas que visitam, tanto nas ilhas caribenhas quanto na Polônia, monumentos do sofrimento e da luta destes povos:
Vindo de Basse-Terre, através de cem residências floridas, o viajante deter-se-á a dois ou três degraus de pedra da actual aldeia de Matouba. [...] Se ele insistir em saudar uma memória, preencherá o espaço existente com a sua imaginação; e se a sorte lhe for favorável, todas as espécies de figuras humanas se erguerão à sua volta, como o fazem ainda, segundo se diz, sob os olhares de outros viajantes, os fantasmas que erram por entre as ruínas humilhadas do Gueto de Varsóvia (SCHWARZ-BART, 2005, p. 143-144).
Após numerosas diferentes versões, o projeto do ciclo antilhano se estrutura em torno do desejo da escrita a quatro mãos de seis volumes capazes de repertoriar a história antilhana entre 1760 e 1953 a partir da figura central da escrava e mulata Solitude. Aproveitando-se do prestígio conquistado pelo prêmio Goncourt, André Schwarz-Bart apresenta a gênese do ciclo em 1967 em diversos âmbitos: no Figaro littéraire, em conferências de impressa, em artigos e em entrevistas. Na oportunidade, ele anuncia um projeto de enorme fôlego, com volumes claramente delineados, a serem empreendidos em mais de dez anos de intenso fazer literário. No que tange ao protagonismo de Solitude e sua genealogia, Simone Schwarz-Bart preconiza que
[...] como em todo o mundo, as pessoas simplesmente precisam de mitos fundadores e, sobretudo, de heróis aos quais se identificarem. Uma mulher como a mulata Solitude é um ícone. Nossos escritos experimentam o desejo e a vontade de compor uma galeria de retratos que serve de espelho aos que querem (LE GROS, 2015).
Certamente, o ciclo antilhano “[...] é um zoom, com o ângulo mais largo possível, sobre nós mesmos, descendentes de escravos. Quando mais tivermos exemplos, mais aumentaremos nossa família que é grande” (LE GROS, 2015).
O ciclo antilhano reivindica um olhar para os ancestrais, e promove a exaltação à memória do período escravagista e o reconhecimento dos valores históricos, sociais e culturais intimamente ligados à diáspora negra no Caribe. Dedicado aos filhos do casal, o romance L’ancêtre en Solitude apresenta Bernard e Jacques como “duas correntes da linhagem Solitude” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 7), reiterando a reivindicação de filiação aos escravos que compõem o mosaico identitário nas Américas. Simone explica em detalhes as diretrizes que acompanham e motivam o ciclo e enfatiza os diferentes matizes a serem ressaltados no entoar do ciclo antilhano: “Alguma coisa nos falta: necessidade de se reapropriar do heroísmo dos bravos, mas também dos “quase-nada”, destes lamed-vovnik, estes justos silenciados que ignoram a si mesmos. A memória coletiva precisa reinventar o passado para apropriá-lo” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 14). A ficção, definida como “meio superior de conhecimento” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 14), se apresenta como gênero frutífero para revisitar o passado e, de alguma maneira, passá-lo a limpo.
Simone e André Schwarz-Bart escreveram a quatro mãos a obra Un plat de porc aux bananes vertes, publicada em 1967, primeiro tomo do ciclo. Contudo, alguns anos mais tarde, em 1972, publicam obras individuais: ela inaugura uma escrita autônoma com o premiado Pluie et vent sur Télumée Miracle3, e ele lança La mulâtresse Solitude. As reações melindradas aos dois romances de André Schwarz-Bart culminaram no engavetamento do projeto do ciclo antilhano. Os diálogos literários promovidos por André entre Le Dernier des justese La mulâtresse Solitude foram ignorados pelos críticos. Simone declara que esta última obra foi vítima de um “linchamento” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 12) público, e confessa que ela foi responsável pela reclusão e pelo ostracismo que encerraram o marido. Frustrado, ele escrevia regularmente, mas refutava qualquer possibilidade de novas publicações. Com o falecimento do marido e parceiro literário, Simone se afasta da cena literária durante vinte e cinco anos. Especialista da obra de André Schwarz-Bart, Kaufmann foi a grande responsável pela retomada do ciclo antilhano, tendo localizado, ordenado e estudado o espólio de André após seu falecimento, em 2006. As anotações, diários, projetos, laudas e rascunhos localizados por ela promoveram uma “ressurreição” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 15) no ciclo antilhano.
A retomada do ciclo ocorre em 2015 com o romance L’ancêtre en Solitude, laureado com os prêmios Littérature Monde e Grand prix du Congrès des écrivains de la Caraïbe no mesmo ano. Acerca dos questionamentos de o livro ser assinado pelo casal nove anos após o falecimento de André, Simone Schwarz-Bart declara que “não é usual escrever com um morto. Foi um processo doloroso, mas necessário. Está na hora que este trabalho seja restituído” (LE GROS, 2015). Numa esfera mais íntima, retomar o ciclo antilhano representa para Simone reconstruir um “nós” nas tramas ficcionais, significa retirar André do ostracismo infligido pela recepção das primeiras obras, resgatar um projeto que lhe era muito caro e reivindicar sobrevida ao ciclo prematura e abruptamente interrompido. Reassumir a saga de Solitude consiste em negar a morte e o silenciamento, e permite a retomada de uma trajetória literária que se inicia por incentivo do marido e que parece a ele atrelada4. Em entrevista concedida ao programa Bibliothèque Médicis, quando da publicação do romance, a escritora explica os anos de silêncio como ato de cumplicidade ao marido: “[...] com a morte de André, eu continuei o silêncio porque ele estava em silêncio. [...] Nem ele nem eu [...] Há situações onde é preciso se calar” (SCHWARZ-BART, 2015). Ressalta, em seguida, o valor terapêutico da composição do ciclo antilhano: “André me dava um mundo de memória enquanto nós, Antilhanos, nós cultivávamos o esquecimento. Juntos nós fazíamos uma coisa muito necessária a mim mesma: iluminar minha noite e a noite dos meus” (SCHWARZ-BART, 2015).
Em 2017, o ciclo conhece a obra Adieu Bogotae renova o fôlego retomado com L’ancêtre en Solitude. Apesar da transformação das diretrizes iniciais e da expressiva mudança de títulos, a empreitada do ciclo antilhano corrobora o propósito de “mostrar ao mundo as histórias destas gerações de homens e mulheres” (LE GROS, 2015). Trata-se de
[...] mostrá-las às novas gerações antilhanas. Nossa ambição era recolocar estes personagens em suas próprias histórias, de maneira que as novas gerações constituam os projetos, a maneira de viver, a metafísica, a sabedoria que os antigos iniciaram. Que eles possam se apoiar sobre sua própria memória. Reencontrar o fio desta genealogia. (LE GROS, 2015).
Entoar o ciclo antilhano: cantar a escravidão
Nós cometemos um segundo crime contra a humanidade através de nosso silêncio e nossa ignorância. Não podemos construir o futuro sobre o esquecimento e as mentiras. (DIANTANTU, 2015).
Eis um dos trechos de apresentação da coleção de histórias em quadrinhos que Serge Diantantu escreveu em torno da memória da escravidão. Escritor e cartunista congolês e grande entusiasta da revisão literária do período colonial, Diantantu se tornou uma referência contra o esquecimento das barbáries do tráfico negreiro e da escravidão. Acreditando que produzimos novos crimes contra a humanidade quando silenciamos os traumas e as feridas abertas do escravismo, decidiu escrever para o público infantil e infanto-juvenil, apresentando-lhes personagens e fatos pouco explorados ou totalmente silenciados na história oficial. Até 2107, escreveu e ilustrou cinco tomos da coleção Memórias da escravidão, verdadeiros documentários da trajetória dos negros que lhe valeram o apoio da Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura: Bulamemba (2010), Navegando em direção a Índias (2011), O embarque de madeiras de ébano (2012), Ilha da Goreia (2014), Colônias das Antilhas e Oceano Índico (2015). Com tomos esgotados, o primeiro vendeu dez mil exemplares, e excelente recepção da crítica, Diantantu multiplica as séries voltadas para as histórias dos negros, e comprova que os vínculos entre a literatura e a história do escravagismo seguem cada vez mais profícuos.
Ao longo do ano de 1848, a abolição da escravatura foi declarada nas colônias francesas5 após iniciativa e decreto de Victor Schoelcher. Contudo, somente em maio de 2001 foi aprovada pelo parlamento francês a lei 2001-434, que qualificou o tráfico negreiro e a escravidão como crimes contra a humanidade. Françoise Vergès, cientista política e presidente do Comitê pela Memória da Escravidão desde 2009, se atém às contradições e aos dilemas da pós-colonialidade no tocante à escravidão. No clássico livro de entrevistas com Aimé Césaire, Vergès denuncia que:
A ‘questão negra’, tal como ela se coloca hoje, se apóia sobre uma constatação: o tráfico e a escravidão ocupam uma posição marginal na narrativa nacional. Em seu relatório, o Comitê pela memória da escravidão insiste no fato de que:
Sua história e sua cultura [dos escravos] são constitutivas de nossa história coletiva, como são o tráfico negreiro e a escravidão. Mas, a narrativa nacional não integra, ou muito pouco, esta narrativa de sofrimentos e de resistências, de silêncios e criações. (VERGÈS, 2005, p. 107-108)
Vergès (2005, p. 106) rechaça a “hegemonia do silêncio” e milita por “[...] uma reflexão que não desloque a história colonial à margem, mas ao contrário, a confronte e a questione” (VERGÈS, 2005, p. 136). Ela explica que na França valoriza-se a memória da abolição em detrimento à memória da escravidão, como se a libertação dos escravos e o fim dos trabalhos forçados compensassem e rasurassem as humilhações, as perdas, os castigos físicos, a imposição da diáspora e a vida nas condições mais aviltantes e precárias possíveis. Para muitos, a abolição fez desaparecer todos os revezes infligidos às gerações e gerações de escravos. Tudo se passa como se a liberdade tivesse imediatamente reconstituído uma dignidade usurpada. Cabe ressaltar que a abolição não se fez acompanhar de políticas públicas de escolarização, saúde, emprego e moradia. Muitos escravos permaneceram na mais completa miséria sem qualquer assistência pública, e se viram obrigados a trabalhar e sobreviver em condições análogas à escravidão.
Neste sentido, Aimé Césaire recusa veementemente um tipo de compensação centrada no pagamento de multas e reparações aos escravos. Segundo o líder martinicano, tal ato “[...] seria um bom negócio para eles [os escravocratas]: haveria uma fatura a pagar e em seguida estaria terminado... Não, isto não será nunca resolvido. [...] Nós fomos colonizados. Permanecem vestígios” (VERGÈS, 2005, p. 41). Irreparável e “indefensável” (CESAIRE, 2004b, p. 9), a escravidão permanecerá no imaginário dos povos americanos e será integrada ao mosaico identitário de suas populações. Apesar da abolição da escravatura em 1848, os programas escolares franceses insistem em obliterar as heranças e as dores de três séculos de tráfico e de trabalho com mão de obra escrava. Vergès (2005, p. 101) ressalta que a escola pública não deu um lugar central ao ensino do tráfico e da escravidão, apesar da existência de movimentos para a inscrição desta história há muitas décadas. Em entrevista, Diantantu explana sobre seu projeto de povoar as bibliotecas com livros centrados nas histórias negras e na escravidão:
Minha grande preocupação é introduzir livros de histórias em quadrinho nas escolas, nas bibliotecas. A França, e é uma sorte, é “um país arco-íris”: no pátio do recreio, vemos crianças de todas as origens, todos juntos, sem fazer distinções, é a cultura francesa para todos... Mas na biblioteca, podem-se descobrir as diferenças! Uma biblioteca é a memória. A memória, na França, não passa pela oralidade, contrariamente ao Congo, mas pela escrita. As pessoas oriundas da imigração dizem com frequência: “não temos lugar”. As crianças devem poder encontrar a cultura de suas famílias na biblioteca. Daí meus esforços para que Memória da escravidão ou A pequena Djily estejam nas bibliotecas francesas. (QUIÑONES, 2011).
Simone Schwarz-Bart faz eco às ponderações de Diantantu:
A nossa história começa com um êxodo, um exílio fantástico. Parte-se da África. Depois, há esta travessia neste espaço de concentração que são os porões dos navios negreiros. Esta depossessão de si mesmo se faz na chegada por uma venda desumanizadora, humilhante, sem que se saiba o que vai acontecer a si mesmo, nem o que nos espera. Todos esses avatares precisam ser integrados. Antes, não nos ensinavam isto ao longo de nossa escolaridade. Acabamos desprovidos de nós mesmos (LE GROS, 2015).
Ao analisar o romance L’ancêtre en Solitude, Jean-Michel Cusset (2015) preconiza que “[...] a repressão que se abateu sobre as pessoas de cor em Guadalupe, após a revolta dos cidadãos de 1802, e a independência do Haiti (1804), não foi estudada o suficiente, nem suficientemente traduzida em ficções romanescas”. Esta representação ficcional cumpriria dois objetivos complementares: “[...] ajudar, depois de dois séculos de abandono, os descendentes destas vítimas a recuperar sua integridade e atribuir à resistência de seus ancestrais seu devido valor na constituição de uma identidade guadalupense”. (CUSSET, 2015). Simone Schwarz-Bart explica amiúde o fazer literário que se erige como reivindicação identitária disposta a povoar os silêncios, suprir os esquecimentos e nomear os invisibilizados:
Quando houve a abolição da escravidão, começamos a nos reapropriar de nossa História. Esta começou com as gerações seguintes à abolição. O momento em que reencontramos nossa dignidade, em que podemos ter um nome, em que nos levantamos. Precisamos reapropriar e colocar em dia toda esta genealogia. De maneira que a memória não será fraturada, mas reparada (LE GROS, 2015)
Assim, se reitera o emblemático e engajado papel da literatura em “[...] buscar nossas verdades. [...], mostrar os heróis insignificantes, os heróis anônimos, os esquecidos da Crônica social, os que fizeram uma resistência por atalhos e paciência e que não correspondem em nada à imagem do herói ocidental-francês” (BERNABE; CHAMOISEAU; CONFIANT, 1993, p. 40).
O ciclo antilhano se centra na personagem Solitude, e procura retraçar a genealogia desta incontornável mulata e escrava, nascida em 1772 na Guadalupe, fruto de um estupro nos porões do navio negreiro na travessia da ilha da Goreia para a ilha caribenha. Solitude se torna a simbólica sobrevivente, em 1802, de uma tentativa de suicídio coletivo do grupo de escravos quilombolas moradores da montanha Soufrière quando de ataques das tropas de Napoleão, que revogavam militarmente a abolição da escravidão de 1795. Pouco se sabe sobre esta líder da resistência dos negros enforcada em praça pública em 29 de novembro de 1802, um dia após o nascimento da filha. Podemos dizer que “[...] aí se interrompem os vestígios de Solitude nos documentos históricos, aí se inicia o romance” (SAÏD, 2016).
Bayangumay, Solitude, Louise, Hortensia, Mariotte, eis as mulheres em torno das quais se tece a epopeia do ciclo antilhano que valoriza a linhagem de Solitude e a reivindica como memória ancestral da identidade antilhana. Eis o testemunho de Mariotte, bisneta de Solitude:
Há cinquenta anos, desde que tomei o caminho do exílio, uma vibração estranha se levanta em mim e eu hesito, eu procuro um tempo, quando me perguntam meu nome... como se eu não soubesse responder à uma pergunta tão grande [...] como que eu não tivesse nome, tendo-o esquecido na costa [...] ou como se a única resposta honesta e verdadeira tivesse sido a da minha bisavó: Meu nome é Solidão. (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 170).
Alguns trechos de obras do ciclo merecem nossa atenção por evidenciarem os diversos olhares das mulheres da linhagem de Solitude acerca da escravidão. A matriarca Bayangumay denuncia como a escravidão inaugurou uma “desconfiança universal” (SCHWARZ-BART, 2005, p. 34), mudando profundamente os paradigmas das relações ao confessar que “[...] antigamente, não temíamos senão nossos inimigos, hoje temos medo dos amigos e amanhã desconfiaremos das nossas próprias mães” (SCHWARZ-BART, 2005, p. 34). Sua perspectiva deixa transparecer o assombro e a incredulidade diante do tráfico negreiro. Rosalie, linda mestiça de olhos vertes, inteligente, dissimulada, plena de malícia e “perfídia” (SCHWARZ-BART, 2005, p. 66), frequenta o mundo quilombola, penetra no mundo da feitiçaria, experimenta as metamorfoses, erra entre o mundo dos vivos e dos mortos, torna-se selvagem e arredia durante o trabalho na cana de açúcar, onde acaba por cunhar o célebre apelido: “com sua licença, meu senhor: o meu nome é Solidão” (SCHWARZ-BART, 2005, p. 77).
Por sua vez, Louise recebia pequenos exorcismos para se liberar dos “sinais de maldição inevitável do sangue” (SCHWARZ-BART, SCHWARZ-BART, 2015b, p. 29) e da “reserva de pecados” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 33) dos negros. Educada de acordo com os dogmas da religião católica e no mundo dos brancos, demonstra profunda incompreensão sobre os crimes e os complexos engendrados pela escravidão em comentários como “[...] no meu tempo, os brancos ao menos sabiam o que era bom para o negro [...] mas hoje, quem sabe o que é bom para o negro? (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 143). Diante de sua senhora, se humilhava: “Eu sou sua mão, eu sou seu pé, eu sou a poeira de seus passos” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 69) e “vestia as correntes na sua alma toda a sua vida” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 51). Contudo, “[...] tossia uma vez, duas vezes, três em circunstâncias sempre curiosas. Geralmente, ela tossia contando histórias relativas à escravidão às crianças” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 129). No tocante às marcas de queimaduras infligidas aos escravos como punição, a neta Mariotte se lembra das explicações da avó Louise:
Várias pessoas tinham as mesmas marcas incompreensíveis e se dizia que elas vinham da escravidão. Mariotte acreditava que era uma região de onde as pessoas saiam neste estado. [...] Para ilustrar sua demonstração, vovó abaixava o decote e mostrava o antigo seio queimado a fim de que as crianças vissem o preço de desobedecer. (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 129-130).
Rompendo com a subserviência da mãe e sua incapacidade de questionar as barbáries sofridas, Hortensia personifica uma nova geração disposta a ressignificar a colonização:
[...] sendo desta geração nascida logo após a abolição da escravatura e que não só conhece o barulho do chicote pelas lembranças; de maneira que ela dispunha as coisas na mesma ordem vovó, e as pessoas na mesma categoria, os poderes espirituais na mesma hierarquia, ao menos ela aceitava mais facilmente que vovó uma mudança no quadro da comédia humana. (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 126).
Ela percebia e condenava “todas as formas antilhanas de insubordinação” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 126), bradando que “[...] a escravidão acabou, minhas caras: se me amarem não poderão me comprar, se me detestarem, não poderão me vender” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 101). Raymoninque, um dos possíveis pais de Mariotte, exalta Solitude e põe por terra a alienação de Louise. “Estou na prisão por algum motivo; e se eu sair um dia, não será para me abaixar diante de um senhor. [...] Os brancos podem me guilhotinar; mas enquanto minha cabeça estiver sobre meus ombros... sei agora que ela estará erguida” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 147).
A cena em que Mariotte compreende as razões das queimaduras corporais da avó e descobre as agruras da escravidão marca uma tomada de consciência fundamental para a plenitude de sua identidade antilhana:
Um dia, subitamente, não se sabe o porquê, ela soube que tudo isto tinha acontecido na colina Pichevin, talvez ao lado de sua ameixeira, talvez no mesmo ar que ela respirava, todas estas histórias de ferros que tinham marcado estas velhas peles todas estas histórias de chamados, de sino matinal, de bons e maus senhores, de grilhões, de estacas e tonéis com pregos, e de chicotes, de açoites, de longos chicotes de tiras que clareavam o traseiro dos adultos. (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015b, p. 130).
Mariotte passa a denunciar a escravidão em toda a sua crueldade e abrangência, passando a imbricar a história de sua família à história da colonização e do tráfico negreiro: “Para além do chicote, nada mudou: trabalhamos nas terras do branco, estamos em pé atrás de sua cadeira ou deitados embaixo de sua enxada...” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 53). Critica sua avó ao ponderar que “[...] ainda que a escravidão tivesse sido oficialmente abolida há quase quarenta anos [...], vovó tentava, uma última vez, de nos impor uma hierarquia do em cima e do embaixo; de nos empurrar goela abaixo, como aos que comungam, a hóstia da submissão espiritual aos brancos” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 69). Mariotte desenvolve inúmeros pesadelos capazes de “reviver todo o terror do passado” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 71) e rememorar “as voltas e giros do chicote que ainda chicoteavam seu espírito” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 71). Ao visitar Raymoninque, descreve a paisagem e evoca uma memória coletiva atrelada aos espaços: “Atravessando o pátio da antiga prisão de escravos onde ainda víamos a árvore-pelourinho, metade carbonizada, com seus curiosos brotos verdes que nasciam nas cinzas do tronco preto - testemunho indiferente de nossa servidão, e símbolo ferido dos dias que se seguiram à abolição da escravatura” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 124-125).
Em sua revisão histórica e biográfica, Mariotte tece uma homenagem a Aimé Césaire, definido por ela como alguém a quem sempre se faz necessário recorrer na luta pela memória da escravidão: “SOS poético: Santo-Césaire ajude-me, sua humilde paroquiana; pois sou mulher e pobre e velha. Diga-me a Palavra; bate sobre o tambor gasto de minha memória! [...] Olhe para mim estou nua, joguei fora minha genealogia meus companheiros! [...]” (SCHWARZ-BART; SCHWARZ-BART, 2015a, p. 173). De fato, “[...] re-contar literariamente esta história sobredeterminada pela escravidão é criar ficções que dêem conta de um certo ambiente, forçosamente imaginário, através da utilização de diferentes formas de arquivos a fim de reconstituir a memória cultural do país” (FIGUEIREDO, 2008, p. 24).
Por fim, trata-se de colocar em prática a força da fala perante a imposição do silêncio, apontando para o valor da resistência ficcional e a revanche da literatura6 (ROBIN, 1999, p. 74).
Referências bibliográficas
BERNABE, Jean; CHAMOISEAU, Patrick; CONFIANT, Rapahël. Éloge de la créolité. Paris: Gallimard, 1993.
CESAIRE, Aimé. Paroles de Césaire. Entretien avec K. Konaré et A. Kwaté, mars 2003. In: Tshitenge Lubabu Muitibile, K. (éd.). Césaire et nous. Une rencontre entre l’Afrique et les Amériques au XIXe siècle. Bamako: Cauris Éditions, 2004a.
CESAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme suivi du discours sur la négritude. Paris: Présence africaine, 2004b.
CUSSET, Jean-Pierre. Nos ancêtres en Solitude. 2015. Disponível em: <http://ecrivainsdelacaraibe.com/association-des-ecrivains-de-la-caraibe/espace-libre-expression/nos-ancetres-en-solitude-analyse-critique-dur-roman-de-simone-et-andre-schwarz-bart-par-j-m-cusset.html>
DIANTANTU, Serge. Mémoires de l’esclavage 5. Colonies des Antilles et de l’océan indien. Lamentin: Caraïbeéditions, 2015.
FIGUEIREDO, Eurídice. A reescrita da escravidão em Patrick Chamoiseau. Revista Brasileira do Caribevol IX. Brasilia: CECAB, 2008, p. 13-34.
GLISSANT, Edouard. Introduction à une poétique du divers. Paris: Gallimard , 1996.
KAUFMANN, Francine. L’oeuvre juive et l’oeuvre noire d’André Schwarz-Bart. Pardès, 2008 , p. 135-148.
KAUFMANN, Francine. Aimé Césaire et la lutte inachevée. Revista Alea, v. 11, n. 1, 2009, p. 24-34.
LE GROS, Julien. Simone Schwarz-Bart: La réalité du XXIème siècle, c’est le métissage. 2015. Disponível em: <http://the-dissident.eu/6424/simone-schwarz-bart-la-realite-du-xxieme-siecle-cest-le-metissage/>.
MARTÍ, José. Nossa América. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011.
NABUCO, Joaquim. Discurso de posse. Discurso pronunciado na Sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras, em 20 de julho de 1897, na qualidade de Secretário Geral. 1897. Disponível em: <http://www.academia.org.br/academicos/joaquim-nabuco/discurso-de-posse>.
NABUCO, Joaquim. Minha formação. Brasil: Livraria José Olympio Editora, 1976.
QUIÑONES, Viviana. Serge Diantantu: des bandes dessinées entre Histoire et société. La revue en ligne du livre et de la lecture des enfants et des jeunes. 2011. Disponível em: <http://takamtikou.bnf.fr/dossiers/dossier-2011-la-bande-dessinee/serge-diantantu-des-bandes-dessinees-entre-histoire-et-societe>.
ROBIN, Régine. L’immense fatigue des pierres - biofictions. Québec: XYZ, 1999.
ROCHA, Vanessa Massoni da. Vozes do feminino: por uma poética do matriarcado em Simone Schwarz-Bart. Todas as Musas: Revista de Literatura e das Múltiplas Linguagens da Arte (Impresso), v. ano 7, p. 33-42, 2016.
ROCHA, Vanessa Massoni da. Des enjeux linguistiques dans les trames littéraires: la célébration de l’oralité et de l’identité créole chez Simone Schwarz-Bart. Cadernos de Letras, v. 26, p. 145-166, 2016.
ROCHA, Vanessa Massoni da. Simone Schwarz-Bart et l’écriture de la violence (post)coloniale dans le roman Pluie et vent sur Télumée Miracle. Dialogues Francophones, v. 20-21, p. 83-96, 2015.
SAÏD, Gabrielle. Simone et André Schwarz-Bart, L’Ancêtre en solitude: un héritage à deux voix. Diacritik. 2016. Disponível em: <https://diacritik.com/2016/06/13/simone-et-andre-schwarz-bart-lancetre-en-solitude-un-heritage-a-deux-voix/#more-13059>.
SCHWARZ-BART, André. A mulata Solidão. Tradução de Maria João Branco. Lisboa: Cavalo de ferro, 2005.
SCHWARZ-BART, André. Le dernier des justes. Paris: Point, 1996.
SCHWARZ-BART, S. Entrevista à Bibliothèque Médicis. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rHQZDNbiG1g>.
SCHWARZ-BART, Simone. A ilha da chuva e do vento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. São Paulo: Editora Marco Zero, 1986.
SCHWARZ-BART, Simone; SCHWARZ-BART, André. Un plat de porc aux bananes vertes. Paris: Éditions du Seuil, 2015a.
SCHWARZ-BART, Simone; SCHWARZ-BART, André. L’Ancêtre en solitude. Paris: Éditions du Seuil , 2015b.
SCHWARZ-BART, Simone; SCHWARZ-BART, André. Adieu Bogota. Paris: Éditions du Seuil , 2017.
VERGÈS, Françoise. Nègre je suis, nègre je resterai - entretiens ave Aimé Césaire. Paris: Albin Michel, 2005.
Notas
Autor notes