Resumo: Este artigo pretende mostrar que a incompreensão do público não é apenas um fenômeno histórico-cultural capaz de explicar a má recepção pública dos primeiros poemas de Baudelaire. Tema de vários escritos do poeta, a incompreensão é incorporada em sua poesia como um problema enunciativo. Após breves comentários acerca do conceito de “poeta dramático”, cunhado por Barbey d’Aurevilly, analiso alguns poemas em prosa nos quais a incompreensão é dramatizada.
Palavras-chave: Baudelaire, recepção, incompreensão, poeta dramático.
Abstract: This article intends to show that the misunderstanding among the reading public is not only a historical-cultural phenomenon capable of explaining the poor public reception of Baudelaire's first poems. Being the subject of several of the poet's writings, misunderstanding is incorporated into his poetry as an enunciative problem. After brief comments on the concept of “dramatic poet”, coined by Barbey d'Aurevilly, I comment on some prose poems in which the misunderstanding is dramatized.
Keywords: Baudelaire, reception, misunderstanding, dramatic poet.
Résumé: Cet article a pour but de montrer que l’incompréhension du public n’est pas seulement un phénomène historique-culturel capable d’expliquer la mauvaise réception des premiers poèmes de Baudelaire. Thème de plusieurs écrits du poète, elle est aussi incorporée dans sa poésie en tant que problème énonciatif. Après quelques commentaires à propos du concept de “poète dramatique”, élaboré par Barbey d’Aurevilly, j’essaie d’analyser certains poèmes en prose où l’incompréhension est dramatisée.
Mots-clés: Baudelaire, réception, incompréhension, poète dramatique.
Artigo
Baudelaire e o drama da incompreensão
Baudelaire and the drama of misunderstanding
Recepção: 18 Setembro 2021
Aprovação: 30 Novembro 2021
O conhecido poema-prólogo “Ao leitor”, que abre As Flores do Mal, nos coloca uma série de questões decisivas para a compreensão da poética de Baudelaire. Nosso primeiro impulso diante do poema de entrada do livro é, paradoxalmente, na direção do mundo exterior, lá onde essa figura algo genérica do leitor encontra corpo, num tempo e espaço bem definidos. Somos tentados a procurá-lo na Paris do Segundo Império, nos arquivos da imprensa, onde Baudelaire publicaria, ao longo da vida, muitos de seus poemas1, somos tentados a identificá-lo a seres empíricos, a um grupo, a uma classe social. Em suma, ao tentar recompor o perfil do destinatário interpelado, escolhemos como mediador de leitura o problema da recepção do livro. O retrato que Walter Benjamin (1994, p. 103) nos oferece desse leitor, no parágrafo inicial de Sobre alguns temas em Baudelaire, é um bom começo:
Baudelaire teve em mira leitores que se veem em dificuldades ante a leitura da poesia lírica. O poema introdutório de As Flores do Mal se dirige a estes leitores. Com sua força de vontade e, consequentemente, seu poder de concentração não se vai muito longe; esses leitores preferem os prazeres dos sentidos e estão afeitos ao spleen (melancolia), que anula o interesse e a receptividade.
Os leitores do tempo de Baudelaire já não têm a poesia lírica como modelo de fruição poética. Sua constituição psíquica está mais afeita a leituras ligeiras, que exigem pouco esforço, pouca atenção, como os jornais de grande circulação, por exemplo. Algo pusilânime, o leitor daquele tempo ignora hipocritamente seu próprio mal, por isso é chamado a si pela famosa apóstrofe que encerra o poema, após a referência ao Tédio, o “mais feio, mais maligno, mais imundo” dos vícios: “Tu conheces, leitor, esse monstro incruento,/ - Leitor irmão - hipócrita - meu semelhante!” (BAUDELAIRE, 2019, p. 29).
Baudelaire nos ofereceria, anos mais tarde, uma excelente pista para a definição político-social do “Hypocrite lecteur”. No poema “Epígrafe para um livro condenado”, publicado na edição de 15 de janeiro de 1861, da Revue européenne, e incluído mais tarde na edição póstuma das Flores do Mal (1868), o poeta dirige-se mais uma vez ao leitor:
Lecteur paisible et bucolique,
Sobre et naïf homme de bien,
Jette ce livre saturnien,
Orgiaque et mélancolique2
(BAUDELAIRE, 1975, p. 137)
Aqui, o leitor aparece como “pacífico”, “bucólico”, “sóbrio e ingênuo homem de bem”. À primeira vista, estamos distantes do “leitor hipócrita” do poema de abertura, personagem hediondo com o qual o poeta se identifica. É possível, contudo, ler nos dois poemas as duas faces do mesmo interlocutor, sua aparência social e sua verdade, sua máscara pública e seu caráter genuinamente perverso. “Baudelaire sabe bem”, afirma Steve Murphy (1995, p. 79), “que o leitor real (macho, burguês) de seu livro terá ao menos a pretensão de ser mais pacífico que violento, mais bucólico em seus devaneios que citadino, mais sóbrio e ingênuo que turbulento e hipócrita.”
“Epígrafe para um livro condenado” não fecha definitivamente, contudo, as portas da poesia baudelairiana para o homem de seu tempo. Já na segunda estrofe, as condições para a compreensão do livro são postas na mesa, e, nos tercetos, reconhecemos a possibilidade de uma conexão de afetos, sujeita, não por acaso, à capacidade de ver o abismo para o qual o “leitor hipócrita” vira as costas:
Si tu n’as fait ta rhétorique
Chez Satan, le rusé doyen,
Jette! tu n’y comprendrais rien
Ou tu me croirais hysthérique.
Mais si, sans se laisser charmer,
Ton œil sait plonger dans les gouffres,
Lis-moi, pour apprendre à m’aimer;
Âme curieuse qui souffres
Et va chercher ton paradis,
Plains-moi!... Sinon, je te maudit.3
(BAUDELAIRE, 1975, p. 137)
Em oposição ao leitor atacado pelo Tédio, capaz de destruir a terra e engolir o mundo com um bocejo (“Il ferait volontiers de la terre un débris/ Et dans un bâillement avalerait le monde” (BAUDELAIRE, 1975, p. 6)), temos aqui a “alma curiosa” que “sabe mergulhar nos abismos”. Se o leitor referido no poema de 1855 caminha para a danação sem se horrorizar (“Chaque jour vers l’Enfer nous descendons d’un pas,/ Sans horreur, à travers des ténèbres qui puent” (BAUDELAIRE, 1975, p.6)), o leitor ideal da “Epígrafe” sabe da própria condenação, demonstra ter “consciência no Mal”, para retomar a potente formulação que encerra o poema “O irremediável” (BAUDELAIRE, 1975, p. 80; grifo meu). Inconsciente - por conveniência ou não - da própria danação, o personagem do primeiro poema pertence ao grupo dos “abolidores de alma (materialistas)” e “abolidores de inferno”, referido por Baudelaire em um fragmento de Mon cœur mis à nu (BAUDELAIRE, 1975, p. 684).
O período em que a poesia de Baudelaire começa a circular na França coincide com o triunfo político, social e cultural da burguesia. A posição do poeta das Flores do Mal diante desse público é tão controversa quanto sua relação com o mundo moderno (COMPAGNON, 2014). Conhecemos suas ressalvas à doutrina do progresso, “esse fanal obscuro, invenção do filosofismo atual, aprovado sem garantia da Natureza e da Divindade, essa lanterna moderna [que] projeta trevas sobre todos os objetos do conhecimento” (BAUDELAIRE, 1995, p. 775). Também conhecemos a rejeição baudelairiana do “deus do Útil”, evocado, em “Gosto de pensar nas nuas eras passadas” (BAUDELAIRE, 2019, p. 45), como o patrono da decrepitude moderna: “ser um homem útil sempre me pareceu algo hediondo” (BAUDELAIRE, 1975, p. 679). Baudelaire, contudo, queria ser compreendido (BENJAMIN, 1989, p.103), seu livro de versos se abre com uma exortação à fraternidade no Mal, isto é, ao reconhecimento coletivo da depravação natural do homem, ponto de partida para a tarefa civilizatória da “diminuição dos traços do pecado original” (BAUDELAIRE, 1975, p. 679). Num fragmento de Mon cœur mis à nu , Baudelaire projeta contar a “história das Flores do Mal, humilhação pelo mal-entendido, e do meu processo” (BAUDELAIRE, 1975, p. 685), referindo-se à perseguição judicial que sofreu por conta da publicação do livro em 1857. O mal-entendido, que, aliás, começa bem antes, como veremos, confirma a dificuldade do público diante da sofisticação do projeto literário de Baudelaire e leva o poeta a construir um verdadeiro arsenal argumentativo de grande valor não apenas jurídico mas também literário para municiar sua defesa nos tribunais. Sua posição diante da incompreensão e da condenação pública é ambivalente. Aos amigos, confessa seu desejo de ser compreendido moral e literariamente, como na carta enviada em 14 de julho de 1857 a Édouard Thierry, que havia tomado o partido das Flores do Mal em artigo publicado no mesmo dia no Moniteur universel: “Muito lhe agradeço por ter insistido nessa imensa tristeza, que de fato é a única moralidade do livro. Sem você, talvez ninguém teria ousado falar de meu mérito literário, e todo mundo só teria falado do horror dos temas” (BAUDELAIRE, 1973, p. 415). Nas notas que redige para seu advogado, Baudelaire afirma que seu “único erro foi contar com a inteligência universal, e não fazer um prefácio em que eu teria exposto meus princípios literários e a questão tão importante da Moral” (BAUDELAIRE, 2019, p. 585), algo que ele tentaria fazer posteriormente em seguidos projetos de prefácio, dos quais o último de que temos notícia não esconde um certo orgulho heroico diante da incompreensão pública e suas consequências:
Se há alguma glória em não ser compreendido, ou em só o ser muito pouco, posso dizer, sem vanglória, que com este pequeno livro eu a adquiri e mereci de uma só vez. Oferecido várias vezes seguidas a diversos editores que o rejeitaram com horror, perseguido e mutilado, em 1857, como resultado de um mal-entendido muito estranho, lentamente rejuvenescido, aumentado e fortalecido durante alguns anos de silêncio, de novo desaparecido, graças a minha indiferença, esse produto discordante da Musa dos últimos dias, ainda avivado por algumas novas pinceladas violentas, ousa afrontar hoje pela terceira vez o sol da besteira. (BAUDELAIRE, 2019, p. 563).
Ocorre que o método de Baudelaire não se explica fora do paradoxo da incompreensão do público. Esta confirma em alguma medida o diagnóstico moral da hipocrisia enunciado no poema de abertura, mas, levada às últimas consequências, inviabilizaria o projeto, que espera do leitor um movimento mínimo de reação crítica, não condenatória, no sentido de reconhecer-se fraternalmente com o poeta na universalidade do Mal. O “prazer aristocrático de desagradar” marca uma diferença, que não pode, contudo, se afirmar absolutamente, sob pena de reduzir a “moralidade” do livro ao moralismo hipócrita - do acusador eximido - que o próprio livro denuncia. Há na poesia de Baudelaire um desejo de comunhão e consciência cujas inseparáveis implicações morais e literárias estão ligadas à internalização performática da figura do leitor como máscara enunciativa. Voltaremos em breve a esse ponto após encerrar a conversa sobre a recepção do poeta.
Os ataques às Flores do Mal na imprensa francesa começam menos de um mês após o lançamento comercial do livro, em 21 de junho de 1857. Na edição de 5 de julho do jornal Le Figaro, Gustave Bourdin (2007, p. 159) assina uma resenha agressiva, denunciando em especial a imoralidade de quatro poemas, “A negação de São Pedro”, “Lesbos” e as duas peças intituladas “Mulheres condenadas”:
Há momentos em que se coloca em dúvida o estado mental do senhor Baudelaire; em outros, não se coloca: é, na maior parte do tempo, a repetição monótona e premeditada das mesmas palavras, dos mesmos pensamentos. O odioso está lado a lado com o ignóbil; o repugnante se alia ao infecto. Nunca se viu morder e até mastigar tantos seios em tão poucas páginas; nunca se assistiu a uma semelhante revista de demônios, fetos, diabos, cloroses, gatos e vermes. Esse livro é um hospital aberto a todas as demências do espírito, a todas as podridões do coração: se ao menos fosse para curá-las, mas elas são incuráveis (tradução minha).4
Nenhuma palavra sobre o projeto literário do livro. Bourdin, como todos os críticos da primeira hora, ataca os poemas em sua superfície moral, seleciona palavras, imagens, metáforas, sem se preocupar com o contexto enunciativo no qual tudo se insere. Nas notas que redige para o advogado, Baudelaire insiste na necessidade de se julgar o livro em seu conjunto a fim de que se compreenda sua “terrível moral”.5
Bourdin não seria o único detrator de Baudelaire. Marcadamente “antibaudelairiano” (GUYAUX, 2007, p. 28), mesmo antes da publicação das Flores do Mal, o jornal Le Figaro publicaria ainda, na edição dominical de 12 de julho de 1857, outra resenha, agora assinada por J. Habans, que se abre com estas palavras:
Com o senhor Baudelaire é de pesadelo que se deve falar. Les Fleurs du Mal, que ele acaba de publicar, são destinadas, segundo ele, a acabar com o tédio, “que sonha com cadafalsos fumando seu houka”. Mas o autor não atentou que estava substituindo o bocejo pela náusea.6 (HABANS, 2007, p. 163).
O primeiro relatório do Ministério do Interior francês, redigido em 7 de julho de 1857, chama a atenção para treze poemas, considerados, quatro deles, atentados à moral religiosa e, nove deles, atentados à moral pública.7 No fim das contas, a sentença, proferida em 20 de agosto de 1857, e publicada no dia seguinte, confirmaria apenas a acusação de atentado à moral pública, estipulando, além de uma multa ao poeta e seus editores, a retirada de seis poemas do livro, “Lesbos”, “Mulheres condenadas (Delfina e Hipólita)”, “O Lete”, “À que é por demais alegre”, “As jóias” e “As metamorfoses de um vampiro”. A publicação desses poemas continuaria proibida na França até 31 de maio de 1949.
Mas a dimensão da incompreensão pública só é verdadeiramente apreciável quando consideramos as várias manifestações, privadas e públicas, em defesa de Baudelaire, todas elas da parte de escritores e amigos. Em carta enviada ao poeta em 30 de agosto, restringindo-me a apenas um exemplo do plano privado, Victor Hugo, após vários elogios ao livro, parabeniza o poeta pela condenação: “uma das raras condecorações que o atual regime pode conceder, o senhor acaba de receber. Aquilo que ele chama sua justiça condenou-lhe em nome daquilo que ele chama sua moral. É uma glória (couronne) a mais”8 (HUGO, 2007, p. 250). Hugo, que, aliás, escreve do exílio, a que fora forçado pelo mesmo regime, reafirma aqui um orgulho da dissidência perceptível também em Baudelaire, como vimos acima, para o qual, entretanto, o problema assume contornos menos ideológicos e mais refinados, a meu ver.
Além das notas redigidas para seu advogado, Baudelaire organiza um pequeno dossiê que reunirá, sob o título de Articles justificatifs pour Charles Baudelaire auteur des Fleurs du Mal, quatro artigos destinados à publicação na imprensa, uma carta, os textos da acusação e da defesa, tudo precedido de uma pequena introdução. Os quatro artigos se empenham em desfazer o mal-entendido público no que diz respeito à adesão do projeto baudelairiano ao mal. Thierry (2007, p. 168), além de ressaltar a incontornável tristeza que atravessa os poemas, afirma que “o poeta não se compraz diante do espetáculo do mal. Ele encara o vício de frente, mas como um inimigo que conhece bem e que ele afronta”. Dulamon (2007, p. 180) vai na mesma direção ao ressaltar a injustiça dos reproches públicos contra As Flores do Mal. A postura de Baudelaire estaria de acordo com a descrição do malfeita pela teologia cristã, com o objetivo de inspirar o horror e o desejo de retorno ao caminho reto do bem. Charles Asselineau (2007, p. 200), por sua vez, escreve um artigo mais longo, no qual lê de mais perto alguns poemas, chamando sempre a atenção do leitor para a originalidade de Baudelaire. Seu alvo é muito mais a crítica especializada que o público, que, segundo ele, “quer apenas desfrutar” da obra. São os críticos os responsáveis por guiar o público em geral na compreensão da obra e da poética do autor. Barbey d’Aurevilly oferecerá, a meu ver, a principal contribuição à defesa pública do poeta. Seu artigo, recusado pelo periódico Le Pays em razão da má reputação de Baudelaire, assume, desde o primeiro parágrafo, o “dever [de] impedir qualquer confusão e engano” (D’AUREVILLY, 2019, p. 607) em relação às Flores do Mal. A exemplo dos outros articulistas, d’Aurevilly defende que o efeito que o livro deve produzir é “inteiramente contrário àquele que aparentam temer” (D’AUREVILLY, 2019, p. 608). Mas a contribuição mais interessante do artigo está, a meu ver, na identificação de um princípio dramático no livro de Baudelaire, elemento que o distanciaria dos poetas líricos, parâmetro vigente para a recepção da poesia naquele tempo, e emprestaria à sua obra um aspecto intelectual e construtivo.
Empenho-me apenas em constatar que, contrariamente à maioria dos poetas líricos atuais, tão preocupados com seu egoísmo e suas pobres e pequenas impressões, a poesia do sr. Baudelaire é menos o derramamento de um sentimento individual que uma segura concepção de seu espírito. Embora muito lírico na expressão e no elã, o poeta das Flores do Mal é, no fundo, um poeta dramático. Como tal, ele tem todo o futuro. Seu livro atual é um drama anônimo de que ele é o ator universal, eis por que ele não tergiversa nem com o horror, nem com o asco, nem com nada do que a natureza humana corrompida pode produzir de mais horrível. (D’AUREVILLY, 2019, p. 610).
D’Aurevilly inaugura uma leitura da poesia de Baudelaire que teria importantes e duradouras consequências na recepção do poeta e mesmo para uma análise mais ampla da tradição da poesia moderna. Também Hugo Friedrich, em seu célebre livro Estrutura da lírica moderna, defenderá uma ruptura entre a poesia de Baudelaire e a visão romântica da poesia, de matriz confessional, biografista. Segundo ele, “Les Fleurs du mal (1857) não são uma lírica de confissão, um diário de situações particulares, por mais que haja penetrado nelas o sofrimento de um homem solitário, infeliz e doente” (FRIEDRICH, 1978, p. 36).
A defesa de Baudelaire por d’Aurevilly escancara, em resumo, a dimensão literária da incompreensão e da dissidência que se estabelecem entre a primeira poesia de Baudelaire, o leitor médio do Segundo Império e mesmo a crítica especializada. Parece-me claro que isso ocorre em função da virada antilírica que se anuncia nas Flores do Mal, cujos poemas não se constroem como manifestações ideológicas e emocionais de um sujeito empírico, mas como construções da inteligência, simulações que provocam o leitor em seu lugar confortável e hipócrita. D’Aurevilly, contudo, a exemplo dos outros defensores de Baudelaire, continua a vislumbrar sob o poeta dramático uma espécie de intencionalidade moral, uma “segura convicção do espírito”. Tentarei defender a seguir que a ruptura de Baudelaire com a lógica romântica da identificação biográfica é ainda mais radical.
Muito mais que um problema relacionado às polêmicas, aos escândalos e mal-entendidos causados pela inserção pública de Baudelaire, a incompreensão logo se tornará um elemento fundamental na economia interna de sua obra e um tópico essencial em sua concepção geral da poesia. Mais que objeto da incompreensão do público, a poesia de Baudelaire incorpora enunciativamente o mal-entendido, assumindo programaticamente o lugar do leitor em apuros, incapaz de decodificar a nova poesia, que dele exige, sobretudo, uma autocrítica da qual é geralmente incapaz. A entrada nesse personagem, nos termos dessa verdadeira arte poética que é o poema “As multidões” (BAUDELAIRE, 2018, p. 32), se dá como uma dramatização, sempre irônica, entre outras coisas, da ingenuidade e ignorância do leitor em relação a si mesmo, ao mundo e ao mal. Não são raros os poemas protagonizados por indivíduos incapazes de compreender uma situação, um outro personagem, ou desmentidos em sua ilusão romântica pela visão de uma realidade cruel: “A corda”, “O bolo”, “Os olhos dos pobres”, “A moeda falsa”, para ficar apenas nos poemas em prosa, são alguns exemplos. “Leitor”, aqui, não custa dizer antes de avançar, é uma entidade histórico-social e, ao mesmo tempo, uma espécie de máscara enunciativa construída a partir das experiências da incompreensão e do desmentido. Encontra-se aí, a meu ver, a novidade e a penetração da crítica baudelairiana, sua incorporação irônica do antagonista, sua identificação parcial com uma visão de mundo alheia a fim de detoná-la por dentro.
O poema em prosa “A corda” começa com a seguinte constatação:
“Les illusions, - me disait mon ami, - sont aussi innombrable peut-être que les rapports des hommes entre eux, ou des hommes avec les choses. Et quand l’illusion disparaît, c’est-à-dire quand nous voyons l’être ou le fait tel qu’il existe en dehors de nous, nous éprouvons un bizarre sentiment, compliqué moitié regret pour le fantôme disparu, moitié de surprise agréable devant la nouveauté, devant le fait réel”9 (BAUDELAIRE, 1975, p. 328).
São palavras do pintor, a quem o poeta concede a voz, que se verá enredado em uma história trágica. O poema baseia-se em fatos reais: o suicídio do jovem modelo de nome Alexandre no ateliê do pintor Édouard Manet, na primavera de 1859 ou no verão de 1860, não se sabe ao certo10. No trecho acima, que antecipa a chave interpretativa do poema, vemos o pintor associar a ilusão ao enclausuramento do indivíduo, em contraste com a realidade objetiva, exterior. O personagem-narrador, como se verá, era uma espécie de último romântico, afeito a ilusões e a uma visão de mundo idealista. O contraste entre a ilusão do sujeito fechado em si mesmo e o princípio da realidade é um tópico da poesia de Baudelaire. Se, nas Flores do Mal, essa cisão entre o eu e a realidade se insinua nos termos da absurdidade da vida, da metrópole, da falência da inteligência, como procurei mostrar em outro lugar,11 nos poemas em prosa, nos quais o corpo a corpo com a modernidade é mais intenso, ela se desenha como desmentido, como vitória irônica do real sobre o personagem inocente. A desilusão, conforme lemos no trecho acima, abre-se para uma experiência ambivalente, que oscila entre a nostalgia do “fantasma” - cerne da melancolia baudelairiana - e a “surpresa agradável” do poeta que sai de si. Penso que essa passagem da inocência ao conhecimento da realidade, que não ocorre sem reminiscências bíblicas, recupera um elemento central da poética baudelairiana, de que tratei no início deste ensaio. Lembremos como o poeta se refere ao leitor em “Epígrafe para um livro condenado”: “Lecteur paisible et bucolique,/ Sobre et naïf homme de bien”12 (BAUDELAIRE, 1975, p. 137). “Pacífico e Bucólico”13 são as características, já vimos, do “leitor hipócrita”, intelectual ou perversamente incapaz de se reconhecer em seu próprio mal. Esse leitor, o leitor do Segundo Império, que condenou Baudelaire por atentado à moral pública, é, sobretudo, um homem iludido consigo mesmo, refratário a qualquer movimento de autocrítica e autocondenação14.
É preciso, contudo, evitar uma associação fácil entre o narrador, o homem bucólico e a figura histórica de Édouard Manet, pois entre o enunciador e o receptor - nós, leitores - paira, desde o princípio, a sombra mediadora do poeta. Se os narradores do Spleen de Paris jamais são confiáveis, como diz Steve Murphy (2014, p. 17), isso ocorre, a meu ver, em função desse procedimento enunciativo socrático (KALAN, 2015, p. 207) através do qual o poeta se exime de assumir uma voz explicitamente crítica, preferindo que o enunciador do poema tropece, fracasse por si mesmo. E seu fracasso, não raro, é o fracasso de sua “tarefa de intérprete, enquanto duplo do leitor”, conforme a leitura feita por Edward Kaplan (2015, p. 58) do poema “A cada um sua quimera”. Steve Murphy (2014, p. 11), por sua vez, defende a necessidade de anulação do “pacto autobiográfico” para se ler os poemas em prosa, cujo processo de enunciação se constrói muito mais como performance que como parti pris. Voltarei a esse ponto a seguir. A exemplo de Kaplan, Murphy (2014, p. 15-16) também identificará nas vozes baudelairianas um “desejo hermenêutico”, sempre fadado, segundo ele, ao fracasso. A “incompetência hermenêutica”, principalmente nos poemas em prosa, me parece ser, no final das contas, a incompetência intelectual e moral do leitor, agora incorporada à própria economia poética dos textos.
A desilusão do pintor, em “A corda”, está ligada ao conceito de “amor materno”, sentimento que ele universaliza e identifica, a princípio, em todas as palavras e gestos de uma mãe. Ocorre, entretanto, que a história do pequeno modelo desmente esse preconceito romântico. Em contraste com a gravidade assumida pelo narrador no momento em que precisa realizar a “tarefa suprema” (BAUDELAIRE, 1975, p. 330) de dar a notícia aos pais da criança, a reação da mãe, “para minha grande surpresa”, é marcada pela mais absoluta “impassibilidade”15. O desencontro entre os sentimentos pios do narrador e a frieza da mãe se intensifica ao extremo, quando a mãe, depois de insistir para ver o local onde o filho se enforcara, contra a vontade do pintor, sempre solícito e compassivo, solicita encarecidamente ao anfitrião que lhe deixasse ficar com a corda, pedido que ele interpreta, sem suspeitar das verdadeiras intenções da mulher, como fruto de “perturbação” e “ternura” (BAUDELAIRE, 1975, p. 331). A verdade, contudo, vem à tona no parágrafo final, quando o pintor relata ter recebido diversas cartas, de vizinhos e desconhecidos, pedindo-lhe igualmente pedaços da mesma corda. É quando ele, finalmente, percebe que o interesse por trás do pedido da mãe era de ordem econômica e não afetiva:
Et alors, soudainement, une lueur se fit dans mon cerveau, et j’ai compris pourquoi la mère tenait tant à m’arracher la ficelle et par quel commerce elle entendait se consoler16 (BAUDELAIRE, 1975, p. 331).
As cordas utilizadas por suicidas ou pedaços delas eram vendidas como relíquias e rendiam algum bom dinheiro, conforme um costume da época. Numa versão preliminar desse poema, publicada na revista L’Artiste, em 1o de novembro de 1864, o parágrafo final apresentava um tom mais explícito e mordaz, com o retorno da voz do poeta, que acrescenta após o fim da narrativa do amigo:
“Parbleu! - répondis-je à mon ami, - un mètre de corde de pendu, à cent fracs la décimètre, l’un dans l’autre, chacun payant selon ses moyens, cela fait milles francs, un réel, un efficace soulagement pour cette pauvre mère” (BAUDELAIRE, 1975, p. 1339).
Vejamos que, ao contrário do amigo, o poeta assume, aqui, uma postura irônica, um tom sarcástico, que não poderia ser a do “leitor bucólico”. Essa intervenção direta, ao final dessa versão preliminar, mostra mais claramente o funcionamento dramático do poema, narrado por uma espécie de máscara com a qual o poeta se identifica parcialmente, sem jamais com ela se confundir. Em “A corda”, como em outros poemas em prosa, realiza-se, portanto, aquilo que proponho chamar o “drama da incompreensão”, não mais no sentido da incompreensão sofrida por Baudelaire no âmbito de sua recepção pela sociedade francesa do Segundo império, mas no sentido da incorporação enunciativa do mal-entendido gerenciada por um poeta “comediante” (MURPHY, 2014, p. 11) e impostor.
“Pode-se fundar impérios gloriosos sobre o crime, e nobres religiões sobre a impostura”17, diz Baudelaire (2016, p. 85; tradução minha), num fragmento de Mon cœur mis à nu. A abertura do poema baudelairiano para uma multiplicidade de vozes heterogêneas diversas do lugar biográfico do autor realiza-se, como exemplifiquei no poema “A corda”, como um jogo dramático irônico, no qual a voz muitas vezes encena a própria derrocada, performatiza o fracasso, o desmentido, revela suas fraturas, não em contraste com o poeta - outra camada enunciativa ficcional que emerge mais ou menos explicitamente a fim de evidenciar, pela simples diferença, o fracasso do narrador-personagem.
Um caso que me parece especial é o do poema em prosa “O mau vidraceiro”, geralmente lido como um elogio a uma visão artística da vida em contraste com a trivialidade do vendedor de vidros. A exemplo do que ocorre em “A corda”, o poema começa com uma reflexão de alcance geral. O poeta refere-se ao impulso que, às vezes, toma conta de personalidades contemplativas e indolentes, impelindo-as abruptamente a ações inesperadas e atípicas. Antes de contar sua própria anedota, o poeta recupera brevemente as histórias de três amigos, todos com o mesmo perfil avesso à ação. Entre uma e outra dessas histórias, o poeta volta a especular:
C’est une espèce d’énergie qui jaillit de l’ennui et de la rêverie; et ceux en qui elle se manifeste si inopinément sont, en générale, comme je l’ai dit, les plus indolents et les plus rêveurs des êtres18 (BAUDELAIRE, 1975, p. 285).
Chama bastante a atenção a semelhança desse perfil com aquele do pintor de “A corda” e, em especial, com aquele do “leitor hipócrita”, também atacado pelo tédio e pelo devaneio solipsista. A história protagonizada pelo poeta é por demais extravagante para ser lida como elogio da singularidade do artista; ela me parece, muito ao contrário, uma paródia do desejo de distinção que acometia a mesma estirpe de poetas ridicularizados em “A perda da auréola”, por exemplo. Em resumo, o excêntrico narrador se vê inexplicavelmente tomado de ódio por um vendedor de vidros, cujos gritos desafinados lhe subiam até a janela “através da pesada e suja atmosfera parisiense” (BAUDELAIRE, 2018, p. 26). Ao chamado gratuito do poeta, o vidraceiro sobe, com dificuldades, as escadas que o levam ao apartamento. Uma vez lá, depara-se com a inesperada e absurda reação do morador:
“Comment? Vous n’avez pas des verres de couleurs? Des verres roses, rouges, bleus, des verres magiques, des vitres de paradis? Impudent que vous êtes! Vous osez vous promener dans des quartier pauvres, et vous n’avez pas même de vitres qui fassent voir la vie en bleu!”19 (BAUDELAIRE, 1975, p. 287).
À extravagante reação do protagonista e à partida do vidraceiro, segue-se um gesto ainda mais cruel, a destruição da mercadoria por um pote de flores atirado do alto do prédio pelo poeta. No auge de sua loucura, ele, por fim, grita raivosamente à janela: “A vida mais bela! A vida mais bela!” (BAUDELAIRE, 2018, p. 27). Ao contrário do que se observa em “A corda”, o desfecho de “O mau vidraceiro” não desconstrói explicitamente a ação do personagem, classificada apenas como “brincadeira[s] nervosa[s]” (BAUDELAIRE, 2018, p. 27). Estamos claramente diante de um poema mais desafiador. Para Edward Kaplan (2015, p. 72), o narrador desse poema “acompanha sua mistificação descarada de um jogo irônico com a linguagem”. Para o crítico norte-americano, a tonalidade hiperbólica e o emprego subvertido de clichês20 evidenciam a força irônica da narrativa, que teatraliza, por exemplo, o duplo sentido da expressão “action d’éclat”, associada, a princípio, ao brilho, ao impacto de uma ação, mas também, se lida ao pé da letra, à explosão, ao estilhaçamento de um objeto, tal como ocorre ao vidro destruído pela ação do poeta. É possível afirmar, ainda em consonância com Kaplan (2015, p. 71), que o poema teatraliza o fracasso do artista que, “incapaz de embelezar ou transformar sua própria vida, pretenderá criar a beleza pela violência”. Trata-se, portanto, de um tipo de dramatização mais sofisticada do a que se vê em “A corda”. O poeta impostor, aqui, “entra no personagem” do artista excêntrico e decadente, duplamente enclausurado, no apartamento e em seu narcisismo estético, para ironizá-lo em sua própria performance, nos próprios termos da mistificação romântica do artista como ser incompreendido e de exceção.21
A dramatização da incompreensão espelha a dificuldade do público incorporando-a e convertendo-a em problema literário, como requeria Baudelaire no tempo dos ataques às Flores do Mal. Esse procedimento se explica, a meu ver, por uma concepção de poesia centrada na contradição e na abertura para a multiplicidade de pontos de vistas irredutíveis a qualquer síntese moral ou política.
Isso nos convida a repensar os termos nos quais d’Aurevilly expressa o problema da dramatização do pecado e da intenção moral escondida sob a poesia aparentemente despersonalizada de As Flores do Mal. Penso que Baudelaire, de fato, é um crítico do lirismo romântico; também reconheço, na esteira de críticos importantes como Edward Kaplan (2015), que a moral é uma questão que atravessa a obra do poeta do início ao fim. É necessário, contudo, a meu ver, desvincular os dois problemas. O problema moral em Baudelaire se confunde com sua adesão ao dogma do pecado original. “Toda literatura deriva do pecado”,22 escreve o poeta em uma carta a Poulet-Malassis (BAUDELAIRE, 1973, t. II, p. 137). Em sua crítica feroz à doutrina do progresso, à modernidade técnica, o que está em jogo é um problema moral: “Teoria da verdadeira civilização. Ela não está no gás, nem no vapor, nem nas mesas giratórias, está na diminuição dos traços do pecado original.”23 (BAUDELAIRE, 2016, p. 107). As referências teológicas em Baudelaire não devem ser entendidas sob a perspectiva da profissão da fé cristã, mas como um conjunto de símbolos estruturantes de um imaginário poético. Trata-se de pensar a obra de Baudelaire como um movimento perpétuo de ideias contraditórias e polêmicas. “Não tenho convicções, como entendem por isso as pessoas do meu século. Não há em mim base para uma convicção”24, escreve outra vez em um fragmento de Mon cœur mis à nu (BAUDELAIRE, 2016, p. 85; tradução minha). A ausência de convicções desloca a questão moral para um lugar diferente da adesão a uma moral. A “moral” baudelairiana está muito mais interessada em expor a dimensão relativa e, não raro, hipócrita de toda moral fundada na convicção cega ou não, de todo parti pris que não seja o da poesia; se há uma moral baudelairiana ela é inseparável da consciência do pecado e da suspensão das certezas, da adesão ao poder crítico da poesia.
As ideias de Baudelaire não podem, portanto, advir de uma posição política discernível. Pierre Pachet (2009, p. 226), crítico que se dedicou a pensar a relação do poeta com o universo político, afirma que:
O artista, o dandy, o homem profundamente só e que clama espontaneamente seu desprezo por seu tempo e pela evolução que o carrega, encontra, todavia, a matéria e o estilo de seus pensamentos como que fora de si mesmo, em uma substância imaterial e obscura: aquela das ideias que vêm a qualquer um. O invólucro de seu eu parece então ser permeável, poroso; ele pede para ser constantemente refeito e reafirmado.25
Esse movimento de abertura e absorção das ideias exteriores está, a meu ver, plenamente de acordo com o princípio poético anunciado por Baudelaire no poema “As multidões”: “O poeta goza desse incomparável privilégio de poder, a seu bel prazer ser ele mesmo e outrem. Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando bem quer, em qualquer personagem”26 (BAUDELAIRE, 2018, p. 32). Pachet e Baudelaire não estão distantes da maneira como Jacques Rancière entende a poesia em geral. Para o filósofo Jacques Rancière (2017, p. 88), a poesia se define pelo “desinteresse” que, “incessantemente, toma e dá ao tecido comum”. Estamos, portanto, no plano de uma constante reconfiguração do material comunitário realizada pela poeta, uma constante apropriação do “personagem” alheio, de todos os lugares vagos. “O poema”, escreve ainda Rancière, “só pode ser poema se for “de ninguém””, se não se deixar reduzir à representação da identidade pessoal do poeta.
A afirmação de uma saída e a abertura radical para ideias alheias nos remetem novamente à tese de Barbey d’Aurevilly, mas trazem, a meu ver, um elemento novo, mais facilmente identificável nos Pequenos poemas em prosa que nas Flores do Mal, a dimensão irônica dessa adesão, motivo pelo qual prefiro pensar que o “autor” do drama da incompreensão é, como sugeri acima, um poeta impostor. O poeta impostor é aquele que assume todas as ideologias para desconstruí-las todas, seja no contraste de vozes, como em “A corda”, seja na performatização hiperbólica e derrisível de uma única voz, de um gesto, de uma posição, como em “O mau vidraceiro”. Trata-se do poeta “farceur” sobre o qual fala Baudelaire (1976, p. 292) nas Notes nouvelles sur Edgar Poe, poeta que assume posições enunciativas diversas a fim de ironizá-las socraticamente por dentro (KAPLAN, 2015, p. 207). Nos poemas em prosa, por exemplo, Baudelaire “entra” enunciativamente no “personagem” do romântico ingênuo e idealista, do intérprete (e consequentemente do leitor) fracassado, dos estetas extravagantes, dos ideólogos fanáticos, do próprio público burguês (como já o fizera ironicamente no poema de abertura das Flores). Uma das estratégias enunciativas mais interessantes em Baudelaire é justamente “falar a bela língua de [seu] século”27 (BAUDELAIRE, 2018, p. 57).
“A moeda falsa” me parece ser um poema privilegiado para se pensar a dramatização da incompreensão, a obsessão e o fracasso hermenêutico (MURPHY, 2014, p. 15) que caracterizam a poética de Baudelaire. De enredo bastante simples, o poema nos mostra o poeta - a voz do poema - intrigado diante da esmola generosa que seu amigo oferece a um mendigo. Nas primeiras linhas, assistimos à minuciosa triagem das moedas realizadas pelo amigo, que introduz nos bolsos do colete e da calça moedas de diferentes valores, seguindo uma espécie de hierarquia. No alto, moedas de ouro e de prata; embaixo, um punhado de tostões e uma moeda de prata de dois francos, que logo sabemos se tratar da moeda falsa.
A primeira interpretação do poeta para a esmola elevada dada pelo amigo é a seguinte: “Vous avez raison; après le plaisir d’être étonné, il n’en est pas de plus grand que celui de causer une surprise28” (BAUDELAIRE, 1975, p. 323). Após a seca e imediata afirmação do amigo de que se tratava da moeda falsa, o poema se converte numa espécie de solilóquio, no qual o poeta entremeia novas e insuficientes interpretações e reflexões acerca de seu próprio fracasso hermenêutico. Começa por reconhecer os limites de sua natureza contemplativa e paranoica. Tal como o amigo triando as moedas, o poeta multiplica leituras, e “assim [sua] fantasia seguia seu rumo, dando asas ao espírito do (...) amigo e fazendo todas as deduções possíveis de todas as hipóteses possíveis” (BAUDELAIRE, 2018, p. 67).
O desfecho do poema é particularmente interessante para retornarmos ao problema da crítica moral baudelairiana. Interrompido finalmente em seu devaneio, o poeta converte o próprio semblante do amigo, que acabara de concordar com ele de que, “sim, você tem razão; não há prazer mais refinado do que surpreender um homem dando-lhe mais que do que ele espera” (BAUDELAIRE, 2018, p. 68). O poeta identifica no amigo, então, uma “incontestável candura”, absoluta falta de consciência a respeito de seu ato. Sua conclusão aproxima o personagem do “leitor hipócrita” das Flores do Mal:
Je vis alors clairement qu’il avait voulu faire à la fois la charité et une bonne affaire; gagner quarente sols et le cœur de Dieu; emporter le paradis économiquement; enfin attraper gratis un brevet d’homme charitable. Je lui aurais presque pardonné le désir de la criminelle jouissance dont je le supposais tout à l’heure capable; j’aurais trouvé curieux, singulier, qu’il s’amusât à compromettre les pauvres; mais je ne lui pardonnerai jamais l’ineptie de son calcul. On n’est jamais excusable d’être méchant, mais il y a quelque mérite à savoir qu’on l’est; et le plus irréparable des vices est de faire le mal par betise.29 (BAUDELAIRE, 1975, p. 324).
Voltamos ao retrato do burguês interessado em manter hipocritamente sua imagem de homem de bem, inconsciente de seu próprio mal, como se viu no início deste artigo. Baudelaire retorna ao tópico da consciência no mal, enunciado no poema “O irremediável”. A voz poética em “A falsa moeda” assume uma posição diferente das que identifiquei em “A corda” e “O mau vidraceiro”. Aqui, o poeta dramatiza a incompreensão, a multiplicação e a deriva do sentido, incorporando uma crítica à alienação do leitor, bem mais afeito à certeza que à dúvida; crítica a tal ponto generalizada, que pode ser desdobrada contra o próprio poeta, como sugere Steve Murphy (2003, p. 445) em sua potente leitura do poema. Estamos no terreno bem baudelairiano da reversibilidade, da irrestrita possibilidade de troca de papéis. O poeta que multiplica o sentido como uma espécie de moeda falsa, reversível, porém sem lastro, é o poeta que investe na contradição e no drama - talvez fosse melhor dizer, na impostura - como princípios poéticos. A multiplicação das hipóteses de leitura, é importante acrescentar, suspende inclusive a possibilidade de identificação de um ou outro personagem do poema à figura de Baudelaire (MURPHY, 2003, p. 445), além de colocar em dúvida a validade da própria condenação realizada pelo poeta no parágrafo final. Nada nos permite afirmar, no final das contas, onde está a consciência, onde está a alienação. O sentido está suspenso. A incompreensão tem a palavra final.
E-mail:eduardohnveras@gmail.com