Artigo
Viagens translíngues nas poéticas de Sousândrade, Haroldo de Campos, Douglas Diegues e Josely Vianna Baptista
Translingual travels in the poetics of Sousândrade, Haroldo de Campos, Douglas Diegues and Josely Vianna Baptista
Viagens translíngues nas poéticas de Sousândrade, Haroldo de Campos, Douglas Diegues e Josely Vianna Baptista
Alea: Estudos Neolatinos, vol. 24, núm. 1, pp. 187-202, 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ
Recepção: 14 Janeiro 2021
Aprovação: 16 Novembro 2021
Resumo: Neste artigo, a partir do enfoque sobre o tema da viagem, presente em importantes textos poéticos marcados pelo translinguismo, pertencentes a distintos momentos da literatura brasileira, discuto a função estético-crítica dos atravessamentos entre diferentes línguas e estratégias de composição imagética no processo de questionamento e desconstrução de discursos identitários hegemônicos. Minha análise perpassa comparativamente as obras: O Guesa, de Sousândrade, escritor do século XIX, silenciado durante várias décadas, cujo texto configura a ideia de peregrinação transamericana; Galáxias, de Haroldo de Campos, autor que, além de ter contribuído para a recuperação de Sousândrade no cânone literário através da ótica concretista, alia neste livro a ideia de viagem à experimentação formal e ao hibridismo linguístico; El astronauta paraguayo, de Douglas Diegues, poeta que investe, de maneira radical e paródica, na desarticulação das fronteiras nacionais e idiomáticas entre Brasil e Paraguai; e Nada está fora do lugar, de Josely Vianna Baptista, autora que aciona os procedimentos de montagem e tradução em múltiplas línguas, em videopoema calcado na questão do nomadismo guarani.
Palavras-chave: translinguismo literário, Sousândrade, Haroldo de Campos, Douglas Diegues, Josely Vianna Baptista.
Abstract: In this article, from the focus on the theme of travel, present in important poetic texts marked by translingualism, belonging to different moments of Brazilian literature, I discuss the aesthetic-critical function of the crossings between different languages and strategies of imagery composition in the process of questioning and deconstruction of hegemonic identity discourses. My analysis comparatively runs through the oeuvres: O Guesa, by Sousândrade, a nineteenth-century writer silenced for several decades, whose text shapes the idea of a trans-American pilgrimage; Galáxias, by Haroldo de Campos, an author who, in addition to contributing to the recovery of Sousândrade in the literary canon through the concretist perspective, combines in this book the idea of travel with formal experimentation and linguistic hybridism; El astronauta paraguayo, by Douglas Diegues, a poet who invests in a radical and parodic way in the disarticulation of national and idiomatic borders between Brazil and Paraguay; and Nada está fora do lugar, by Josely Vianna Baptista, a writer who activates the procedures of montage and translation in multiple languages, in a video poem based on the issue of Guarani nomadism.
Keywords: literary translingualism, Sousândrade, Haroldo de Campos, Douglas Diegues, Josely Vianna Baptista.
Resumen: En este artículo, a partir del enfoque sobre el tema del viaje, presente en importantes textos poéticos señalados por el translingüismo, pertenecientes a distintos momentos de la literatura brasileña, discuto la función estético-crítica de los atravesamientos entre diferentes lenguas y estrategias de composición imagética en el proceso de cuestionamiento y deconstrucción de discursos identitarios hegemónicos. Mi análisis trata de abarcar comparativamente las obras: O Guesa, de Sousândrade, escritor del siglo XIX silenciado durante varias décadas, cuyo texto configura la idea de peregrinación transamericana; Galáxias, de Haroldo de Campos, autor que, aparte de haber contribuido a la recuperación de Sousândrade en el canon literario a través de la óptica concretista, acerca en este libro la idea de viaje a la experimentación formal y al hibridismo lingüístico; El astronauta paraguayo, de Douglas Diegues, poeta que invierte de manera radical y paródica en la desarticulación de las fronteras nacionales e idiomáticas entre Brasil y Paraguay; y Nada está fora do lugar, de Josely Vianna Baptista, autora que moviliza los procedimientos de montaje y traducción en múltiples lenguas, en videopoema basado en la cuestión del nomadismo guaraní.
Palabras claves: translingüismo literario, Sousândrade, Haroldo de Campos, Douglas Diegues, Josely Vianna Baptista.
Uma memória em desajuste
Neste artigo, dedico-me a examinar a função estético-crítica da questão da viagem em produções translíngues vinculadas a distintos períodos históricos da literatura produzida no Brasil. Meu objetivo é refletir sobre os cruzamentos entre diferentes materialidades linguísticas e formas de construção imagética presentes em textos de natureza poética que se configuram como modos de peregrinação transfronteiriços. Para tanto, tratarei de desenvolver uma leitura comparativa das seguintes obras: O Guesa, de Sousândrade, epopeia transamericana do romantismo; Galáxias, de Haroldo de Campos, livro-viagem da poesia concreta; El astronauta paraguayo, de Douglas Diegues, transepopeia em portunhol selvagem; e Nada está fora do lugar, de Josely Vianna Baptista, videopoema baseado na temática das migrações guaranis.
Para iniciar esta reflexão, gostaria de recuperar uma conhecida observação de Roberto Schwarz sobre a aparente contradição que estaria na base da nossa formação nacional, qual seja: a convivência histórica do regime monárquico-escravista com a ideologia liberal na sociedade brasileira oitocentista. O ensaio em que Schwarz (1992 [1977]) defende essa posição intitula-se, paradigmaticamente, “As ideias fora do lugar”1. Embora seja possível, como já se fez,2 contrapor-se a esse argumento, dizendo-se que, pelo contrário, o liberalismo econômico implicado na expansão do capitalismo no século XIX não se opunha ao monarquismo no contexto transatlântico e se beneficiava tanto da exploração do trabalho escravo quanto do trabalho livre, tendo assim na obtenção do lucro por vias multifacetadas o seu fundamento básico. É importante ainda, a meu ver, admitir que a percepção dessa junção um tanto ou quanto deslocada, isto é, essa sensação de certo desajuste dos posicionamentos em torno do ideológico - que funciona, ao mesmo tempo, enquanto tensão constitutiva do discurso, atravessando decisivamente os sentidos de cidadania em nossa memória coletiva - ganha diferentes performatividades no campo literário brasileiro.
Por outro lado, estou de acordo que é preciso, de fato, matizar tal percepção crítico-historiográfica e colocar em questão a noção de uma suposta “origem” forânea (e por isso, “fora de lugar”) dos construtos ideológicos do capitalismo, fomentados também por grupos dominantes das nações latino-americanas. Nesse sentido, intento reorientar aqui esse olhar crítico a respeito do desajuste, devido à maneira redutora como parece conceber a ideia de que discursividades predominantes no cenário internacional (sobretudo, europeu e norte-americano) seriam “estrangeiras” e não adequadas à dinâmica sociocultural nacional. Proponho, portanto, em outra direção, uma perspectiva analítica em relação à difícil relação3 que intelectuais e escritores brasileiros dedicados à reflexão crítica sobre nosso processo formativo estabeleceram com os modos de subjetivação engendrados pela modernidade burguesa e pelos desdobramentos contemporâneos do sistema capitalista, bem como com os discursos que forjaram a ideia de nação e que atravessam, até o presente, signos identitários nacionais. Tais dispositivos discursivos estão correlacionadas à glotopolítica de carácter monolíngue a qual impulsionou o processo de colonização linguística de caráter homogeneizante, por meio do histórico de construção normativa do português brasileiro e de sua imposição como língua nacional,4 interditando formas de legitimação de identidades linguísticas diferenciadas no território brasileiro e condenando ao silenciamento e à marginalização dezenas de línguas ameríndias, além das línguas africanas, as línguas de comunidades de imigrantes, as línguas gerais e as línguas de fronteira.
Desse modo, ao voltar minha atenção em direção às práticas translíngues, transnacionais e transregionais que vêm se desenvolvendo na literatura brasileira ao longo de sua história - embora só nos últimos anos esses gestos de hibridação tenham ganhado um pouco mais de visibilidade crítica - procuro contribuir, em diálogo com o pensamento de Ottmar Ette (2018), com a expansão de uma perspectiva analítica a respeito dos modos de simulação de escrituras sem residência fixa, através de textualidades que se inserem (com vistas a promover, ao mesmo tempo, inúmeras reterritorializações linguístico-discursivas) na tradição da literatura de viagem. Ao examinar tal processo de composição literária, Ette relaciona-o à conceituação de uma espécie de saber em movimento, ao dizer que “Não se deve entender tal característica de transregionalidade como conceito estático, senão de movimento: não se trata de uma relação entre entidades fixas com fronteiras fixas, mas dos caminhos sempre novos sobre os quais regiões se cruzam e se ligam a outras, a par de todas as não-sincronicidades” (ETTE, 2018, p. 82).
A errância do Guesa
É importante assinalar que a observação de Ottmar Ette, citada anteriormente torna-se ainda mais pertinente em meio a um contexto cultural como o nosso, não necessariamente aprisionado a um paradigma invariante de leitura, mas, antes de tudo, submetido a um padrão coercitivo de escrita que induziu, historicamente, a uma forte relação entre literatura, língua e território nacional na formação do seu sistema literário. Não à toa, Antonio Candido - não obstante considerasse o poète maudit Joaquim de Sousa Andrade, mais conhecido como Sousândrade5, como uma expressão romântica “menor” - aponta a exploração da “mobilidade no espaço” como um traço “original” (diferencial) de sua obra (CANDIDO, 2000 [1975], p. 186). Tal mobilidade, segundo demonstra Haroldo de Campos, um dos responsáveis pelo processo de revisão do cânone oitocentista e por trazer à baila a poética sousandradina no âmbito da historiografia literária brasileira, tem a ver com a própria experiência biográfica do autor. No entanto, Haroldo, provocando simultaneamente uma inversão das formas tradicionais de vinculação crítico-historiográfica entre literatura e vida, reflete sobre a confluência entre O Guesa (escrito e editado entre 1858 e 1888) com os escritos do grande naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769 - 1859), evidenciando, assim, uma complexa trama entre experiência biográfica, vivência poliglota e diálogo intertextual no âmbito da escrita de viagem (cf. CAMPOS, 2001, p. 222-223). O livro de Sousândrade começa com uma epígrafe de Vue des Cordillères et Monuments des Peuples Indigènes de l’Amérique, de Humboldt, de onde o poeta maranhense extrai a figura do Guesa, mito sacrificial dos índios muíscas (chibchas) da Colômbia. Há várias coincidências entre as trajetórias de “peregrinação transamericana”6 de Humboldt (na companhia do botânico francês Aimé Bonpland) e a de Sousândrade (e de seu personagem errante): múltiplos traslados entre os Andes e a região amazônica, ou de distintos países latino-americanos rumo aos Estados Unidos, sublinham tanto a movente curiosidade artístico-científica do prussiano quanto a incorporação do trânsito à voz lírica na dicção do brasileiro, como já assinalou Flora Süssekind (1990, p. 108).
Se, por um lado, a obra de Alexander von Humboldt representava uma fonte de referência ou motivação aos viajantes que passaram pelo Brasil, tais como Debret, Saint-Hilaire, Alcide d’Orbigny, Maximilian zu Wied-Neuwied, Spix & Martius, Langsdorff, Rugendas, Denis, Wilkes, Jenkins, Maria Graham etc., cujos livros, como se sabe, possuíam forte repercussão entre os meios intelectuais nacionais, conforme também demonstra Süssekind (1990, p. 75), é importante discutir, por outro lado, as diferentes formas de apropriação deste legado. Enquanto a elite letrada brasileira - que, em grande parte, ignorava (e continua ignorando) completamente o interior do país - lia, no século XIX, esses relatos de viagem ao Brasil feitos por estrangeiros sob um filtro capaz de selecionar deles, de maneira pragmática, dados e observações sobre a natureza selvática, além de apontamentos sobre tribos e ritos autóctones, que servissem ao projeto romântico de afirmação exótica de uma identidade nacional, prenhe de “cor local”, em Sousândrade verifica-se um diálogo ora exaltador, ora paródico - em termos de uma espécie de antecipação pré-moderna - com as referências cosmopolitas, o que implica, em primeiro lugar, um processo de distanciamento com relação aos modelos letrados nacionais e, paralelamente, um gesto distinto, para aquele momento, de reelaboração da tradição eurocêntrica.
Veja-se, a título de exemplificação, que, no Canto XII de O Guesa, a brancura das Cordilheiras é comparada, de forma solene, aos cabelos brancos (isto é, às cãs) de Humboldt: “Céus! os Andes qual nossa alma celeste,/ Mais caia o sol, mais erguem-se e resplendem!/ Solitária é a glória em fronte adusta,/ Cãs d’Humboldt: é bela a luz etérea,/ A alma brandida das soidões augustas” (SOUSÂNDRADE, 2002, p. 542).7 Já no Canto II, intitulado “O Tatuturema” - considerado pelos irmãos Campos (2002, p. 59) como um dos “momentos de inferno” do poema, a partir do parâmetro comparativo da poesia dantesca - faz-se uma menção irônica e teatralizada (que recorda ainda os autos do dramaturgo português Gil Vicente) ao “Pai Humboldt”, que ganha aí a representação de uma figura ébria após ter bebido o urari (também conhecido como curare), um preparado de ervas com efeitos relaxantes feito pelos indígenas amazônicos: “- Pai Humboldt o bebia/ Com piedoso sorrir;/ = Mas, se ervada taquara/ Dispara,/ Cai tremendo o tapi … i … ir! (Risadas)” (SOUSÂNDRADE, 2002, p. 307).
Como se pode notar no fragmento do Canto XII citado anteriormente a tendência à figuração imagética sublimatória da natureza encontra-se presente na maioria das partes de O Guesa. Entretanto, concordo com a observação de Luiz Costa Lima de que, nas passagens infernais - a saber: o Canto II, “O Tatuturema” (citado também anteriormente), e o Canto X, “O Inferno de Wall Street” -, Sousândrade consegue alcançar, por meio da imersão na ideia de caos, uma configuração visual do externo afastada do movimento de exotização da paisagem, característico da estética romântica (LIMA, 2002, p. 496). É interessante assinalar que, não por acaso, estes são também os momentos da obra em que se intensifica a frequência dos atravessamentos (às vezes, quase recíprocos) de diferentes idiomas no texto - ressalte-se principalmente a grande interpolação de palavras, expressões e frases em inglês em “O Inferno de Wall Street” -, o que indicia que existe aí uma produtiva relação entre o aproveitamento estético do translinguismo e um propósito de desconstrução (reforçado pelo investimento no gênero nonsense) dos modos de representação poético-visuais em voga. Cito, a título de exemplo, uma estrofe do Canto X: “(Fogueiros da fornalha reduzindo o pecado original a fórmulas algébricas e à “Nova Fé” (‘moral rápido trânsito’) o ‘IN GOD WE TRUST’ dos cinco cents:)// - Indústria, ouro, prática vida,/ Go ahead! oh, qual coração!.../ A este ar, vai vital/ A espiral,/ Brisa ou flato ou Bull-furacão!” (SOUSÂNDRADE, 2002, p. 366).
Como é possível perceber, a obra de Sousândrade utiliza, em muitos momentos, as relações translinguísticas com o intuito de evidenciar visões críticas ambivalentes, ora voltadas para as condições internas relacionadas ao prolongado monarquismo e ao insistente escravagismo do período do Império no Brasil - de onde provêm os elogios do poeta originário do Maranhão (que viveu vários anos em Nova York) ao modelo republicano estadunidense e também às repúblicas da América espanhola (contra as quais, inclusive, o governo imperial brasileiro guerreou diversas vezes) -, ora direcionadas à usura que faz movimentar, desde seus primórdios, as engrenagens do capitalismo financeiro e à imbricação de traços autoritários no regime republicano, o que é ironizado, por exemplo, em trechos de O Guesa que recriam, de maneira burlesca, a bem-sucedida viagem de Dom Pedro II aos Estados Unidos da América em 1876: “Agora o Brasil é república;/ O trono no Hevilius caiu…/ But we picked it up!/ - Em farrapo/ ‘Bandeira Estrelada’ se viu” (SOUSÂNDRADE, 2002, p. 354).
Ressignificações da viagem
Como se pôde observar, a poética de Sousândrade investiu decisivamente em outro modo de reelaboração do legado dos viajantes europeus, além de ter fundido, de maneira seminal, sua própria experiência de leitura, plurilíngue e pluricultural, a sua experiência de vida, também como viajante e migrante. O silenciamento de sua obra na historiografia literária brasileira deve-se justamente, a meu ver, à ousadia de seu gesto de dissidência com relação a uma das formações discursivas predominantes no processo de construção da identidade nacional, baseada, como já foi sinalizado por Costa Lima (2002, p. 502), em um tipo de expressão “consumidora” do real, isto é, em uma expressão que, a partir da tradição da narrativa de viagem, seleciona imagens pitorescas, projetando-as em uma atmosfera intimista e moldada em face do projeto “civilizador” para o consumo da incipiente classe letrada que vinha se formando desde os tempos da colônia.
A resistência a esse dispositivo de controle do imaginário, que se desdobra nos modos de construção das imagens metafóricas que emergem na tessitura do literário, é alcançada por Sousândrade seja por meio da profunda atomização da dimensão épico-narrativa - a tal ponto que, num mesmo canto de seu longo poema, cada estrofe representa a superposição de distintos acontecimentos, elementos geográficos ou episódios históricos, sem uma progressão linear -, seja através da adoção de um “estilo sintético-ideogrâmico” que, conforme advertem Augusto e Haroldo de Campos (2002, p. 85), resulta na justaposição de léxicos e estruturas morfossintáticas pertencentes a distintos idiomas. Vê-se, desse modo, que a ruptura do gênero corresponde aí ao rechaço da ilusão de pureza e homogeneidade do idioma (performatizada historicamente pelas coerções linguístico-normativas), e que ambas as estratégias de disrupção confluem em direção a um processo de contraposição ao discurso hegemônico sobre a brasilidade.
Na minha opinião, esses fatores determinaram o interesse dos escritores do concretismo brasileiro em realizar, com grande empenho, em meados dos anos 1960, uma ampla releitura histórico-crítica da obliterada obra de Joaquim de Sousa Andrade. Tal interesse pode ser interpretado como índice da adesão concretista a um processo discursivo semelhante, de maneira que, no primoroso livro Galáxias, de Haroldo de Campos,8 que reúne textos escritos entre 1963 e 1976, embora tenha sido editado integralmente pela primeira vez em 1984, chega-se a enunciar, na galáxia intitulada “e começo aqui”, o seguinte: “re começo/ rés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me come/ não me consome não me doma não me redoma” (CAMPOS, 2004, n.p.). A partir de tal fragmento, é interessante pensar, justamente, na potência crítica da negação haroldiana quanto à possibilidade sempre iminente de que certas narrativas nos consumam, formatando-nos e estreitando nossa visão de mundo, tornando nossos corpos e mentes, como diria Foucault (1987), dóceis e úteis.
Tais narrativas configuram mecanismos de inscrição do sujeito no simbólico, mobilizando, por meio da língua(gem), signos identitários nacionais e biopolíticas atravessadas por valores socioculturais e preceitos morais específicos de cada contexto, não obstante, a voz poética aí, a partir de uma atitude de alternância sub-reptícia entre segmentos idiomáticos diversos, busca evidenciar cruzamentos globais entre determinadas formas de coerção, como a que se percebe na galáxia “reza calla y trabaja”, na qual Haroldo, a partir do olhar de um brasileiro, que vivenciava o ano anterior à instalação do golpe militar de 1964, descreve a cidade de Granada (Espanha), durante o franquismo, sublinhando vários indícios de como a repressão violenta, a castração religiosa, o medo e a censura inscrevem-se nos corpos da classe trabalhadora: “reza calla y trabaja em um muro de granada […]/ uma mulher cuidando de uma criança por trás de uma porta baixa y reza/ y trabaja y calla não sabia de nada y trabaja não podia informar sobre nada y reza” (CAMPOS, 2004, n.p.).
As galáxias de Haroldo de Campos corroboram, dessa forma, o processo de desfazimento das fronteiras entre o nacional e o estrangeiro, permitindo-nos refletir sobre o modo como os discursos que sustentam a hegemonia atravessam diferentes condições de produção e recepção. Note-se, como exemplo, o jogo neológico de composição lexical (que pode ser lido como uma tentativa de transcodificação do funcionamento morfológico do alemão) e a paronomásia entre os significantes “moscas” e “foscas”, na galáxia “no jornalário”, em que se critica o papel da imprensa e da mídia na produção de efeitos de naturalização, indiferenciação ou esvaziamento dos sentidos acerca dos acontecimentos e problemas cotidianos: “no horáriodiáriosemanáriomensárioanuário jornalário/ moscas pousam moscas iguais e foscas feito moscas iguais e foscas feito foscas iguais e moscas” (CAMPOS, 2004, n.p.).
Já na galáxia “augenblick”, por meio do procedimento de ékphrasis em diálogo com a obra do pintor renascentista germânico Lucas Cranach sobre a figura de Lucrécia (a lendária dama romana que se suicida após ser estuprada) e através do movimento de correspondência entre vocábulos alemães com diferentes sentidos, ainda que constituídos pelo termo Augen (olhos), Haroldo demonstra um produtivo processo de temporalização da imagem poético-pictórica, o que implica a possibilidade de deslocamento tanto do sentido quanto das formas visuais, entendendo, assim, o estético enquanto viagem, isto é, enquanto exploração da alteridade e empatia com outro, e com a dor do outro: “augenblick oder augenlicht oder augenbild ou um punhal se enterrando/ prestes na lucrezia de lucas cranach staatsgalerie stuttgart quem a poderia/ ver de outra forma quandonunca sob o véu vislumbre a gaza gázea o luftsôpro/ do manto em tênues vibrissas de ar” (CAMPOS, 2004, n.p.).
Essa obra pós-vanguardista do concretismo, composta como uma reunião de papéis avulsos, não paginados, rejeita, de forma dúplice, na galáxia paradigmaticamente intitulada “isto não é um livro”, o imediatismo de sua identificação com o suporte livro, e mais especificamente com o gênero relato de viagem. Ao começar esse texto com a sentença “isto não é um livro de viagem” (CAMPOS, 2004, n.p.), Haroldo mobiliza interdiscursivamente a referência à estratégia do ready-made de Duchamp, o que ao mesmo tempo - como um tipo de pastiche que inverte o original - lhe permite colocar em cena a remissão à tradição dos escritos de viagem, a partir dos quais se nutriram distintas linhagens literárias, e configurar um olhar em movimento que desautomatiza a relação entre as palavras e as coisas, ultrapassando, assim, a ideia de mímesis da experiência do viajante, com vistas a realçar o aspecto diferencial de seu trabalho, qual seja: o de proporcionar uma viagem na/pela linguagem. E ao recuperar, portanto, polifonicamente, os pontos nodais dos discursos dominantes que se desvelam em concomitância aos atravessamentos linguísticos presentes no texto, o autor ajuda-nos a desfazê-los, redefini-los e ressignificá-los, lançando, de tal modo, uma espécie de aposta por uma poética nômade e suplementar, capaz de esquadrinhar os modos de organização do discurso, a fim de desconstruir a lógica neles implicada. Cite-se, a propósito, um fragmento da galáxia “lass sie quatschen”: “mas um livro pode ser uma fahrkarte/ bilhete de viagem para uma aoléuviagem áleaviagem e tudo que se diz/ importa e nada que se diz importa” (CAMPOS, 2004, n.p.).
Outras paisagens transfronteiriças
Os bilhetes de viagem que as poéticas transfronteiriças endereçam aos poetas atuais, ao que parece, possuem pontos de chegada e formas de interpelação distintos. O legado lírico da errância, atribuído a Sousândrade, redescoberto e visibilizado com status de ícone em nossa história literária, na segunda metade do século XX, pelo trabalho crítico de Haroldo de Campos e de outros concretistas, vem sendo reelaborado, a meu ver, por sua própria natureza heteróclita e irregular, através de vertentes não completamente semelhantes, ainda que aproximáveis, devido aos modos como elas têm configurado gestos de resistência estético-políticos. É possível encontrar no cenário da poesia brasileira recente (e poderia dizer, da poesia sul-americana, de maneira mais ampla) desde a reivindicação de outros circuitos linguístico-culturais - vinculados, sobretudo, ao portunhol como língua de contato e ao mesmo tempo dispositivo paródico ligado ao macarrônico - até dicções que optam pela adesão a uma visão cosmológica holística, marcada pela ideia de expedição para dentro, na qual a viagem por paisagens outras não se vê limitada, necessariamente, aos limites entre o nacional e o forâneo, ou entre o próprio e o alheio.
Trago à discussão aqui, primeiramente, alguns exemplos da escrita de Douglas Diegues9, em El astronauta paraguayo, editado de modo artesanal pela cooperativa editorial argentina Eloísa Cartonera em 2012. Neste livro, a figura do viajante sem paradeiro fixo, como a do Guesa, que se lança a grandiosas travessias transcontinentais, principalmente em navio, é transportada para o imaginário midiático juvenil, prevalente nos anos 1970 e 1980, marcado pela temática da viagem ao espaço sideral. No entanto, no texto de Diegues, em lugar de uma representação encaixada no gênero ficção científica, escolhe-se focalizar, de maneira jocosa, ora a zona fronteiriça - exemplo: “EL ASTRONAUTA PARAGUAYO DELIRA DI SAUDADES VOLANDO SOBRE LA TRIPLEFRONTERA” (DIEGUES, 2012, p. 17) -, ora possibilidades pequeno-burguesas de trânsito inter-regional, nacional e internacional - outro exemplo:
EL ASTRONAUTA PARAGUAYO PASSA BATIDO POR LOS CIELOS DE PARIS, SAM PAULO, LAGOA SANTA, CURITIBA, PONTA PORÃ, BERLIN, KAÁKUPÊ, MADRID, ÑU GUAZÚ, ROMA, SAN BER, KUREPILÂNDIA Y PEDRO JUAN ALMODÓVAR CABALLERO. (DIEGUES, 2012, p. 7).
Desse modo, a viagem translíngue proposta por Diegues - autor nascido no Brasil e criado na fronteira com o Paraguai - abala performativamente os contornos da noção de brasilidade, seja por transpor para o solo de sua escritura o fenômeno linguístico do portunhol, seja por identificar o personagem deste livro (uma espécie de alter ego do poeta) como um “paraguayo”, em detrimento, inclusive, do possível uso do termo “brasiguayo”, utilizado para nomear os habitantes dessa fronteira. Além disso, simultaneamente a este gesto de reinscrição identitária, verifica-se em El astronauta paraguayo uma tentativa de contrapor-se tanto aos discursos relacionados ao consumismo neoliberal quanto aos que desejam encapsular as culturas populares e periféricas latino-americanas num lugar folclorizante:
El portunhol selvagem es la cumbia o la aburrida kachaka. […] El portunhol selvagem non es moderno nim atrasado. El portunhol selvagem enkurupiza hasta las catchorras funkeras. El portunhol selvagem non tem nada a ver com el ambiente folclórico. […] El portunhol selvagem non es Apple ou Bill Gates. El portunhol selvagem es free y es pago y es vendido y non se vende. (DIEGUES, 2012, p. 25).10
Passemos, agora, a um outro tipo de prática translíngue, que se realiza, por exemplo, na obra de Josely Vianna Baptista11. No videopoema Nada está fora do lugar,12 feito para a edição do ano de 2017 da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a autora, em trabalho colaborativo com a cineasta Yasmin Thayná, com o artista plástico Francisco Faria, com o etnomusicólogo Guillermo Sequera e outros artistas, propõe - a partir da relação multissemiótica entre poesia, música, cinema, fotografia e desenho - uma reflexão que parte da investigação etnolinguística sobre as formas de interação dos Mbyá-Guarani com a natureza e com a cultura, a fim de sensibilizar os leitores/espectadores falantes de diferentes línguas (visto que a oralização e a projeção dos textos no vídeo ocorrem, alternadamente, em português, inglês, espanhol e guarani)13 para a importância de se pensar a relação entre literatura e vida sob uma perspectiva holística capaz de abarcar a complexa interconexão entre os elementos naturais, animais e humanos. Neste sentido, por exemplo, no vídeo são reiterados, ao passo que transpostos a outros idiomas, os versos: “sou o que me soa/ sou o que me sua/ sou o que me soa/ essa e outra pessoa”; “I am that which sounds me/ I am that which sweats me/ I am that which sounds me/ this and another person”; “soy lo que me suena/ soy lo que me suda/ soy lo que me suena/ esta y otra persona” (BAPTISTA, 2017).
O jogo que contém o título do videopoema, que surge na tela primeiro em guarani seguido do português (“mbaeve ndaipori oivaiva/ nada está fora do lugar”), remete à discussão sobre as “ideias fora do lugar”, presente em Schwarz. Josely Vianna, com isso, de maneira intencional ou não, marca uma posição, a meu ver, bastante questionadora e dialética nesse debate, demonstrando que os processos históricos que aqui tiveram lugar, vinculados sobretudo à exploração das florestas e ao genocídio dos povos originários, desde a colônia até os dias de hoje, produziram, sim, impactos indeléveis, e continuam produzindo ressonâncias, sobre os modos de reorganização constantes das sociedades indígenas. Em outras palavras, ao negar a possibilidade de que qualquer coisa esteja “fora de lugar”, sejam as ideias ou os próprios índios em seu nomadismo, a poeta indicia, por um lado, um movimento de desconstrução do sentido de propriedade que atravessa a noção de identidade, entendida de maneira artificiosa como construto homogêneo, e sinaliza, por outro lado, que o sentido de expropriação constitui, simultaneamente, uma questão fundamental para pensar a relação dos colonizadores e das elites sul-americanas com a população ameríndia. Esta problemática ganha ênfase no vídeo, entre outras formas, também por meio da estratégia de reiteração multilíngue dos versos “o ouro/ o outro/ os trapos roídos/ pelos ratos” e pelo fato de a obra terminar, de maneira paradigmática, com a indagação: “você vê?/ nenhum gesto sem passado/ nenhum rosto sem o outro” (BAPTISTA, 2017).
Com o roteiro de Nada está fora do lugar, Josely Vianna seleciona e produz uma instigante montagem de textos14 inspirados pelas migrações guaranis em busca da “terra sem mal”, mito registrado primeiramente pelo etnólogo de origem alemã, Curt Nimuendajú (1883-1945). A autora parece aproveitar em seus poemas a dualidade das interpretações antropológicas do mito e do nomadismo guarani por diferentes países e regiões do continente sul-americano, de modo que sua visada aposta na simultaneidade das possíveis motivações profético-religiosas e das causas sociais ligadas à escravização dos índios (que eram chamados de “negros da terra”), ao impositivo processo de catequização jesuítico, à expulsão ou expropriação dos índios de suas terras e ao desmatamento de seus territórios tradicionais.15 Não à toa, as cenas escolhidas para compor o vídeo põem lado a lado imagens de matas preservadas e áreas florestais destruídas pelo fogo, aves migratórias e pés descalços de índios em caminhada. Em paralelo à confecção deste arquivo visual, versos como “rios e abismos/ não demarcam fronteiras/ são caminhos” (BAPTISTA, 2017) indiciam a potência poética que a ideia de peregrinação transfronteiriça alcança na obra de Josely Vianna Baptista, assim como nas de Sousândrade, Haroldo de Campos e Douglas Diegues.
Em todos esses autores, o impulso em direção a outras paisagens e territórios configura formas de reflexão sobre a dimensão constitutiva da alteridade, tanto no âmbito da subjetividade quanto no da cultura. Em todos eles, o aproveitamento estético da prática translíngue e transcultural colabora, na minha opinião, com a desconstrução das narrativas responsáveis pelo processo de homogeneização excludente da identidade nacional, bem como dos discursos que materializam formas de colonização do imaginário, desnaturalizando, assim, mecanismos globais de exploração. Cada uma das obras analisadas neste artigo focaliza distintos modos de sobrevivência e de resistência perante as condições desiguais do capitalismo, através de estimulantes trabalhos poéticos que se fazem no entremeio das línguas e das linguagens.
Referências
BAPTISTA, Josely Vianna. Na tela rútila das pálpebras. [Site-conceito]. Apoio: Rumos Itaú Cultural, 2016. Disponível em: Disponível em: http://natelarutiladaspalpebras.telarutila.com/na-tela-rutila-(p).html. Acesso em: 2 jan. 2021.
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Notas
Autor notes
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