O positivismo como cultura
El positivismo como cultura
Positivism as culture
Le positivisme comme culture
作为文化的实证主义
O positivismo como cultura
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 8, núm. 2, pp. 293-307, 2016
Universidade Federal Fluminense

Recepção: 26 Janeiro 2016
Aprovação: 21 Março 2016
Resumo: O artigo enfoca o positivismo na conjuntura de implantação da República brasileira, na virada para o século XX, destacando o discurso médico que impôs uma patologização dos africanos, dos afro-brasileiros e dos indígenas. Este discurso, gestado no século XVIII se robusteceu no XIX, permitindo que na virada para o XX o ex-escravo fosse transformado de objeto de trabalho em objeto da ciência (Nina Rodrigues, Roberto Lyra). O positivismo coroa o abolicionismo, intermediado por um processo de defesa do branqueamento da população brasileira. Gestado na longa duração, ele se nutriu dos dispositivos de objetificação e verticalização e da atualização classificatória da Encyclopédie, para um determinismo biológico que se espraiou das ciências físicas para as sociais, sem se desprender da teologia. Esse saber foi funcional à conquista europeia, substituindo argumentos teológicos por científicos na legitimação da dominação do mundo colonial.
Palavras-chave: Positivismo, discurso médico, determinismo biológico, criminalização.
Resumen: El artículo analiza el positivismo en el contexto de instauración de la República brasileña a inicios del siglo XX, destacando que el discurso médico de la época impuso una patologización de los africanos, de los afro-brasileños y de los indígenas. Este discurso se gestó en el siglo XVIII y se fortaleció en el XIX, permitiendo que al inicio del siglo XX el ex-esclavo se convirtiera de objeto de trabajo en objeto de investigación científica (Nina Rodrigues, Roberto Lyra). El positivismo corona el abolicionismo, intervenido por un proceso de defensa del blanqueamiento de la población brasileña. Este proceso de largo plazo se nutrió de los dispositivos de objetificación y verticalización y de la actualización clasificadora de la Encyclopédie, para un determinismo biológico que se expandió de las ciencias físicas a las ciencias sociales, sin desprenderse de la teología. Este saber fue funcional a la conquista europea, al sustituir argumentos teológicos por científicos en la legitimación de la dominación del mundo colonial.
Palabras clave: Positivismo, discurso médico, determinismo biológico, criminalización.
Abstract: This article discusses positivism during the implantation of the Brazilian Republic at the turn of the twentieth century, highlighting the medical discourse that pathologized Africans, Afro-Brazilians and indigenous groups. Conceived in the eighteenth century and strengthened in the nineteenth century, this discourse meant that by the turn of the twentieth century, former slaves had been transformed from objects of work into objects of science (Nina Rodrigues, Roberto Lyra). Crowning abolitionism, positivism was mediated by a process defending the whitening of the Brazilian population. A long time in the making, it fed on the mechanisms of objectification and verticalization, as well as the Encylopédie’s updated classification, to form a strand of biological determinism that spread from the physical to the social sciences, without becoming distanced from theology. This knowledge was harnessed in the European conquest, substituting theological arguments for scientific arguments in the legitimization of colonial rule.
Keywords: Positivism, medical discourse, biological determinism, criminalization.
Résumé: Cet article s’intéressera au positivisme dans le contexte de l’implantation de la République brésilienne au tournant du XXème siècle, et plus particulièrement au discours médical qui imposa une pathologisation des Africains, des Afro-brésiliens et des Amérindiens. Ce discours, qui vit le jour au XIXème siècle, se renforcera tout au long du XIXème au point de transformer l’ex-esclave du début du XXème en objet scientifique (Nina Rodrigues, Roberto Lyra). Le positivisme défendra l’abolitionnisme en même temps qu’un processus de blanchiment de la population brésilienne. Construit de longue haleine, il s’est nourri des dispositifs d’objetisation et de verticalisation et de l’actualisation classificatoire de l’Encyclopédie vers un déterminisme biologique qui s’est répandu des sciences physiques aux sciences sociales, sans pour autant négliger la théologie. Ce savoir a servi la conquête européenne en substituant les arguments théologiques par des arguments scientifiques pour légitimer la domination de l’ordre colonial.
Mots clés: Positivisme, discours médical, déterminisme biologique, criminalisation.
摘要:
						                           本文探讨二十世纪初实证主义对刚建立共和制不久的巴西的文化思潮的影响,特别是该思想对黑人和非裔巴西人,土著印第安人的偏见和歧视。实证主义话语产生于十八世纪,发展于十九世纪,到二十世纪初,对于黑人问题,所持的态度是,从黑奴,变成劳工,再变成科学研究对象(Nina Rodrigues, Roberto Lyra)。 在巴西,早期的实证主义者起先奉行人口白人化思想,后来赞成废除奴隶制。实证主义起源很早,得益于十八世纪在法国兴起的百科全书派的科学活动。因为要对百科全书的词条进行分类,认证和更新,出现了生物决定论,是从物理学延伸到社会科学的,但并没有与神学决裂。这种生物决定主义为欧洲在世界各地征服殖民地并实行殖民主义统治提供了意识形态的支持,并且为白人的殖民活动提供了合法化的依据
關鍵詞: 实证主义, 医学话语, 生物决定论, 定罪.
Quando nos deparamos com a história do pensamento criminológico recuamos o marco da sua compreensão para antes mesmo do seu nascimento. É no século XIII do Ocidente que podemos compreender alguns dispositivos que ajudaram a construir a questão criminal como objeto. No marco de três grandes processos (o surgimento do Estado, a centralização da Igreja e os primeiros movimentos do processo de acumulação de capital) surge o Tribunal Inquisitorial junto com a confissão, que se institucionaliza a partir do IV Concílio de Latrão.2 Até esta conjuntura o Ocidente resolvia seus conflitos sem a prática da criminalização. A gestão dos conflitos era efetuada comunitariamente, pelas diferentes culturas, sem que houvesse a ideia de um réu. Aquele que criava um conflito era administrado entre seus pares, como iguais. É interessante observar que na longa duração a gestão comunitária dos conflitos desaparece junto com a gestão das terras comuns, ou seja, a constituição do sujeito culpável aparece junto com o desenvolvimento da propriedade privada e com o individualismo.
O tribunal inquisitorial, que regeu na Península Ibérica até 1830 (!), produziu um formato de gestão de conflitos que abriu campo para dois dispositivos fundamentais: a verticalização (ao abandonar a gestão comunitária e horizontal) e a objetificação (ao localizar a culpa no corpo – ou na alma – de um determinado sujeito). Articulando um saber médico e um saber jurídico, a Inquisição instaura a ideia de alguém que simultaneamente acusa e julga em nome do coletivo e também uma tecnologia de produção de verdade que se apoiará na tortura como método, na execução como espetáculo e na pena como dogma. Esse é o momento histórico da localização individual no sujeito da culpa e mais adiante da culpabilidade.
Entre os séculos XIII e o XVIII, o Ocidente aprofundou esses processos de acumulação de capital e desenvolvimento do Estado, com o poder da Igreja centralizado e sacudido pelas reformas Protestantes. A individualização da propriedade, o fim das terras comuns agregou a constituição de novas classes sociais: os pobres sem terra e a burguesia que se consolida em torno do capital, do Estado e dos negócios da guerra. As cidades aparecem como um problema, concentrando riqueza e perigo, multidões famintas acossam o absolutismo que dá continuidade à velha aliança entre o clero e a nobreza. Mas é no século XVIII que uma tempestade provoca uma ruptura epistemológica: a Encyclopédie de Diderot e D´Alembert. Recuperando os rituais sistêmicos dos livros canônicos, esta colossal obra lhe dará outros sentidos. Como diz Robert Darnton, inverteu a árvore do conhecimento colocando a filosofia no lugar da teologia.3 O discurso da razão produzirá esse deslizamento epistemológico, mas não mudará o sentido político do seu conhecimento. Para esse autor a Encyclopédie foi máquina de guerra, dispositivo para a conquista do mundo, paradigma de classificação e hierarquização de tudo e de todos. Ela pretende abarcar, nessa estratégia, a totalidade da realidade, o universal, inaugurando o poder da apresentação sob a forma de compêndios das ideias. É daí, e da ambiência revolucionária do XVIII, que o Direito Penal vai surgir como crítica e contraponto da falta de limites do poder punitivo absolutista. Foucault, d’aprés Marx, vai denunciar as ilusões igualitárias ou transformadoras. Espremido pelo anacronismo dos usos punitivos do suplício e pelas demandas radicais das massas revolucionárias, o sistema penal se erige para tutelar a propriedade privada e para gerir diferencialmente as ilegalidades populares.
Abrimos aqui parênteses para tratar desse processo de secularização que endossa um discurso canônico e o potencializa com novas verdades científicas e hierarquizantes na nossa margem. Nas margens brasileiras Gizlene Neder e Gisálio Cerqueira Filho, condutores da Escola de Niterói, estudam “processos históricos e sociais que produziram (produzem ainda) efeitos de (in)tolerância política nas instituições no bojo da construção e afirmação da cidadania”. Sua inovadora e densa reflexão trata da relação entre cultura política e cultura religiosa no processo de passagem à modernidade no Brasil republicano.4 Numa pesquisa de fôlego Neder já havia estudado as permanências históricas do tomismo português na constituição do iluminismo jurídico-penal luso brasileiro.5 Nessa tradição Nilo Batista tratou de nossas matrizes ibéricas instituindo um direito penal que tem a tortura como método, a execução como espetáculo e, atravessando tudo, o dogma da pena, a certeza de que o seu fetiche sanaria todos os erros humanos, todas essas histórias tristes. O que é o criminal se não um conjunto de histórias tristes?6
O fato é que a Escola de Niterói fala da formação histórica na passagem da abolição da escravidão para a República, com uma presença central da Igreja no Estado. Toda a vida civil era administrada pela Igreja. Eles afirmam que a secularização é uma questão central (até hoje!) escondida pela “etiqueta cômoda”7 “questão religiosa”. Nesta perspectiva Henrique Cesar Ramos nos remete ao processo de entrada das ciências da natureza no discurso jurídico e político luso-brasileiro do século XVIII. Aqui nos interessa a análise do deslizamento semântico entre a saúde e a salvação e suas permanências no pensamento cartesiano entre os portugueses. Ramos vai demonstrar como esse amálgama teve desdobramentos na teoria do direito do século XIX, quando os juristas passaram a designar as ações judiciais no cotidiano forense como sendo remédios jurídicos para a ameaça e a lesão aos direitos, emprestando à palavra remédio o sentido de um medicamento, da mesma forma que os médicos (em latim, medicum). A ideia de conservação do corpo do domínio da física passa a ter um sentido jurídico. Ele nos fala também do Verdadeiro Método de Estudar de Luis Antônio Verney, inovação pedagógica, no rastro da revolução semântica da Encyclopédie de hierarquizações e classificações para conquistar o mundo.8
O que nos interessa dessas matrizes de modernização conservadora é, principalmente, a concepção de ordem ao longo dos séculos XVII e XVIII em Portugal. Ramos afirma que a busca de critérios racionais para a língua portuguesa teve nítida influência do método das ciências físico-naturais afetando o léxico jurídico, como na passagem do sentido de "remédio" do campo epistemológico da medicina para o direito. A própria ideia de prevenção transborda de um campo para o outro. Verney se esforçou em demonstrar que o “estado de religiosidade não é incompatível com o exercício da medicina”. O fato é que no mais recôndito da nossa alma esse estado de religiosidade derrama sobre nossa maneira de pensar e sentir a questão criminal. Ramos vai mostrar os efeitos disso tudo na noção de corpo dos portugueses nesse período. Ele nos mostra como no Vocabulário Português & Latino de Raphael Bluteau9 do início do século XVIII o primeiro significado para a palavra cura seria uma referência à autoridade eclesial, ao pároco. Esse método, essa ordem que não rompe profundamente com a ordem inquisitorial, desliza, vaza dos estudos médicos para os estudos do direito. “É atuando na cura da anormalidade que as ações judiciais se transformariam num equilibrador social”.10 Ramos afirma que à conservação médica do corpo corresponderia a conservação jurídica dos direitos. Na tradição dos reis taumaturgos a arte de curar era central na ordem política e social da história.
É nesse cenário que, em Portugal, a religião se torna cada vez mais uma questão de Estado, associada às noções de ordem e segurança pública, ou seja, surgiam espaços de secularização sem ruptura com o poder clerical. Para Ramos “como correlato, a práxis jurídica seguiria a recomendação para o ensino médico no que se apresentava como técnica moderna de prevenção de doenças. Esta suposta tecnologia jurídica de prevenção dos crimes somente se verificaria um pouco mais tarde, com o desenvolvimento da medicina higienista e o avanço das odiosas teorias biológicas de raça no século XIX”.11
É esse positivismo que vai ocupar um espaço central na conjuntura da República brasileira. Nas nossas margens esse discurso médico impôs uma densa patologização dos africanos e dos afro-brasileiros bem como dos povos originários. Este discurso gestado no século XVIII se robustece no XIX, permitindo que na virada para o XX o ex-escravo brasileiro fosse transformado de objeto de trabalho em objeto da ciência.12 O positivismo coroa então o abolicionismo mais adiado, intermediado por um intenso processo de branqueamento da população capitaneado pelo Império brasileiro.
O positivismo é introduzido então na nossa margem como algo muito mais denso do que uma Escola ou um conjunto de ideias. Gestado na longa duração, ele se nutre dos dispositivos de objetificação e verticalização e da atualização classificatória da Encyclopédie, para um determinismo biológico que se espraia das ciências físicas para as sociais, sem se desprender da teologia. Esse saber é completamente funcional à conquista do mundo: substitui argumentos teológicos por científicos na legitimação da dominação do mundo colonial. Seus precursores na Frenologia (Gall e Spurtzheim) acreditavam que as melhores qualidades do cérebro estavam presentes apenas no norte da Europa e estavam em falta no Sul da Europa, nos animais e no resto do mundo. Mais que uma Escola científica, o positivismo se consolida no "resto do mundo" como uma cultura. Recorro aqui a Nicola Abbagnano na definição de cultura ou Kultur em alemão, a partir da tradição Kantiana retomada por Hegel: a formação coletiva e anônima de um grupo social nas instituições que o definem.13 Pensemos também na ideologia em Marx14 e nas subjetivações de Foucault.15 O seminal texto de Freud, Mal-Estar na Civilização trabalha nesse sentido de cultura.16 O positivismo, em especial o criminológico, pode ser lido então como essa profunda formação coletiva, uma máquina de subjetivação que verticaliza e objetifica tudo e todos, o grande dispositivo de atualização do Outro, da alteridade nociva em nossas margens. O curioso é a recepção na periferia de uma cultura que nos deprecia e legitima nosso massacre. O dilema do Império Brasileiro, da Independência à República, era como conjugar liberalismo e escravidão e como dar conta das tentativas e desejos de protagonismo de um povo “inferior e degenerado”, patológico ontologicamente.
Se o positivismo surge na Europa na ambiência dos medos pós revolucionários, suas verdades científicas ajudaram a desqualificar as utopias da igualdade, demonstrando uma hierarquia de raças que legitimava o colonialismo em curso. Quando falamos do positivismo como cultura e sua recepção nas colônias queremos afirmar que essa cultura, de longa duração, produziu não só uma maneira de pensar a questão criminal, mas principalmente uma maneira de senti-la: afetividades punitivas que naturalizam a truculência e cultuam a pena como solução mágica e restauradora de todos os conflitos.
No Brasil, ao longo do século XIX, a perspectiva do fim da escravidão detonou discursos e estratégias para o controle da população afrodescendente. A República, quase concomitante à Abolição, suscitou diversos embates que envolviam a secularização, como apontam Neder e Cerqueira. A luta por uma escola pública laica e de qualidade retrata essa lacuna, de Benjamin Constant e Anísio Teixeira a Darci Ribeiro, ecoando até os dias de hoje, agora acossados que somos pelo neopentecostalismo. É importante entendermos a especificidade do positivismo criminológico frente ao positivismo como um todo.
Ao começar a escrever uma história da criminologia na América Latina, Rosa del Olmo estudou a importação de saberes e pautas vindos do Hemisfério Norte e produzindo uma verdadeira ocupação estratégica que tomava corpo em cátedras, seminários e publicações. Na virada do XIX para o XX (transição da escravidão e da República) o positivismo se torna o saber/poder hegemônico da compreensão da complexa questão criminal. Nessa conjuntura o positivismo criminológico ajudava a neutralizar a potência dos desejos de nação “mestiços” e “degenerados”. A autopatologização aprofundava os fossos construídos entre os homens brancos e proprietários e o resto do nosso povo.
No Brasil a criminologia é fundada por Nina Rodrigues ao mesmo tempo em que funda a medicina legal e a antropologia; são saberes médicos que se imbricam com os discursos jurídicos na direção de um higienismo contraditório e paradoxal. Nós somos o Outro. A Escola Nina Rodrigues projetada ao futuro através de Afrânio Peixoto e Arthur Ramos “apoiava-se na ênfase à análise da realidade nacional que eles redescobrem em suas pesquisas. A questão principal que Nina Rodrigues e seus seguidores se colocavam dizia respeito à definição dos brasileiros enquanto povo e a deste país como nação”.17 Essa institucionalização da medicina legal tratava de definir seu objeto e sua área de atuação: "a penitenciária, o Hospital de Caridade, os asilos de alienados, lugar de despossuídos do direito, da saúde e da razão, essa classe da população ainda demasiado visível, coletivamente, nos lugares de que a ciência dispunha para observá-la”.18
Tendo como objetivo maior a manutenção da ordem social projetada da escravidão para a República, o positivismo criminológico se travestia de técnica, encobrindo com o fetiche criminal sua natureza política. É Nilo Batista quem nos assevera dessa função encobridora dos conflitos sociais que é o dispositivo crime. No Brasil republicano, o desenvolvimento das instituições policiais estará participando dos deslizamentos de sentidos da medicina legal para medicina social, muito mais abrangente. Flamínio Fávero afirmava que “[...] a medicina legal deve agir, de preferência, na elaboração e execução de certas leis que demandam conhecimentos de ordem biológica a fim de que a ordem social permaneça”.19 Aquele paradoxo da introdução do cartesianismo em Portugal acompanha essa nova estratégia de dotar a fé na ciência de uma reedição racional do salvacionismo.20
Nesta conjuntura das primeiras décadas do século XIX, Olívia Gomes da Cunha analisa “a produção cotidiana da (in)diferença no Rio de Janeiro entre 1927 e 1942. Revela-nos a derrotada trincheira (como a nossa) de Barata Ribeiro, que em 1906 questionava os procedimentos compulsórios de identificação criminal da polícia que “se prestavam a estigmatizar e desclassificar socialmente aqueles sobre os quais a justiça ainda não tinha culpa formada”. A discussão das novas técnicas evocava o que Ribeiro denominava de “estigma da desonra”.
Responsável pela introdução no Brasil da tecnologia identificatória do argentino Juan Vucetich, Félix Pacheco a defendia ao se opor à fotografia. Embates em torno das técnicas e práticas classificatórias para arquivos criminais diziam respeito a uma mais ampla dimensão da imagem e da identidade do povo brasileiro. Mal de arquivo: “conjunto geral de registros codificados e organizados a partir de uma lógica taxonômica orientada por princípios de semelhança e equivalência”.21 Inquisição, enciclopedismo, novas classificações hierarquizantes vão se transformando em tecnologias de controle social de longa duração.
Neste sistema de classificação, com a articulação entre datiloscopia e fotografia, “a memória seria impressa nos corpos e a cor se perpetuaria como sua insígnia mais poderosa”.22 Cunha afirma que este processo permitiria a manipulação da noção de identidade por especialistas do novo campo médico-jurídico, na interseção entre antropologia, medicina e criminologia. Na perspectiva do biopoder foucaultiano23 esses dispositivos iriam regular olhares e práticas sobre os corpos dos vadios, dos enfermos e também dos resistentes. As medidas de segurança que derivam desse olhar darão conta, como disse Nilo Batista,24 de assegurar controle penal além do crime, mantendo (ou tentando manter) as hierarquizações sociais do colonialismo e do escravismo.
O positivismo criminológico no Brasil conflui para o ordenamento da intensa conflitividade social na passagem da escravidão ao trabalho livre, do Império para a República. O positivismo, como força política da secularização, já apresentava seus paradoxos e suas marcas nas nossas tradições portuguesas, na modernização conservadora. Duas características vão revestir a questão criminal: a degenerescência do povo e a pena como salvação da sociedade. O livro pioneiro de Roberto Lyra, Direito Penal Científico-Criminologia nos introduz a uma história da criminologia brasileira que tem nos positivistas seu fulcro central.25 Gostaria de esboçar aqui uma nova reflexão à critica da patologização engendrada pelo positivismo. É Maximo Sozzo26 quem nos apresenta a possibilidade da criminologia nas margens não ser uma tradução literal de teorias colonizadas (e colonizadoras), e quando acercamos as lentes sobre os autores brasileiros que fundaram nossa criminologia, no apogeu do positivismo, percebemos uma questão fundamental: são homens que estão pensando o Brasil através do criminal e não o criminal através do Brasil. Ou seja, são políticos, literatos, jornalistas, militantes de projetos políticos para seu país. Aquela cisão produzida por uma linguagem jurídica autonomizada da realidade não os inclui. Estão interessados em produzir pesquisas empíricas dirigidas “ao lugar” na concepção de Milton Santos.27 O que nos surpreende ao lê-los é a riqueza de informações e as contradições entre seus aparatos epistemológicos e metodológicos e seus objetos de estudo. É que a utensilagem biodeterminista não lhes basta e não lhes cabe. Suas teorias antipovo se chocam com seu interesse genuíno.
O importante é compreender como essa grande tradução, denunciada por Sozzo, produziu uma matriz discursiva comum, uma identidade, que gerou não só um certo olhar sobre a questão criminal, mas também uma certa polícia e um determinado projeto penitenciário.28 Ou seja, o positivismo configurou, modelou o poder punitivo e suas racionalidades, programas e tecnologias governamentais na América Latina.
Nina Rodrigues escreveu um artigo intitulado Os negros maometanos no Brasil, no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro de 2 de novembro de 1900,29 em que se referia à rebelião escrava na Bahia de 1835. O seu surpreendente trabalho revela a profunda ambiguidade de sua produção intelectual. Tinha uma espécie de curiosidade apaixonada pela vida africana no Brasil. Sua trajetória reflete um pouco esta grande contradição brasileira com relação a sua africanidade: perceber intensamente a sua presença e sua força, tratando sempre de dominá-la e afastá-la de si. No seu caso, trabalhando a teoria da hierarquização das raças, estigmatizando a “raça negra” para que o fim da escravidão em si não representasse uma ruptura social. O controle social e a opressão se justificariam então pelo discurso científico.30
Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente enraizada na intelligentzia e nas práticas sociais e políticas brasileiras; ele foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado, patologizado, discriminado e por fim, criminalizado. Funcionou e funciona como um grande catalizador da violência e da desigualdade, características do processo de incorporação da nossa margem ao capitalismo central.
Pensando com Roberto Lyra Os Sertões de Euclides da Cunha como obra criminológica assistimos ao seu testemunho da chacina fundacional da República em Canudos. Euclides começa sua viagem pelo Brasil profundo trabalhando com os instrumentos racistas do positivismo. Seu encontro com o massacre não deixa pedra sobre pedra das etiologias determinantes:
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas; um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.31
Sobre a descoberta do cadáver de Antônio Conselheiro
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crâneo. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura [...]32
Concluamos esse capítulo, essa “página infeliz da nossa história”, com Zé Celso Martinez Corrêa:
O livro Os Sertões foi o primeiro ataque ao escândalo de dois Brasis desiguais, com a repressão do próprio Estado brasileiro, massacrando, degolando seu próprio povo. Euclides foi inspirado por todas as línguas de fogo do Espírito Santo. Escrito em todas as línguas, linguagens, ciências, poesias, começou a interpretar através do crime praticado pela nacionalidade, o próprio Brasil, para nós mesmos brasileiros e para todo mundo.33
Em suas metafísicas canibais Eduardo Viveiros de Castro propõe uma radicalização do processo epistemológico da antropologia “para assumir integralmente a sua missão, a de ser teoria da descolonização permanente do pensamento”.34 Para ele, “toda experiência de uma outra cultura é a ocasião para se fazer uma experiência sobre sua própria cultura”. A passagem de Lévi-Strauss sobre a conquista da América revela que ao mesmo tempo em que espanhóis buscavam sequiosamente nos índios sua alma, os índios submergiam seus prisioneiros brancos para saber se seus corpos apodreciam ou não.35 O importante é que Lévi-Strauss demonstra quão humana é a prática de negação de sua própria generalidade.
Descolonizar nossa elaboração da questão criminal impõe uma ruptura radical com aquela objetificação e hierarquização das nossas matrizes inquisitoriais. A consolidação da mentalidade obsidional europeia produziu uma máquina de classificação e seletividade para lidar com o seu grande Outro. Na atual conjuntura esse quadro se apresenta de maneira dramática. Como diz Zaffaroni, nosso continente nasceu como instituição de sequestro e na atualidade essa vocação se aprimorou.36 Milhares de latino-americanos apodrecem em prisões abaixo de todos os padrões de dignidade. A intensidade dos conflitos sociais e sua leitura penal positivista produziu o maior encarceramento da história e a política criminal de drogas prestou grande contribuição neste processo. Quanto mais prendemos e matamos pior ficamos e os meios de comunicação vão produzindo um discurso tautológico que produz adesão subjetiva à barbárie: demanda por mais pena e maior severidade penal.
O pensamento criminológico na nossa margem precisa mergulhar em nossa história. Nem os povos originários do Brasil e nem os africanos que nos povoaram tinham a necessidade de polícia ou de sistema penal para resolver seus conflitos. A justiça de transição da África do Sul contemporânea é um exemplo disso. Há alguns meses atrás, no Brasil, um povo indígena não aceitou o resultado de um júri considerando aquela cerimônia como brutal. Desconstruir a cultura do positivismo nos parece um dos pontos principais dessa pauta: desnudar o caráter salvacionista do ativismo jurídico penal. Nós, que naturalizamos as violências e o caráter genocida de nosso sistema penal, estamos numa encruzilhada ética e civilizacional: ou aprofundamos radicalmente nossa crítica ao poder punitivo ou estaremos eternizando ad infinitum nossa autocolonização.
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Notas
Autor notes