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O Brasil e os 40 anos do reconhecimento de Angola
Brasil y los 40 años del reconocimiento de Angola
Brazil and 40 Years of Angolan Independence
Le Brésil et les 40 ans de la reconnaissance de l’Angola
巴西承认安哥拉40周年记
O Brasil e os 40 anos do reconhecimento de Angola
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 8, núm. 3, pp. 471-488, 2016
Universidade Federal Fluminense

Recepción: 27/01/2016
Aprobación: 27/05/2016
Resumo: O presente trabalho analisa um momento decisivo da política externa brasileira para a África, os anos de 1974-1975, quando as então colônias portuguesas africanas tornaram-se independentes. Partindo de um contexto histórico anterior, no início da aproximação com o continente africano no governo Juscelino Kubistchek, mas com especial destaque para o período da Política Externa Independente (PEI), lançada no governo Jânio Quadros e seguida pelo seu sucessor João Goulart, o artigo analisa a política externa dos governos militares de Castelo Branco, Costa e Silva e Médici, até chegar no período Geisel; momento em que o Brasil reconheceu as ex-colônias como Estados independentes, inclusive Angola, do governo esquerdista do Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA). Esse reconhecimento merece atenção especial na parte final deste trabalho, em razão das controvérsias geradas à época e ainda presentes na política externa brasileira quarenta anos depois.
Palavras-chave: Brasil, África, política externa, reconhecimento.
Resumen: Este trabajo analiza un momento clave de la política extranjera brasileña en África, los años 1974 y 1975, momento en que las colonias portuguesas de África llegaron a la independencia. Basándose en contextos históricos anteriores, el inicio del acercamiento entre el continente africano y el gobierno de Juscelino Kubistchek, y luego la implementación de la Política extranjera Independiente por los gobiernos de Jânio Quadros y João Goulart, este artículo analiza la política exterior de los gobiernos militares de Castelo Branco, Costa e Silva y Médici, antes de focalizar la atención sobre el período Geisel, cuando Brasil reconoció la independencia de las ex-colonias portuguesas, inclusive Angola, entonces gobernado por el movimiento marxista MPLA. Este reconocimiento, que generó controversias aún vigentes dentro de la política exterior brasileña actual, será abordado más específicamente al final del artículo.
Palabras clave: Brasil, África, política extranjera, reconocimiento.
Abstract: The present work analyzes a decisive moment in Brazilian foreign policy toward Africa to have occurred from 1974 to 1975, when the continent’s Portuguese colonies became independent. Beginning with the previous historical context characterized by Juscelino Kubistchek’s government’s approaches to Africa, but placing a special emphasis on the period of Independent Foreign Policy (PEI) launched during Jânio Quadros’ government and maintained by successor João Goulart, the article analyzes the foreign policy employed by the military governments of Castelo Branco, Costa e Silva and Médici, up to the Geisel period, when Brazil came to recognize former colonies as independent states, including Angola under the leftist Popular Movement for the Liberation of Angola (MPLA). This recognition is granted particular attention at the end of the article, due to the controversy generated at the time and that persists in Brazilian foreign policy 40 years later.
Keywords: Brazil, Africa, foreign policy, recognition.
Résumé: Ce travail analyse un moment décisif de la politique étrangère brésilienne en Afrique, à savoir les années 1974 et 1975, lorsque les colonies portugaises d’Afrique accédèrent à leur indépendance. En partant des contextes historiques antérieurs, lorsque s’ébaucha le rapprochement entre le continent africain et le gouvernement de Juscelino Kubistchek, puis lors de la mise en œuvre de la Politique étrangère indépendante (PEI) par les gouvernements Jânio Quadros et João Goulart, cet article analyse la politique étrangère des gouvernements militaires de Castelo Branco, Costa e Silva et Médici, avant de s’intéresser à la période Geisel, durant laquelle le Brésil reconnut l’indépendance des ex-colonies portugaises, y compris de l’Angola, gouverné par le mouvement marxiste MPLA. Cette reconnaissance, qui à l’époque généra des controverses encore présentes au sein de la politique étrangère brésilienne actuelle, sera plus spécifiquement abordée en fin d’article.
Mots clés: Brésil, Afrique, politique étrangère, reconnaissance.
摘要: 本文分析巴西政府在葡萄牙殖民地安哥拉独立前后,也就是1974-1975年的外交政策。本文回顾了自约瑟林诺·库比切克总统开始的与非洲大陆亲近政策以来,特别是由简尼奥·夸德罗斯总统创立,后来被若昂·古拉尔特总统全面继承的独立外交政策(PEI)。同时,还回顾了巴西军人政权期间,从卡斯特罗·布朗科,科斯塔·席尔瓦,梅迪奇,直到盖塞尔这四届军人政府期间的外交政策。盖塞尔总统承认了那些刚刚获得独立的葡萄牙的非洲殖民地国家,其中包括安哥拉的人民解放运动领导的左派政府。这件事当时是有争议的,现在,40年之后,在巴西对外政策方面,仍然是有争议的。
關鍵詞: 巴西, 非洲, 对外政策, 外交承认.
Introdução
O dia 11 de novembro de 1975 marcou a independência política de Angola de seu antigo colonizador e o término do colonialismo português na África. Para o Brasil, essa data também registra um dos episódios mais controversos da recente história diplomática brasileira: o reconhecimento do Estado de Angola por parte do Brasil.
A polêmica em torno do ato unilateral brasileiro deu-se porque o governo que passava a controlar boa parte de Angola, incluída a capital Luanda, era o Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA), de tendência marxista e esquerdista. Quarenta depois daqueles acontecimentos duas questões ainda subsistem: o reconhecimento por parte do Brasil, antes de qualquer outro Estado, foi um ato apressado e sem atentar para as implicações internas e externas decorrente do mesmo? Ou, ao contrário, o reconhecimento foi bem calculado e quarenta anos depois mostra-se um êxito incontestável?
Par responder esses questionamentos, na primeira parte do artigo serão examinados os aspectos internos que conduziram o Brasil a uma aproximação com o continente africano, em especial das então colônias portuguesas. Na sequência, serão analisados de maneira mais sucinta os processos de reconhecimento por parte do Brasil dessas colônias: Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. E, na parte final, o estudo mais detido sobre o caso de Angola, um momento crucial nas pretensões brasileiras na África.
A política externa brasileira para a África portuguesa
No período subsequente ao término da Segunda Guerra Mundial, o mundo assistiu a um forte movimento no sentido de conceder a independência política a muitos territórios, colônias, especialmente da Ásia e da África, até então, em sua maior parte, sob o domínio de algumas potências europeias. Um processo que em linhas gerais iniciou-se em 1947 com a independência da Índia e do Paquistão, passando pela África em 1956 com o reconhecimento da Tunísia como país independente e que atingiu o ápice no continente africano nos anos 1960-61.
O caso português, que nessa época já era uma anomalia, porque se tratava de um país de segunda ordem na Europa e que manteve seu “Império” graças, em grande medida, ao suporte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) – que tinha interesse na manutenção de bases americanas nos Açores – tornava-se nesses anos praticamente insustentável.[2] Mas o Portugal do Estado Novo salazarista, pobre e dependente das suas colônias, negava-se a reconhecer tal mudança, optando por resistir aos movimentos de independência nas terras de além-mar.
No Brasil, o processo de descolonização ásio-africano dos anos 1960-61 teve pouca repercussão interna e uma discreta reação por parte do governo Juscelino Kubitschek no que se refere ao reconhecimento dessas novas nações. Isto deu-se por três razões principais: a diplomacia presidencial de JK havia definido seu espaço de atuação externa no âmbito latino-americano, com o lançamento da Operação Pan-Americana (OPA) em 1958; pela notória preocupação no desenvolvimento interno do país, em que a diplomacia brasileira foi colocada também focada nesse princípio; e, pelos “laços estreitos” que uniam Brasil e Portugal, durante esses anos, consolidados desde a assinatura do Tratado de Amizade e Consulta de 1953, que colaborou intensamente no plano ideológico para o apoio brasileiro ao colonialismo português e, de certa forma estendido a outros países europeus, como a França no caso argelino.[3]
Para José Honório Rodrigues, havia no governo Kubitschek dois Ministérios do Exterior. Um no Itamaraty, comandado por Horácio Lafer em seu período final, de onde se dirigiam os serviços de rotina, e outro no Catete, onde Augusto Frederico Schmidt, formulador da OPA repetia a tese da regionalização de nossa política externa. A política externa do governo JK desconheceu o processo de liberdade africano, apoiou toda a conduta lusitana e se limitou a reconhecer as novas nações, sem mensagens de simpatia ou solidariedade.[4]
Não se pode negar, contudo, que já havia uma certa mudança de curso no tocante à África, durante o período final da presidência Kubitschek, mormente no que se refere aos interesses econômicos divergentes entre brasileiros e os das potências coloniais, isto é, uma série de ideias de reformulação já estavam sendo gestadas, e que apareceriam mais claramente no período seguinte: a Política Externa Independente (PEI).
A política externa de Jânio Quadros, seguida por de João Goulart, promoveu uma política externa independente em relação aos alinhamentos automáticos da Guerra Fria. São bons exemplos desse propósito: “desalinhamento” com os Estados Unidos, reatamento das relações diplomáticas com a URSS, maior relacionamento comercial com os demais países socialistas, recusa à política de isolamento de Cuba do sistema interamericano e o lançamento da política africana.[5]
Entretanto, a posição favorável do Brasil na questão da descolonização africana, repudiando a política anterior para a África, não significava – e Quadros deixou claro na mensagem ao Congresso Nacional – nenhuma aliança com os terceiro-mundistas, particularmente o grupo de nações não-alinhadas, em cujas reuniões o Brasil continuaria participando como mero observador.
Com a PEI tentou-se implantar uma ação internacional para o país até então desconhecida na política externa nacional, deliberadamente orientada para satisfazer os interesses nacionais no contexto internacional, aliada a um projeto de transformação das estruturas internas. Em termos de política externa para a África, a PEI representou um inegável esforço de aproximação, mas também marcado por atos de ambiguidade, que não concretizavam as palavras de um discurso anticolonialista. Esse tipo de atitude é justificável pelos “laços afetivos” que uniam Brasil e Portugal, seja no plano interno, em que parcela considerável da população e dos meios de imprensa manifestava-se contrários a qualquer tipo de pronunciamento contra o “império colonial português”, seja no plano exterior, em que diversos atores influentes exerceram pressão para que o Brasil não se pronunciasse contra Portugal, o que agravaria ainda mais a posição de isolamento do estado ibérico.
O golpe de 1964 e o advento do governo Castelo Branco representaram um acentuado refluxo na política africana. Abandonou-se a ideia de independência para adotar o alinhamento “automático” com os Estados Unidos, a partir de uma visão maniqueísta do mundo, de forte conotação ideológica.
No rigor da expressão não existia claramente uma política africana. Em algumas oportunidades o Brasil pregava um anticolonialismo nas Nações Unidas, mas silenciava quando se tratava do colonialismo português. Estabelecia relações diplomáticas com determinados países africanos e com outros não, por exemplo, com o Quênia, mas não com a Tanzânia, de Julius Nyerere, que apoiava a FRELIMO, movimento de libertação de Moçambique de tendência marxista. Mantinha relações com a Nigéria, mas ignorava a República Democrática do Congo, porque este apoiava a libertação de Angola.[6] Ainda dentro da visão maniqueísta oficial, Portugal - e sua “política ultramarina” - era identificado com o Ocidente, e em sentido inverso, os movimentos anticolonialistas eram associados ao “perigo comunista”. Alie-se a isso, a marcante presença da colônia portuguesa no Rio de Janeiro e São Paulo, que queria manter os “fortes laços históricos de amizade” que uniam o Brasil à ex-metrópole.
A posse de Costa e Silva marcou a ascensão de um grupo militar opositor aos “castelistas”. No plano externo o resultado foi um progressivo afastamento dos Estados Unidos, marcado por posições mais nacionalistas. Com relação a Portugal, em discurso de abril de 1967, o presidente foi breve, mas exprimiu o desejo de procurar “estreitar ainda mais os vínculos especiais que nos unem”. Mas, estranhamente, quando comentou qual seria a atuação brasileira nas Nações Unidas, pregou “a liquidação do colonialismo e a criação de condições propícias ao desenvolvimento econômico e social”.[7] A atuação do Brasil no campo político da África, durante o período Costa e Silva, pode ser caracterizada de pouco significativa. Limitou-se a acompanhar a evolução dos países africanos, tanto no que se remete à política interna, como no tocante à política externa, mormente em relação aos problemas do colonialismo e do subdesenvolvimento.[8]
O governo Médici caracterizou-se por uma política externa voltada para os interesses nacionais, em que se notam aspectos de um crescente pragmatismo. Em relação à África, marcou uma importante inflexão, exemplificada pela viagem do chanceler Mario Gibson Barboza por quase um mês visitando nove países africanos. Todavia, em termos gerais, a política externa desse período também não se colocou frontalmente contra Portugal. A justificativa foi de que o Brasil tentava mediar uma conciliação entre os dois lados. Era, de qualquer forma, para o governo brasileiro, uma posição conveniente, não se expondo em demasia com os portugueses, e esboçando uma posição mais ao agrado dos africanos. Como mencionado, o importante para esse governo foi a realização dos interesses nacionais.
Em 1974, o governo Geisel pregou um “pragmatismo responsável e ecumênico” para a política externa brasileira, que teria efeitos diretos sobre a política africana do Brasil. É justamente nesse período (1974-1975) que se insere esse estudo. As idas e vindas na aproximação com o continente africano, marcado em grande parte por essa relação triangular Brasil-Portugal-África, encontra seu ponto de não-retorno com o início do processo independentista nas “províncias ultramarinas” portuguesas em 1974, seu apogeu com a independência de Angola e seus efeitos nos anos seguintes.
A independência das colônias portuguesas: Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique
Segundo o Relatório 1974 do Ministério das Relações Exteriores (MRE), já ao assumir o cargo de presidente da República, o presidente Ernesto Geisel teria determinado “com clareza a nova prioridade a ser concedida à política brasileira com relação à África. O Itamaraty, assim, definiu a sua linha de reconhecimento dos direitos de independência aos territórios de expressão portuguesa”.[9] É um claro exagero, que só se justifica porque essa publicação é posterior aos fatos que viriam a ocorrer.
No seu discurso de posse, o presidente Geisel falou somente que daria “relevo especial ao nosso relacionamento com as nações-irmãs da circunvizinhança de aquém e além-mar”,[10] ou seja, abrange um espectro amplíssimo que a rigor poderia ser aplicado a qualquer caso. O MRE quis dar uma interpretação sobrevalorizada dessa passagem para tentar demonstrar um profundo interesse no processo de descolonização das colônias portuguesas, que a rigor existia, mas não era assim tão explícito como se poderia supor com a leitura do Relatório.
A intenção da gestão Geisel em apoiar o processo de descolonização na África portuguesa é decorrente mais de fatores externos e muito modestamente de fatores internos. A posição brasileira só ganhou verdadeiro impulso com a Revolução dos Cravos (25 de abril de 1974), que facilitou em muito a tomada de decisão por parte do Brasil. Note-se, que o novo posicionamento advinha de outros fatores externos: economicamente, a crise do petróleo de 1973; politicamente, a aproximação das nações africanas com os países produtores de petróleo e uma inclinação a apoiar as teses da Argentina no tocante ao uso dos recursos hídricos em rios limítrofes, que poderia inviabilizar o projeto de Itaipu, isto é, todos esses elementos atuaram de maneira conjunta para que o governo brasileiro praticasse o “pragmatismo responsável” em relação a questão colonial portuguesa. Para tanto, o governo Geisel apoiou o voto antissionista na Organização das Nações Unidas - o Brasil fora sempre moderadamente favorável a Israel - e estreitaram-se os laços econômicos e políticos com os países árabes. O Itamaraty permitiu a abertura de um escritório da Organização para Libertação da Palestina (OLP) em Brasília, que de acordo com Lafer, foi fruto de pressões do Iraque, que fornecia 48,6% do petróleo importado pelo Brasil.[11] Internamente, a definição da posição brasileira foi decorrente da necessidade de recuperar o terreno perdido em ocasiões passadas e de assegurar-se uma presença política e econômica privilegiada nos novos países, principalmente em Angola e Moçambique. Entendia-se que o Brasil poderia ter um espaço privilegiado nesses países, ao oferecer aos africanos possibilidades econômicas decorrentes do recente desenvolvimento brasileiro.
Nos anos de 1974 e 1975, a independência foi primeiro conseguida pela Guiné-Bissau (10 de setembro de 1974), depois pelo Cabo Verde (5 de julho de 1975), a seguir pelas ilhas de São Tomé e Príncipe (12 de julho de 1975), por Moçambique (25 de julho de 1975) e, por último, por Angola (11 de novembro de 1975).
No caso da Guiné-Bissau – considerada a mais atrasadas das colônias portuguesas –, o processo rumo à independência foi negociado pelo novo governo de Portugal e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), fundado por Amílcar Cabral em 1956. Em meados de maio de 1974, Mário Soares foi enviado a encontrar-se com Aristides Pereira, presidente do PAIGC, em Dacar. Nessa época, a independência do país já havia sido reconhecida por uma série de países, inclusive o Senegal. A primeira fase das negociações ocorreu em Londres, no final do mês de maio. Em 15 de junho realizou-se em Argel a segunda fase das negociações, a intransigência de ambas as partes levou à suspensão das conversações. A discórdia era porque o PAIGC negou-se a assinar qualquer tipo de cessar-fogo, enquanto Portugal não reconhecesse a independência do país.[12]
Em 16 de julho de 1974, o governo brasileiro resolveu reconhecer a independência da Guiné-Bissau. Para Marroni de Abreu, essa decisão está diretamente associada à visita de um representante do PAIGC solicitando o apoio brasileiro.[13] Para o historiador português Calvet de Magalhães, o ato brasileiro deve ser entendido tomando-se em conta a decepção do governo brasileiro quanto a decisão lusa de não aceitar a mediação brasileira.[14]
O ato brasileiro foi mal recebido em Lisboa, levando o ministério dos Negócios Estrangeiros a fazer publicamente reparos ao ato brasileiro. No entendimento das autoridades portuguesas, o reconhecimento unilateral da República da Guiné-Bissau, antes mesmo de Portugal, quando este ainda negociava com o PAIGC, contrariava o estipulado pelo Tratado de Amizade e Consulta entre o Brasil e Portugal. O Itamaraty considerou injustificada a reação portuguesa, já que o reconhecimento brasileiro foi previamente comunicado a Lisboa com antecedência de vinte e quatro horas.[15] O reconhecimento de Guiné-Bissau viria ocorrer de maneira expressa por meio do Decreto n. 74.559, de 13 de setembro de 1974, que criou a Embaixada do Brasil em Bissau.
A questão de Cabo Verde estava profundamente ligada a da Guiné-Bissau, mas com uma grande diferença, no arquipélago não ocorreram conflitos armados. O processo em Cabo Verde não contou com um acordo específico, como os de Argel, Lusaca ou Alvor, realizados para Guiné-Bissau, Moçambique ou Angola, respectivamente. Foi criado apenas um Estatuto Orgânico para o período de transição que terminou em dia 5 de julho de 1975.
Na data da independência do país, o presidente Geisel enviou carta de saudação ao primeiro ministro Pedro Pires.[16] A Embaixada do Brasil em Praia, cumulativa com a Embaixada em Bissau, foi criada nesse mesmo mês, por meio do Decreto n. 76.037, de 28 de julho de 1975.
A descolonização das ilhas de São Tomé e Príncipe foi desencadeada no acordo assinado em Argel, em 26 de novembro de 1974, no qual o governo português reconheceu Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) como interlocutor único e legítimo representante do povo de São Tomé e Príncipe. A independência pelo Acordo de Argel ficou programada para o 12 de julho do ano seguinte.[17]
Em junho, pouco antes da independência, uma missão brasileira visitou o arquipélago de São Tomé e Príncipe, mantendo contatos com o primeiro ministro Miguel Trovoada, em que foram discutidos aspectos para uma futura cooperação e assistência técnica considerados vitais para o desenvolvimento do país.[18] Como fizera no caso de Cabo Verde, na data estabelecida para a independência, o presidente Geisel enviou carta de saudação ao seu colega Manuel Pinto da Costa.[19] A Embaixada do Brasil na República Democrática de São Tomé e Príncipe, cumulativa com a Embaixada em Lagos, foi estabelecida por meio do Decreto n. 76.966, de 31 de dezembro de 1975.
No caso de Moçambique, o primeiro encontro entre o governo português e a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) ocorreu na primeira semana de junho em Lusaca. A continuação das hostilidades pela FRELIMO, todavia não impediram uma nova rodada de negociações em meados de agosto em Dar-es-Salaam. Novos diálogos ocorreram no início de setembro em Lusaca, em que foi fixada para 25 de junho de 1975 a data da proclamação solene da independência.
O diplomata Ovídio Melo – um dos personagens centrais da aproximação do Brasil com os movimentos independentistas moçambicanos e angolanos – contatou Marcelino dos Santos sobre a possibilidade de se abrir uma representação especial em Moçambique. Melo dirigiu-se para Dar-es-Salaam para encontrar-se com Santos e conhecer qual a decisão do Bureau Político da FRELIMO. Na oportunidade, Santos[20]afirmou que
A FRELIMO não poderia aceitar a proposta brasileira, concedendo ao Brasil um status especial na criação antecipada de relações diplomáticas com Moçambique, porque as mentes e corações moçambicanos, depois de sofrerem 14 anos de guerra, depois de verem durante todo esse tempo o Brasil apoiando Portugal - não estavam acostumados a considerar o Brasil como país amigo.
Apesar das tentativas do diplomata brasileiro em demover o representante da FRELIMO, a posição do moçambicano permaneceu a mesma, e concluía que o governo brasileiro deveria “esperar que a independência de Moçambique se concretizasse e então formalizar a proposta de relações diplomáticas ao nível conveniente”.[21] O Itamaraty fez ouvidos de mercador e manteve aberto seu consulado geral, mesmo depois que o país se tornara independente e a FRELIMO assumir o poder. O resultado não poderia ser outro, passou pelo ato constrangedor de ver seu Encarregado de Negócios convidado a retirar-se do país, já que não havia relações com Moçambique. A embaixada do Brasil em Moçambique foi criada pelo Decreto n. 76.967, de 31 dezembro de 1975.[22]
Um momento crucial para o Brasil: o caso de Angola
Angola, a maior e mais rica colônia portuguesa na África, estendendo-se desde a República Democrática do Congo ao Cunene e do Atlântico ao Zambeze, um dos maiores produtores mundiais de diamantes e o principal produtor africano de café na década de 1960, viu eclodir o conflito armado em 4 de fevereiro de 1961 com o assalto à prisão política em Luanda.
Em Angola, os três movimentos nacionalistas principais eram: o Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA), de tendência marxista, liderado por Agostinho Neto; a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), movimento de tendência pró-ocidental, liderada por Holden Roberto; e, a União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA), que era dirigida por Jonas Savimbi, proveniente de uma cisão da FNLA e que contava com amplo respaldo da África do Sul, atuando na região central e também ao sul do país.[23]
Em 15 de janeiro de 1975, foi firmado o Acordo de Alvor, que organizava a transição política, por meio da instituição de um governo que juntasse os três principais movimentos e mais um alto comissário português, até a independência definitiva em 11 de novembro, e uma eleição marcada para outubro para eleger um governo com representatividade nacional. Pelo artigo 3. do Acordo de Alvor, ficou estabelecido que Angola constituía-se de uma unidade una e indivisível, preservados os seus limites geográficos e políticos, ou seja, consagrava-se implicitamente que o enclave de Cabinda era parte integrante do território angolano.
Em novembro de 1974, o chanceler brasileiro Azeredo da Silveira fez a primeira das duas viagens à África que faria ao longo do seu período como ministro de Estado. Visitou o Senegal, viagem com evidente conotação política, no sentido de que buscava realçar a nova posição no tocante às colônias portuguesas no continente africano, preconizando a independência plena e a defesa da integridade territorial dos novos Estados.[24]
Aproveitando sua permanência em Dacar, o chanceler reuniu todos os chefes de missões diplomáticas brasileiras na África, para uma conferência em que foram discutidas e analisadas as perspectivas para os territórios que em breve iriam obter sua autonomia política. Um primeiro passo foi o de destacar uma missão para entrevistar-se com os líderes dos movimentos de libertação nacional de Angola e Moçambique. Essa missão ficou a cargo do chefe do Departamento África do Itamaraty, Ítalo Zappa, cujo principal objetivo era o de estabelecer relações com os futuros dirigentes de ambos os países e permitir aos representantes brasileiros assegurar aos seus interlocutores o propósito de manter algum tipo de contato, mesmo antes da independência formal.[25]
Infelizmente, poucos são os relatos da missão Zappa ao continente africano, sabe-se apenas que se encontrou com Agostinho Neto, líder do MPLA e Samora Machel, da FRELIMO. O diplomata Ovídio Melo, personagem de destaque a partir desse ponto, relembra que Zappa afirmara que sua missão seria apenas para “quebrar o gelo”, pois uma missão anterior, já feita na gestão Azeredo da Silveira, por Luis Bastian Pinto, então embaixador no Cairo, não surtira os efeitos esperados.[26]
Antes mesmo da viagem de Zappa, este já convidara Ovídio Melo para assumir uma das duas representações especiais que o Brasil pretendia criar em Angola e Moçambique. Na época cônsul-geral em Londres, Melo aguardou o retorno de Zappa e suas impressões para aceitar a incumbência.
Um mês e meio depois do retorno de Zappa, em janeiro de 1975, Melo viajou para Dar-es-Salaam para encontrar-se com os líderes do MPLA e da FRELIMO. Os resultados desses primeiros contatos foram desiguais: com Marcelino dos Santos, representante da FRELIMO, esse respondeu que a intenção brasileira de criar uma representação especial demandava decisão coletiva do Bureau Político, como visto acima, inicialmente negativa. Com Agostinho Neto, foi mais positivo, esse manifestou-se contente com a nova orientação da política externa brasileira e concordou com a abertura da representação.[27]
Ato contínuo, Melo partiu para Angola, onde se reuniu com o Alto Comissário português e os três primeiros ministros, um de cada movimento, que constituíam o governo tripartite de transição para a independência. No interior do país, encontrou-se com Jonas Savimbi da UNITA, obtendo o consentimento deste para abrir a representação especial brasileira. Antes de avistar-se com Holden Roberto, Melo ainda encontrou-se uma vez mais com Agostinho Neto, agora em Luanda, onde havia recentemente chegado em meio a grandes manifestações de júbilo popular. Viajando para Kinshasa, para encontrar-se com Roberto, este imediatamente anuiu com a ideia de uma representação especial e louvou a nova política brasileira. Em março, obtido o consentimento dos três movimentos, Melo agora como Representante Especial do Brasil perante o Governo de Transição, deu início à instalação oficial da repartição, que serviria para uma futura embaixada.[28]
Em abril, outro momento decisivo da iniciativa brasileira, mediante convite do Itamaraty, os três movimentos enviaram representantes para exporem suas ideias sobre as formas de governo que pretendiam implementar. A partir de maio, o Brasil começou a enviar alimentos, equipamentos e roupas para Angola.[29]
O acirramento das lutas entre os movimentos no interior do país agravou-se. Em julho, com apoio vindo dos musseques (favelas) de Luanda, o MPLA conseguiu expulsar os demais movimentos da capital, convivendo apenas com as tropas portuguesas restantes. O Acordo de Alvor agora era letra morta no tocante à elaboração de uma lei eleitoral e de uma constituição de um governo pelos três partidos angolanos.
Como lembra Ovídio Melo existiam dúvidas quanto a atitude a ser tomada pelo Brasil. Estados Unidos, Inglaterra e outros países europeus faziam pressões sobre os países africanos para que retivessem o reconhecimento, e a Organização da Unidade Africana (atual União Africana) também não tinha posição definida. Para o representante brasileiro em Luanda, não era momento de tergiversar, ou reconhecia-se na primeira hora, ou davam-se orientações para a missão retirar-se imediatamente do país. Se a decisão recaísse sobre a segunda opção, afirma o diplomata, o MPLA não perdoaria tal atitude, nem Moçambique e provavelmente toda a África.[30]
A decisão do governo brasileiro viria somente dois dias antes das festividades. O Itamaraty comunicou ao diplomata que o governo brasileiro reconheceria o governo do MPLA, por meio de declaração dada à imprensa em Brasília, às oito horas do dia 10 de novembro, ou seja, a zero hora do dia 11 de novembro em Luanda, nessa mesma data também seria assinado o decreto que criava a Embaixada do Brasil em Luanda.[31] De acordo com Melo, a mensagem foi comunicada ao primeiro ministro do MPLA, Lopo do Nascimento, que nessa mesma tarde fez chegar ao representante brasileiro os convites para a festa da independência. Nesse momento estariam partindo também os últimos representantes portugueses do país.[32]
Mesmo a orientação comunista do MPLA não impediu que o governo militar de Ernesto Geisel reconhecesse – em primeiro lugar e em atitude ainda hoje bastante polêmica – Angola e o movimento liderado por Agostinho Neto. É preciso que fique claro esse ponto, a controvérsia não está no fato de o Brasil reconhecer ou não a independência de Angola, mas sim no fato do governo brasileiro ter reconhecido o governo do MPLA como legítimo em Angola.
Nesse sentido, vale a mencionar na íntegra, a Nota de Imprensa do Ministério das Relações Exteriores,[33] divulgada no dia 10 de novembro de 1975 no Brasil, à zero hora do dia 11 de novembro, no horário de Angola registra que:
Na data estabelecida para a proclamação da independência de Angola – 11 de novembro de 1975 – o Governo brasileiro manifesta reconhecer o Governo instalado em Luanda, em observância às regras que presidem à convivência internacional. Desde a criação, em 31 de janeiro último, do governo de transição de Angola, o Governo brasileiro com absoluta isenção, e deliberação de não intervir nos assuntos internos de Angola, manteve na capital angolana uma representação especial, que será convertida em embaixada com o estabelecimento das relações diplomáticas. Na sua aspiração de fortalecer os vínculos naturais que existem entre os países, o Governo brasileiro adota uma posição de respeitar escrupulosamente o processo político interno daquele país.
O tema também é cercado de grande controvérsia pela atuação dos principais personagens do processo de tomada de decisão do reconhecimento de Estado e de governo, especialmente sobre o conhecimento da presença de tropas cubanas enviadas à Angola para ajudar o MPLA.
O reconhecimento de Estado e do governo do MPLA pelo Brasil não foi bem recebido pelos Estados Unidos, que apoiavam a FNLA. Além disso, também a África do Sul enviou tropas para auxiliar o avanço da UNITA e da FNLA para tentar retomar o controle da capital angolana. Já os soviéticos e cubanos – estes inclusive enviando tropas e material militar – apoiavam o MPLA. Assim, o caso de Angola tornara-se tão emblemático, em mais um triste exemplo da época da Guerra Fria.
Apesar de a decisão brasileira ter sido seguida por mais de trinta reconhecimentos ainda na primeira hora, a maioria de países socialistas, já havia no seio do Itamaraty incertezas quanto ao acerto da decisão. Em Brasília, a pressão era grande para que o Brasil retirasse o reconhecimento e o Itamaraty hesitava, ante tamanha pressão interna e externa.
Novamente, recorre-se ao relato de Ovídio Melo, este afirma que o silêncio do Itamaraty era preocupante, nenhuma orientação era mandada para Luanda, tudo estava paralisado. Observa o diplomata que “o MPLA só tendia a impacientar-se, se o Brasil não encontrasse logo alguma forma de reafirmar a posição assumida, fosse com declarações políticas de alto nível, fosse somente pela discreta ativação do comércio”.[34]
A missão de Ovídio Melo chegava ao fim no final de 1975, quando foi nomeado um Encarregado de Negócios para substituí-lo. O desgaste da imagem do diplomata que exerceu tão difícil tarefa, e que depois do reconhecimento não contou com respaldo do Ministério das Relações Exteriores, tornou-o um bode expiatório perfeito para todos aqueles que criticavam o ato de reconhecimento. Depois da decisão brasileira, Melo foi acusado de ser parcial e de ter posições pró-MPLA, e que teria manipulado as informações com vistas a influenciar a decisão brasileira. Décadas depois, em entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Geisel admitiria que também tinha conhecimento da presença das tropas cubanas em Angola antes de se tomar a decisão com relação ao reconhecimento do MPLA.[35]
Melo ficaria mais de dez anos no quadro de acesso à espera de uma promoção, tendo seu nome sido preterido em mais de noventa ocasiões. A promoção para Ministro de Primeira Classe (Embaixador) viria somente em 1986, a primeira da Nova República.[36]
Para Márcia Maro da Silva,[37] a omissão nas comunicações oficiais da Representação em Luanda, da tendência marxista do MPLA e do apoio soviético/cubano àquele movimento “não visava a privar o MRE de elementos que poderiam alterar a linha da política externa definida. Ao contrário, a referida omissão buscava reforçar a decisão tomada, privando outros atores de informação que poderia inviabilizar a execução da política externa formulada para Angola”.
Como frisado acima, a atuação brasileira naquela ocasião foi alvo de acirrados debates. Lembre-se que quando o ministro do Exército Sílvio Frota foi demitido por Geisel e lançou seu manifesto em outubro de 1977, citava o reconhecimento de Angola como um indício crescente da “comunização” da política do governo Geisel.
Na imprensa, pouco afeita aos temas internacionais, a questão do reconhecimento também teve expressiva repercussão. O jornal O Estado de São Paulo, junto com outros grupos conservadores de direita da sociedade civil que tradicionalmente apoiavam a aliança com Portugal, foi dos mais críticos do ato brasileiro. Para o periódico paulista, depois da decisão tomada, com base nos relatórios enviados por Ovídio Melo, Geisel teria ficado com a percepção de que as informações eram parciais, a favor do MPLA. Ainda segundo O Estado de São Paulo, essas informações deturpadas poderiam ter levado a uma decisão final equivocada, e levantava a possibilidade de que a decisão de reconhecimento poderia ser revista. Apesar do Itamaraty emitir, no dia seguinte, nota de apoio ao trabalho de Ovídio Melo, a posição do diplomata ficou bastante fragilizada.[38]
A revista Veja, então dirigida pelo jornalista Mino Carta, também tratou do tema do reconhecimento de Angola e do governo do MPLA, saindo em defesa do chanceler Azeredo da Silveira e de sua política externa de pragmatismo responsável e repudiando as críticas de O Estado de São Paulo.[39]
Meses depois disso nova polêmica. Foi publicado nos Estados Unidos o livro In search of the enemies, de Robert Stockwell,[40] antigo funcionário da CIA que comandou operações em Angola em 1975-76. Ovídio Melo recorda que nesse livro o ex-agente achava curioso que o Brasil ao mesmo tempo que mantinha boas relações com o MPLA “permitia que alguns brasileiros, alguns até fardados com uniforme do exército, aparecessem como ‘conselheiros’ de Holden Roberto”[41] momentos antes da tentativa da FNLA de chegar a Luanda antes da independência, acusando o Brasil de ter feito jogo duplo, denúncia que segundo Melo nunca teria sido desmentida pelo Itamaraty. Stockwell também revelava que a CIA teria feito pressões para que o Brasil retirasse seu representante de Angola, e de que o mesmo apoiava abertamente o governo do MPLA; a última acusação é refutada peremptoriamente por Ovídio Melo.
Entretanto, o debate prosseguiu. Dez anos depois do reconhecimento, a revista IstoÉ acusou o governo Geisel de ter mandado armamento para Agostinho Neto e o MPLA.[42] Em 2002, o tema voltou uma vez mais ao noticiário quando o articulista Elio Gaspari publicou em sua coluna, que os brasileiros desconheciam o próprio sucesso em Angola de ter reconhecido prontamente o governo do MPLA. O jornalista aproveitou e comentou que somente em 1999, Henry Kissinger assumiu o erro cometido em Angola, ou seja, o de ter intervindo no país mediante o apoio dado a FNLA.
Em suas memórias, Ovídio Melo fez o seguinte balanço do reconhecimento de Angola e das implicações pessoais e profissionais do ato brasileiro:
Enfim, nas condições em que o Brasil viveu durante o regime autoritário, o reconhecimento de Angola, feito sob duras dificuldades, a meu ver, sobressai como o gesto mais desassombrado da política externa em todos os tempos. Não lastimo então o truncamento da minha carreira. Valeu a pena, para algo tão importante. Afinal, não entrei no Itamaraty para fazer carreira. A função do Itamaraty é fazer política externa. E foi o que fiz como diplomata para que hoje possa sentir-me razoavelmente sereno e bastante realizado na aposentadoria e na velhice.[43]
Conclusão
Depois de um início vacilante, especialmente em decorrência das relações com Portugal, a política externa brasileira para o continente africano firmou-se no período da Política Externa Independente. Contudo, a questão das “províncias ultramarinas” portuguesas era o maior obstáculo ao pleno diálogo com as novas nações africanas.
Os períodos de idas e vindas, como visto, foi constante. Uma aproximação e consequente maior apoio ao processo de descolonização, seguido de um afastamento e declarações ambíguas sobre o colonialismo português foram frequentes na política externa dos governos militares.
Com a Revolução dos Cravos (1974) o processo de independência das colônias portuguesas acelerou-se. O Acordo de Alvor (1975) estabeleceu o processo de transição até a plena independência política de Angola.
A política externa de Geisel e Azeredo da Silveira, do pragmatismo responsável e ecumênico, buscou reconhecer os novos Estados lusófonos de maneira rápida e procurou estabelecer o mais rápido possível relações diplomáticas. Os casos de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe tiveram desdobramentos facilitados. Já o caso de Moçambique teve resistência inicial do movimento de libertação FRELIMO, que passou a comandar o país, mas as relações entre os dois países foram estabelecidas poucos meses depois da independência moçambicana.
O reconhecimento de Estado de Angola e governo do MPLA, no entanto, foi um caso muito distinto. Normalmente restrito aos círculos de especialistas, a política externa nesse caso obteve expressivo espaço na imprensa nacional. A atuação dos principais atores envolvidos no processo de tomada de decisão, em especial Azeredo da Silveira e Ovídio Melo, foi alvo de acirradas críticas. O primeiro conseguiu manter-se no cargo de chanceler até o final do governo Geisel. Já o segundo foi alijado de posições mais importantes dentro do Itamaraty por mais de uma década.
Quarenta anos passados, é inegável o acerto das decisões de reconhecimentos dos novos Estados africanos lusófonos. Atualmente, são relações consolidadas e de crescente confiança recíproca nas duas margens do Atlântico, marcadas também pelo advento de outras iniciativas de cooperação em nível bilateral e multilateral, como por exemplo, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
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Notas
E-mail: alexandrelpsilva@hotmail.com