Resumo : Este trabalho parte de um ensaio de Giorgio Agamben dedicado a Dante e à distinção entre comédia e tragédia. Aproveitando certas indicações de Agamben, o trabalho busca reconfigurar a questão do atravessamento entre trágico e cômico, tendo como ponto de partida as teorias acerca do Bildungsroman, o romance de formação, e da heterogeneidade do discurso romanesco de forma ampla. Por fim, é realizada uma aproximação entre Marcel Proust e Franz Kafka (a partir de Walter Benjamin e Franco Rella), apresentando a hipótese de que, seguindo a reconfiguração do contato entre trágico e cômico, o discurso romanesco abarca também uma revisão das categorias de tempo e sujeito.
Palavras-chave: tragédiatragédia,comédiacomédia,romance de formaçãoromance de formação,tempotempo,sujeitosujeito.
Abstract: This work is partly based on an essay by Giorgio Agamben devoted to Dante and the distinction between comedy and tragedy. Making use of some of Agamben’s notions, this paper seeks to reconfigure the issue of the tragic-comic intersection, drawing on the theories about the Bildungsroman, the novel of formation, and the heterogeneity of the novelistic discourse in a wider sense. Finally, a parallel is drawn between Marcel Proust and Franz Kafka (with Walter Benjamin and Franco Rella), putting forward the hypothesis that, following the reconfiguration of the contact between tragic and comic, novelistic discourse also includes a revision of the categories of time and subject.
Keywords: tragedy, comedy, novel of education, time, subject.
Resumen: Este trabajo parte inicialmente de un ensayo de Giorgio Agamben dedicado a Dante y la distinción entre comedia y tragedia. Haciendo uso de ciertas indicaciones de Agamben, el trabajo busca reconfigurar la cuestión del atravesamiento entre lo trágico y lo cómico teniendo como punto de partida las teorías acerca del Bildungsroman, la novela de formación, y la heterogeneidad del discurso novelesco de forma amplia. Por último, se realiza una aproximación entre Marcel Proust y Franz Kafka (a partir de Walter Benjamin y Franco Rella), presentando la hipótesis de que, siguiendo la reconfiguración del contacto entre lo trágico y lo cómico, el discurso novelesco abarca también una revisión de las categorías de tiempo y sujeto.
Palabras claves: tragedia, comedia, novela de formación, tiempo, sujeto.
Artigos
Tragédia, comédia, romance de formação
Tragedy, comedy, novel of formation
Recepção: 16 Janeiro 2018
Aprovação: 15 Julho 2018
No ensaio que abre seu livro Categorias italianas1, intitulado simplesmente Comédia, Giorgio Agamben faz um inventário das hipóteses da crítica especializada em Dante e suas tentativas de definição das razões que levam o autor italiano a escolher o título final de sua obra. “O privilégio conferido ao gênero cômico, que não possui nada de homólogo nem nas fontes medievais nem naquelas tardo-antigas”, escreve Agamben, “pressupõe por parte de Dante a intenção de um investimento semântico no termo ‘comédia’, cuja mira, por certo, aponta para muito além daquele alvo no qual a crítica moderna acreditou acertar” (AGAMBEN, 2014, p. 19). Para além também de uma tradicional classificação que levava em consideração estilos como a sátira, a mímica e a elegia, Dante estaria interessado em uma intensificação do contraste entre comédia e tragédia, acentuando, com isso, a distância de sua obra com relação à Eneida de Virgílio. A princípio, seguindo a carta a Cangrande, a comédia responderia ao esquema “início horrível” e “fim próspero”, enquanto a tragédia funcionaria de maneira oposta, “início calmo” e “fim horrível” (AGAMBEN, 2014, p. 23). A questão, contudo, é mais ampla do que a definição do título dantesco, pois estabelece uma sorte de binarismo epistemológico que se mantém desde então, um não dito que talvez derive da “[...] nossa relutância em admitir que essas categorias, em cuja oposição a modernidade - de Hegel a Benjamin, de Goethe a Kierkegaard - projetou os seus mais profundos conflitos éticos, possam ter a sua origem remota na cultura medieval”. (AGAMBEN, 2014, p. 25)
Interessa aqui, portanto, buscar uma continuidade para esse fio argumentativo rapidamente apresentado por Agamben em seu ensaio - como a oposição “tragédia” e “comédia” segue operativa na modernidade e como se dá sua reconfiguração específica no âmbito da história das formas romanescas. São duas tradições que levam essa oposição até Dante: de um lado, a leitura medieval da Poética de Aristóteles e, de outro, a paixão de Cristo e o surgimento do Novo Testamento. Dante realizou, na carta a Cangrande, “[...] a conjugação das categorias trágico/cômico com o tema da inocência e da culpa da criatura humana, em uma perspectiva na qual a tragédia aparece como a culpabilização do justo e a comédia como a justificação do culpado” (AGAMBEN, 2014, p. 26). O pecado original e a paixão de Cristo estão articulados na fundação de uma culpa “que se transmite independentemente da responsabilidade individual”, mas é o segundo evento que permite a inversão do conflito “entre culpa natural e inocência pessoal na cisão entre inocência natural e culpa pessoal”, alcançando a conclusão de que “a morte de Cristo liberta o homem da tragédia e torna possível a comédia” (AGAMBEN, 2014, p. 31-32). Por fim, Agamben apresenta a contraposição entre Dante como personagem “cômico”, e Édipo como herói trágico: o primeiro “se purifica da culpa pessoal mostrando até o fim a sua vergonha”, e o segundo que, “enquanto pessoalmente inocente, não pode nem confessar sua culpa nem aceitar a vergonha” (AGAMBEN, 2014, p. 36).
Em paralelo à questão do título dantesco, Agamben reflete, como de hábito, sobre um contexto de reconfiguração conceitual e de indecibilidade ou oscilação entre posições aparentemente contraditórias, como é o caso aqui de “tragédia” e “comédia”. Em termos narratológicos, o que está em questão na crítica dessa dicotomia é especialmente a determinação da natureza do início e do fim dos relatos (horrível ou calmo) como possibilidade de definição do trágico e do cômico. A potência da literatura, especialmente da literatura moderna, reside em sua capacidade de reposicionar intensidades e expectativas, confrontando perspectivas no interior do próprio texto e, com isso, tornando supérflua a definição essencialista do início e fim dos relatos. Ainda em Categorias italianas, por exemplo, em outro ensaio, no qual comenta Elsa Morante, Agamben fala de sua obra como estando “além tanto da tragédia quanto da comédia” (2014, p. 178). Fica aí estabelecido um nexo entre a argumentação prévia, que envolvia a definição restrita desses dois campos e sua reconfiguração por parte de Dante, e o ponto de chegada que aqui será investigado especificamente - como a prosa narrativa dos últimos duzentos anos se movimenta nesse campo “além tanto da tragédia quanto da comédia”.
É com Mikhail Bakhtin que a reflexão sobre a prosa narrativa e a forma romanesca vai se apropriar do campo de indecidibilidade que contém o duplo movimento de atração e repulsa envolvendo tragédia e comédia. Em primeiro lugar, em Estética da criação verbal, Bakhtin analisa o Bildungsroman, o romance de formação (cujo exemplo maior é o Wilhelm Meister de Goethe), no qual “[...] o próprio herói e seu caráter se tornam uma grandeza variável na fórmula desse romance”, e é precisamente essa variabilidade que torna supérfluo, mais uma vez, o essencialismo rígido dos “inícios calmos” e “finais horríveis”, ou vice-versa (BAKHTIN, 2010, p. 219). Em seu trabalho sobre a estilística, dirá que “[...] todo romance, do ponto de vista da linguagem e da consciência linguística nele personificadas, é um híbrido”, concluindo, mais adiante, que “[...] é provável que na literatura universal não sejam poucas as obras de cujo caráter paródico sequer suspeitemos em nossos dias”, ou seja, acentuando mais uma vez a instabilidade das categorias essencialistas quando se trata do discurso romanesco (BAKHTIN, 2015, p. 165, 177). Em Questões de literatura e de estética, escreverá: “O gênero romanesco não dispõe de uma posição imanente”, seja “no plano da forma”, seja no plano “do gênero” (BAKHTIN, 2010a, p. 277). E, por fim, sabe-se que a leitura de Dostoiévski feita por Bakhtin, ao enfatizar o dialogismo, a carnavalização e a polifonia, esmiúça as diversas camadas heterogêneas do texto em constante confronto umas com as outras, sendo o campo de contato entre cômico e trágico não menos impuro ou híbrido: “[...] na evolução [...] da literatura europeia, a carnavalização ajudou constantemente a remover barreiras de toda espécie entre os gêneros, entre os sistemas herméticos de pensamento, entre diferentes estilos, etc, destruindo toda hermeticidade e o desconhecimento mútuo” (BAKHTIN, 2010b, p. 154).
Resgatando Bakhtin e comentando o mesmo Wilhelm Meister de Goethe, Franco Moretti, no prefácio que escreve vinte anos depois da primeira edição de seu livro sobre o Bildungsroman, The Way of the World, comenta indiretamente essa capacidade do discurso romanesco de reinventar e reconfigurar a natureza de certas cenas. Na cena final do romance de Goethe, Moretti diz que esperava ver, em sua primeira leitura, uma grande cena de resolução ou encaminhamento climático, mas que esse não é o caso - ou seja, o fim, assim como o começo, pode ser relatado como “calmo” ou “horrível” ao sabor da circunstância (MORETTI, 2000, p. v). “Perdi minha subjetividade, mas ganhei o mundo”, é o que diz Goethe em sua Viagem à Itália, frase que Moretti captura como signo dessa oscilação da subjetividade que contribui para a transformação do discurso romanesco (MORETTI, 2000, p. vi). Da mesma forma que Dante serve a Agamben como ponto de clivagem na tradição e ponto de partida para uma releitura prospectiva da mesma tradição, Goethe e seu uso particular do Bildungsroman servem a Bakhtin e seus continuadores, Moretti entre eles. Esses dois esforços de resgate e releitura se tocam e se complementam na medida em que o romance de formação - por conta de sua heterogeneidade de registros discursivos e sua perspectivação oscilante - reitera a impossibilidade de determinar essencialmente os atributos seja do início, seja do fim do relato (recordemos que o célebre Prefácio a Cromwell, de Victor Hugo, é do mesmo ano em que Goethe escreve pela primeira vez o termo Weltliteratur2, 1827).
Rodolphe Gasché já mostrou que o procedimento não estava restrito nem ao romance de formação, nem à prática de Goethe, sendo presente e central na obra de um rigoroso contemporâneo seu, Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Confrontando a Estética de Hegel com sua Fenomenologia do Espírito, Gasché fala de uma “autodissolução da seriedade” e de como dialeticamente elementos da teoria do cômico são reconfigurados no desenvolvimento hegeliano do conceito de trágico - a falta de limites de um registro tornando possível o sistema rígido de limites do outro (GASCHÉ, 2000, p. 37-56). Por essa perspectiva, a conhecida declaração de Jean Hyppolite, em seu livro Gênese e estruturada da Fenomenologia do Espírito de Hegel, em que fala do projeto de Hegel justamente como um romance de formação, um Bildungsroman (cujo herói é precisamente o “Espírito” que luta para atravessar a história da consciência), ganha peso e relevância (HYPPOLITE, 1979, p. 11-12)3. Apesar da tentativa de conferir um caráter absoluto ao Espírito, a própria constituição narrativa de seu percurso, sob a égide do Bildungsroman, de seu contexto histórico imediato e das releituras posteriores, reforça a perspectiva do não essencialismo e da instabilidade das categorias. Assim como a divisão entre comédia e tragédia torna-se insustentável na emergência específica do romance de formação, essa instabilidade restrita (comédia e tragédia, o fim calmo ou horrível) também se encaminha para uma instabilidade mais geral, um hibridismo ou heterogeneidade típicas do discurso romanesco, como apontou Bakhtin. Ao passar de Goethe a Dostoiévski, é também Bakhtin quem marca a ampliação desse registro de instabilidade de categorias para além do romance de formação, marcando, como se sabe, o discurso como campo de luta constante, e a língua como “ideologicamente saturada” (BAKHTIN, 2010a, p. 77).
Gérard Genette, em Figuras III, permite acrescentar um terceiro termo a esse percurso de investigação: de Goethe a Dostoiévski, e agora a Marcel Proust (o que permite que essa retrospectiva opere a partir de um ciclo aproximado de 60 anos: o Wilhelm Meister de Goethe, 1795-1796; Crime e castigo, de Dostoiévski, 1866; e a Recherche de Proust, interrompida em 1922 com sua morte, mas que teve o último volume publicado em 1927). Da mesma forma que Agamben com Dante e Bakhtin com Goethe, Genette percebe em Proust uma reconfiguração dos elementos então disponíveis no campo literário - ecoando, até certo ponto, a ideia de Walter Benjamin de que Proust tanto inauguraria quanto encerraria um gênero por si só (BENJAMIN, 1994, p. 36). Em determinado momento de seu comentário a Proust, Genette absorve não apenas a tradição do romance de formação, mas também a figura de Hegel:
O assunto de Em busca do tempo perdido é mesmo “Marcel se torna escritor”, não “Marcel escritor”: a Busca permanece um romance de formação, e seria falsificar suas intenções e, sobretudo, forçar seu sentido querer ver um “romance do romancista”, como nos Moedeiros falsos; trata-se de um romance do futuro romancista. “A continuação”, dizia Hegel a respeito, justamente, do Bildungsroman, “não tem mais nada de romanesco...”; é provável que Proust aplicasse essa fórmula à sua própria narrativa: o romanesco é a procura, é a busca, que termina em achado (a revelação), não o emprego que será feito posteriormente desse achado. A descoberta final da verdade, o encontro tardio da vocação, como a felicidade dos amantes reunidos, pode ser um desenlace, mas não uma etapa; e nesse sentido, o assunto da Busca é de fato um assunto tradicional. A narrativa deve, portanto, interromper-se antes que o herói encontre o narrador, não convém que escrevam juntos a palavra: Fim. A última frase deste segundo personagem é quando - é que - o primeiro chegou, enfim, à sua primeira. A distância entre o fim da história e o momento da narração é, pois, o tempo necessário para o herói escrever este livro, que é e não é aquele que o narrador, por sua vez, nos revela no espaço de um relâmpago. (GENETTE, 2017, p. 304).
Significativamente, a leitura de Genette também passa por uma consideração acerca do fim do relato, fim este que, na obra Em busca do tempo perdido, só é alcançado para remeter mais uma vez ao início. O uso do tempo em Proust já não é progressivo, acumulativo ou cronológico, sendo a principal prova disso esse momento de encerramento destacado por Genette, no qual o sentido tradicional de fim permanece em suspenso, em dívida. A “formação” envolvida no romance de Proust é a “formação do romancista” ou, ainda, a formação da possibilidade da própria escritura. Retornando à elaboração de Franco Moretti em torno do romance de formação, podemos apreciar de forma mais detalhada esse procedimento de Proust destacado por Genette. Citando a Fenomenologia do Espírito de Hegel, o trecho no qual o filósofo liga o Absoluto à resolução e ao final, Moretti afirma que, no romance de formação tradicional, o “final feliz” representa o “triunfo do significado sobre o tempo”: “o único propósito do tempo é nos levar ao final, permitindo a epifania de uma essência”, e, tornado supérfluo, o “tempo abandona o palco para dar lugar à dança harmoniosa da Verdade com o Todo” (MORETTI, 2000, p. 55). Diante disso, fica clara a importância da decisiva reconfiguração proposta por Proust: ao recusar a resolução definitiva, recusa também a “epifania de uma essência”, fazendo da busca o motivo central da escritura, e não mais a resolução (o tempo, dessa forma, permanecendo sempre no “palco”, enfileirando, dialética e paradoxalmente, uma série de epifania - e não mais uma única, endereçada ao Absoluto, à Verdade ou ao Todo de que fala Hegel)4.
“O totem do totum não existe mais”, escreve Franco Rella a partir de Adorno, mas em um livro dedicado a pensar a relação entre Marcel Proust e Franz Kafka, Scritture estreme (RELLA, 2005, p. 45). Toda a argumentação de Rella ao longo de seu livro está baseada no projeto inacabado de Walter Benjamin de dedicar um ensaio à comparação das obras de Proust e Kafka - projeto que, mesmo não ganhando forma definitiva, se espalha ao longo da obra de Benjamin como um todo, especialmente no Livro das Passagens (RELLA, 2005, p. 12). Rella busca ampliar as intuições benjaminianas, organizando metodicamente - em um livro que se organiza a partir de fragmentos críticos, numerados até 100 - os pontos possíveis de contato e afastamento entre Proust e Kafka. Ainda que parta de uma visão clara acerca das diferenças de abordagem formal dos dois autores - o fluxo caudaloso da Recherche de Proust de um lado, os fragmentos concisos, as fábulas e alegorias de Kafka de outro -, Rella ressalta a questão do tempo em dois aspectos centrais, a busca e a suspensão, que se reúnem na ideia-síntese da morte. A obra de Proust, segundo Rella, apresenta a “construção lenta, fatigosa, mas ao fim vitoriosa, de um poder-morrer”, uma sorte de “direito à morte”, “conquistado depois de atravessar a zona das perversões sexuais e sentimentais, as zonas do inumano”; do lado de Kafka, “sua necessidade de escritura” leva a “uma luta contra o poder, uma luta tão desesperada e extrema que se conclui com a destruição não dos poderes, inexpugnáveis, mas do único poder que resta o sujeito único: o poder morrer” (RELLA, 2005, p. 134). Em outras palavras, um “poder morrer” que, na condição de fim extremo e definitivo, é continuamente encenado na escritura, dissolvendo, com isso, sua essencialidade, sua centralidade, sua condição de “totem do totum”.
Maurice Blanchot, em De Kafka à Kafka, contrapõe a K., o protagonista de O Castelo, figura do exílio e da obstinação com o exílio, a inércia de Joseph K., que crê ainda pertencer a este mundo, e também crê que “o processo possa ser vencido ou perdido aqui” (BLANCHOT, 1981, p. 94). Por essa crença, o percurso dos dois romances é distinto. O protagonista de O processo, escreve Blanchot, “na sua negligência, na sua indiferença, e na satisfação de um homem provido de boa situação social, não se dá conta de ter sido posto para fora da existência” (BLANCHOT, 1981, p. 114). Tendo se dado conta, teria seguido a via de K., a via do Castelo, que conduz ao espaço intermediário entre vida e morte (como no conto do caçador Gracchus, por exemplo5). Mas é também, de certa forma, essa a via seguida por Joseph K. Se é verdade que o K. do Castelo é o mesmo Kafka que escreve a Felice, como afirma Elias Canetti em O outro processo (1988), da sua absoluta extraterritorialidade, exílio e distanciamento, também é verdade que Joseph K. se faz ver e comunicar através de uma distância - a distância de outro espaço intermediário, aquele que articula sono e vigília (como em A metamorfose, por exemplo). Esse instante expandido e quase que fora do tempo abarca não só sua abrupta captura, mas também seu sacrifício final, o “poder morrer” de que fala Franco Rella.
A dimensão do fim - que já não pode ser simplesmente calmo ou horrível - é reconfigurada na medida em que a própria tradição do romance de formação - que já carregava consigo uma problematização das categorias de trágico e cômico - é rearmada através do motivo da “busca” na Recherche de Proust. Contemporâneos de Proust, contudo, alargam a questão para além do escopo do romance de formação - sendo digno de nota que essa expansão da perspectiva se dê, em primeiro lugar, a partir de Kafka e, em viés crítico, a partir do esforço comparatista de Walter Benjamin, conforme resgatado por Franco Rella. Benjamin, no Livro das Passagens, tenta definir a relação entre contrários sempre a partir da ambivalência, da oscilação: “o conceito de progresso deve estar fundado na ideia de catástrofe” (BENJAMIN, 2002, p. 473) e “superar a noção de ‘progresso’ e superar a noção de ‘período de decadência’ são dois lados de uma coisa só” (460). Nesse contexto, pode-se resgatar a epígrafe da introdução de 1939 de Benjamin ao projeto das passagens, retirada da obra de fôlego de Maxime du Camp em seis volumes, Paris, ses organes, ses fonctions, sa vie (1869-1875): “a História é como Jano, tem duas faces. Olhando o passado ou o presente, vê as mesmas coisas” (BENJAMIN, 2002, p. 14).
Nesse ponto, chegamos aos “profundos conflitos éticos” de que fala Agamben no ensaio “Comédia”, nos quais se envolve “a modernidade - de Hegel a Benjamin, de Goethe a Kierkegaard” (AGAMBEN, 2014, p. 25). Os três primeiros nomes foram aqui contemplados no viés específico da forma romanesca, com o acréscimo final de Franz Kafka. O movimento decisivo nessa modernidade de que fala Agamben é a transformação que se opera na relação entre o tempo do relato e o tempo da história, não mais coesos ou lineares, operando em regime de espelhamento, mas atravessados, comprometidos mutuamente. Essa instabilidade de posições entre sujeito e mundo opera, em Proust e Kafka, segundo Franco Rella, a partir de uma performance dúplice da escritura, como doença e como testemunho (RELLA, 2005, p. 26). É a partir dessa última categoria que Giorgio Agamben retoma Kafka, em O que resta de Auschwitz, quando conta que, em 1983, “o editor Einaudi pediu a [Primo] Levi que traduzisse O processo, de Kafka”. Raramente, continua Agamben:
[...] se observou que esse livro, no qual a lei se apresenta unicamente na forma do processo, traz uma intuição profunda sobre a natureza do direito, que aqui não se apresenta - segundo a opinião comum - tanto como norma, quanto como julgamento e, portanto, processo. Ora, se a essência da lei - de toda lei - é o processo, se todo direito é unicamente direito processual, então execução e transgressão, inocência e culpabilidade, obediência e desobediência se confundem e perdem importância. [...]. O julgamento é em si mesmo a finalidade, e isso - já foi dito - constitui o seu mistério, o mistério do processo (AGAMBEN, 2008, p. 28).
Não é apenas em O processo que Kafka reflete sobre isso - que a finalidade do processo é gerar o processo. Isso está, por exemplo, em A construção, conto no qual o ser envolvido na “construção”, por mais que indique finalidades paralelas (exercício, estoque de comida), apenas com o intuito de realizar a construção (KAFKA, 1998, p. 70). Em O que resta de Auschwitz, Agamben resgata Salvatore Satta e seu Il mistero del processo, buscando aí conclusões acerca da poética de Kafka: “Isso significa também que ‘a sentença de absolvição é a confissão de um erro judicial’, que ‘cada um é intimamente inocente’, mas que o único verdadeiro inocente ‘não é quem acaba sendo absolvido, e sim quem passa pela vida sem julgamento’”. (AGAMBEN, 2008, p. 29). O “mistério do processo”, que alcança tanto Kafka quanto Salvatore Satta (citado por Agamben como jurista, mas autor também ele de um romance dedicado à reflexão sobre o tempo, Il giorno del giudizio, lançado postumamente em 1977), carrega consigo aquela carga ambivalente, entre o julgamento e a culpabilidade, que Agamben já havia rastreado em Dante - mas apontando, porém, para a noção de “pecado” compartilhada pela Poética de Aristóteles e pelo Novo Testamento através da sobrevivência e tradução do termo grego hamartía (AGAMBEN, 2014, p. 26-27).
A aproximação direta entre os dilemas éticos da modernidade e as categorias tradicionais da teoria literária, que Agamben somente anuncia no ensaio “Comédia”, é feita em O que resta de Auschwitz, especialmente no ponto em que mais uma vez Hegel é resgatado, e a pretensão “de apresentar a vergonha do sobrevivente como um conflito trágico” é recusada (AGAMBEN, 2008, p. 101). É preciso ter em mente também que a dimensão da “vergonha” é central no ensaio sobre Dante. “A teoria da vergonha - que Dante desenvolve no canto XXXI do Purgatório - é o fulcro em torno do qual se cumpre esse giro da culpa natural trágica a uma culpa pessoal cômica” (AGAMBEN, 2014, p. 35), assim como é central na argumentação de O que resta de Auschwitz, que pode encarado como um livro no qual Agamben apresenta uma chave de leitura possível para a literatura do século XX. A partir de Lévinas, mas depois de passar por Primo Levi e Franz Kafka (e preparando o terreno para alcançar Fernando Pessoa e Giorgio Manganelli), Agamben escreve: “a vergonha não deriva, como acontece na doutrina dos moralistas, da consciência de uma imperfeição ou de uma carência do nosso ser frente à qual tomamos distância”, pelo contrário - continua o autor - “[...] ela fundamenta-se na impossibilidade do nosso ser de dessolidarizar-se de si mesmo, na sua absoluta incapacidade de romper consigo próprio” (AGAMBEN, 2008, p. 109).
Se fizer sentido apontar a falência das categorias essencialistas de “tragédia” e “comédia” no âmbito do romance de formação, o percurso feito até aqui leva à conclusão de que o discurso da formação (da Bildung, da educação, da forma, da imagem do mundo no sujeito e do sujeito no mundo) é também reconfigurado diante da falência das categorias essencialistas de “sujeito” e “mundo”. Em Proust, Kafka ou Fernando Pessoa, “[...] o sujeito não tem outro conteúdo senão a própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunha do próprio desconcerto, da própria perda de si como sujeito” (AGAMBEN, 2008, p. 110). Esse contínuo arranjo e rearranjo das posições do sujeito no texto e no mundo será preocupação central para a ficção e sua teoria (de Augusto Monterroso a Jacques Derrida, por exemplo6), bem como uma tarefa que se anuncia - ao menos desde Dante - para a crítica do presente.