Resumo: Esse artigo procura apresentar o percurso das teorias criminais advindas da Escola Italiana de Criminologia, surgida no século XIX, sua institucionalização e seu impacto entre os intelectuais brasileiros que pensaram as instituições policiais. Destaca as apropriações da obra de Cesare Lombroso e de outras escolas de pensamento criminológicas e suas relações com o discurso médico. Essas teorias encontraram guarida no pensamento social brasileiro, sobretudo entre os operadores da justiça criminal e segurança pública, preocupados em manter o controle social e que acabaram por estigmatizar os pobres, marginalizados socialmente. Produzem efeitos sobre a forma de abordagem policial, que destaca fatores como cor, renda, moradia e forma de se vestir, enfatizando estigmas sociais e consolidando a premissa de suspeição generalizada sobre os indivíduos pobres.
Palavras-chave:CriminologiaCriminologia,criminosocriminoso,políciapolícia,controle socialcontrole social,justiça criminaljustiça criminal.
Resumen: Este artículo busca presentar la evolución de las teorías criminales provenientes de la Escuela italiana de criminología – que apareció en el siglo XIX –, su institucionalización y el impacto que tuvieron sobre los intelectuales brasileños que idearon las instituciones policiales del país. Hace énfasis en las apropiaciones de la obra de Cesare Lombroso y de otras escuelas del pensamiento criminológico, así como sus vínculos con el discurso médico. Esas teorías influenciaron el pensamiento social brasileño, y en particular los responsables de la justicia criminal y de la seguridad pública, preocupados por mantener el orden social. Esta influencia condujo a la estigmatización de los pobres, que ya eran socialmente marginalizados. Produjo efectos sobre la forma en que la policía trabaja, tomando en cuenta factores como el color, el sueldo, la casa y la vestimenta, agravando así la estigmatización social y la idea que los individuos pobres son sospechosos naturales.
Palabras clave: Criminología, criminal, policía, control social, justicia criminal.
Abstract: This article seeks to trace the evolution of criminal theories produced by the Italian School of Criminology founded in the nineteenth century, their institutionalization, and impact among the Brazilian intellectuals to have developed police institutions. A particular emphasis is placed on appropriations of the work of Cesare Lombroso and other schools of thought on criminology, as well as their relations with medical discourse. These theories were welcomed into Brazilian social thought, especially among prosecutors and public security officials concerned with maintaining social control, and that ended up stigmatizing the poor, to be socially marginalized. This affected the approach adopted by the police, highlighting factors such as a person’s skin color, income, place of residence and way of dressing, emphasizing social stigmas and consolidating the premise of generalized suspicion of poor individuals.
Keywords: Criminology, offender, police, social control, criminal justice.
Résumé: Cet article a pour but de présenter le parcours des théories criminelles issues de l’École italienne de criminologie – qui vit le jour au XIXème siècle –, leur institutionnalisation et leur impact sur les intellectuels brésiliens qui donnèrent corps aux institutions policières du pays. Seront soulignées les appropriations de l’œuvre de Cesare Lombroso et d’autres écoles de la pensée criminologique, ainsi que leurs liens avec le discours médical. Ces théories trouveront un écho dans la pensée sociale brésilienne, et plus particulièrement chez les responsables de la justice criminelle et de la sécurité publique, préoccupés qu’ils étaient à maintenir l’ordre social. Ils finiront à cet effet par stigmatiser les pauvres, déjà socialement marginalisés. Cela aura des effets sur la manière d’agir de la police, qui s’appuiera sur des facteurs tels la couleur, le revenu, le logement et la façon de s’habiller, renforçant ainsi la stigmatisation sociale et l’idée selon laquelle les individus pauvres sont des suspects en puissance.
Mots clés: Criminologie, criminel, police, contrôle social, justice criminelle.
摘要: 本论文探讨了十九世纪意大利的犯罪学理论在巴西的应用和体制化,及其对巴西知识界的影响,主要是影响了巴西精英阶层对于警察体制和刑法制度方面的思考。本文着重讨论了意大利犯罪刑侦学家凯撒·隆布罗索(Cesare Lombroso) 和其他犯罪刑侦学派的著作在巴西的传播和应用,特别是他们的法医学的观点在巴西的影响。意大利的这些理论在巴西得到了当时巴西社会思潮的采纳,特别是刑事司法系统和公共安全系统的专业人士的认同。这些专业和权威人士致力于维持社会秩序,倾向于污名化那些处于社会边缘的穷人。因此,意大利犯罪理论在巴西的应用,强化了巴西警察的固有的社会偏见,根据肤色,收入,居住地,衣着外表等因素来进行社会控制,加深了对穷人的污名化和社会歧视。
關鍵詞: 犯罪学, 罪犯, 警察, 社会, 社会控制, 刑事司法。.
Artigos
A Criminologia e a polícia no Brasil na transição do século XIX para o XX
La criminología y la policía en Brasil a comienzos del siglo XX
Criminology and Police in Brazil at the turn of the twentieth century
La criminologie et la police au Brésil au tournant du XXème siècle
十九世纪和二十世纪之交的巴西犯罪学和警察

Recepção: 20/03/2016
Aprovação: 08/07/2016
A Criminologia, “ciência” voltada para o estudo do criminoso, surgiu com toda pompa no final do século XIX, legitimando-se, rapidamente, com status de saber acadêmico. Institucionalizada, passou a ser ensinada nas principais universidades europeias, alargando a fronteira dos estudos sobre o “homem criminoso”.
Doutores versados na Criminologia, preocupados em entender o crime, ora estavam enfurnados em seus laboratórios e gabinetes, imersos em leituras e pesquisas, ora podiam ser encontrados nos congressos, debatendo os resultados obtidos com seus pares sobre o tema central de sua disciplina, o homem criminoso.[2]
Catedrático no assunto, Cesare Lombroso, ao longo de sua vida, desenvolveu várias atividades, entre elas a de médico do exército, nos anos de 1859-1863; diretor do asilo de alienados da cidade de Pavia, em 1864, instituição que também serviu de grande laboratório para suas observações sobre a demência e a criminalidade; e, professor de psiquiatria nas universidades de Turim e Pavia, defendendo, nesta última, sua famosa tese sobre os cretinos.[3] Por todo esse histórico, acumulado durante anos de experiências, estudo e pesquisa, passou a desfrutar do título de fundador e mestre da Escola Italiana de Antropologia Criminal.
Em seu mais importante livro, O Homem Delinquente,[4] obra na qual reúne teorias advindas do materialismo, evolucionismo e positivismo para defender sua argumentação sobre a natureza do crime e do criminoso, sua tese central era de que alguns homens estariam predestinados ou, usando uma expressão mais lombrosiana, “determinados” ou não ao crime. Assim, o criminoso seria biologicamente determinado para o mal por razões hereditárias.
Lombroso recorre à análise morfológica que, segundo ele, possibilitaria identificar, através de indícios como traços físicos, que todo delinquente é possuidor de estigmas atávicos, evidenciando tendências a determinados tipos de crime. Surge então a famosa expressão o “delinquente nato”, registrada no seguinte trecho escrito por Lombroso:
No feto, encontram-se frequentemente certas formas que no adulto são monstruosidades. O menino representaria como um ser humano privado de senso moral, este que se diz dos frenólogos um demente moral, para nós um delinquente nato. Há nisso a violência da paixão. [...] sendo a demência moral e as tendências criminosas unidas indissoluvelmente, explica-se porque quase todos os grandes delinquentes tiveram de manifestar todas as medonhas tendências desde primeira infância. [5]
A tese em si não é original, já que antes de Lombroso os alienistas, antropólogos, a frenologia e a medicina legal já debatiam sobre o assunto. A fama atribuída à Criminologia e a Lombroso é, justamente, pelo impacto que seus estudos representaram à forte institucionalização desse novo saber nas universidades e, principalmente, pela ênfase dada pelos historiadores da Criminologia no período da chamada belle époque, momento de grande ascensão das teorias criminais.[6] A revisão historiográfica sobre o assunto tem buscado historicizar o problema para o fim do século XVIII, buscando entender a História das Ciências médicas na Europa. Nessa abordagem, é comum ver Lombroso muito mais como um compilador e herdeiro desse conhecimento produzido anteriormente do que propriamente um fundador. O historiador Pierre Darmon[7] aceita essa postura, mas dá ênfase, em sua obra, ao fim do século XIX, quando a criminologia já estava em plena expansão no universo acadêmico, com produção significativa de revistas, livros e congressos espalhados por toda Europa.[8]
No congresso de Antropologia Criminal, no ano de 1889, em Paris, Lombroso apresenta ao mundo suas teorias embasadas em vasta “coleta empírica”, agrupando uma coleção de centenas de crânios dos célebres criminosos e manifestando sua ligação com a concepção materialista, triunfante em fins do século. As medições e pesos da massa cefálica, contidos em cada um deles, evidenciavam a preocupação em demonstrar, através da morfologia, um caminho para identificar o criminoso.
No entanto, a vicissitude dos dados, o ecletismo teórico de Lombroso e os resultados apresentados estavam longe de ser lógica ponderável e racional, mesmo que ele insistisse na comprovação por meio de “evidências cientificamente verificáveis”. Por isso, aos poucos, acaba deixando de lado a ênfase meramente fisionômica, assimilando, por conseguinte, teorias evolutivas que levavam em consideração o meio e a hereditariedade. Portanto, o homem com tendência à delinquência possuiria um “micróbio” do crime que só seria ativado em condições específicas e ambientais. Mesmo com uma pequena mudança na forma de definir o criminoso, o peso determinista das teorias lombrosianas continuava e o homem branco europeu era o primeiro da fila na linha gradativa do processo evolutivo.[9]
Ao deslocar a atenção do crime para o criminoso, Lombroso exerceu influência não só na Medicina e Antropologia Criminal, mas também no Direito. Desse modo, a Criminologia serviu de trampolim para os médicos que tinham, agora, poder para travar a batalha do tribunal, usando o criminoso nato como peça mestra do seu arsenal.[10] A Escola Positivista de Direito Penal voltou, então, seu olhar para o sujeito que comete a ação, ou seja, o criminoso. .Dessa forma, o delinquente seria um doente; o crime, um sintoma; a pena ideal um tratamento”.[11]
Esse novo paradigma de estudo do crime, proposto pelo Direito Positivo, encontrou amparo nas novas “descobertas” da Medicina, conferindo-lhe certa legitimidade, mas chocar-se-ia com o Direito Clássico, que propugnava, entre seus postulados, a premissa do “livre arbítrio”. O seja, mediante as leis, cada indivíduo poderia escolher cometer ou não o crime, cabia ao homem a escolha. Sob esse ponto de vista, a responsabilidade é voluntária, individual e consciente. Destarte, a quebra do contrato social que põe em ordem a vida comunitária só poderia ser efetivada mediante a punição da ação do infrator, prescrita em lei. Logo, ficam evidenciadas essas duas posturas completamente distintas quanto à forma de perceber o universo criminal, a do Direito Clássico e a do Direito Positivo.
O Direito Clássico arvora herdeiro da racionalidade, tendo suas bases firmemente alicerçadas numa perspectiva iluminista, fruto do advento da modernidade, com suas reflexões teóricas em torno do crime, das formas de punir e do livre arbítrio, forjadas entre o século XVIII e XIX.
Com suas propostas de punição para o crime, Cesare Bonesana Beccaria (1738-1794) e Jeremy Bentham (1748-1832) se destacaram. O primeiro ficou conhecido por seu famoso conspícuo “dos delitos e das penas”,[12] já Bentham alcançou prestígio com seu “panóptico” modelo de prisão no qual, segundo seu mentor, permitiria a vigilância dos seus encarcerados sem que estes soubessem que os observava. A ideia era interiorizar a vigilância.
Bentham era um utopista e defendia a proposta do panópticoestendida para a sociedade[13]. O princípio almejado era de “humanizar” as punições. Desse modo, formas de suplício e a teatralização da tortura deveriam ser suspensas, pois, os horrendos espetáculos de mutilação e desmembramento dos sentenciados representavam práticas punitivas medievais que submetiam os condenados à execração pública, não mais condizendo com a razão iluminista.[14]
O Direito Positivo, por sua vez, rechaçou todo o legado argumentado pelo Direito Clássico e o humanismo, indagando que isso era uma abstração metafísica e que a pena em si não resolveria o problema do crime. Com as atenções agora voltadas exclusivamente para o indivíduo que comete o crime, este deveria ser “tratado” e não mais punido.
O debate criminal, no final do século XIX, é praticamente centralizado entre juristas e médicos. De fato, é enorme a quantidade de estudos, congressos e livros produzidos por indivíduos dessa área que se viam como os únicos autorizados a tratar do tema. Por mais esdrúxulo que isso nos pareça hoje, é inegável a contribuição desses intelectuais para o estudo da criminalidade.
Esse período foi marcado, claramente, pela disputa de poder, afirmações e legitimidade acadêmica, momento no qual as Ciências Sociais também começaram a se constituir enquanto saber acadêmico, tentando inserir-se nesse espaço, mesmo que de forma muito tímida inicialmente. Embora não tenha se dedicado especificamente ao estudo do crime, em As regras do método sociológico,[15] Emile Durkheim assinala clara discordância em relação às explicações patológicas para o crime, principalmente as defendidas pelo jurista italiano Rafael Garofalo. Para Durkheim, o crime era um “produto social” e não biológico.[16]
A sociologia europeia, de início, não teve muito interesse pela temática do crime no século XIX, contudo este não passou despercebido, já que, aliado ao medo da desordem social, não podia fugir da atenção das Ciências Sociais. Porém, não passou de um “mero interesse parcial” e até “marginal”, mormente pelos sociólogos durkheimianos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o estudo sociológico sobre o crime ganhou maior dimensão ao se deter na análise dos “desvios” e “controle social”, abandonando “tendência”, “predisposição” e “degenerescência”. Essas perspectivas surgem como pedra fundamental nas pesquisas sobre o crime, provocando uma mudança brusca em relação à sociologia praticada na Europa, que não “tinha conseguido se impor frente aos estudos médico-psiquiátricos”. Sobre esse embate entre as perspectivas durkheiminiana e da escola de Direito Positivo, defendida por Garofalo, Phillipe Robert sublinha:
O estudo sociológico do crime não pode basear-se numa triagem apriorística de separação dos delitos supostamente “verdadeiros” ou “naturais” e de descarte dos demais. Procedendo-se assim, perder-se-ia a tipicidade do fenômeno, aquilo que é comum a todas as suas manifestações e que distingue dos demais objetos sociais. Ora, o único traço comum a todas as condutas criminais é sua tipificação, a ameaça de penalização que o legislador sujeita a quem possa cometê-los. Dessa forma, Durkheim indicou que a Sociologia não podia mais construir o estudo do crime sobre a pesquisa dos determinantes da ação e que se devia começar pela reação social suscitada pelo crime. [17]
Se distanciando do foco pensado por Lombroso, a escola Sociológica de Chicago, por sua vez, abordou o crime com ênfase no criminoso, no urbano e, consequentemente, nas crescentes taxas de criminalidade e delinquência. Para isso, reuniu dados estatísticos e qualitativos, iniciativa que abriu possibilidade para o entendimento do crime como um produto social do urbanismo e das constantes mudanças nele ocorridas.[18]
No Brasil, a Criminologia foi recebida com bastante entusiasmo nos principais espaços de produção de saber, naquele momento as Faculdades de Direito e Medicina. Do fim do século XIX - quando as ideias de Lombroso, enfim, começam a ser discutidas no país - até a primeira metade da centúria passada, médicos e juristas brasileiros abraçavam a Criminologia como verdade absoluta,[19] já que era uma área do conhecimento “cientificamente comprovada”. Nesse sentido, estudos foram desenvolvidos para entender o problema do crime e da criminalidade na sociedade brasileira.
A Faculdade de Direito do Recife esteve na vanguarda no que diz respeito ao debate da Criminologia no Brasil, sendo a pioneira e responsável por disseminar as ideias de Lombroso no país, propiciando o debate a partir dos professores, que logo seduziriam as mentes e corações de seus alunos. Formava-se uma nova geração de juristas importantes, versados nas teorias lombrosianas, e ardorosos defensores do Direito Positivista.[20]Na Medicina, médicos como Nina Rodrigues se destacaram, alcançando notoriedade por divulgarem os métodos advindos da Antropologia Criminal em seus estudos de Medicina Legal.[21]
Na última década do século XIX, o respeitável jurista brasileiro Clóvis Beviláqua, refletindo sobre a Criminologia, tentou defender o campo jurídico, apesar de “reconhecer” certa matriz biológica para o crime. No esforço de definir o fenômeno, o jurista cearense criticou excessivamente a “preocupação biológica da Antropologia Criminal, cuja análise repousa pura e simplesmente no criminoso, mas não propriamente no crime, que é uma entidade abstrata”.[22]
Interessante que no momento em que a leitura e debate em torno das obras dos criminalistas italianos ganhavam força entre os principais intelectuais brasileiros, na Europa elas já vinham recebendo duras críticas e não mais seduziam os criminalistas, que, nesse momento, buscavam outras explicações para o crime, voltando-se para questões sociais e outras abordagens da Antropologia. Vale destacar que muitas das críticas feitas a Lombroso, sua obra e seus discípulos, devem-se ao professor de Lyon, Alexandre Lacassagne.[23]
Ainda assim, a Criminologia ainda gozava de algum prestígio, mesmo que fosse nos países flamengos, onde se fazia muito presente a influência de Lombroso e do Direito Positivista Italiano; e na América Latina, onde acabou virando um campo fértil para a aplicação dessas teorias. Um verdadeiro “eldorado” como bem observou Pierre Darmon.[24]
Se na Europa as críticas e o retumbante fracasso das teorias criminais propugnadas pela Criminologia italiana estimularam o estudo do crime para o avanço na coleta, sistematização e análise dos dados estatísticos, no Brasil, sobre outra premissa que não a biológica:
A Criminologia mostrou-se claramente esse saber destinado ao poder, muito mais voltado para o desenvolvimento das técnicas de identificação criminal e outros mecanismos de controle social e para a estigmatização de setores da população ainda hoje considerados como potencialmente perigosos.[25]
O século XIX, de modo geral, foi o momento em que as cidades passaram a ser problematizadas, juntamente com seus habitantes. A construção de “saberes” sobre a vida na cidade revela os conflitos, de modo que os mais pobres, considerados menos instruídos, tornaram-se alvo principal das preocupações em torno da higienização das moradias e hábitos.
Uma série de fatores, ocorridos nesse recorte temporal, no Brasil, permite aos historiadores refletirem sobre questões que gravitam em torno do poder de polícia e sua ação na tentativa de traçar o perfil para identificar o possível criminoso. Assim, o fim da escravidão, a proclamação da República, a imigração de mão de obra europeia para substituir a escrava, a industrialização e a urbanização apresentam temas ligados à exclusão e à cidadania que, por sua vez, põem em xeque toda a estrutura da hierarquia social construída no Brasil, desde o processo de colonização.
Vale dizer que o processo de urbanização pelo qual passou o Brasil no século XIX e início do XX foi fruto muito mais da expansão do mercado internacional e da exportação de produtos tropicais para o Estados Unidos e Europa do que do reflexo do desenvolvimento do comércio interno no Brasil, “daí o caráter ‘exótico’ das cidades litorâneas, voltadas mais para a Europa do que para o hinterland, e incapazes de exercerem uma influência modernizadoras mais profundas nas áreas rurais”.[26]
O exame do processo de urbanização no Brasil nos permite perceber que, além de exótico, foi excludente. A cópia de modelos europeus inseridos na realidade local era um delírio da elite brasileira aburguesada e procurava manter os espaços limpos, criando locais de sociabilidade para lazer e para seu deleite. Deste modo, operou várias intervenções urbanísticas, destacando-se o alargamento das ruas, a criação de passeios públicos e o aformoseamento dos prédios, copiando uma belle époque tardia nos trópicos. Isso provocou segregação social, uma vez que os pobres eram portadores de hábitos que incomodavam a nova sensibilidade urbana. Era preciso manter o controle sobre esses indivíduos, mantê-los afastados das áreas principais da cidade. Estes sujeitos passaram, pois, a ser um dos alvos de vigilância sanitária e policial.
A exemplo, os negros libertos, não inseridos no mercado de trabalho formal, excluídos dos direitos civis, obrigados a morar nas áreas mais pobres dos principais centros urbanos, habitando moradias insalubres, geravam medo nos gestores públicos, haja vista que poderiam causar uma possível fissura no ordenamento social desejado. A razão é que esses indivíduos, segundo o saber científico da época, estavam propensos aos vícios, crime e degeneração.
Do outro lado, temos os trabalhadores brancos, vindos da Europa para trabalharem nas lavouras de café, substituindo a mão de obra escrava. O projeto de inserção do homem branco europeu não apenas visava a inclusão de uma mão de obra capaz de substituir o trabalho escravo, mas guardava em seu seio um ideal de Brasil moderno. O “branqueamento” da raça colocaria o país no mesmo patamar das nações civilizadas europeias, o que, na prática, mostrou-se retumbante fracasso, pois o que seria uma solução, somou-se aos problemas já existentes. Como os pobres e negros libertos que perambulavam pela urbe, em pouco tempo os imigrantes passaram a ser vistos como desordeiros, organizadores de greves e do embrião da brava classe trabalhadora brasileira. Esses indivíduos foram tratados como caso de polícia.[27]
A busca por direitos e organização individual ou coletiva dos excluídos sociais, seja de ex-escravos ou de trabalhadores assalariados, tem sido estudada, na historiografia brasileira, nos últimos anos, o que vem revelando a ação desses sujeitos e os critérios estabelecidos para se ter acesso à cidadania no Brasil. Sob esse prisma, Lilia Moritz nos adverte “para além dos problemas mais pertinentes relativos à substituição de mão-de-obra ou mesmo a conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania”.[28]
O advento da República no Brasil, em seus primeiros anos, foi capaz de unir esforços para intervir no traçado urbano das cidades, bem como na construção de novas residências e seus usos.[29] Entretanto, na prática, quase não permitiu ou estabeleceu possibilidades para seus moradores exercerem uma maior ampliação dos direitos civis e participação cidadã.
Nesse quadro, as camadas mais pobres da cidade eram vistas pelas elites como perigo constante e portadoras de vícios inerentes à condição social. Por conseguinte, com a argumentação de que as classes populares eram compostas por pessoas rudes e perigosas, “foi-se delineando uma construção simbólica sobre esses indivíduos considerados perigosos”.[30] Essas classes passaram, então, a ser denominadas de “classes perigosas”. Tal conceito surgiu primeiramente na Inglaterra, na década de 1840, com a escritora Mary Carpenter, que, dedicando-se a estudo da criminalidade e “infância culpada” (termo usado para caracterizar meninos de rua), buscava associar grupos sociais, formados à margem da sociedade civil, a pessoas que haviam passado pelas prisões ou que optavam por obter o sustento de sua família mediante outras práticas como o furto e o não trabalho.[31]
Criado o conceito de classes perigosas, este passa a ser aplicado como verdade universal, discriminando os pobres, encarando-os como criminosos portadores de patologias contagiosas. O problema não era visto apenas como social, mas também moral:
As classes pobres não passaram a ser vistas como classes perigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. Os pobres ofereciam também perigo de contagio. O perigo social, representado pelos pobres, era como se fosse uma doença contagiosa: as classes perigosas continuariam a se reproduzir enquanto as crianças pobres permanecessem expostas aos vícios dos pais.[32]
Chalhoub, todavia, localiza a utilização desse conceito, no Brasil, no final do século XIX.
No Brasil, ainda no Império, vamos encontrar o conceito de classes perigosas como um dos eixos de um importante debate parlamentar ocorrido na Câmara dos Deputados, nos meses em que se seguiram à lei de abolição da escravidão, em maio de 1888. Na ocasião, os deputados estavam preocupados com as consequências da abolição para a organização do trabalho, e discutiam o projeto de lei sobre a repressão à ociosidade.[33]
Partindo da ideia de que os pobres eram, em potencial, indivíduos predispostos ao crime e aos vícios é que os fundamentos teóricos das estratégias policiais para a atuação nas cidades brasileiras, nas primeiras décadas do século XX, são consolidados com o pressuposto da suspeição generalizada de que todo cidadão é suspeito de alguma coisa até prova em contrário.[34]
Como dito alhures, era fato contundente: a frequência de pobres urbanos transitando pelos diversos espaços públicos em ociosidade - nas principais cidades brasileiras - não alimentava nenhuma esperança de contribuição efetiva para a construção de uma nova sociedade pautada nos padrões de ordem, progresso, disciplina e trabalho. Assim, com a égide da República, o discurso criminal caiu como luva, pois o lema ordem e progresso não combinava com esse quadro vivenciado no Brasil. Nesse sentido, a Criminologia deu o suporte para a elaboração de estratégias de controle social daqueles pobres potencialmente perigosos/criminosos.
É, pois, sobre essa premissa da desconfiança e do medo, sobretudo dos mais pobres, que a polícia brasileira assenta suas bases de atuação, incorporando e usando novas técnicas de identificação, como a foto e a datiloscopia. A incorporação dessas novas invenções, recebidas com bastante entusiasmo na investigação, foram utilizadas nas primeiras décadas do século XX, nas delegacias e nos recém-criados gabinetes de identificação criminal, tornando-se aliadas importantes na elaboração de fichas dos criminosos.
Sendo assim, para uma abordagem policial eficaz, fatores relevantes como cor, renda, moradia e forma de se vestir passam a ser levados em consideração, enfatizando a estigmatização social e consolidando a premissa de suspeição generalizada sobre os indivíduos pobres.
Decerto, a formação de uma cultura policial foi fundamental para que seus membros aprendessem os procedimentos de sua ação para além do que era propugnada pelos seus superiores. A rua é fundamentalmente o espaço onde se aprende, é o espaço da experiência, é o lugar da trama, é onde se extrapola o instituindo, é o lugar da negociação entre o simples policial e o seu público e é, por excelência, o lugar onde o leque de possibilidades se evidencia. Sendo assim, o policial poderia escolher desde a prisão, ação truculenta ou até mesmo usufruir dos benefícios que sua farda poderia oferecer.[35]
Preocupados em pensar o poder de polícia e a atuação do judiciário, juristas e policiais de várias partes do Brasil se reuniram em 1917, na cidade do Rio de Janeiro, para participarem da Conferência Judiciária Policial. Um dos motivos era debater as formas de se lidar com a criminalidade, pensando na organização da polícia e na melhoria do aparato judiciário, com a realização da Conferência,[36]sediada na então Capital Federal, Rio de Janeiro, o universo criminal, foi pela primeira vez objeto de debate nacional. Várias autoridades policiais do Brasil participaram, o que possibilitou a troca de informações e um esforço de inserção de novos recursos investigativos nas principais cidades brasileiras.[37]
Portanto, o aumento da criminalidade no país foi acompanhado pela preocupação com a elaboração das estatísticas criminais[38] e organização dos aparatos policiais.[39] O uso dos dados era uma forma de identificar e pensar em uma agenda com estratégias bem definidas, capaz não só de apurar, mas de punir, na tentativa de se manter a ordem. Logo, era fundamental definir regras claras de se viver na urbe, estabelecer fronteiras do que se podia e do que não se podia fazer. Encetava-se, assim, a demarcação dos limites aceitáveis, ou pelo menos toleráveis, como regras norteadoras dos comportamentos dos moradores das cidades.
As teorias criminais importadas da Europa, as quais tanto fizeram sucesso entre os estudiosos do crime no Brasil, na maioria das vezes, eram ideias obsoletas no tocante ao estudo sobre o crime. Elas foram mal absorvidas, ou absorvidas de modo parcial, sendo aplicadas a uma realidade social de difícil compreensão, o que causava confusão e desconforto quanto aos resultados esperados. Vale dizer que entre os próprios intelectuais brasileiros havia vários debates quanto a sua aplicabilidade na realidade do país, não havendo unanimidade quanto ao modelo a ser utilizado. Esse é realmente um aspecto interessante, que merece reflexão, sendo importante apontar que esse saber acabou monopolizado por Bacharéis em Direito e Medicina, estabelecendo-se, assim, um campo de embate em torno da ciência criminal.
Uma vez que as cidades cresciam e esse espaço se tornava o lugar do crime e de atuação de mentes criminosas por excelência, a polícia e os modernos métodos de investigação para identificação e preservação da criminalidade passaram a ser almejados pelos Chefes de Polícia em todo o Brasil, pois era preciso equipar a instituição para que fosse possível lidar com esse inimigo da ordem.
De fato, as condições de trabalho dos policiais nas ruas definem o modo pelo qual a atividade policial é realizada no Brasil. A autoridade e poder que a farda confere ao mais simples policial são significativos e, não raro, extrapolam o instituído. Consequentemente, a permanência de alguns problemas em relação ao serviço policial, entre eles violência, impunidade, arbitrariedade, morosidade, incompetência passaram a ser características no tratamento da polícia para com seu público, sobretudo com as pessoas mais pobres, tornando-se, a nosso ver, permanência histórica, mesmo com as conquistas adquiridas pela sociedade civil nos últimos anos.
É mister destacar que muito da forma de pensar e agir da polícia sobre seu público advém das teorias criminais. A proposta de pensar estratégias no combate ao crime acabou por exigir uma atuação mais “eficaz” da polícia, fato que tornou essa instituição, desde sua criação, a presença mais próxima do estado junto à população.
É preciso compreender, então, a atividade policial de forma plural, embora, comumente, seja desprezada pela historiografia brasileira, que ainda vê na figura do policial o indivíduo amorfo, fiel, seguidor dos desígnios do estado, a serviço da burguesia e inimigo da classe trabalhadora.[40]
Mesmo que hoje sejam totalmente refutados pela academia, os modelos “exóticos” da criminologia positivista deixaram sua marca na atuação policial. As infrações cometidas pelos homens da lei acabaram por afastar a população desse serviço público, criando um ar de desconfiança e medo. A polícia arbitraria e despreparada tinha como alvo principal de seus desmandos a população mais pobre, desprotegida e marginalizada. Essa população sofria preconceitos da elite e autoridades policiais, que a enquadravam dentro de um conceito amplo de classes perigosas. Desse modo, aqueles que a compunham eram tratados como indivíduos problemas, portadores de vícios e propensos ao crime, conceito que ainda hoje baliza a atividade policial.