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ESPAÇO E TÉCNICA NO TRIÂNGULO MINEIRO: UMA GEOLITERATURA DO MUNDO RURAL

SPACE AND TECHNIQUE IN THE TRIÂNGULO MINEIRO: A GEOLITERATURE OF THE RURAL WORLD

ESPACE ET TECHNIQUE DANS LE TRIÂNGULO MINEIRO: UNE GÉOLITTÉRATURE DU MONDE RURAL

Adriana Lacerda de Brito
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Brasil
Joelma Cristina dos Santos
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil

ESPAÇO E TÉCNICA NO TRIÂNGULO MINEIRO: UMA GEOLITERATURA DO MUNDO RURAL

Boletim Goiano de Geografia, vol. 38, núm. 2, pp. 365-385, 2018

Instituto de Estudos Sócio-Ambientais

Recepção: 21 Março 2018

Aprovação: 25 Maio 2018

Resumo: Este trabalho tem como objetivo principal compreender as relações entre o espaço e a técnica na geoliteratura do mundo rural do Sertão de Passagens, antigo Triângulo Mineiro. Para isso, utilizaremos as obras Sertão da Farinha Podre. Romance histórico dos primórdios IPIACUPA (2013), de Ernesto Rosa, e o livro Nos confins do Sertão da Farinha Podre, de Mário Lara (2009). Para os temas abordados, recorreremos a uma “literatura menor” que possa contribuir para uma interpretação das relações entre a sociedade e a natureza que se desenham na região. O mundo rural, construído no lugar do sertão de outrora, surge aos poucos, a partir dos avanços relacionados à modernidade, orientando-se pela mediação técnica que aparece na constituição do território e da paisagem, e compreende o espaço geográfico em sua completude. Dessa forma, representações do mundo rural cercam o espaço das obras analisadas, contribuindo para interpretações do espaço, à medida que se reconhecem não apenas os limites da técnica, mas também a essência do espaço.

Palavras-chave: Geoliteratura, mundo rural, técnica.

Abstract: his work aims to understand the relations between the space and techniques in the geoliterature of the rural world of Sertão da Farinha Podre. To do so, we are going to use the Sertão da Farinha Podre works: the historic novel Ipiacupa (2013) by Ernesto Rosa, and the book Nos Confins do Sertão da Farinha Podre, by Mario Lara (2009). The themes approached are dear to the philosophy of science, so we resorted to the contemporary literature to interpret the relations between society and nature pictured in the literary works analyzed. The rural world constituted where it was once sertão emerges slowly from the advances related to modernity, guided by the technical mediation that appears in the constitutions of territory and landscape that constitute the present geographic space. In the experience lived by the authors and readers, we found contexts of the narrative’s general outline where the world images about the passage through Sertão da Farinha Podre are also pictured. Thus, representations of the rural world surround the space of the works analyzed, contributing to liberating interpretations as not only the limits of techniques, but also the advances of a whole society are recognized.

Keywords: Geoliterature, rural world, technique.

Résumé: Cette étude cherche à comprendre les relations entre l’espace et la technique dans la géolittérature du monde rural du Sertão de Passagens. Une région placée a l’ouest de l’état du Minas Gerais, au Brésil. Cela dit, nous allons utiliser des œuvres, telles que: Sertão da Farinha Podre, roman historique des commencements - IPIACUPA (2013), de Ernesto Rosa, et Nos Confins do Sertão da Farinha Podre, de Mário Lara (2009). Pour bien travailler les thémes la littérature contemporaine à fin d’interpréter les relations entre la société et la nature qui se dessinent dans les œuvres littéraires étudiées. Le monde rural mis en place sur le sertão d’autrefois se montre peu à peu, à partir des progrès de la modernité, guidé par la médiation technique qui apparaît dans la constitution du territoire et du paysage de l’espace géographique actuel. Ainsi, des représentations du monde actuel se mélangent avec l’espace des oeuvres analysées, ce quicontribue à interprétations de l’espace, à mesure qu’on reconnaît pas seulement les limites de la technique, mais aussi l’essence de l’espace.

Mots clés: Géolittérature, monde rural, technique.

Introdução

O objetivo deste artigo é iniciar uma reflexão teórica acerca do espaço e da técnica tendo como eixo norteador a geoliteratura do mundo rural do Sertão de Passagens, lugar que deu origem à região do Triângulo Mineiro, em Minas Gerais. A partir da noção de geoliteratura, pretendemos demonstrar como as diferentes leituras propõem perspectivas teóricas complementares, que enunciam a formação de uma metodologia disciplinar, assim como analisar a maneira como a obra literária é compreendida pela arte a partir da ciência e vice-versa.

Há uma necessidade primeira de estabelecer uma análise comparativa das obras selecionadas para que as narrativas se sobreponham diante da espacialidade do Triângulo Mineiro. Contrapomos, portanto, duas racionalidades que suscitam o processo de investigação do espaço no interior de sua geografia e nos conduzem a uma abordagem do tema no campo epistemológico. Assim, propomos um diálogo entre a geografia e a literatura a partir de processos cujo interesse disciplinar é comum aos dois campos, de maneira que as disciplinas estejam orientadas para a procura do método de investigação do espaço.

O primeiro livro selecionado para a pesquisa é um romance escrito por Ernesto Rosa (2013) sob o título de Sertão da Farinha Podre. Romance histórico dos primórdios. O autor trata da aventura do protagonista que segue em fuga para a região, mas depara com um sertão ao mesmo tempo vazio e promissor e que se afirma, nesse período, como um Sertão de Passagem para o interior do país. Essa característica diz respeito, também, às correspondentes divisas localizadas entre Minas Gerais, São Paulo e Goiás, estados que dialogam formando a tríade conjunta que contribui para a ocupação do território. O nome “Farinha Podre” diz respeito ao hábito comum que os atravessadores tinham de entrelaçar sacos de farinha nos galhos das árvores a fim de demarcar o caminho de volta. Tal estratégia era aproveitada pelos tropeiros para demarcar a rota que trilhavam de São Paulo a Goiás.

A esse respeito, consideramos que os romances selecionados para este trabalho pertencem ao escopo daquilo que Gilles Deleuze (2015) trata como uma “literatura menor”1, em que os signos cumprem o papel de ativar ou, como diria o próprio filósofo, forçar o pensamento de maneira que deste derive a imagem (Deleuze, 2010, p. 91). De outra maneira, já convencional e instituída, a “literatura maior” investe no logos considerando um mesmo pensamento sobre as imagens, ou um pensamento único, característico de uma forma social, supondo que a forma reflete a sociedade e a cultura. Enquanto isso, a “literatura menor” desfaz toda a lógica. Eis que, na transposição de uma literatura menor para aquilo que nos interessa aqui, Michel Collot (2013) discorre sobre o “Pensamento Paisagem”, conceito muito próximo daquilo que Deleuze considera ser “A imagem do Pensamento”. Ao discorrer sobre os tipos de signos, Deleuze indaga: “Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas ao contrário, aquela em que somos vistos?” (Deleuze, 2010, p. 7).

Mário Lara escreve um romance intitulado Nos confins do Sertão da Farinha Podre: povoamento, conquistas e confrontos no Oeste das Minas (2009). A obra é um resgate histórico das famílias e da sociedade a partir de uma genealogia que procura, através da memória de arquivos, reconhecer o modo de vida e a realidade de uma época. Assim, o autor utiliza fontes como arquivos históricos públicos, acervos institucionais, cartórios, além de acervos privados, para revelar uma narrativa mais concisa da organização territorial da região. A apresentação de sua obra confidencia muitas particularidades de figuras conhecidas da história “formal” da região e desvela aspectos subjugados, como trata Deleuze, por uma “literatura maior”.

É importante destacar que os dois romances aqui apresentados abordam o mesmo tema, aquele que trata do início do povoamento da região. Para pensar em “máquinas literárias”2, podemos dizer que Rosa discorre sobre uma aventura que se projeta na fuga do protagonista e na ocupação local da região; Lara, por sua vez, desenvolve sua narrativa com base em heranças históricas das famílias tradicionais do Triângulo. Com elementos usuais de investigação e ampliando o arco de apresentação da essência local, desde o período que antecede a colonização, o leitor percebe o interesse de Lara pelo rigor histórico da pesquisa, a necessidade de apuração da veracidade dos fatos a partir da materialidade que forma a própria “máquina técnica”. A “máquina técnica”3, em seus estados de desejo, é que empreende a narrativa. Os autores são portadores de uma experiência subjetiva da literatura e são distintos em relação ao seu propósito. Rosa se reveste do imaginário e da imaginação; Lara se compromete historicamente com a realidade.

Assistimos hoje a mudanças de paradigma em que se desenham novas territorialidades, que interrogam as fronteiras entre o real e a ficção e se configuram como novas formas de abordagem do espaço geográfico. Por vezes, a análise desse espaço, que é antes um espaço social, decorre de um pesquisador mais centrado, determinando uma percepção de mundo egocentrada, que valoriza o espaço representado através de abordagens multifocalizadas e geocentradas. Outras vezes, no entanto, o pesquisador limita-se ao objeto de estudo de maneira sistemática, fragmentando a realidade social e perfazendo um distanciamento do sujeito e de sua essência. Entretanto, as essências ainda se encarnam nos signos mundanos, mas num último nível de contingência e generalidade (Deleuze, 2010). Assim, o estudo da geografia demanda, contemporaneamente, outros instrumentos para a compreensão da sua relação com o real, definindo novos limites à disciplina científica.

Ao tratar a questão do método e dos limites disciplinares, colocamos em evidência o uso da técnica. Assim, compreender o papel da técnica nas obras nos direciona a uma análise da dualidade em que ela se inscreve, pois “o mundo da técnica invasora é também o mundo do capital tecnológico invasor, que busca e consegue contagiar as diversas tarefas rurais” (Santos, 2002, p.305). O imaginário da literatura acerca do Sertão da Farinha Podre é, portanto, marcado pelo advento mundial da industrialização em sua etapa mais emblemática em relação ao capitalismo: a criação do relógio, como adverte Sibilia (2015). A relação espaço-tempo altera a visão de mundo, enaltecendo o tempo em relação ao espaço; um hiato que tem início no final do século XIX e que perdura por quase todo o século XX.

Sobre essas premissas, propomos fazer uma análise da produção do espaço em sua relação com a técnica do ponto de vista interdisciplinar, entre a geografia e a literatura, com uma abordagem crítica da geografia humana, uma vez que ela considera o caráter social como implícito à temática.

Autores como Deleuze, Lefebvre e Foucault trazem para a discussão a categoria de espaço intrincada entre o território e a paisagem apontados nas obras literárias. Os conceitos figuram como mecanismos de interpretação ou reflexão da produção do espaço que versa para a questão da modernidade como espectro da modernização, da máquina literária, que aponta para a formação da região do Triângulo Mineiro, um espaço marcado pela sofisticação técnica do mundo rural.

Sertão de Passagem, Sertão da Farinha Podre, Sertão do Triângulo Mineiro

O mundo rural no Sertão de Passagem é, antes mesmo de se tornar um território específico e estrategicamente localizado na colônia portuguesa, uma imagem fragmentada do tempo pretérito. Assim, não era objetivo da administração colonial o povoamento efetivo dessas terras (IBGE, 2016) uma vez que despontavam como uma importante região de passagem e de interseção do território.

Sertões de Passagem, porque esta foi uma característica relativa- mente duradoura de sua existência. [...] inseriu no contexto da economia colonial ao ser atravessado pelo Caminho do Anhanguera, para viabilizar os deslocamentos de bandeirantes entre São Paulo e Goiás (IBGE, 2016, p.12).

O fluxo migratório apreciado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faz menção à estrada do Anhanguera, trajeto oficial e símbolo das primeiras travessias na região. No entanto, se é possível dizer que o caminho do Anhanguera oficializou a travessia, é também preciso lembrar que a região, ainda inóspita, se tornou uma espécie de refúgio tanto para transgressores quanto para aqueles que pretendiam se isentar dos altos impostos cobrados pela coroa portuguesa. Sob a imagem de um lugar propício para o refúgio, o Sertão de Passagem tornou-se abrigo para esses novos moradores e, assim, teve início a sua formação.

Desde o princípio de sua ocupação, em meados do século XVIII até as configurações mais recentes, as noções de progresso associadas à inserção técnica e tecnológica conferem uma perspectiva dinâmica com base no capital e em suas relações de poder. Lara (2009, p. 243) considera que, a partir de 1830, e como resultado da transferência da Família Real para o Brasil, relógios de ouro e de prata tornavam-se habituais nos pulsos da elite araxaense. O tempo medido, sob a égide do progresso capitalista, levou as práticas rurais e agrícolas a níveis de sofisticação tais que, hoje, alavancam a economia local do Triângulo Mineiro e reverberam para a escala nacional e internacional, consolidando o polo de produção da agroindústria no país.

Nesse mundo rural assim domesticado, implanta-se um império do tempo medido, em que novas regularidades são buscadas. Muitas delas só se tornam possíveis quando tem êxito a vontade de subtrair às leis naturais. O respeito tradicional às condições naturais (solo, água, insolação, etc...) cede lugar em proporções diversas, segundo os produtos e as regiões, a um novo calendário agrícola baseado na ciência, na técnica e no conhecimento (Santos, 2002, p. 305).

O caminho do Anhanguera reafirma seu nome na estrada construída no final do século XIX, cujo trajeto fora iniciado por Bartolomeu Bueno da Silva e que levara os bandeirantes paulistas às minas de Goiás. Paulista, pioneiro da travessia, dos 38 cavalos que levou na viagem em 1722, apenas cinco puderam resistir à aspereza da jornada que comandou.

Pode-se dizer que esta região tem sua ocupação colonial ligada ao deslocamento, mais que propriamente à fixação. Esta viria bem mais tarde, até porque a forte presença indígena representava grande dificuldade para o povoamento eurodescendente (IBGE, 2016, p. 88).

A presença indígena, de quilombos e de pequenos proprietários que se instalavam na região organizava-se com base na subsistência que a economia oferecia e na solidariedade entre os poucos habitantes. Em pouco tempo, a técnica do capital e do progresso se instalou, convertendo todas as relações de troca estabelecidas culturalmente em uma maior escala de produção. Por isso, a técnica necessária para a garantia de um adequado uso e aproveitamento dos recursos naturais locais no mundo rural do Triângulo Mineiro tomou o lugar de mecanismos tradicionais, tornando a economia chave para os representantes da tecnocracia e do patriarcado. Dessa maneira, a nova economia estabelecia sua diferença em relação às formas de resistência - dos indígenas, dos quilombolas e dos trabalhadores rurais - à técnica associada ao capital.

A tradição econômica legou políticas de cooperação econômica que desfazem a lógica imposta pelos setores institucionais da Igreja, do Império e da República no Brasil, promovendo uma relação de troca a partir da vivência com a terra; e da relação com a terra se observam o valor e a essência do homem.

A relatividade sobre a “localização do espaço” em que se determina o valor do homem em sociedade, sua essência, aparece de modo evidente. Ela está presente no argumento de Buarque de Holanda (1975), que compara a aceitação à negação das apropriações técnicas a que nos referimos através da seguinte narrativa:

A aceitação de um elemento importado não correspondeu, entre eles (índios) uma indiscriminada aceitação das formas adventícias tradicionais de aproveitamento desse elemento. Ao passo que o europeu transigiu, em tudo, com os processos indígenas, sem se dar sequer ao cuidado de aperfeiçoá-los (Buarque de Holanda, 1975, p. 202).

Cabe ressaltar a transição do trabalho indígena para o trabalho negreiro. Enquanto São Paulo e Goiás lutavam pela extinção e pelo domínio dos índios Caiapós, muitos escravos das capitanias de Minas se rebelaram, indo formar os quilombos no Sertão de Passagem. “Com o crescimento demográfico e a expansão econômica da região, o índio não interessava mais como força de trabalho nem como povoador” (Lara, 2012, p.159). Toda a região “entre os rios Grande e Paranaíba era habitada por índios Caiapós desde não se sabe há quanto tempo. Depois começaram a surgir alguns quilombos” (Rosa, 2013, p. 81). Entre eles, os mais conhecidos são: Tengo Tengo e Ambrósio.

No complexo conjunto de aldeias confederadas de quilombos, conviviam os quilombolas (negros escravos fugidos), indígenas de várias etnias, brancos, garimpeiros, comerciantes falidos, perseguidos de todos os tipos, formando uma população heterogênea. De passagem na região que surgia, apenas os tropeiros marcavam caminho. No comércio, era visível a atividade dos tropeiros, que garimpavam e trocavam ouro e pedras por armas e munições, sal, tecidos, charque e tudo o mais que precisassem. Esses tropeiros viviam de forma autônoma por meio da agricultura de subsistência, com o eventual excedente sendo também objeto de troca.

Os modos rústicos das primeiras fazendas são observados pelos autores e, orientados para a economia local, tornaram-se motivo de preocupação para os habitantes em função dos tributos que se faziam cada vez mais presentes no comércio da região.

Nas fazendas eram produzidos lã e algodão, que eram carcados, fiados na roca, tecidos no tear e costurados para fazer as roupas. Ali era produzido o necessário para a alimentação, além do canteiro de plantas para chás medicinais. Com cinzas era feito o sabão de bola. Para tudo isso havia monjolos, moinhos, tachos, ralos, fogões à lenha, queijeira, teares, vasilhas e ferramentas variadas (Rosa, 2013, p. 84).

Com a intensificação do comércio, da ocupação e com o domínio das terras em busca de novas fronteiras, a região recebe uma nova configuração política e territorial: o Brasil deixa de ser um Império e torna-se uma República. Novas fronteiras e processos políticos administrativos são consolidados como resultado da articulação política iminente e das pretensões econômicas relacionadas ao projeto ideológico de crescimento e de progresso que se instalava na região.

Para Deleuze (2010), o pensamento nada é sem algo que force a pensar, que faça violência ao pensamento. Assim como os autores narram a organização do território no Sertão de Passagem, os textos de Rosa e Lara produzem o efeito de uma “imagem do pensamento”, que segue a racionalidade do espaço a partir de uma perspectiva crítica. A emergência de uma oposição procura uma terceira técnica, um terceiro modo de fazer, que configura um terceiro espaço.

Comentando esse tipo de literatura e seus conflitos, Ettore Finazzi- Agrò observa que

A escolha de espelhar, por outro lado, o Brasil no sertão e de apre- sentar, pelo outro, o sertão como metonímia do Mundo - isto é, de incluir o País nos confins da Região e de dilatar a dimensão regional até a com-fundir num espaço-tempo universal - acaba por delinear uma ideologia peculiar, ou melhor, uma “possibilidade de convívio político” em que se combinam, misturam-se sem nunca se resolver ou se dissolver uma na outra, duas diversas (e até opostas) imagens/ idéias da Nação: uma ligada, mais uma vez, à visão histórica de um Brasil-arquipélago, composto por junção de diferentes tradições ou de realidades distintas (raciais, étnicas, rurais, geográficas...); a outra, considerando-se o País na sua totalidade ideal e, ao mesmo tempo, característica, que o coloca, como (id)entidade única e incon- trovertível como espaço-tempo continental, no contexto histórico e sociopolítico global (Finazzi-Agrò, 2001, p.105-106).

A citação, ainda que inspirada na obra de Guimarães Rosa, reafirma o argumento apresentado anteriormente de que o conflito e a violência impulsionam a formação de um pensamento. No caso de Caminhos e fronteiras, o tema parece incluído na linhagem que associa a modernidade aos territórios apartados da contemporaneidade no momento em que se passa a história. Se há uma permanência da temática, parece haver também uma inflexão. Enquanto em Raízes do Brasil o foco era a questão temporal, em Caminhos e fronteiras a questão é espacial e traduz-se na noção de fronteira e de movimento.

Caminhos e Fronteiras poderia ser visto também como uma espécie de coleção de eventos pretéritos, ou melhor, como um conjunto de “restos”, de “cacos” de uma história integral e inatingível na sua plenitude, da qual eles guardam todavia uma parcela, um reflexo embaçado: apenas no seu combinar-se, dentro do espaço precário e nostálgico do livro, essas ruínas de um passado perfeito conseguem reencontrar sua razão de ser, a sua necessidade e a sua evidência, embora longe de qualquer ilusão de continuidade ou de coerência, fora de qualquer organicismo conseqüencial e causalista (Finnazzi- Agro, 2001, p. 156).

É nesse sentido que a estrutura de Caminhos e fronteiras parece se mover em direção nenhuma. Não haveria um sentido? Também os homens não se movem em direção progressiva. E mesmo as transformações, típicas de uma cultura de fronteira, não levam necessariamente a uma situação melhor? O que permanece, ao fim, é uma paisagem absurdamente impressionista, que, vista a curta distância, torna-se mero emaranhado de traços. O traço, a linha, a cor e seu manuseio precisam ser de grande riqueza estética. Para o geógrafo Maximilien Sorre (1948), “a técnica estende-se a tudo o que pertence à indústria e à arte, em todos os domínios da sociedade humana” (Sorre, 1948, p. 49.).

As narrativas sobre os Caiapós, baseadas em teorias da ciência moderna e condicionadas pelo racionalismo que redimensionava as noções de tempo, são analisadas com base em estudos coloniais que interpretam o conflito como se a etnia fosse composta por um povo bárbaro e violento, quando esse comportamento poderia ser justificado com base em uma reação ao interesse bandeirante de invadir as terras por eles habitadas. A exploração voltava-se tanto para a extração mineral quanto para a escravização de indígenas e a apropriação de terras por bandeiras.

Em um primeiro momento, os enfrentamentos entre mineradores e indígenas tinham como objetivo apenas empurrar os caiapós para o interior, longe das minas. A partir do declínio da mineração, contudo, houve um crescimento das atividades agrícolas e os novos colonos começaram a investir contra eles com o intuito de expulsá- -los definitivamente das terras para ocupá-las com agricultura de subsistência e rebanhos de gado, especialmente no SFP e sudoeste de Goiás (Lara, 2009, p.183).

As narrativas de Rosa (2013) e de Lara (2009) estão impregnadas por essa visão que compartilha a ideia de que seriam os Caiapós os verdadeiros “vilões” do sertão. Ao tratar do desenvolvimento da Vila de Desemboque e do início da ocupação da região, assinala Rosa (2013) que

A vila está crescendo muito depressa. [Vila de Desemboque] [...] Primeiro foi preciso acabar com os índios Caiapós. Aí vieram os garimpeiros e começou o movimento. [...] Os caiapós são muito bravos! - Sem dúvidas! A primeira Vila de garimpeiros, ali mesmo, perto de Desemboque, se chamava Taboleiro e foi dizimada pelos Caiapós. [...] Mataram e queimaram tudo, lá pelos idos de 1740. Não sobrou nada. Apenas cinzas. [...] - Dizem que os caiapós comem carne de gente! - Comem carne humana e qualquer outra, sem cerimônia, nem ritual (Rosa, 2013, p.21).

É possível perceber que o interesse dos autores em explicar uma condição de ocupação e de um processo posterior à invasão recai sobre a delimitação de uma localização e de um contexto histórico, que assenta a natureza, ou a essência, das narrativas. Assim,

a essência não mais aparece como qualidade última de um ponto de vista singular, como era a essência artista: individual e até mesmo individualizante. Ela é, sem dúvida, particular: mas é antes o princípio de localização do que de individuação. Aparece como essência local [...]. É também particular porque revela a verdade diferencial de um lugar, de um momento (Deleuze, 2010, p.58).

Ao considerar o espaço como mediador de intertrocas que se constituem através de fronteiras, Santos (2002) nos lembra da estreita relação entre o espaço e a estrutura, pois o espaço “não é uma estrutura de aceitação, de enquadramento, mas uma estrutura social como as outras. Consideramos que o valor do homem, assim como o do capital em todas as suas formas, depende de sua localização no espaço” (Santos, 2002, p. 82) e oferece margem não apenas a uma história da geografia local, mas também a uma geografia da história do lugar onde se originou a região do Triângulo Mineiro.

O espaço e o mundo rural

Rosa e Lara apresentam abordagens que remontam, a partir de narrativas, a história do lugar através da experiência vivida durante o processo de ocupação territorial, que culminou no domínio das terras por parte dos bandeirantes e no estabelecimento político e administrativo das regiões de Minas Gerais. A (re)produção do espaço decorrente do processo posterior à invasão retoma algumas das características particulares do mundo rural que são notadas nas noções de progresso e de funcionalidades locais. Todas essas relações, por sua vez, são notadas no contínuo processo de construção social e oferecem margem para destacarmos as classificações de produção do espaço vivido, concebido e percebido.

De acordo com Brandão (1989), o Triângulo Mineiro traz as heranças históricas que privilegiam sua localização quanto aos pontos de passagem, abastecimento, e interseção. A forma de um triângulo é representada na região desde o período colonial, quando se iniciaram as passagens de São Paulo para Goiás, rumo ao Planalto Central. Para Brandão, a questão regional do Triângulo Mineiro não é apenas regional (1989), porque, ao longo da sua história, ela é marcada por condicionantes internos e externos que inserem uma infraestrutura integradora, tanto em âmbito local quanto nacional.

As impressões das obras selecionadas sobre o Sertão de Passagens, Sertão da Farinha Podre e sobre o mundo rural que dele se observa retomam aspectos originais da sociedade patriarcal, as noções de progresso e o interesse na inserção local da economia nacional e global. São narrados os costumes, hábitos e tradições, maneiras de lidar com a terra e de se aproveitar da natureza que o ambiente de planaltos e cerrados oferece à atividade humana. Nesse sentido, a maneira como são abordadas as relações sociais, humanas e ambientais colocam em evidência as próprias relações de poder, uma vez que elas se infiltraram na sociedade a partir da cotidianidade e da modernidade.

Cabe aqui destacar a possibilidade de convergência de bases teóricas que se afirmam sobre o espaço geográfico e literário, revelando uma geoliteratura, de referências deleuzeanas e derridianas.

Supondo uma mudança e um movimento da forma como se observa o tempo, a desterritorialização coloca em questão a alteridade e o deslocamento do pensar em relação ao espaço. Falar em geoliteratura diz respeito, portanto, à territorialidade contida na narrativa, que, construída em um determinado “espaço-tempo”, a partir de uma forma de disposição dos elementos constitutivos, legitima o espaço geográfico calcado no espaço literário. O discurso proferido considera uma maneira própria de valorização do meio e uma visão de mundo em que se estabeleça uma relação com a terra. Deleuze (2010) menciona a construção da “imagem do pensamento” contra a manutenção convencional e cartesiana de um “pensamento da imagem”; com isso, é possível transpor a ideia para a forma de pensamento do espaço, da qual indagaríamos uma imagem do espaço em detrimento do espaço das imagens.

Essas premissas teóricas atravessam os campos da geografia, da literatura e das ciências sociais. Uma vez elaborada por teóricos da geografia crítica, como Edward Soja, David Harvey e Milton Santos, distinguem-se pela procura por territórios críticos, que possam fazer com que a geografia e a literatura respondam pela interpretação de determinado espaço ou pensamento.

Partir, partir, evadir-se [...], atravessar o horizonte, penetrar em uma outra vida.[...] A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem o que é isto. Evidentemente eles fogem como todo mundo, pensam que fugir é sair do mundo, mística ou arte, ou melhor que é algo covarde, pelo fato de se escapar aos compromissos e às responsabilidades. Fugir não é renunciar às ações, nada mais ativo do que uma fuga (Deleuze, 1992, p. 47).

Por forjar a própria identidade ao longo da trama, Domingos, o protagonista da obra de Rosa (2013), se esforça para conseguir se estabelecer no lugar de passagem a partir de uma fuga. Além disso, vive os conflitos típicos do desbravamento de um “novo mundo” no interior das terras brasileiras.

Em sua estadia pelas passagens, ele verifica a organização social e a dimensão espacial, sugerindo que a localização possibilitaria uma base para a fixação de sentido de vida. O deslocamento de protagonistas rumo ao Sertão da Farinha Podre está presente também na obra de Lara (2009), visto que a família de Bartholomeu Ferreira da Silva, patriarca e protagonista do romance, procurava escapar dos altos impostos cobrados pela corte portuguesa e dar início ao comércio local com a pequena venda, mais tarde uma grande fazenda. Ao deixar São João Del Rey, a família de Bartholomeu da Silva encontra possibilidades de se estabelecer nas terras da região onde hoje se localiza a cidade de Araxá, no Triângulo Mineiro.

Em toda a narrativa de Lara (2009) e de Rosa (2013), descrevem-se aspectos naturais do território e os modos de vida da região, que são colocados no contexto da produção do espaço. Estão presentes, ao longo do texto, as estreitas relações institucionais, sociais e familiares, para as quais a sociologia rural oferece uma imagem de ruralidade que aproxima os homens da natureza vivida, fonte necessária para repensar as análises científicas do campo. Trata-se, portanto, de repensar essas categorias a fim de responder às questões do nosso tempo. Nesse contexto, Lefebvre aponta que

la historia y sociologia rural esfueron objeto de um audaz rapto ideologico. Se la doctrina de los fisiocratas refleja las ideas e inte- reses de la gran burguesia progresista del siglo XVIII, las teorias de Le Play expresan claramente las preocupaciones y los fines de la burguesia em el poder. Por qué Le Play se interesó por los campesinos, las comunidades familiares y rurales? Porque em ellas descuebre virtudes, valores morales: La estabilidad, la obediencia, La resignación (Lefebvre, 1971, p. 22)4

Prado Júnior, no livro Formação do Brasil contemporâneo (1942), dedica um capítulo ao tema “O sentido da colonização e o povoamento”. O autor considera que o sentido é a essência do fenômeno (2002) e, portanto, destaca que o sentido é sempre dialético. A essência do fenômeno é a categoria explicativa básica para a reconstrução da realidade. Segundo Prado Júnior, são importantes dois movimentos para a apreensão da realidade: a aparência que se movimenta para a essência e a essência para a existência. Por isso, se Gilberto Freire analisa o Brasil a partir do seu passado, Prado Junior, ao contrário, pensa o país pelas suas potencialidades, isto é, pelo que pode vir a ser e pelas suas possibilidades de criação. Assim, se essa visão é considerada utópica, a de Freire é precisamente passadista.

Henri Lefebvre (1969, p. 17) afirma que, “uma vez que as pessoas acreditam que a tecnicidade está reinando, as pessoas passam a não gostar da técnica”; para ele, as instituições e os organizadores acumulam signos da tecnicidade (da racionalidade técnica) para disfarçar a sua existência. Assim, perdem-se de vista as possibilidades que a técnica oferece. “O realizável parece utopia, na mais deplorável acepção dessa palavra. Volta-se para o passadismo, e o mito da tecnocracia perpetua esse passadismo” (Lefebvre, 1969, p. 17).

Para Lefebvre, a comunicação, a participação, o amor, o descanso, o conhecimento, o jogo são sempre impossíveis (como totalidade) e possíveis (como momentos). “O impossível se torna possível a cada dia que passa. [...] uma tal racionalidade atribuiria a si mesma um programa a longo prazo, isto é, uma estratégia” (Lefebvre, 1969, p. 38).

Partimos do pressuposto de que toda diferença define um limite de identidade, uma vez que a diferença é a lógica que se realiza na frase “isto não é aquilo” e remete a uma negação da identidade, embora, também, a uma tomada de consciência das formas do rural adquiridas no espaço.

Ao propormos uma reflexão sobre a diferença como repetição ou (re) produção, trazemos à tona o conceito tal como definido por Derrida (1995), para quem a diferença é um ponto não fixo que pode estar em qualquer lugar da escala imposta pelas oposições binárias hierarquizantes. Assim, cada elemento textual, cada signo linguístico, não é interpretado por si mesmo, mas por meio de toda uma cadeia de significantes e significados que compõe um sistema de linguagem. Cada signo tem duas metades: designa um objeto e significa alguma coisa diferente (Deleuze, 2010, p. 26). Isso se deve ao fato de que a língua é um sistema que se caracteriza justamente pelas oposições, oferecendo, em primeira instância, um sentido de identificação, manutenção e, intrinsecamente, de diferença. Ela constitui um limite de significação. Para Deleuze, o lado objetivo do signo é o lado do prazer, do gozo imediato e da prática. E, por esse caminho, já se sacrifica o lado da “verdade” (Deleuze, 2010, p. 26). Indo pelo mesmo caminho, Derrida irá dizer que:

Tudo no traçado da diferença é estratégico e aventuroso. Estratégico porque nenhuma verdade transcendente e presente fora do campo da escrita pode comandar teologicamente a totalidade do campo. Aventuroso porque essa estratégia não é uma simples estratégia no sentido em que se diz que a estratégia orienta a tática a partir de um desígnio final, um telos, ou um tema de uma dominação, de um controle ou de uma reapropriação última do movimento ou do campo. […] Se há uma certa errância no traçado da diferença, ela não segue mais a linha do discurso filosófico-lógico […] (Derrida, 1991, p. 38).

Trata-se de uma desconstrução do logocentrismo5 contemporâneo, de modo que a escrita passa a ser vista não mais como uma representação de algo e, sim, a partir da infinitude de seu próprio jogo dialético, através da interpretação. Raffestin (1993) adverte para o fato de que só a análise relacional pode ultrapassar essa dicotomia entre o concebido-vivido que fundamenta a dualidade de um espaço absoluto e relativo, total e particular.

O “estrategista” não vê o terreno; mais ainda, só deve vê-lo concei- tualizado, senão não agiria. É à distância que sua ação é possível e, desde então, essa distância é a única a criar o “espaço”: O espaço estratégico não é uma realidade empírica... É, de fato, criado pelo conceito de ação, que pode ser a guerra, mas que também pode ser qualquer tipo de organização, de distribuição, de malha ou de corte. O estrategista não vê o terreno, mas a sua representação. Eis o porquê de esses elementos do código sintático, que são a dimensão, a forma e a posição, permanecerem essenciais na linguagem do território, mas devem ser retomados como plano de expressão de uma semiologia conotativa (Raffestin, 1993, p. 25).

Traçamos aqui um paralelo entre as diferenças presentes em análises sobre o espaço, em vista da criação e da produção que se afirmam na teoria da geografia. Pois, se a linguagem se aproveita de um conjunto finito de elementos para a sua representação, sob os signos da dinâmica social, ela desencadeia, por outro lado, formas inarticuladas e infinitas que correspondem à construção de um plano coletivo de paisagens do pensamento e pensamentos espaciais, cujo alvo é o espaço de representação e, portanto, um espaço subjetivo.

Considerações finais, um giro pelas margens

Assim, o projeto prometeico, podemos dizer, se encaixa no projeto da primeira obra que selecionamos para esta análise. O romance Sertão da Farinha Podre: Romance histórico dos primórdios IPIACUPA, de Ernesto Rosa (2013), esboça indícios do espírito iluminista, do positivismo e do socialismo utópico, primando pela fé no progresso material, em busca de uma sociedade perfeita, técnica, racional, científica e industrial. Já a tradição fáustica “esforça-se por desmascarar os argumentos prometeicos, revelando o caráter essencialmente tecnológico do conhecimento científico: haveria uma dependência, tanto conceitual quanto ontológica, da ciência com relação à técnica” (Sibilia, 2015, p. 47). Por essa via, os procedimentos científicos não se preocupariam com a verdade ou com o conhecimento da natureza íntima das coisas, mas com os fenômenos, sobre os quais se poderiam exercer previsão e controle. A fenomenologia, como método e, portanto, como técnica, carrega consigo a centralidade da história de modo análogo ao modelo de desenvolvimento da ciência moderna, ao passo que a concepção crítica esforçou-se pela contestação desse modelo enquanto recuperava a centralidade do espaço.

O espaço tomou a medida do tempo com alguns dos maiores nomes da teoria anglo-saxônica contemporânea, na literatura, na sociolo- gia e na geografia. E para dizer tudo: o spatial turn invocado por Edward Soja não é uma moda exclusiva de pensadores americanos. Gilles Deleuze continua repetindo que “o devir é geográfico”. Como outros, ele mencionou esse desenvolvimento geográfico ilustrado pela literatura americana como uma forma de amplificação histórica que seria feita pelos franceses: não temos o equivalente na França. Os franceses são humanos demais, preocupados demais com o futuro e o passado. Eles não sabem como se tornar, eles pensam em termos de passado histórico e futuro. Pode ser visto novamente que é um julgamento [...], no limite do estereótipo. Deve-se notar, entretanto, que para Deleuze “o que importa é o tornar-se presente: geografia e não história, o meio e não o começo ou o fim, a grama que está no meio e que cresce no meio, e não as árvores que têm feito raízes.” [...]Michel Foucault não sentiu a mesma paixão de Deleuze pela dimensão espacial ou geográfica da existência. No entanto, ele escreveu alguns textos importantes, como Outros Espaços (Westphal, 2007, p. 44-45).6

Nos últimos anos, sob variadas inspirações e influenciados por geógrafos como David Harvey, Henry Lefebvre e Edward Soja, a literatura científica tem procurado dialogar com o que muitos chamam de um spatial turn das ciências sociais e incorporar a dimensão espacial como um elemento essencial em análises sobre o mundo da técnica.

Bustamante Lourenço (2005), ao debruçar-se sobre uma geografia histórica do Triângulo Mineiro e do Sertão da Farinha Podre, adverte para o fato de que os trabalhos de Carl Sauer trataram das sociedades tradicionais e da geografia lablacheana, de populações camponesas ou de países onde as células do mundo rural não foram atingidas pelo progresso (Bustamante Lourenço, 2005, p. 37). Bustamante Lourenço investe na recomendação de três passos propostos por Sauer para a reconstrução de estágios passados de uma determinada área cultural. São eles: o uso de arquivos, o trabalho de campo e o mapeamento (Bustamante Lourenço, 2005, p. 37-40). Dessa maneira, é possível afirmar que Sauer se vale de aspectos da cultura para propor um trabalho em geografia sobre o Triângulo Mineiro em seus primórdios de desenvolvimento. Tal como Lara (2009) define, são eles: a garimpagem por documentos e jornais da época, arquivos públicos e de família, diários particulares e relatos de viajantes, que perfazem a metodologia da pesquisa que reconstrói a geografia literária da região com base na perspectiva cultural.

Pensar o mundo rural a partir de narrativas literárias contribui para a busca de novas perspectivas de pesquisa neste campo de conhecimento. Encontra-se, na literatura, uma geografia que é anterior à estruturação da história formal. A procura de geoliteraturas apresenta um caráter emancipatório à disciplina, calcada mais na relação com o espaço do que com o tempo.

Assim, o mundo rural que se apresenta nas obras considera que em toda parte há relações do território com a terra e da cultura com as paisagens rurais. Seja a partir de uma racionalidade centrada no lucro, na competência especializada e na competição legitimada como uma forma de realização do “progresso”; seja nas relações de intertrocas que implicam a conservação das culturas tradicionais. Enquanto a primeira obstrui o que resta ainda de visões e de vivências tradicionais de tempo-espaço rural, a segunda assegura a sobrevivência da identidade local sob a forma das diferenças e de sua multiplicidade.

A “verdade” questiona os espaços reais, traduzindo a cultura passada no presente e em sua renovação. Ao se refletir no presente sobre um espaço pretérito, ou sobre o envolvimento social que ocorreu no passado de determinado território, as relações sociais, econômicas e humanas passam de um espaço vivido para um espaço concebido, quando as relações internas e externas conseguem afirmar o território, ainda que alternando o sentido do ponto de vista.

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Notas

1 A “literatura menor”, segundo Deleuze, assume três principais características: em primeiro lugar, a língua é afetada por um forte coeficiente de desterritorialização; em segundo, tudo nela é política; em terceiro, tudo nela toma um valor coletivo (2015, p. 35-37).
2 Contra toda hermenêutica do imaginário e do simbólico, a máquina literária menor não reproduz os códigos estabelecidos, mas faz passar algo do real através da escrita para transformar nossas maneiras de ver e de sentir. A literatura não tem nada de um lazer inofensivo, mas é uma máquina de guerra, uma experimentação política.
3 A “máquina técnica” é um termo usado por Deleuze e Guattari em Kafka: por uma literatura menor (2015). A noção do termo fornece o modelo de uma forma de conteúdo variável para todo o campo social e o enunciado jurídico, o modelo de uma forma de expressão válido para qualquer enunciado. Máquinas técnicas são apenas indícios de um agenciamento mais complexo que, num mesmo conjunto coletivo, faz coexistir maquinistas, peças, matérias e pessoal maquinado, carrascos e vítimas, poderosos e inaptos, o Desejo, fluindo de si próprio e, no entanto, sempre perfeitamente determinado. Nesse sentido, há precisamente um eros burocrático, que é um segmento de poder e uma posição de desejo. E um eros capitalista, também. E, também, um eros fascista.
4 Os estudos de Le Play sobre a sociologia rural eram contrários aos de Lefebvre, posto que em Le Play esses estudos eram caracterizados pelo aspecto empírico e descritivo e propunham um modelo de família constituído por 15 pessoas, vivendo em habitações de três peças e consumindo, no total, 3 quilos de açúcar por ano e 50 litros de vinho: a inconsequência da ideologia reacionária aparece, claramente, nessas obras; a burguesia, que se enriquecia com o desenvolvimento do mercado, ao mesmo tempo, exaltava, por razões políticas evidentes, formas de vida anteriores e exteriores à economia mercantil e industrial (Lefebvre, 1973, p. 22). Velhas dicotomias persistiam, como a oposição entre o arcaico e o moderno, porquanto não tinha o alcance do real, possível apenas a partir da reunião entre a sociologia e a história.
5 Para o filósofo Jacques Derrida (1995), o logocentrismo é a centralidade do logos no pensamento ocidental, questionável em decorrência do seu caráter metafísico, fruto de uma consciência interiorizada que se expressa através da linguagem falada e empreende uma investigação ontológica da realidade. Na racionalidade ocidental, o que não está dentro desse contexto não é levado em consideração.
6 Tradução da autora Adriana L. de Brito.

Autor notes

Contribuições das autoras

As autoras ofereceram substanciais contribuições científicas e intelectuais ao estudo. As tarefas de preparação e redação do manuscrito, bem como revisão crítica, foram realizadas por ambas. A autora Adriana Lacerda de Brito ficou especialmente responsável pelo desenvolvimento teórico-conceitual inicial; por sua vez, a autora Joelma Cristina dos Santos realizou acréscimos e correções fundamentais a partir de sua experiência de pesquisa. O texto final expressa um trabalho coletivo, realizado em especial como resultado da dissertação de mestrado escrita pela autora Adriana Lacerda de Brito, sob orientação da professora e autora Joelma Cristina dos Santos.

Adriana Lacerda de Brito - Licenciada e bacharela em Geografia e Análise Ambiental pelo Centro Universitário de Belo Horizonte, mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia e mestranda em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Atualmente é professora substituta de geografia do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3171-9184.
Joelma Cristina dos Santos - Graduada em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, mestra em Geografia pela mesma instituição; doutora em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente é docente do curso de graduação em Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia - PPGEP - na Facip/UFU. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9294-6685.
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