GOVERNANÇA CORPORATIVA E EMPRESAS FAMILIARES EM PROCESSO SUCESSÓRIO: A VISÃO DE CONSULTORES E DE FAMÍLIAS EMPRESÁRIAS
CORPORATE GOVERNANCE AND FAMILY COMPANIES IN SUCCESSION PROCESSES: THE VIEW OF THE CONSULTANTS AND OF THE ENTREPRENEURIAL FAMILIES
GOVERNANÇA CORPORATIVA E EMPRESAS FAMILIARES EM PROCESSO SUCESSÓRIO: A VISÃO DE CONSULTORES E DE FAMÍLIAS EMPRESÁRIAS
Revista Base (Administração e Contabilidade) da UNISINOS, vol. 11, núm. 4, pp. 367-381, 2014
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Recepção: 28 Janeiro 2013
Aprovação: 04 Outubro 2013
Resumo: Estudos sobre empresas familiares mostram-se crescentes nos últimos anos e indicam a relevância da questão sucessória à continuidade das empresas para futuras gerações. A governança corporativa apresenta-se como alternativa de monitoramento e transparência à boa resolução do processo sucessório. Sua aceitação pelos membros de empresas familiares, entretanto, ainda esbarra na carência de conhecimento de experiências acerca de sua real eficácia. Diante disso, com o objetivo de descrever e analisar a governança corporativa na empresa familiar na visão de consultores e de membros de famílias empresárias, desenvolveu-se pesquisa exploratória de orientação qualitativa que congregou a base teórica relativa à governança corporativa em empresas familiares. A coleta de dados deu-se por meio de entrevistas individuais semiestruturadas com consultores em governança corporativa e membros da segunda e da terceira geração de famílias empresárias. Analisados à luz da literatura pertinente, os resultados apontam que ambos compartilham visão favorável à relevância da governança corporativa às empresas familiares em processo sucessório. Compartilham, também, a visão de que, apesar de o processo sucessório ser árduo, longo e de envolvimento emocional expressivo – por meio de regras, estruturas definidas de papéis, e possibilidade de minimizar os conflitos latentes nas relações existentes –, a ação da governança corporativa fortalece a empresa familiar para crescer e se desenvolver, perpetuar-se, e, inclusive, tornar-se mais atrativa ao mercado.
Palavras-chave: empresa familiar, processo sucessório, governança corporativa.
Abstract: The studies on family companies have significantly increased in the past years, indicating the succession relevance for the longevity of these companies to future generations. Corporate governance has been presented as a transparent monitoring alternative in the succession process. Its acceptance by members of family companies, however, is not easy due to the lack of information regarding its actual effectiveness. Aiming to describe and analyze corporate governance in family businesses from the point of view of consultants and members of the family businesses, an exploratory research was developed on a qualitative basis that highlighted the theory concerning corporate governance in relation to family businesses. The collection of data was through individual semi-structured interviews with corporate governance consultants and members from the second and third generation of the entrepreneurial families. The data analyzed with the aid of a consistent literature indicate that both consultants and members of entrepreneurial families share a favorable view of the relevance of corporate governance to the families in a succession process. Besides, they share a view that even though the succession process is tough, long and requiring highly emotional involvement, the action of corporative governance fortifies the family business to grow and to develop, to perpetuate and also to become more attractive to the market through some rules, defined structures of roles and the possibilities of minimizing the latent conflicts in the relationships.
Keywords: family business, succession process, corporate governance.
INTRODUÇÃO
Estimativas apontam que em torno de 80% do total de empresas no mundo são familiares (Family Business School, 2008; Gersick et al., 1997). Mesmo assim, não há consenso quanto ao conceito de empresa familiar (Casillas Bueno et al., 2007; Gallo, 2004). A abordagem mais usual é a de ser uma organização na qual uma ou poucas famílias concentram o poder de decisão, incluindo o controle da sociedade e a participação na gestão do negócio (Bornholdt, 2005).
Empresas familiares combinam as tensões da vida familiar com as tensões da vida empresarial, e, em nenhum momento, elas são unificadas de forma tão forte como na troca de geração. Muitos falham na transição de gerações. Apenas um terço das empresas familiares sobrevive até a segunda geração, sendo que somente 15% destas chegam à terceira (The Economist, 2004; Family Business School, 2008). Para 65% das empresas que não conseguem sobreviver ao longo de gerações, o motivo maior está no conflito de interesses entre os membros da família. Esses números refletem a dificuldade de perenizar o negócio familiar na medida em que envolve objetivos e participantes diversos e engloba interesses amplos, como explicam Gersick et al. (1997) através de um modelo que define três dimensões em que uma empresa familiar está inserida: sociedade, empresa e família.
Uma forma de organizar, profissionalizar e buscar transparência nas ações visando a diminuir conflitos de interesses e perpetuar a empresa está na implementação de práticas sugeridas pelo sistema denominado Governança Corporativa. Trata-se de um sistema de regras e de critérios que objetiva uma convivência harmoniosa entre o capital, a gestão, a família e a sociedade (Bornholdt, 2005). Ao estabelecerem regras, trabalharem com transparência e utilizarem boas práticas, as empresas familiares tendem a alcançar um nível de comprometimento, interesse por ações de longo prazo, reações rápidas e amor pela companhia difíceis de alcançar em empresas não familiares (Gersick et al., 1997).
Tendo a empresa familiar características peculiares no sentido de propriedade e também de relações afetivas e em se considerando que o Brasil está inserido em uma economia cada vez mais dinâmica, globalizada e complexa, em que somente empresas bem estruturadas em sua gestão serão capazes, ao longo do tempo, de se manter competitivas e perenes nesse cenário, torna-se fundamental que existam regras de convivência estabelecidas e que se busquem melhores práticas de gestão e gerenciamento de conflitos para o crescimento saudável e a perpetuidade das organizações (Steinberg e Blumenthal, 2011).
Considerando que a maioria dos empreendimentos brasileiros é constituída por empresas familiares, possuindo uma importância socioeconômica relevante e ocupando um espaço em economias industrializadas e emergentes (Lescura et al., 2012; Altaf e Troccoli, 2010) e que muitos dos fracassos na perpetuidade das empresas familiares decorrem da incapacidade dos fundadores e dos herdeiros de compreenderem a necessidade de se prepararem e se estruturarem para conduzirem os negócios de acordo com as atualizações exigidas pelo mercado (Bernhoeft e Gallo, 2003), é de grande relevância compreender a governança corporativa nas empresas familiares.
Em relação ao que foi exposto até o momento, apresenta-se como pertinente a seguinte questão de pesquisa: como a governança corporativa é vista na empresa familiar? A fim de respondê-la, objetivou-se compreender como a governança corporativa é vista na empresa familiar por consultores e membros de famílias empresárias.
A seguir, encontrar-se-ão os itens: revisão da literatura; procedimentos metodológicos; apresentação e análise dos resultados; e considerações finais do estudo.
REVISÃO DE LITERATURA
GOVERNANÇA CORPORATIVA
Recentes pesquisas ilustram a importância da governança corporativa em mercados desenvolvidos e emergentes (Young et al., 2008; Shleifer e Vishny, 1997). A governança corporativa vem sendo utilizada há muitos anos; entretanto, somente nas últimas décadas se tem registros de estudos mais aprofundados e sistemáticos (Alvares et al., 2008), cuja consequência tem sido o crescente número de empresas dispostas a aderir a essas práticas (Andrade e Rossetti, 2012).
Ainda nos anos 1950 e 1960, havia, na maioria das economias, a presença forte do acionista controlador familiar. Nos anos 1970, os primeiros conselhos de administração começam a surgir, contribuindo com uma maior divisão de poder entre acionistas e executivos (Lodi, 2000). Há, inclusive, quem argumente que o século XIX foi marcado pelo empreendedorismo, o século XX, pela gestão, e que o século atual será o da governança corporativa (Tricker in Alvares et al. 2008).
No Brasil, os princípios da governança tiveram seus primeiros movimentos de inserção no início dos anos 1990, após a estabilização monetária e a privatização de empresas, que levaram a uma experiência inicial de controle compartilhado. Para Alvares et al. (2008), antes ainda, nos anos 1980, a partir da quebra do modelo de financiamento do Estado, foi necessário que as empresas buscassem fontes alternativas de recursos. Para conseguir captar dinheiro estrangeiro e alavancar o mercado de capitais, a solução estaria numa boa governança corporativa, que, através das práticas modernas e transparentes, adequava as empresas para essa nova realidade. Para Andrade e Rossetti (2012), o surgimento da governança se deu também através do conflito de agência, que criou regras para dirimir os problemas advindos da separação entre a propriedade e a gestão e de interesses entre acionistas minoritários e majoritários. Jensen e Meckling (1976) definem o relacionamento de agência como um contrato onde uma ou mais pessoas (quem detém a propriedade) contrata outra pessoa (o agente) para prestar um serviço onde o contratante delega o direito de decisão sobre seu direito de propriedade. Os mesmos autores afirmam que a propriedade concentrada é benéfica para o valor da firma, pois, dessa forma, grandes investidores podem monitorar melhor a administração, entretanto, a propriedade concentrada é cada vez mais difícil em um mundo onde as empresas necessitam de capital, e, nesse âmbito, cria-se o espaço para as práticas de governança. (Jensen e Meckling, 1976).
Em 1994, foi criado o Instituto Brasileiro de Conselhos de Administração, que posteriormente se transformou no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC, fundado em 1999 (Bernhoeft e Gallo, 2003). O IBGC é uma organização sem fins lucrativos que tem como propósito ser uma referência em governança corporativa no Brasil, desenvolvendo e difundindo as melhores práticas para um melhor desempenho das empresas brasileiras. Propõe a criação de conjuntos de mecanismos que assegurem o comportamento dos executivos condizente com as expectativas e os interesses dos acionistas (IBGC, 2010).
A governança corporativa pode ser definida como o sistema pelo qual as sociedades são dirigidas e monitoradas. “As boas práticas de governança corporativa convertem princípios em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuindo para sua longevidade”. (IBGC, 2009, p. 19). Para Brenes et al. (2011, p. 280), a “Governança Corporativa é um guia e uma estrutura de gestão buscando alinhar e organizar a gestão do patrimônio e a gestão do negócio”. Claessens e Yurtoglu (2012) apontam uma definição ampla da governança em que seu objetivo seria de maximizar as contribuições da companhia para o âmbito da economia – incluindo todos stakeholders. Nessa definição, a governança corporativa incluiria as relações entre os acionistas, os credores e as empresas; entre o mercado financeiro, as instituições e a corporação; e também entre empregados e a corporação. No aspecto econômico, Shleifer e Vishny (1997) afirmam que a governança corporativa lida com os meios pelos quais os agentes financeiros se asseguram de receber o retorno de seus investimentos. Uma melhor governança corporativa pode beneficiar e facilitar o acesso a financiamento, baixo custo de capital e melhorar a performance da companhia, além de conduzir a um tratamento mais favorável aos acionistas (Claessens e Yurtoglu, 2012).
A governança apoia-se em princípios norteadores do funcionamento das empresas, assim descritos por Galvão et al. (2005) e Alvares et al. (2008):
- Transparência: incentivo e desenvolvimento da comunicação interna e externa, de forma clara, rápida e franca, que resulta em clima de confiança aos que participam da informação.
- Equidade: tratamento justo e igualitário a todos envolvidos com a empresa, tanto acionistas como colaboradores, sociedade, clientes e família (stakeholders).
- Prestação de contas: os agentes da governança devem prestar contas de todas as suas ações a quem os elegeu, assim como se responsabilizar por seus atos durante seu exercício.
- Responsabilidade Corporativa: os acionistas e dirigentes devem zelar pela perpetuidade dos negócios e para tanto precisam tomar ações de cunho social e ambiental nas operações da empresa.
Mesmo havendo diferentes princípios e regras em que se baseiam as estruturas da governança em diversos países, todos possuem uma interação entre três subconjuntos chamados de: Propriedade, Conselho de Administração e Direção Executiva. Eles se apresentam com demandas e responsabilidades próprias (Andrade e Rossetti, 2012). Para que funcionem de maneira eficaz, os proprietários precisam ter interesses alinhados; e os membros do conselho, uma forte interação construtiva, que represente os acionistas e, ao mesmo tempo, monitore a gestão e cubra resultados. É através do triângulo básico proprietários-conselho-diretoria que se define o sistema de relações entre os agentes e os órgãos do ambiente da governança.
EMPRESA FAMILIAR
Em um sentido amplo, as empresas familiares podem ser definidas como sendo “aquelas com participação acionária relevante de uma família ou de grupos familiares, mas cuja gestão é exercida por executivos que não pertencem necessariamente a uma dessas famílias.” (Bornholdt, 2005, p. 15). Já numa definição mais restrita, o autor afirma que a empresa familiar é “aquela cujas organizações e administração estão sob o comando dos próprios sócios da família ou grupos familiares.” (Bornholdt 2005 p. 15). Uma empresa familiar também é definida como “aquela que tem sua origem e sua história vinculadas a uma família; ou ainda, aquela que mantém membros da família na administração dos negócios.” (Bernhoeft, 1987, p. 29). Três características são apontadas como definidoras de uma empresa familiar: a propriedade ou o controle sobre a empresa; o poder que a família exerce sobre a empresa; e a intenção de transferir a empresa a futuras gerações, já incluindo, muitas vezes, membros dessa nova geração na empresa. Normalmente, sua estrutura de propriedade tende a se pulverizar ao longo do tempo e através das gerações (Gallo, 2004).
Famílias são grupos sociais que fornecem um sentido de obrigação entre seus participantes. “Quanto mais forte o senso de família, mais os membros deste grupo se sentem obrigados uns para com os outros.” (Davis, 2006, p. 1). Kenyon-Rouvinez e Ward (2004) ressaltam pesquisas mostrando que as empresas controladas por famílias agregam não somente no sentido de performance financeira, mas também em termos de duração. Sendo assim, apesar dos desafios familiares suplementares, elas duram, em média, muito mais tempo do que as empresas não familiares, vítimas das ondas de fusão e aquisição. Assim, tem se admitido que as empresas familiares sejam performantes, necessárias e duráveis, por outro lado, as famílias precisam compreender que, para se perpetuarem, necessitam superar diversos desafios como: a sucessão, a viabilidade do negócio, a harmonia familiar, acionistas responsáveis e unidos. Dessa forma, o fundador empreendedor não deixa somente para seus descendentes uma herança patrimonial, mas também uma situação que os torna sócios de uma empresa e membros de uma família empresária.
GOVERNANÇA CORPORATIVA NA EMPRESA FAMILIAR
O processo de governança em uma empresa familiar visa a implementar normas para garantir que os interesses familiares sejam conciliados com os objetivos da empresa. “Definir normas e regras entre os diferentes interesses individuais em prol do coletivo (empresa) é fundamentalmente um processo de renúncias” (Bornholdt, 2005, p. 21). Para tanto, segundo o autor, competências como capacidade decisória em conjunto, planejamento das ações e mudanças na propriedade, são essenciais para que as lideranças e o poder sejam passados para gerações futuras. Na particularidade da empresa familiar, a governança corporativa estabelce “relações não apenas no âmbito da separação entre propriedade e gestão (como no caso das empresas não familiares), mas no âmbito das relações entre família, patrimônio societário (propriedade) e empresa (gestão)” (IBGC, 2007, p. 23).
A governança trata do espaço onde os aspectos racionais e objetivos das normas estabelecidas no sistema (família, empresa e sociedade), além de diferentes sentimentos que podem aparecer, são tratados, elaborados e integrados ao processo que envolve conquistas individuais, coletivas e renúncias pessoais (Bornholdt, 2005). Para o autor, o processo de governança corporativa nas empresas familiares tem, ainda, o objetivo de analisar e desenvolver critérios para que haja uma convivência mais harmoniosa entre o capital, a gestão e a sociedade em que está inserida. Carvalho (2007) acrescenta ser através da governança que se estabelecem mecanismos ou princípios que governam o processo decisório dentro de uma empresa. Um bom sistema de governança da empresa familiar conduz à transparência das relações e torna, na maioria das vezes, as famílias e as empresas mais fortes (Kenyon-Rouvinez e Ward, 2004).
Uma proposta de estrutura sistêmica para tratar da governança familiar abrange três eixos: sistema empresarial e o conselho de administração (gestão); sistema societário e a assembleia de acionistas e sócios (propriedade); sistema familiar e o conselho de família (familiar). A análise de cada estrutura possibilita identificar os papéis de cada sistema no processo decisório e entre eles mesmos, para que sejam definidos o poder, as atribuições e as responsabilidades de cada um. O sucesso na implementação do processo, dessa forma, está amplamente ligado à capacidade da família em atuar nessas três esferas, através da criação de mecanismos legais para administrar eventuais conflitos (IBGC, 2007).
A Figura 1 reproduz o modelo conceitual de empresa familiar de John Davis (Gersick et al., 1997), que representa a empresa familiar formada por três subsistemas independentes, porém superpostos, onde cada um dos círculos possui diferentes papéis.
O modelo ajuda a explicar os diferentes papéis e subsistemas possíveis na relação empresa-família: (1) membro da família que não trabalha na empresa e não é acionista; (2) acionista da empresa, mas não trabalha na gestão e nem faz parte da família; (3) empregados que não são membros da família e não detêm propriedade; (4) acionistas familiares que não trabalham na empresa; (5) acionistas que trabalham na empresa, mas não fazem parte da família; (6) membro da família que trabalha na empresa; (7) acionista membro da família que trabalha na empresa.
O autor indica quais são as estruturas existentes em cada subsistema que auxiliam na gestão de interesses e na separação dos núcleos para que haja menor conflito e maior profissionalização. No subsistema propriedade, o autor sugere que exista um acordo de sócios ou ainda um conselho de acionistas; no subsistema empresa, o foco é a gestão do negócio; e, no subsistema família, sugere que seja criado um conselho de família e uma assembleia de família. Existem ainda os subsistemas integrados, em que há superposição de papéis.
ESTRUTURAS DA GOVERNANÇA
A seguir serão descritos o conselho de família, o conselho societário e o conselho de administração.
CONSELHO DE FAMÍLIA:
Algumas famílias utilizam o conselho de família, que ajuda a guiar o grupo de funcionários familiares e prepará-lo para papéis de alta liderança no negócio, além de representar a família como um todo. O conselho de família possui maior importância à medida que a organização familiar cresce e aumenta sua riqueza principalmente para os sócios e membros da família. Para tanto, “administrar a complexidade de recursos e necessidades dos familiares e garantir-lhes um futuro é a proposta desafiadora para a atuação dos conselhos de família.” (Bornholdt, 2005, p. 93). Eles tendem a definir também a criação de escritórios da família, os chamados “family offices”, órgãos separados da empresa e do conselho familiar, mas que proporcionam maior segurança e conforto aos membros da família em assuntos tanto patrimoniais, como de relação afetiva, educação e orientações para o futuro.
CONSELHO SOCIETÁRIO:
O conselho societário, ou de sócios, tem como missão ser um representante e gerenciar a comunicação entre familiares, sócios e administradores da empresa frente a assuntos de investimentos, participações acionárias nas empresas, heranças, poder de voto, dentre outros (Bernhoeft e Gallo, 2003; Bornholdt, 2005). Os estatutos são um contrato que obriga as partes entre si e frente a terceiros, incluindo diversos tipos de acordos legais (Gallo, 2004). A formulação de um acordo entre sócios e herdeiros de empresas familiares advém da necessidade de existir um equilíbrio entre os membros da sociedade, visando a minimizar conflitos que possam ocorrer futuramente para que o patrimônio seja preservado e o negócio se perpetue ao longo do tempo. Por meio desse pacto, os interesses dos sócios podem ser assegurados, tais como a participação na administração da sociedade, a manutenção perene de determinadas disposições societárias, a política empresarial e a distribuição de dividendos. O acordo de sócios trata ainda “da compra e venda de suas participações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto ou do poder de controle” (IBGC, 2009, p. 22).
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO:
Ao conselho de administração é atribuído um papel crucial como força interna de controle de uma empresa. Em praticamente todos os modelos de governança corporativa, principalmente naqueles que separam propriedade e gestão, não é possível dissociar a governança corporativa do conselho de administração (Andrade e Rossetti, 2012). Davis (2007) afirma que as duas estruturas mais importantes da governança são o corpo diretivo e o conselho de administração das empresas.
O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa define o conselho de administração como:
“[...] um órgão colegiado encarregado do processo de decisão de uma organização em relação ao seu direcionamento estratégico, é o principal componente do sistema de governança. Seu papel é ser o elo entre a propriedade e a gestão para orientar e supervisionar a relação desta última com as demais partes interessadas. O conselho de administração recebe poderes dos sócios e presta conta a eles.” (IBGC, 2009, p. 29).
As atividades principais de um efetivo conselho em um processo de governança de uma empresa familiar são definidas por Davis (2007): criar uma identidade adequada para o negócio e seus empregados; estabelecer uma diretriz sensível e motivadora do negócio; manter a disciplina do negócio para ajudar a alcançar sua identidade e perseguir nessa direção; criar planos, afirmações, políticas, regras e acordos, que, bem administrados, sirvam como suporte para a consecução dos objetivos da governança corporativa. Brenes et al. (2011) acrescentam outras responsabilidades como: assegurar tratamento igual e justo a todos acionistas; servir como meio de comunicação entre os executivos de alto escalão e os acionistas. Para o autor, o maior desafio para todos os membros do conselho de administração é alinhar a estratégia do negócio com os interesses do acionista. Nesse sentido, os membros do conselho desempenham um papel importante na implementação da estratégia competitiva da empresa. Por outro lado, o maior papel a ser desempenhado pelos executivos consiste em executar a estratégia e prover informações seguras, relevantes tanto para os acionistas quanto para os membros do conselho.
Em virtude do excessivo controle do capital centralizado nas empresas familiares, nem todas possuem um conselho de administração, ou o conselho é composto quase que exclusivamente por membros da família. Essa estrutura, muitas vezes, afeta o objetivo da governança corporativa, em virtude de interesses pessoais ante a saúde da companhia. Dessa forma, a decisão de estruturar um conselho de administração em uma empresa familiar está amplamente relacionada ao estágio em que ela se encontra no ciclo de vida da empresa (Brenes et al., 2011).
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
MÉTODO DE PESQUISA
O presente estudo resulta de uma pesquisa exploratória, de natureza qualitativa, que se propôs a descrever e analisar a governança corporativa na empresa familiar na visão de consultores e de membros de famílias empresárias. Para Silverman (2009), a grande força da pesquisa qualitativa é sua disponibilidade em analisar fatos que ocorrem cotidianamente em nossos ambientes. Minayo (2012) afirma que a pesquisa qualitativa responde questões relativas ao universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças e dos valores.
PARTICIPANTES DA PESQUISA
Participaram da pesquisa consultores e membros de famílias empresárias. Os consultores são de grande renome no mercado e possuem mais de 20 anos de experiência nessa área de atuação, em especial no que diz respeito à governança corporativa. Os membros de famílias empresárias são da segunda ou terceira geração de empresas que têm entre 25 e 60 anos de fundação e iniciaram a implementar a governança corporativa nos últimos dez anos. Com o intuito de preservar o sigilo das informações e propiciar um aprofundamento acerca do tema, não foram revelados os nomes dos participantes e das empresas nas quais eles atuam. A escolha dos participantes foi feita através de uma amostragem teórica e intencional, ou seja, foram escolhidos de acordo com sua relevância para o tema. Eles foram acessados através de indicações de profissionais da área da governança corporativa. É importante esclarecer que dois dos consultores entrevistados são psicólogos, e que suas falas ressaltam preocupações primeiras com a família, enquanto os outros dois consultores deram maior ênfase aos aspectos da governança corporativa. Diferentemente dos consultores, os membros familiares trouxeram algumas importantes peculiaridades a respeito das empresas familiares. As Tabelas 1 e 2 apresentam as principais características dos participantes da pesquisa.
CONSULTOR | IDADE | TEMPO DE PROFISSÃO | FORMAÇÃO | ATUAÇÃO | GÊNERO |
Consultor 01 | 47 anos | 23 anos | Engenheiro | São Paulo | Masculino |
Consultor 02 | 62 anos | 30 anos | Administrador | São Paulo | Masculino |
Consultor 03 | 56 anos | 23 anos | Psicóloga | Rio Grande do Sul | Feminino |
Consultor 04 | 45 anos | 19 anos | Psicóloga | Rio Grande do Sul | Feminino |
FAMILIAR | ANO DE FUNDAÇÃO | RECEITA | IDADE | PROFISSÃO | GERAÇÃO | GÊNERO |
Familiar 01 | 1949 | R$ 3,36 bilhões | 52 anos | Vice-presidente do CA | Segunda | Masculino |
Familiar 02 | 1949 | R$ 4,4 bilhões | 23 anos | Estudante` | Terceira | Feminino |
Familiar 03 | 1962 | R$ 500 milhões | 56 anos | Arquiteta | Segunda | Feminino |
Familiar 04 | 1982 | R$ 300 milhões | 33 anos | Diretor Executivo | Segunda | Masculino |
COLETA DE DADOS
ENTREVISTAS SEMIESTRUTURADAS
A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas semiestruturadas com um total de oito sujeitos: quatro consultores que atuam com governança corporativa em empresas familiares e quatro membros de famílias empresárias que estão ao menos na segunda geração e que implementaram a governança corporativa em suas empresas.
As entrevistas, norteadas por um roteiro pré-estabelecido constituído a partir do referencial teórico e adaptado à medida que as entrevistas com os consultores e membros familiares realizavam-se, ocorreram nos locais indicados pelos próprios entrevistados. Assim, elas foram realizadas em suas residências, seus escritórios ou suas empresas. As entrevistas, que tiveram duração média de 60 minutos, foram gravadas e posteriormente transcritas com a permissão dos entrevistados, que assinaram termo de consentimento prévio. Em virtude de o tema tratar de assuntos “confidenciais” e de difícil trato, como conflitos familiares, foi necessário realizar acordos de confidencialidade das informações. Entretanto, cabe ressaltar que a pesquisadora é, também, membro de uma empresa familiar, o que se considera ter contribuído para uma maior abertura dos consultores e familiares quanto à temática abordada. O conteúdo das entrevistas, à luz da literatura pertinente, originou as categorias de análise.
ANÁLISE DE DADOS
Segundo Minayo (2012), dentre os procedimentos metodológicos da análise de conteúdo, destacam-se: categorização, inferência, descrição e interpretação. A autora sugere os seguintes passos para esse processo: decompor o material a ser analisado em partes; distribuir as partes em categorias; fazer uma descrição do resultado da categorização; fazer inferências dos resultados; e interpretar os resultados obtidos com o auxílio da fundamentação teórica adotada.
Dessa forma, após a transcrição literal do conteúdo das entrevistas realizadas e gravadas, primeiramente, procedeu-se a uma leitura cuidadosa e compreensiva de todo o material. A essa leitura, que propiciou uma visão geral do que disseram consultores e membros das famílias empresárias, seguiram-se os cinco passos de análise elencados por Minayo (2012).
Ao término da análise, foi realizada uma síntese interpretativa, que atinge uma compreensão mais profunda do conteúdo das mensagens através de recursos como a inferência e a própria interpretação à luz da teoria pertinente (Minayo, 2012; Bardin, 2011).
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS
No que diz respeito à visão de consultores e de membros de famílias empresárias, apresentam-se as seguintes categorias: (a) visão geral referente à governança corporativa; (b) motivadores da implementação da governança corporativa; (c) facilidades e dificuldades encontradas na implementação do processo; (d) estruturas essenciais da governança; (e) decorrências da implementação da governança corporativa na empresa familiar; (f) preparação dos herdeiros e perpetuação dos valores; e (g) processo sucessório e governança corporativa.
A VISÃO GERAL REFERENTE À GOVERNANÇA CORPORATIVA
A percepção geral dos consultores e dos familiares acerca da governança corporativa é positiva. Em suas falas, percebe-se que consideram a implementação de um processo de governança árduo, de longa duração e carregado de aspectos subjetivos dificultadores, mas, ao mesmo tempo, consideram que a implementação facilita as relações familiares, os interesses dos acionistas e agrega valor à empresa. O consultor C01 sintetiza a atuação em governança corporativa: “visa equilibrar os interesses de vários stakeholders: sócios, fornecedores, funcionários, clientes, vizinhos, etc, sempre em beneficio da empresa e visa ajudar nas decisões da empresa” (C01).
Uma das questões levantadas e enfatizadas pelos familiares F01 e F04 diz respeito às regras e à transparência decorrente da governança na empresa familiar. A governança surge como um sistema que rege e monitora as ações dos indivíduos familiares e não familiares, além de definir os papéis a serem desempenhados em todos os âmbitos de atuação da empresa, pois, além dos conflitos existentes entre os executivos, conselheiros e acionistas, nas empresas familiares, existem, ainda, interferências das relações parentais, problemas de sucessão e sentimentos envolvidos no convívio entre os membros da família, conforme evidenciado pelo IBGC (2007). A transparência por meio de estruturas de regras claras é vista pelo familiar F04 como um elemento agregador de valor ao acionista, pois permite maior segurança com relação às ações executadas pelos gestores.
Ao efetivamente estruturar regras entre a família e a empresa, o relacionamento familiar tende a ser menos conflituoso e mais harmonioso, lembrando o que Gersick et al. (1997) afirmam a respeito do nível de comprometimento, do interesse por ações de longo prazo, de reações rápidas e de amor pela companhia. Os familiares F02, F01 e F03 corroboram essa ideia. O familiar F02 exemplifica:
“Conseguimos nos relacionar bem como família e também definir muito bem nosso papel com a empresa por causa das regras, tem que ter regras, tem que ter órgãos, tem que ter um instrumento que consiga harmonizar todos os interesses” (F02).
A governança corporativa é vista tanto pelos familiares quanto pelos consultores como essencial ao desenvolvimento de uma empresa familiar e condição básica para a perpetuação do negócio ao longo das gerações.
MOTIVADORES DA IMPLEMENTAÇÃO DA GOVERNANÇA CORPORATIVA NA EMPRESA FAMILIAR
Para consultores e membros de famílias empresárias, as necessidades de implementação das regras da governança corporativa são similares. Tais necessidades seriam a profissionalização e a perpetuação do negócio como uma solução para a sucessão, além da geração de valor para o mercado.
Diante desses aspectos, é considerada pertinente a adoção de mecanismos de regulação da governança, por proporcionar que a empresa familiar obtenha destaque, tornando-se atrativa para o mercado, conforme afirmam Alvares, Giacometti e Gusso (2008), criando valor frente ao ambiente de negócios altamente competitivo. A estrutura de governança aumentaria o valor da sociedade e forneceria acesso maior ao capital a custos mais baixos, garantindo a perenidade da sociedade e um alto interesse dos mercados, das corporações e das nações (Andrade e Rossetti, 2012; Galvão et al., 2005).
Considerando que muitos negócios necessitam de capital intensivo de investimento para seu crescimento, a implementação de regras da governança corporativa profissionaliza o negócio a ponto de se tornar mais confiável e ter maior valor atribuído aos olhos de avalistas e investidores. Com base nisso, o consultor C02 argumenta que um dos maiores motivadores que leva as empresas familiares a implementarem a governança corporativa vai além de sua estruturação e organização por uma necessidade interna:
“Não é simplesmente para regularizar a situação de gestão, ou disciplinar o processo de sucessão, ou de herança; mas por um motivo muito mais simples, mas de uma importância enorme: é para criar maior valor para os acionistas. Porque tudo aquilo que distrai a atenção, que acaba desviando a atenção do que é o negócio, acaba tirando o foco dos problemas importantes do negócio para lidar com emoções exacerbadas [...]” (C02).
F04 acrescenta outro motivador decorrente da estruturação:
“A necessidade de profissionalização torna-se essencial para a atração de recursos externos e como definidor do futuro da empresa, visto que, quanto mais preparado estiver o sucessor para continuar e desenvolver o negócio, mais chances terá o mesmo de se perpetuar” (F04).
Com a empresa se estruturando, crescendo e diluindo o controle acionário através da passagem do bastão às novas gerações, é consenso entre os consultores que se torna fundamental a governança corporativa para que haja ações reguladas e que os interesses do coletivo sejam mantidos em prol da empresa e da família.
Dessa forma, a maturidade da organização e a necessidade de profissionalização da gestão e das estruturas de relacionamento com a família foram destacadas tanto pelos consultores quanto pelos familiares. Para o consultor C01:
“Quando o pai, o fundador é quem ainda está na gestão, é o presidente, o presidente do conselho, o principal fundador, o sócio majoritário, então não tem tanta preocupação, mas conforme as novas gerações vão entrando, e vão sendo sócias, ai realmente você tem uma preocupação de estar com o olho lá” (C01).
Os familiares F03 e F04 também consideram como sendo desencadeante do início da governança esta necessidade de profissionalização, como afirma F03:
“O que leva uma empresa a buscar a governança é uma maturidade. Existe um momento que ou tu cresces ou tu somes. A governança se dá a partir do momento que essas pessoas envolvidas percebem que o negócio cresceu tanto que precisa ser ordenado” (F03).
Outro motivador que leva empresas familiares a se interessarem por implementar as regras sugeridas pela governança é o processo sucessório. Tanto os consultores C01 e C02 como os familiares F01 e F02 concordam que a organização e a profissionalização da empresa surgem concomitantemente a uma idade da empresa em que o fundador necessita se preparar e se planejar para a sucessão de sua gestão na empresa. Visando à perpetuação do negócio ao longo de gerações, o fundador, ou ainda o presidente da empresa se vê frente ao dilema de como continuar o negócio a fim de que este se mantenha além da sua própria existência. O processo de sucessão é longo, mas pode ser um motivador importante para que a empresa se organize e busque as ferramentas da governança corporativa como apoio e estruturação no decorrer do processo. Segundo Ward (1997), as motivações de empresas comprometidas com o longo prazo são de que haja uma continuidade do negócio familiar nas próximas gerações, assegurando que o negócio contribua para a sociedade e para a perpetuidade do legado dos valores familiares. Os consultores C02 e C03 afirmam que a sucessão precisa ser trabalhada como uma solução para o negócio, calcada no desejo do fundador de que aquele se perpetue.
Além da necessidade de encontrar uma solução para a sucessão, a governança corporativa surge, também, da necessidade de dirimir conflitos familiares. Segundo Lescura et al. (2012), o conflito organizacional emerge quando existem divergências de interesses entre os atores, tornando a empresa palco de disputa entre seus membros. Considerando que a governança corporativa é um sistema de normas e regras que rege as ações dos indivíduos em prol do coletivo (Bornholdt, 2005), é através de suas ferramentas e estruturas que os conflitos, relativos à relação entre membros familiares e a empresa, passam a ser manejados. Quando a empresa busca a governança corporativa, em geral, em decorrência de uma crise, trata-se de um processo que tende a ser mais doloroso, mas de vital importância para a continuidade da empresa, como afirmam os consultores C02 e C04.
DIFICULDADES E FACILIDADES NA IMPLEMENTAÇÃO DO PROCESSO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA NA EMPRESA FAMILIAR
A governança corporativa é indicada na literatura (IBGC, 2007; Gallo, 2004; Steinberg e Blumenthal, 2011) como uma solução para a perpetuação das empresas familiares mesmo sendo um processo longo e árduo. Os consultores e os membros das famílias empresárias em sua segunda geração enfatizaram alguns elementos que tornam o processo sucessório ainda mais árduo, longo e conflituoso. Os consultores elencaram a ausência de “uma pessoa forte” que lidere o processo e a ausência de ampla conscientização dos fundadores quanto à necessidade de a empresa familiar trilhar o percurso da sucessão, antes que este seja desencadeado por motivos não previstos. Os membros das famílias empresárias elencaram os sentimentos íntimos dos envolvidos que mobilizam o processo sucessório. O fundador relaciona a sucessão à perda de poder e à finitude da vida. O sucessor vincula a expectativa de desempenho do papel que lhe cabe às características pessoais e à imagem do fundador. Tais elementos constituem dilemas, conforme apontado por Flores Jr. e Grisci (2012), e interferem nas tomadas de decisão relativas à implementação da governança corporativa e mesmo nas suas possibilidades de êxito.
O primeiro desafio ao fundador tende a ser perceber que é necessário mudar e incorporar novas formas de gestão, de processos e novas estruturas ao negócio. Essa dificuldade em perceber as necessidades de mudanças está ligada também, segundo o familiar F02, à necessidade de possuir um líder carismático e forte para que as pessoas possam se engajar mais e o processo seja mais efetivo.
Além da falta de conscientização dos membros da empresa e da família ser considerada, pelos consultores, um dificultador da implementação do processo de governança, há os conflitos que surgem nas relações familiares devido às exacerbações das emoções vistas como empecilhos para a continuidade do processo. Kenyon-Rouvinez e Ward (2004) consideram que, para se perpetuarem, as empresas familiares necessitam superar diversos desafios relativos à sucessão, à viabilidade do negócio, à harmonia familiar e à união dos acionistas. O consultor C02 se refere a esta questão: “A grande maioria dos casos que frustram na implementação do processo são aqueles em que a emoção prevaleceu em cima da razão.”.
Outro dificultador do processo é o temor da morte. Ao mesmo tempo em que a noção de finitude pode se tornar um elemento alavancador que leva muitos fundadores a buscarem uma solução para a continuidade da empresa através da sucessão, implementando regras de governança corporativa e organizando a empresa, pode também se tornar um entrave para outros que negam a morte e, consequentemente, não veem necessidade de regrar as relações ou criar estruturas que organizem os papéis dos membros familiares. O consultor C02 percebe que:
“Muitas das vezes os sócios fundadores não querem fazer isto porque incomoda falar sobre a morte, sobre perceber que não se é perene, e ainda estar tendo que resolver uma coisa entre os filhos que não gostaria de resolver.” (C02).
Além da aproximação com a finitude, o fundador percebe juntamente uma diminuição do poder e o receio de perdê-lo por completo. O surgimento de novas lideranças que possibilitem uma facilidade na implementação do processo de governança e ainda de sucessão da gestão leva consequentemente a um receio de perda de poder do fundador. Este até então tomava todas suas decisões sozinho, muitas vezes de forma intuitiva e centralizadora, e, a partir do momento em que as regras da governança se estabelecem, este poder deve ser compartilhado. Cassanet (2004) assegura que, entre as maiores dificuldades do fundador, está a demora na sucessão devido ao futuro sucedido ter dificuldade de deixar seu cargo e sua posição, o que é assinalado pelo familiar F04:
“Tem a questão afetiva, emocional, pois existe uma grande dificuldade no tratamento de questões como o afastamento dos fundadores [...] e este afastamento tem muito a ver com se deparar com a finitude da vida, eles sentem que estão envelhecendo e a questão da morte surge de forma mais acentuada.” (F04).
Portanto, as maiores dificuldades relatadas pelos membros familiares estão ligadas às relações familiares e ao convencimento do sucedido em perceber a necessidade da implementação das regras da governança e, ainda, da condução profissional da sucessão.
ESTRUTURAS DA GOVERNANÇA CORPORATIVA EXISTENTES PARA REGRAR AS RELAÇÕES ENTRE A EMPRESA E A FAMÍLIA
As estruturas de governança sugeridas na literatura (Gersick et al., 1997; Bornholdt, 2005; Davis, 2007) são compatíveis com as referidas pelos consultores e experimentadas pelos membros das famílias empresárias. Todos acreditam que as estruturas de governança, através de regras claras e transparência nas informações e na atuação da gestão, são os alicerces para a continuidade da empresa familiar, visto que elas definem os papéis de todos envolvidos e proporcionam maior harmonia familiar. O acordo de acionistas e os fóruns de família, por exemplo, mereceram destaque especial por parte dos membros das famílias empresárias. Eles foram avaliados como essenciais para regrar os modos de relacionamento e, também, por constituírem um momento de aproximação das pessoas com os valores, as crenças e a história da empresa. Podem ser tomados, portanto, como ferramentas que aproximam as gerações e tendem a perpetuar os valores da família ao longo do tempo.
A partir do momento em que as estruturas estão criadas e funcionando em prol da família e da empresa, torna-se mais fácil encontrar um espaço para os familiares dentro e fora da empresa, nos órgãos criados. Todos podem sentir-se parte integrante desta família empresária e se unem em prol dos mesmos objetivos. Davis (2007) indica as estruturas existentes em cada subsistema que auxiliam na gestão de interesses e na separação desses núcleos para que haja menor conflito e maior profissionalização.
“Quando se monta os conselhos e define os papéis, então a sucessão não é mais problema! Ela não vai trabalhar na empresa, mas vai encontrar um lugar na sucessão da família. É a parte mais importante, porque se ele (fundador) vier a faltar, esta família organizada vai saber por onde começar e quem contratar.” (C03).
Sendo assim, é unânime a visão dos consultores quanto à importância das estruturas propostas pelo modelo de governança corporativa para o sucesso do negócio familiar, para a harmonia das relações entre os membros familiares e para regrar decisões acerca da propriedade familiar. Da mesma forma, os familiares F01, F03 e F04 constatam a existência de algumas dessas estruturas em suas empresas. Na visão de F01, as estruturas permitem a participação de todos acionistas de diferentes formas sem necessariamente estarem na operação. O familiar F04 complementa:
“A mera criação de um conselho de administração com conselheiros independentes e a participação de membros da família de ambos os controladores permitiu a oxigenação das ideias de gestão e do objetivo dos negócios, além de tornar o processo mais transparente e dar aos gestores a segurança “formal” de que estão gerindo em conformidade com as ideias dos acionistas. Deu maior legitimidade ao que o executivo familiar já fazia [...] (F04).
Além das estruturas da governança corporativa que são sugeridas na literatura e também foram analisadas pelos membros familiares como sendo importantes e fundamentais para a estruturação das relações familiares e para a perenidade do negócio, é relevante perceber a consideração e a preocupação que os familiares F02 e o F03 possuem com relação às futuras gerações. Eles analisam que, para o negócio se perpetuar e os valores familiares se manterem, é essencial preparar as futuras gerações para serem futuros herdeiros e membros de uma família empresária.
Dessa forma, não é suficiente criar estruturas padrões para regrar as relações e os papéis das pessoas. É necessário, também, buscar formas para que essas estruturas trabalhem para o futuro do negócio e da família.
DECORRÊNCIAS DA IMPLEMENTAÇÃO DA GOVERNANÇA CORPORATIVA NA EMPRESA FAMILIAR
Ao ser estruturada e desenvolvida na empresa familiar, a governança corporativa dá início a um processo de mudança e evolução. Os consultores e os membros de famílias empresárias concordam que esse processo gera valor ao negócio, pois os acionistas e o mercado passam a percebê-lo com maior credibilidade e profissionalização. Ao proporcionar ainda maior transparência nas relações entre propriedade e gestão, e, consequentemente, nas próprias relações familiares, a governança corporativa reduz potenciais conflitos, abrindo para a empresa familiar chances de continuidade e perpetuidade.
Do ponto de vista dos consultores, através das estruturas sugeridas, as relações entre os membros familiares tornam-se menos conflituosas e passam a ter papéis mais claros e definidos. Cada membro pode relacionar-se de forma diferente com a empresa, tanto dentro do negócio quanto fora dele, mas tendo sempre a empresa como elemento central para a família conforme o relato dos consultores C04, C02 e C03. O consultor C02 exemplifica a questão:
“A grande maioria das empresas que sobreviveram ao longo desses anos e que têm uma longevidade maior, são empresas que conseguiram antes do tempo ter algum tipo de processo organizado, estruturado, e mexer com essa questão. Não jogar embaixo do tapete, mas trazer para cima da mesa os problemas e discutir” (C02).
Para os consultores, com as estruturas mais definidas e claras, é possível profissionalizar o negócio na gestão e manter a presença dos familiares em outras estruturas sugeridas pela governança, como conselho de família, conselho de administração, conselho de sócios, etc.
Quando a família consegue prestar suporte para a empresa, harmonizar seus interesses com os do negócio e diminuir os conflitos das relações entre si, o foco do trabalho é a busca do crescimento, a perpetuidade e a valorização da empresa, o que agrega valor aos acionistas e ao mercado, ou seja, a empresa se torna mais valorizada e assume maior credibilidade. Andrade e Rossetti (2012) confirmam que, com uma governança clara e estabelecida, as empresas aumentam o acesso em condições favorecidas aos mercados e reduzem o custo de capital, além de favorecer novos investimentos, o que é fator de aumento de competitividade. Além disso, elas se tornam mais atrativas para o mercado e podem seguir um caminho distinto do processo sucessório, com a venda do negócio a terceiros.
Nesse sentido, a empresa organiza-se, estabelece estruturas e regras definidas e enseja relações familiares mais saudáveis, sendo percebida pelo mercado com maior valor agregado, de modo que tende a crescer e se desenvolver além de seu fundador. Como explana o consultor C02, a governança fortalece a empresa:
“Ela [a empresa] ganha envergadura, estrutura, raízes mais fortes, e a possibilidade de sobreviver e navegar nessas marés complicadas, sem a qual, a probabilidade de sobreviver é muito pequena” (C02).
Assim como na visão dos consultores, para os familiares, a governança corporativa proporciona diversos benefícios para a empresa familiar. Através dos relatos, constata-se que, após a implementação da governança corporativa, a empresa agrega valor e torna-se mais atrativa ao mercado; tende a crescer e se perpetuar com maior solidez; profissionaliza a gestão; estabelece regras e melhora a transparência nas relações; dirime conflitos latentes; e melhora a comunicação e as relações familiares.
De modo geral, os participantes relatam que as regras claras e definidas advindas da implementação da governança resultaram em maior transparência nas atuações da empresa e uma maior tranquilidade ao acionista frente ao possível problema de agência.
Após se estruturar e se organizar, a empresa familiar tende a se tornar mais atrativa para o mercado, visto que investidores buscam empresas com poucos conflitos, maior transparência e clareza nas suas estruturas. Segundo Ward (1997), empresas que crescem e se perpetuam tendem a explorar as vantagens competitivas da propriedade familiar, como a busca de investimentos que recompensem em longo prazo; a construção de uma estratégia que envolva relacionamento e a concentração em negócios em que as tomadas de decisões rápidas sejam importantes.
“O mercado exige cada vez mais estruturas organizadas, o grau de responsabilidade que se tem dentro de uma empresa [...] a governança corporativa exige que tu tenhas uma estrutura organizada em todos os segmentos, inclusive no âmbito familiar” (F03).
Os familiares F01 e F02 vão além do quesito geração de valor e consideram não somente que a governança estruturada seja uma ferramenta para a empresa ser mais bem avaliada externamente, mas também que o fato de a governança permitir estruturas de relações familiares que propiciam um melhor relacionamento entre gestão e família e a perpetuação dos valores do negócio aumenta consideravelmente a percepção de valor aos acionistas ou investidores.
Outra consequência importante da estruturação de regras de governança na empresa familiar é o fato de ela permitir que haja uma maior harmonia nas relações familiares e um melhor gerenciamento dos conflitos. Considerando que os conflitos não resolvidos podem ser fatais para uma organização, a busca pelo entendimento e pela união tornou-se primordial na visão de todos os familiares. Sendo assim, a comunicação que se estabelece entre os membros da família é definidora de seu sucesso. Davis (2007) enfatiza que a família cuja comunicação tem altos níveis de clareza, honestidade, abertura e consistência tem melhor condição de lidar com os conflitos e trabalhar em conjunto produtivamente. Os familiares F02 e F03 consideram que, ao se estruturar uma governança, a comunicação flui e se estabelece de forma mais aberta.
Outro fator fundamental decorrente do processo da governança é a profissionalização que ocorre na empresa e que leva a um crescimento. Essa profissionalização cria estruturas para que a empresa se perpetue. Um bom sistema de governança da empresa familiar conduz à transparência das relações e torna, na maioria das vezes, as famílias e as empresas mais fortes (Kenyon-Rouvinez e Ward, 2004). Esse talvez seja um dos grandes objetivos de uma empresa familiar, e conforme a participante familiar F03 afirma, com as estruturas prontas, a empresa torna-se mais forte e sólida para enfrentar os desafios tanto concernentes ao mercado quanto advindos das relações familiares.
A partir desses relatos dos membros familiares, avalia-se que a governança corporativa contribui de forma efetiva ao desenvolvimento do negócio, através de diversos benefícios como melhora nas relações familiares, transparência aos acionistas, profissionalização da gestão, maior harmonia das relações e da comunicação familiar, e, por fim, contribuindo para a perpetuação do negócio ao longo das gerações.
PREPARAÇÃO DE HERDEIROS E A PERPETUAÇÃO DOS VALORES
Consultores e membros das famílias empresárias apontaram enfaticamente a necessidade de preparação dos herdeiros para o processo sucessório. Eles preocupam-se, juntamente com as futuras gerações, que elas estejam próximas da cultura da família e do negócio, compreendendo sua história e seus valores. Os membros das famílias empresárias demonstram, inclusive, preocupação de que isso não se perca ao longo das gerações e acreditam que algumas estruturas da governança como o conselho de família e atividades como os fóruns de família são primordiais para que essa geração seja educada e possa manter e perpetuar tais valores. Portanto, ainda que um dos focos centrais da governança corporativa na empresa familiar esteja em preparar o negócio e a família para a passagem de comando e a definição de papéis dos seus membros, é notório o envolvimento que as futuras gerações necessitam ter com o negócio para que compreendam os valores e se sintam parte da história dessa família empresária, tendo em vista a tendência, conforme aponta a literatura (Ward, 1997; Gersick et al., 1997), de que, com o passar dos anos, ocorra um distanciamento dessa origem.
À medida que novas gerações vão surgindo, diferentes núcleos familiares nascem e se desenvolvem de acordo com seus valores e sua cultura. Torna-se cada vez mais desafiador manter os valores da família coesos e disseminados. A governança corporativa implementada na empresa familiar permite a criação de estruturas que reforçam e fortalecem os valores da família, fundamentais para a manutenção da união e de objetivos comuns. Ward (1997) ressalta que, enquanto a família se expande e cresce, os objetivos e valores inevitavelmente tornam-se mais divergentes e há uma forte inter-relação entre o sistema familiar, o societário e o empresarial, destacando-se a necessidade de regras de distribuição de capital, dividendos, benefícios, etc.
Os familiares da terceira geração em diante tendem a não ser tão unidos ou direcionados quanto o fundador. Dessa forma, torna-se imprescindível que esses aspectos sejam tratados e acordados pelos familiares. Os consultores C01 e C04 possuem clara a visão de que os valores da família aparecem ao passo em que são trabalhados e discutidos conjuntamente. Para haver perpetuação desses valores, é necessário um trabalho familiar conjunto, que deve ocorrer desde a geração do fundador. Bernhoeft e Gallo (2003) afirmam que, à medida que uma empresa é constituída por vários sócios, esta história familiar começa a ter diferentes versões e percepções acerca do papel de cada um e dos valores dessa família, tornando-se fundamental tratar esse assunto de forma proativa, principalmente quando os fundadores são ainda ativos, exercendo seus papéis na empresa familiar.
Na visão dos familiares, no decorrer do tempo, é provável que ocorra um distanciamento dos valores, mas existem formas de aproximação e perpetuação, como a criação de eventos advindos do conselho de família para conhecerem mais o negócio, os valores, relacionarem-se com seus primos próximos ou distantes, entre outros. Bornholdt (2005) reforça esse aspecto e considera ser primordial que haja um espaço para a valorização da cultura, dos valores e das tradições da família e da empresa, além da administração dos conflitos de interesses possíveis através da revisão dos acordos societários. HSM (2012) acrescenta que o melhor legado é deixado quando existe uma base de confiança e orgulho construída para os sucessores. Os familiares F02 e F03 concordam e relatam a importância da valorização e do desenvolvimento da terceira geração para a perpetuidade dos valores e do próprio negócio.
Dessa forma, como relatam os familiares F02 e F03, ao buscar a perpetuação e a manutenção dos valores familiares, a empresa se torna um elo entre os membros familiares e pode proporcionar sentimentos de pertencimento e harmonia das relações. Esse sentimento é benéfico ao negócio, como afirmam Aronoff e Ward (2011), ao proporcionar um envolvimento rico e profundo que falta em outros negócios, além de proporcionar continuidade, comprometimento e lealdade, através de um grupo de pessoas alinhadas em seus valores e objetivos, partilhando visão de longo prazo.
PROCESSO DE SUCESSÃO E GOVERNANÇA CORPORATIVA
O tema sucessão, no âmbito da empresa familiar, pode ser um motivador para a implementação de um sistema de governança corporativa, bem como uma decorrência deste. Os consultores, invariavelmente, trazem esse tema à tona quando o assunto é a busca da perpetuação das empresas ou as relações familiares propriamente ditas. Dessa forma, alinhados à literatura pertinente (Bernhoeft, 1987; Davis, 2007; Kenyon-Rouvinez e Ward, 2004), os consultores foram categóricos em afirmar que a sucessão deve ocorrer nos três sistemas da governança: empresa, família e propriedade, e que somente quando estiverem resolvidas essas questões poder-se-á afirmar que a sucessão está completa. Nesse sentido, no âmbito da família, os consultores indicam a busca por um líder que possa ocupar o papel do atual e que ele seja um agregador da família, mantendo-a estruturada e unida. No âmbito da propriedade, indicam que os herdeiros devem ser preparados para a condição de acionistas e para suceder o acionista controlador, compreendendo sua atuação como sócio, sua importância e suas obrigações frente a esse novo papel. E, no âmbito da empresa, uma vez que a sucessão na gestão tende a ser a mais complexa, sendo vista como produtora dos maiores dilemas entre pais e filhos ou sucessores e sucedidos de outro grau de parentesco, os consultores indicam a busca pela compreensão de que, de fato, o sucessor não irá substituir o sucedido, mas dar continuidade ao trabalho realizado por um empreendedor que tende a ser único. Em acordo com essa proposição, C03 expõe sua visão:
“A questão mais importante é entender que existem três tipos de sucessão: do capital, da gestão e da família. Até bem pouco tempo as empresas só se preocupavam com a sucessão do negócio, mas não do capital nem da família [...] a governança ajudou a trazer esta preocupação, e esta é a melhor prática: é tu encontrar uma solução para o capital, independente da empresa” (C03).
A sucessão da gestão da empresa, segundo Casillas Bueno et al. (2007), caracteriza-se por um deslocamento do poder e da influência dos fundadores para os sucessores, permanecendo por um período o poder compartilhado entre eles. A sucessão da propriedade é fundamental e a perpetuidade do negócio pode depender amplamente do nível de preparo dos herdeiros para adquirirem a cultura acionária e terem a consciência de sua importância. Essa visão é confirmada pelos consultores C02 e C01. Já a sucessão na família é um assunto trazido com menor frequência pelos consultores C01 e C02. Raramente se encontram na literatura espaços dedicados a tratar deste tema, mesmo sendo considerado fundamental para a saúde afetiva e das relações familiares. C03 e C04 compartilham visões semelhantes no que se refere a essa questão, afirmando que a sucessão deve ocorrer nos três círculos.
O processo de sucessão envolve aspectos difíceis para todos os envolvidos, desde os possíveis sucessores até o sucedido. As ferramentas sugeridas pela governança corporativa auxiliam no processo de estruturação dessa sucessão, mas as emoções, os medos, as resistências e os possíveis conflitos, inerentes ao processo, devem ser tratados e resolvidos para que a sucessão seja completa e exitosa em todas as estruturas. Leite (2000) complementa que um processo de sucessão bem conduzido preserva a harmonia familiar para continuar o negócio, evitando conflitos e interesses pessoais.
Os consultores relataram ainda a necessidade do autoconvencimento do sucedido, que, para Bernhoeft (1987), ocorre quando ele percebe que deve passar o poder para outra geração. Mas esta tende a ser uma questão difícil, pois, para muitos fundadores, a empresa tem relevância maior que inclusive sua família, tendo em vista o grau de envolvimento, sacrifício, realização e imagem associados no contexto da sociedade. Casillas Bueno et al. (2007) acrescentam que encontrar um novo papel para a primeira geração, alinhando seus desejos e suas habilidades, é uma saída importante. Algumas dificuldades vivenciadas pelo sucedido são apresentadas pelos consultores C02, C03 e C04. C03 exemplifica:
“O difícil é sobre este assunto, porque é sobre a vida dele. Então tem que começar por onde ele consegue ouvir [...] então por isso a gente envolve a família toda no diagnóstico e a gente consegue identificar quem é a pessoa que pode ajudá-lo a ouvir” (C03).
Neste processo de sucessão, os dilemas existentes acerca do sucessor também são de extrema relevância (Flores Jr. e Grisci, 2012). Um dos grandes conflitos do sucessor é sentir que precisa ter as mesmas características e condições do sucedido para assumir seu lugar. Muitas vezes, o sucessor busca comparar-se ao sucedido, visando a imitá-lo ou superá-lo, mas as exigências do perfil são diferentes, pois dar continuidade e desenvolver um empreendimento requer uma atuação diferente da de quem inicia um negócio. Essa visão é compartilhada pelo consultor C03, que afirma que o sucessor não vai suceder esse talento; ele vai suceder técnicas de gestão para dar continuidade a algo que foi iniciado por outro.
Ainda que seja um tema que surge inevitavelmente quando uma empresa cresce e seus fundadores envelhecem, a sucessão é tratada muitas vezes de forma velada e, mesmo que deva ser tratada com profissionalismo, ela remete a fatores emocionais e dificuldades do fundador que precisam ser compreendidas para que futuramente as próximas gerações possam se estabelecer na empresa de forma genuína e merecedora. Quanto maior esta capacidade de apreciar as suas próprias realizações, mais fácil será para eles colaborar com esse processo e comemorar a passagem para seus herdeiros de posições de autoridade. O familiar F02 acredita que esta primeira sucessão é a mais complexa, e o familiar F04 acrescenta que este é um momento difícil de ser vivenciado, mas a formalização do processo é de fundamental importância. Ela ainda é vista e tratada como um acontecimento transitório e esporádico, entretanto, ela deve ser pensada como um processo de longa duração, que permeie as gerações futuras.
Outro ponto fundamental é a compreensão da diferença entre o empreendedor fundador e o sucessor executivo. Esse é um tema relevante para que o processo de sucessão tenha êxito, visto que somente se sentirá seguro e realizado o sucessor que não exigir dele próprio a substituição de um mito. Esse é um ponto essencial para Bernhoeft (1987), pois as exigências do perfil são diferentes, e a relação entre ambos será definidora do sucesso desse processo. F02 enfatiza a importância dessa clareza.
O processo de sucessão, que deve ser contínuo e perdurar ao longo das gerações, foi suscitado por todos os membros familiares como sendo de vital importância para o sucesso e a continuidade da empresa. Ainda que se tenham outras opções para o futuro da empresa, ao manter o negócio em propriedade da família, ele é percebido pelos membros familiares como de maior valor agregado para o mercado e maior valor aos membros da família.
CATEGORIAS | CONSULTORES | MEMBROS FAMILIARES |
Visão Geral | - Controle, monitoramento - Transparência na gestão e nas relações - Maior responsabilidade social | - Processo longo, árduo, carregado de emoção - Agregador de valor - Definidor de papéis - Monitora e rege as relações, buscando a transparência nas ações |
Motivadores | - Geração de valor ao negócio - Perpetuação do negócio: sucessão - Redução de conflitos - Planejamento estratégico | - Necessidade de profissionalização - Perpetuação do negócio - Agregar valor |
Facilitadores e Dificultadores | - Percepção da finitude pelo fundador - Necessidade de um líder do processo - Conscientização da necessidade de mudança pelo fundador - Conflitos familiares durante o processo | - Percepção da finitude pelo fundador - Conscientização da necessidade de mudança pelo fundador - Noção de perda de poder pelo fundador |
Estruturas da governança | - Importância de existir todas estruturas sugeridas pela governança - Ênfase tanto na governança da empresa quanto na da família | - Definidor de papéis - Utiliza todos recursos sugeridos pelas estruturas da governança |
Decorrências | - Agrega valor ao negócio e ao acionista - Profissionalização - Estabelece regras e transparência reduzindo conflitos - Definição de papéis | - Agrega valor ao negócio - Torna a empresa mais atrativa ao mercado - Possibilita crescimento e perpetuação - Estabelece regras e transparência reduzindo conflitos |
Preparação de herdeiros | - Necessidade de preparar as próximas gerações para compreenderem e se aproximarem do negócio | - Necessidade de aproximação das gerações - Educação e preparação das próximas gerações |
Processo sucessório | - Sucessão em todas estruturas da governança - Preparação do herdeiro para suceder sem substituir o fundador | - Processo vital para o desenvolvimento e a manutenção da empresa familiar - Processo contínuo |
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As visões dos consultores e dos membros das famílias empresárias acerca da governança corporativa se assemelham no sentido da contribuição gerada para o crescimento, o desenvolvimento e a perpetuação das empresas familiares. Todos afirmaram que, a partir de um tamanho, normalmente quando a empresa realiza o primeiro processo de sucessão, ou ainda possuem sucessor e sucedido em trabalho conjunto, dificilmente uma empresa consegue evoluir sem que haja uma estruturação, uma organização e um estabelecimento de regras que levem à maior transparência nas ações e melhoria nas relações. Ainda assim, enquanto os consultores tendem a expressar suas visões sobre a governança em um sentido mais objetivo, enfatizando as estruturas e as práticas sugeridas para o sucesso do processo, os membros das famílias empresárias tendem a exemplificar sua visão positiva acerca da governança corporativa com situações mais práticas, subjetivas, e mais voltadas para as questões familiares, carregadas de afeto através de experiências vivenciadas por eles.
Em termos de limitações do presente estudo, destaca-se que, ao buscar descrever e analisar a governança corporativa na empresa familiar na visão de consultores e de membros de famílias empresárias, não se pretendeu esgotar a temática, que poderá ilustrar similaridades ou diferenças a depender das especificidades dos contextos encontrados. Em virtude da complexidade do tema, a dificuldade de acesso aos membros de famílias empresárias restringiu o número de entrevistados. Muitos dos membros de famílias empresárias contatados num primeiro momento se dispunham a participar da pesquisa, mas, logo em seguida, argumentavam falta de disponibilidade de tempo. Frente aos resultados expostos, acredita-se que tal indisponibilidade seja também psíquica, devendo-se ao fato de o tema propiciar a mobilização dos afetos.
As sugestões de futuras pesquisas sobre governança corporativa em empresas familiares são no sentido de confrontar a governança corporativa em empresas familiares com empresas não familiares visando a verificar possíveis similaridades e diferenciações até então impensadas em cada um dos tipos de empresas. Outro aspecto interessante a ser pesquisado é o ciclo de vida da empresa familiar e da própria família como definidor do estado de profissionalização em que ela mesma se encontra, visto que, dependendo da fase pela qual ela passa, as regras definidas e a transparência nas informações possuem maior ou menor impacto. Por fim, sugere-se o aprofundamento das análises, tomando como sujeitos os fundadores das empresas familiares e os membros das famílias empresárias não atuantes na gestão, o que poderá proporcionar visão mais ampla e completa acerca da governança corporativa na empresa familiar.
Já a contribuição para as empresas familiares ocorreu no sentido de proporcionar aos outros membros familiares que se aproximassem do assunto e pudessem compreender melhor a governança corporativa para o futuro da empresa e para a manutenção da família empresária. Dessa forma, o estudo, além de possuir relevância acadêmica, contribuiu de forma efetiva para a aproximação do tema e sua consideração como um caminho para a perpetuação do negócio familiar.
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