Artigo
por uma poética do instante. Roland Barthes em Haruo Ohara
For a poetics of the instant. Roland Barthes in Haruo Ohara
por uma poética do instante. Roland Barthes em Haruo Ohara
Alea: Estudos Neolatinos, vol. 24, núm. 1, pp. 154-168, 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ
Recepção: 16 Fevereiro 2021
Aprovação: 16 Novembro 2021
Resumo: Este ensaio busca explorar a poética da obra fotográfica do nipo-brasileiro Haruo Ohara. Particularmente, pretende-se estabelecer uma aproximação inesperada de suas fotografias com a concepção estética de Roland Barthes, elaborada pelo semiólogo notadamente a partir da publicação de O império dos signos, em 1970.
Palavras-chave: Estética, Roland Barthes, Haruo Ohara, fotografia.
Abstract: This essay aims to explore poetic of the photographic work of the Japanese-Brazilian, Haruo Ohara. Particularly, it’s intendedto demonstrate an unexpected approximation of your photographs with Roland Barthes’s aesthetics elaborated by him from the publication of The Empire of signs, in 1970.
Keywords: Aesthetics, Roland Barthes, Haruo Ohara, photography.
Résumé: Cet essai vise à se pencher sur la poétique de l’œuvre du photographe nippon-brésilien Haruo Ohara. En effet, nous y sommes intéressés d’établir une approche inattendue entreles images photographiques de ce photographe etla conception esthétique de Roland Barthes développée à partir de la parution, en 1970, de L’Empire des signes.
Mots-clés : Esthétique, Roland Barthes, Haruo Ohara, photographie.
Longe de ser uma relação de apropriação, de imposição de uma hermenêutica, para a leitura da fotografia de Haruo Ohara, como pode parecer entrever esse entrelaçamento entre de Roland Barthes e Haruo Ohara, o que se pretende, neste artigo, é fazer ver ou perceber o ecoar de um pensamento crítico que reverbera e coloca em movimento outros textos. Nas próprias palavras de Barthes, numa conversa que manteve com Renaud Matignon, publicada em France Observateur em 16 de abril de 1964, quando da publicação de seus Ensaios críticos. Nessa entrevista intitulada “Não acredito nas influências”, Barthes então testemunha “não sei bem o que é uma ‘influência’; para mim, o que se transmite, não são ‘ideias’, porém, ‘linguagens’, ou seja, formas que se podem preencher diferentemente; é por isso que noção de circulação me parece mais justa do que a de influência. Os livros são antes ‘moedas’ do que ‘forças’”1 (BARTHES, OC, II, 2002, p. 616).
Este ensaio visa entrever as reflexões barthesianas sobre as imagens como “moedas” e não “força”. Consistir-se-á, aqui, num exame atento do gesto fotográfico de Haruo Ohara, o que não é senão também, de certa forma, analisar a circulação das ideias de Roland Barthes sobre a fotografia e as imagens em gerais.
Partimos, neste artigo, da hipótese de que o pensamento barthesiano a respeito da fotografia e das artes em geral, dialoga com o gesto fotográfico de Haruo Ohara. Diante de algumas das fotografias de Ohara, é como se o fotógrafo-agricultor dialogasse com Roland Barthes.
Aliás, suas fotografias dão prova de que desejam os olhos de Barthes. Essa prova existe, é o vazio ou, em termo oriental, o Mu. É possível defini-lo, numa tradução rápida, como um apagamento do ego, em que se cria sem obedecer a uma intenção. As imagens fotográficas de Haruo Ohara desejam Barthes, na medida em que elas desejam um olhar que sabe ver o vazio onde, geralmente, os olhos ocidentais não conseguem ver nada.
Sobre Haruo Ohara
Antes de avançarmos na leitura de suas fotografias e de estabelecer algumas relações, é necessário apresentar, ainda que rapidamente, alguns traços biográficos de Haruo Ohara. Nascido em 1909, em Kochi, no Japão, ele é filho de uma família de imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil em 1927 para trabalhar em plantações, sobretudo de café, e estabeleceu-se numa comunidade japonesa em Londrina, no sul do país.
Alguns anos depois de sua chegada, em 1933, Haruo Ohara começa sua aventura em torno da fotografia de uma maneira quase que autodidata. É um fotógrafo da cidade que presenteia com uma câmera, sua primeira câmera. Um aparelho simples que Ohara dirá, tempos mais tarde, em seu diário, que se tratava de um brinquedo, porque em 10 fotografias apenas três não eram perdidas (LOSNAK; IVANO, 2003, p. 66). Este mesmo fotógrafo é quem orienta seus primeiros passos, ensina-o, também, o processo de revelação, o que Ohara fazia cuidadosamente, e que eu ousaria dizer que se tratava quase de um trabalho de alquimia.
A fotografia pouco a pouco conquista seu lugar na vida cotidiana de Haruo Ohara. Tanto que, em 1951, tornou-se membro fundador do Foto Clube de Londrina e, logo depois, filiou-se ao Foto Cine Clube Bandeirante em São Paulo. Nesse mesmo período, ele também revela ao mundo algumas de suas fotografias, durante suas primeiras participações em exposições de fotografia no Brasil e no exterior. No decorrer do ano de 1956, suas fotografias foram premiadas; entre suas inúmeras premiações, encontra-se a Exposição Internacional de Fotografia de Paris.
Ohara falece em 1999, no Brasil, aos 90 anos de idade. Atualmente, suas fotos são reconhecidas em todo o mundo e todos seus negativos e arquivos pessoais estão armazenados no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.
Para que possamos compreender a circulação das ideias de Barthes nas fotos de Haruo Ohara, seria preciso, talvez, voltar às notas do livro O império dos signos, publicado em 1970 para a coleção “Les sentiers de la création”, da editora Skira.
Redigido a partir de anotações de Barthes durante três viagens feitas, sucessivamente, ao Japão, entre 18 de dezembro de 1967 e 10 de janeiro de 1968, o volume encerra, não uma etnografia do país chamado Japão, mas “certo número de traços”, com os quais o autor contenta-se, dizendo-nos que “os chamarei: Japão” (SAMOYAULT, 2015, p. 472). Afinal, qual a lição imagética de O império de Signos?2 Sua escolha não se deve ao fato de ser um dos livros de Barthes mais pleno de material iconográfico - até porque, retrucaria o próprio autor, “em nenhum sentido fotografou o Japão” (BARTHES, OC, III, 2002, p. 349) - mas há algo que talvez já esteja no texto de abertura do livro. A respeito disso, Barthes nota: “O texto não ‘comenta’ as imagens, as imagens não ‘ilustram’ o texto”: cada uma foi, para mim, somente a origem de uma espécie de vacilação visual, análoga, talvez, àquela perda de sentido que o Zen chama de Sartori” (BARTHES, OC, III, 2002, p. 352). Essa noção de Zen é aí entendida por Barthes como uma espécie de “vazio de fala”, que, aos olhos do semiólogo, é dele que “partem os traços com que o Zen, na isenção de todo sentido, escreve os jardins, os gestos, as casa, os buquês, os rostos [...]” (BARTHES, OC, III, 2002, p. 352).
De resto, mostra-se nesse gabinete dos signos a possibilidade retórica da imagem que não se deixa subsumir pela linguagem, sendo somente, para evocar o texto do próprio Barthes, “um convite silencioso a filosofar” (BARTHES, OC, V, 2002, p. 329). Nas palavras de Tiphanie Samoyault, “O Japão é um signo, mas um signo vazio, irrecuperável, que fissura nossas crenças e nossos símbolos” (SAMOYAULT, 2015, p. 459). É, aliás, esse mesmo ponto de inflexão que podemos entrever na biografia intelectual de Marie Gil, quando a autora afirma, “O Japão seria esse lugar em que Barthes reencontra o ideal de um signo terminal, signo sobre o qual se esbarra, que detém o folheado infinito do sentido, que vale por ele mesmo” (GIL, 2009, p. 273).
Ora esse “vazio de fala” apontado por Barthes não é senão a “suspensão do sentido” reivindicada por ele para todas as artes - verbais ou não - que já estava de algum modo sinalizada na nota dos anos de 1950, quando observa nas imagens da fotógrafa e cineasta Agnès Varda que elas revelam ao espectar um mundo “sem significação” (BARTHES, OC, I, 2002, p. 273). Não que não haja nenhuma significação, entretanto, como num poema japonês, o haikai, ela não é mais do que um aceno breve, que faz cintilar o sentido.
É evidente que a imagens de Haruo Ohara podem simplesmente ser pensadas da perspectiva da história e da teoria fotográfica contemporânea, mas examiná-las apenas dessa chave teórica, é, antes de tudo, ignorar toda a força expressiva dos padrões orientais que constituem a essência do olhar de Ohara.
Esta aventura do olhar, conduz-nos, inevitavelmente, a reencontrar, no trabalho fotográfico de Haruo Ohara, esse “oco do sentido” (BARTHES, OC, II, 2002, p. 822 )que Barthes deseja a toda linguagem e que ele acaba por entrever na arte japonesa, como nos faz saber em O império dos signos, revelando, nessa arte ocidental, a fotografia, os traços orientais que constituem o olhar desse agricultor-fotógrafo.
No plano mesmo da imagem, o fotógrafo revela-nos uma espécie de enunciação silenciosa, que consiste em revelar o inexprimível e o mais profundo, aquilo que é, dentro do universo budista, entendido como efemeridade, ou, como prefere entender Roland Barthes lendo o Ocidente através do espelho do Oriente em O império dos signos, reina, no mundo oriental, uma espécie de “vazio de fala” (BARTHES, OC, III, p. 352): um jogo de significantes que não teria significado.
Afinal, como insiste em mostrar Daisetz Teitaro Suzuki, professor de filosofia budista da Universidade de Otani, em Kioto, em seu ensaio “Oriente e Ocidente”: “O Oriente é silencioso, ao passo que o Ocidente é eloquente”, no entanto o silêncio do Oriente, muitas vezes, é “tão eloquente quanto a verbosidade” (SUZUKI, 1960, p. 12).
Assim, o fazer artístico, sob a ótica zen-budista, surge sempre a partir de uma prática contemplativa, tanto como resultado da prática meditativa quanto de uma mente livre sem qualquer vício que impeça a criação de arte livre. Esse fazer artístico define-se, portanto, por ser uma ação criativa, que é por si mesmo, verdadeiramente, o momento de arte destituído de todo egoísmo. A inscrição ou realização do gesto como uma exclamação, um grito inaudível e indizível, é aquilo que resta (a obra) - uma pincelada, um clique fotográfico, um movimento, um som -, e que se torna a representação de um momento fugaz e a revelação do mistério que está na origem de toda existência. O que capta o artista - aí incluso o fotógrafo, quando este sabe olhar atentamente o mundo - é o eloquente silêncio do existente, antes mesmo que ele seja atingido por uma imensa porção de emoção, tornando símbolo de algo a mais. Afinal, a arte seria algo que “devia ser experimentado subjetivamente pelo artista, e não uma coisa para olhar objetivamente” (RICHIE, 2016, p. 30).
De resto, podemos mesmo pensar que certas fotos de Ohara são feitas para recepcionar o “grau zero”, com sua “dilacerante tranquilidade” (SAMOYAULT, 2015, p. 633) - para recuperar as mesmas palavras da biógrafa de Roland Barthes, Tiphaine Smaoyault -, das representações do mundo sinalizadas por meio de sua concepção de punctum, esse“aceno da realidade intratável” (BARTHES, OC, V, 2002, p. 885).
Algumas fotos de Ohara mostram o quanto seu olhar fotográfico soube revelar o Oriente no Ocidente, transformando - como num haikai que coloca as “palavras sobre um abismo do silêncio” (OGAWA, 2006, p. 83) - o que seria uma imagem entendida por uns e outros como um mero produto mecânico, numa espécie de traço, de jato ou de grito de convulsão. Tanto a fotografia como o haikai podem conceber a imagem - para usar um conceito caro a François Lyotard (2002) - como figural3 (quando a imagem contém mais do que ela pode significar), então, ela torna-se assim “a expressão de transbordamento abrindo de novo a fronteira entre o visível e o invisível, ou ainda, deixando entrever um outro mundo para além de uma paisagem cotidiana” (OGAWA, 2006, p. 83). Particularmente, a fotografia intitulada “Céu de inverno (vento frio)”, de 1948, mostra-nos quase nada. Plano baixo, a foto mostra uma haste de uma gramínea um pouco desfocada, num fundo brumoso de céu escuro. Tudo ali parece captado num instante vivo, é como se o espectador pudesse respirar e ser tocado por esse mesmo vento. Não ocorre aí nenhum outro acontecimento senão plástico.
Despossuídas de toda e qualquer contingência histórica ou social, a fotografia de Haruo Ohara não é um discurso sobre o mundo, mas convida a meditar sobre ele. Ao propormo-nos ler as fotografias sob essa perspectiva, deparamo-nos com uma outra dimensão da compreensão, em que compreender não é necessariamente compreender o sentido, mas um apelo ao sentido, com toda a sua força de resistência
Por uma estética barthesiana do vazio
Se Barthes reivindica para as artes esse curto-circuito da linguagem, é porque, antes de tudo, sua concepção de estética passa pela ética (tanto é que a palavra ética está contida em est[ética])4 (BARTHES, 2003, p. 50), e tal associação, por sua vez, não soa estranha àqueles que, desde O grau zero da escritura, sabem que Barthes atribuiu aos escritores a responsabilidade da “moral da forma” (BARTHES, OC, I, 2002, p. 180). Isso porque, para o semiólogo, escrever não é escolher, mas devotar-se a um campo social; uma vez que o artista não se situa perante o mundo, mas perante a própria linguagem, corrompendo-a em seu valor social de contato e de compreensão.
Essa nota permite-nos relacionar o punctum ao “grau zero”, isto é, entender os artistas-fotógrafos nos mesmos termos em que ele entende a literatura moderna: em plena “suspensão da linguagem”. Noutros termos, numa suspensão da imposição do sentido, que não é senão uma abertura a um “apelo ao sentido”. O que nos permite pensar que certas fotografias de Haruo Ohara são formas que não contêm sentido fixo, diante da qual se pode estar certo. O sentido existe aí enquanto apelo ao sentido: um convite a reflexão, a mobilização das possibilidades interpretativas de um sentido inacabado, incerto e indefinido.
Como se sabe, a semiologia barthesiana da arte recusa as significações por demais simples e as afecções por demais brutais. Aliás, o próprio Barthes assinala, no prefácio dos Ensaios críticos, datado de 1963, isto: “ouve-se frequentemente dizer que a arte tem por função exprimir o inexprimível. É o contrário que é necessário dizer: toda tarefa da arte é de inexprimir [inexprimer] o exprimível” (BARTHES, OC, II, 2002, p. 279). Em outras palavras, silenciar, colocar em colapso toda retórica do instante capturado e a arrogância de seu discurso em detrimento de sua experiência estética. Tal concepção, da imagem fotográfica, pode ser entrevista nas duas fotografias (“vento de frio (inverno)” e “nuvens”) apresentadas a seguir.
Ora, ao ver, em toda arte, um fundo de linguagem, o desejo de destramar, esquivar, burlar, enfim, zerar ou neutralizar essa “diabrura” que é a linguagem, Barthes só poderia ser fascinado “pelas formas de seu vazio - que é o contrário absoluto de seu oco” (BARTHES, OC, V, 2002, p. 441), como pondera na conferência de ingresso no Collège de France em 1977, e, posteriormente, recolhida no livro Aula.
Portanto, para ele, toda arte só pode fundar sua verdade em algum tipo de escapada do caráter fascista da língua, que “obriga a dizer” (BARTHES, OC, V, 2002, p. 431), como ousou, ainda, pronunciar Barthes, nessa mesma conferência em 1977. A semiologia barthesiana busca “designar o oco do sentido”, visando, por meio da recusa, “à obra de toda ‘solidificação’ semântica”, esse “objeto tendencial” que é o “não sentido” (BARTHES, OC, II, 2002, p. 882), ou, como prefiro denominar, o “grau zero do sentido”. O que está em jogo é o excesso de retórica, que Barthes denomina, de saída, “mito”: essa ultrassignificação, essa “ampliação de um sistema primeiro”; que visa caminhar - e esse parece ser o percurso de sua obra mesmo -, em direção a um “dizer mínimo”, que leva o signo à sua infrassignificação, a “qualidade transcendente da coisa, seu sentido natural (e não humano)” (BARTHES, OC, II, 2002, p. 845), como nota Barthes no posfácio: “O mito hoje”.
Essas reflexões barthesianas conduzem-nos a uma definição negativa da arte ou talvez, de uma maneira mais oriental, a uma definição Zen da arte. Isto é, toda arte aparece, ao olhar de Barthes, como uma imensa prática destinada a abolir ou a romper com o infinito ciclo vicioso da linguagem e, portanto, silenciar, obstruir a significação em detrimento de um esvaziamento da máquina da linguagem. Em outras palavras, nessa concepção, a arte detém-se a um “não-dizer”, a um quase se desdizendo ou a um dizer muito pouco, cujo arranjo dos signos não envereda nem pelo patético nem pelo pastiche.
Essa concepção estética de Roland Barthes que se estende a todas as artes - verbais ou não -, consiste em revelar-nos que só lhes compete um não-dizer, que, aliás, é todo o contrário do nada dizer, da recusa em dizer, mas um dizer que não se quer fechar [ne pas vouloir-saisir] num significado último e mantém-se suspenso também nomeado, com maiúscula, a partir de 1978, de o Neutro.
Ver o vazio
As fotografias de Ohara indagam o olhar, e, por isso mesmo, podem ser consideradas “imagens pensativas” (BARTHES, OC, V, 2002, p. 818), para recuperar uma outra expressão do próprio Barthes em A câmara clara. O fotógrafo, a cada imagem, conduz-nos a voltar nosso olhar e ver o “pequeno detalhe”: tudo aquilo que escapa à ação que precisa de contemplação. Trata-se, assim, de um olhar desarmado e de extrema presença. Podemos compreender que Haruo Ohara adota, em suas fotografias, em larga medida, uma potura biográfica. Elas são retratos da sua família e registram traços de seu cotidiano. São, enfim, fotografias que soam como verdadeiros biografemas de si - um fragmento, um pequeno detalhe da vida -, em que não se vê nada ligada a ação de “ser” (NAKAGAWA, 2008, p. 48-49).5
Suas fotografias parecem provocar os olhares mais atentos à seguinte questão, que, aliás, soa impossível de fechar-se completamente: se o mundo estivesse em paz, o que você fotografaria? Com a câmera nas mãos, o fotógrafo vagueia sem direção nem horário, contemplando o panorama do mundo. Suas fotos têm uma coisa em comum: o tempo. Restaurar o fluir do tempo dentro da imagem, deixando, assim, as coisas se configurarem diante de seus olhos. O fotógrafo é aquele que espreita o tempo - o ritmo de amadurecimento, as pontuações próprias dos acontecimentos e, desta forma, Ohara deixa cada gesto ou acontecimento se contaminar do tempo de que ele precisa para acontecer.
Dessa perspectiva, a imagem fotográfica não vive simplesmente no tempo, é como se o tempo também estivesse vivo no interior mesmo da imagem. Não se trata do tempo que o fotógrafo leva para tirar uma foto, nem do tempo (momento histórico) em que a cena está acontecendo. A fotografia é, em si mesma, um evento, uma presença pura, como se fosse um súbito aparecimento do referente na paisagem da vida. A imagem aí não fragmenta, nem fratura o fluxo da temporalidade, mas coloca-o em suspensão eterna.
Haruo Ohara cria, finalmente, um espaço vazio no qual nada pode se estabelecer - exceto um mundo de lentidão -, permitindo que o tempo gasto ou o tempo perdido esteja presente como uma alusão, uma brisa que sopra, deixando o espectador viver no fluxo da temporalidade.
Ao debruçarmo-nos sobre essa foto de 1948 (Figura 1), intitulada “Vento frio (inverno)”, na Chácara Arara, em Londrina, observamos a pura impressão em que o vento é capturado como acontecimento e não como substância; e, então, a foto é convertida num momento frágil de aparição.
O vento torna-se aí um traço que não quer dizer nada, simplesmente, fá-lo existir. Não há nem mesmo uma linha de sentido, pois Haruo Ohara fotografa a coisa em sua imediaticidade, deixando-a num estado de insignificância. Diante dessa imagem é como se respirássemos o tempo com todo aquele mesmo frescor do momento fotográfico.
Se à primeira vista essas fotos levam a crer na execução desse “instante decisivo” bressoniano6, num segundo lance de olhar, já um pouco mais detalhado, vê-se que Haruo Ohara abre mão desse tal instante e de toda ideia de notável que nele reside, para deixar que as coisas apareçam fotograficamente diante de seus olhos. Assim, essas imagens são verdadeiras radiações sem sujeito, uma espécie de aventura: que algo advém e que é da ordem infinitesimal. E, a partir daí, capturar seu surgimento neutro, em que tudo parece se organizar antes mesmo de perder-se novamente na desordem do mundo. Suas fotografias são muito mais da ordem do “incidente” do que do “instante”. São aparições que surpreendem sem, contudo, de nenhuma maneira, ser notáveis. Ohara fotografa o visível em sua imediaticidade, o que não é senão um gesto de extremo pudor, pois não visa através dele, a princípio, nenhum efeito.
Enfim, o tempo, em suas fotografias, tem uma função fática, uma carga existencial: a sensação pura e misteriosa da vida. Podemos, dessa maneira, afirmar que, diante de suas imagens, a sensibilidade pela intensidade sutil em relação a duração de um instante, em que de repente, pelo trabalho de seu olhar, as unidades matemáticas utilizadas paras medir a passagem do tempo tornam-se unidades sensíveis.
Por isso, suas imagens fotográficas aparentam ser feitas às margens dos ritmos acelerados dos acontecimentos da vida diária do campo, oferecendo-nos a percepção do tempo numa outra duração, que é aquele do próprio acontecimento. É o instante que se torna instante diante da objetiva. Isto é, o Eidos do instante: sem duração, nem retenção, nem mesmo congelamento. O instante essencial: o instantâneo das coisas, antes mesmo que elas se degradem, uma vez que o tempo passa.
Nesta outra fotografia, datada de 1948, intitulada “Nuvens” (Figura 2), vemos uma certa diminuição da eloquência do fotógrafo.
É evidente que esta imagem não qualifica nada, apenas aponta. Haruo Ohara não descreve a chuva, pelo contrário, ele realça o mau tempo com as cumulonimbus perpassadas pelos últimos raios de sol. Um sol que se esconde por detrás das grandes nuvens que anunciam a promessa de um mal tempo.
Haruo Ohara é um dos muitos raros fotógrafos cujo olhar desarmado é capaz de render à arte da fotografia imagens visionárias. São imagens de extraordinária presença: uma espécie de aparição, ou ainda, de epifania imprevisível: instante, em que as coisas fotografadas não deixam de ser elas mesmas, o olho se detém à poética das coisas. Certas fotografias consistem em momento que nos aproximamos e somos, desta forma, enlaçados pela cena, atravessados por ela. Ao voltar sua lente aos pequenos detalhes da vida cotidiana, repentinamente, os traços mínimos que ele captura são um “não sei quê” que tomam de assalto a cena, interpelando o espectador, muito mais pela sua presença do que pelo seu sentido. Pouco importa o que esse “pequeno detalhe” (BARTHES, OC, V, 2002, p. 809), esse “detalhe qualquer”, quer dizer - o que importa é que nele há poder de invocação do visual no visível.
Esta outra fotografia, cujo título é “Pôr do sol - Tomoko e Ciro” (filhos) (Figura 3), na Chácara Arara, em Londrina, datada de 1949, revela-nos a seguinte invocação.
O apontar do dedo delicado e gracioso de Tomoko, em direção a um horizonte vazio, constitui, com as hastes das gramíneas e com a própria dinâmica das nuvens, todos numa única direção, uma harmoniosa composição. A luz nobre e sutil rende à cena uma qualidade eminentemente habitável. Ao buscar a apreensão do imediato, o que suas fotos revelam não é o emolduramento do nada. Elas são imagens emolduradas de vazio.
Certas imagens de Haruo Ohara tocam-nos, portanto, por sua simplicidade: toda noção dissipa-se em proveito de uma epifania do nada. É um convite silencioso para filosofar, pois, ao invés de afirmar alguma coisa, elas produzem a paz. É assim que Ohara volta os olhos para o cotidiano, buscando escapar das metáforas: durante o seu trabalho diário, na plantação de café, nenhuma luta com a terra está presente, toda força de trabalho de agricultor vem de sua suspensão - a enxada, e com tantas outras ferramentas são colocadas em uma espécie de descanso absoluto, ou se tornam objeto de um jogo lúdico.
Não se trata, em Haruo Ohara, simplesmente, de uma construção artificial, mas de um grito inarticulado, despertando o olhar em direção ao invisível que coabita o visível. E nessa perspectiva, parece-me que em sua fotografia há uma certa filiação ao incidente, como o entende Roland Barthes, “uma escrita para apossar do imediato” (BARTHES, OC, IV, 2002, p. 725). Noutros termos, ainda, o incidente define-se como aquilo que aparece, acontece, sendo, portanto, compreendido muito mais como acontecimento do que substância. Como define Phillipe Forest, o incidente é a “repentina revelação da realidade que surge na própria nudez de uma aparição irredutível a todo comentário” (FOREST, 2006, p. 118).
A fotografia seria, portanto, um momento sem testemunho, uma nominação sem sujeito: uma imagem aquém da imagem, em que o mundo não se mostra mais diante dos olhos como representação. É o visível vindo em si: de repente, parece algo inesperável que acena no interior da vertigem da própria existência, sem ter que fazer nada. A imagem faz, então, ver o invisível através do visível eternizado por esse fluxo pulsante da vida que é o instante fotográfico e que faz de cada foto a expressão do que existe.
Para concluirmos, podemos talvez ousar pensar que se está diante de fotos silenciosas (emolduradas de vazio). Enquanto enunciadas, podem ser tomadas como produtos de uma ausência de enunciador, cuja enunciação é marcada por uma falta de energia do sujeito, que não é sua ausência, visando ao aceno absoluto na qual a coisa fotografada é pinçada diretamente do texto da vida.
Assim, o gesto do escritor-crítico diante do mundo vai de par com o do agricultor-fotógrafo. Ambos se caracterizam por aquilo que Jean-Pierre Richard, em Roland Barthes, denier paysage, nomeou de interpasssividade [interpassivité], isto é, uma “abertura natural à imaginação”, que se “nutre de uma espécie de esquecimento de si, e ao mesmo tempo, ou por isso mesmo, uma atenção calma, descontraída, quase involuntária, levado em direção às mais sutis atividades da paisagem” (RICHARD, 2006, p. 33). "É o que sugere o poema Zen de Matuso Basho, inúmeras vezes citados por Barthes, mas que serviria de epígrafe das fotografias de Ohara: “Sentado calmamente, sem fazer nada, a primavera chega e a erva cresce por si mesma”. (WATTS, 1970, p. 57 apud BARTHES, 2002, p. 974)".
A fotografia a seguir, sem data e título (Figura 4), nascida de um gesto de interpassividade, sintetiza, de certa maneira, regiões de contato entre o crítico-escritor e o fotógrafo-agricultor.
Nem puramente uma observação atenta para registrar o tempo que faz, nem tampouco um registro do acaso, mas, claramente, o trabalho de um olhar contemplativo que soube ver o tracejar das nuvens no céu se entrelaçarem naturalmente aos raios de sol num entardecer na cidade de Londrina. Tratam-se, frequentemente, de imagens fotográficas que não signos de alguma coisa, não visam atribuir um significado ao mundo, mas gesto do olhar, um significante sem significado.
Referências
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BARTHES, Roland. La Préparation du roman I et II: cour et séminaire au Collège de France (1979-1980). Paris: Seuil/IMEC, 2003.
FOREST, Philippe. Haïku et ephiphanie: avec barthes, du poeme au roman. Revue Ebisu, Tokyo: Institut Français de Recherche Sur le Japon a la Maison Franco-Japonaise, n. 35, 2006.
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LOSNAK, Marcos; IVANO, Rogério. Lavrador de imagens: uma biografia de Haruo Ohara. Londrina: S. H. Ohara, 2003.
LYOTARD, Jean-François. Discours, figure. Paris: Editions Klincksieck, 2002.
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Notas
Autor notes
E-mail:rodrigo.fontanari@univ-lorraine.fr