Resumo: O método clínico, como acentua Manoel T. Berlinck, é resultado de uma certa posição de passividade; daí a denominação de “atenção flutuante” na escuta psicanalítica proposta por Freud. Trata-se do preenchimento de um vazio que é ocupado por uma representação, ou seja, por algo cuja existência é ausente, ainda estando presente. A observação envolve a tríade RSI (Real/Simbólico/Imaginário) de J. Lacan e inclui o sem sentido, o estranho, o Umheimlichfreudiano. Partimos dos conceitos de Natureza (Sertão/Sertanejo) e Observação para a interpretação das representações dos jagunços inscritas nas narrativas e nos neologismos pesquisados amorosamente por Rosa. O objetivo é refletir sobre uma ética inscrita na sustentação do desejo, a despeito das surpresas da contingência e dos labirintos que a vida nos impõe percorrer.
Palavras-chave:Método clínicoMétodo clínico,Psicanálise em extensãoPsicanálise em extensão,Guimarães RosaGuimarães Rosa,Grande Sertão: VeredasGrande Sertão: Veredas.
Resumen: El método clínico, como lo demostró Manoel T. Berlinck, es el resultado de una cierta posición de pasividad; de ahí la idea de “atención flotante” en la escucha psicoanalítica propuesta por Freud. Se trata de rellenar un vacío que está ocupado por una representación, o sea por algo cuya existencia es ausente aún cuando está presente. La observación implica el trío R.S.I. (Real/Simbólico/Imaginario) de J. Lacan y comprende también el sinsentido, lo extraño, el Umheimlich freudiano. Nos basamos en los conceptos de naturaleza (Sertão.Sertanejo) y de observación para interpretar las representaciones de los matones (jagunços) presentes en los relatos y los neologismos amorosamente buscados por Guimarães Rosa. El objetivo es presentar una ética inscripta en el mantenimiento del deseo, y eso a pesar de las sorpresas de la contingencia y de los laberintos que la vida nos obliga a transitar.
Palabras clave: Método clínico, Psicoanálisis en extensión, Guimarães Rosa, Gran Sertón: Veredas.
Abstract: As Manoel T. Berlinck highlights, the clinical method is a result of a somewhat passive positioning, accounting for Freud’s use of the term “hovering attention” when referring to psychoanalytic listening. It is, in fact, the filling of a void occupied by a representation, or, in other words, by something whose existence is absent, despite its presence. Observation involves Lacan’s Symbolic/Real/Imaginary trio, and includes that which makes no sense, that which is strange and the Freudian Umheimlich. This article uses the concepts of Nature .Sertão/Sertanejo) and Observation as a starting point in order to interpret the representations of jagunços to feature in the narratives and neologisms so lovingly researched by Guimarães Rosa. The aim is to reflect on ethics woven into the sustaining of desire, despite the surprising circumstances and labyrinths that life throws before us.
Keywords: Clinical method, Psychoanalysis in extension, Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.
Résumé: La méthode clinique, comme l’a bien montré Manoel T. Berlinck, est le résultat d’une certaine position de passivité, d’où l’idée d’« attention flottante » dans l’écoute psychanalytique proposée par Freud. Il s’agit de remplir un vide occupé par une représentation, à savoir par quelque chose dont l’existence est absente et présente à la fois. L’observation implique le trio R.S.I. (Réel/Symbolique/Imaginaire) de J. Lacan et comprend également le non-sens, l’étrange, le Umheimlichfreudien. On partira des concepts de nature (Sertão.Sertanejo) et d’observation pour interpréter les représentations des hommes de main du sertão (les jagunços) présentes dans les récits et les néologismes amoureusement recherchés par Guimarães Rosa. Notre objectif est de penser une éthique inscrite dans le maintien du désir, et ce en dépit des surprises de la contingence et des labyrinthes que la vie nous impose de parcourir.
Mots clés: Méthode clinique, Psychanalyse en extension, Guimarães Rosa, Diadorim .Grande Sertão: Veredas].
摘要: 正如巴西文学评论家曼努埃尔·贝林克(Manuel Berlinck)强调的那样,吉马良斯·罗沙 (Guimaraes Rosa) 的创作风格是临床医生的风格,作家位于被动的观察者位置,运用”浮动的注意力”对自己的观察对象进行一种类似于弗洛伊德心理分析的倾听。这种写作风格就像填充一个空白,一个被某种表述了占据了的空白,一个似有若无的空白。根据拉孔(J. Lacan)的观点,观察 须包含三个层次:RSI (真实的/象征的/想象的),同时,根据弗洛伊德的对Umheimlich的定义,观察还须报含无意义,异质的状态。我们使用两个概念,一是自然 (腹地sertao/腹地人sertanejo) 二是观察 来解读吉马良斯·罗沙笔下的巴西北方腹地的受雇于地方豪强的打手形象。作家在独具匠心的叙述中使用了自己搜索和创造的新词汇。作家的目的是反思构筑于欲望之上的伦理,在日常生活的迷宫里和特发事件之间探寻伦理和欲望之间的关系。
關鍵詞: 临床方法, 扩展的心理分析学, 吉马良斯·罗沙, 《大腹地:维拉达斯》.
Artigos
A escuta a partir da Natureza e da Observação em Grande Sertão: Veredas, de Rosa[1]
La escucha a partir de la naturaleza y la observación en Gran Sertón: Veredas, de João Guimarães Rosa
Listening based on Nature and Observation in Guimarães Rosa’s Grande Sertão: Varedas
L’écoute à partir de la Nature et de l’Observation dans Diadorim [Grande Sertão: Veredas], de João Guimarães Rosa
观察和倾听大自然:简评吉马良斯·罗沙的小说《大腹地:维拉达斯》

Recepção: 20/01/2016
Aprovação: 27/04/2016
Partimos dos conceitos de Natureza (Sertão/ Sertanejo) e Observação (aquilo que se vê e aquilo que não se vê, mas sustenta o que se vê)[3] e para a interpretação das representações dos jagunços inscritas nas narrativas e nos neologismos pesquisados amorosamente por Rosa. O objetivo é refletir sobre uma ética inscrita na sustentação do desejo, a despeito das surpresas da contingência e dos labirintos que a vida nos impõe percorrer.[4]
A observação não fala apenas ao olhar, mas à escuta, ao olfato (diversidade dos cheiros), ao tato e ao paladar convertidos à memória tátil e gustativa. Desta última, o escritor francês Marcel Proust nos dá belo exemplo quando evoca as famosas madeleines em À la recherche du temps perdu, escrita entre 1908-1909, publicada entre 1913-1927 em sete volumes, sendo os três últimos postumamente.[5] Já o crítico inglês John Berger nos fala das peripécias do olhar, tanto na série da BBC intitulada “Modos de ver” (1972) quanto em “Catarata: observações após uma remoção” (2012), lançado na Inglaterra com ilustrações do artista turco Selçuk Demirel.[6]
Concentramo-nos em fragmentos ilustrativos da narrativa de Rosa[7]
Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo.[8]
O demo também faz semblante? Parece que sim, pois a mascarada era menos do bezerro e mais do humano. E não é que já fora visto por outros com o “arrebitado de beiços”, que lha dava riso de pessoa? Riobaldo logo ao iniciar a narrativa já faz menção a dois aspectos que perduram por todo o livro: a questão religiosa – geralmente relacionada ao binômio Deus versus Demo; e a constante relação que estabelece com os mais variados aspectos da Natureza (animais, vegetais, mas também a terra em si, a paisagem do sertão). Neste trecho, o narrado se refere a um bezerro que tinha aparência estranha, assim como seu comportamento. Tinha, inclusive, cara de cão – animal geralmente relacionado ao demônio. Assim, toda essa anormalidade e a insegurança causada pelo contato com o desconhecido, só podia ser associada a uma coisa: o demo. Aqui, a observação se dirige à presença do demo na Natureza. O que significa dizer: O imaginário se lança sobre a Natureza e a Natureza se veste de imaginário.
Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte”.[9]
Nessas primeiras páginas do livro, o narrador parece estar mais preocupado em descrever o Sertão e o que ele viveu. No entanto o faz num movimento de dentro para fora. A descrição feita por Riobaldo que se utiliza de aspectos da natureza observados por ele. Assim, “observação” e “natureza” aparecem já como significantes fundamentais. Funcionam como construtos numa narrativa subjetivada por Riobaldo que, todavia, não quer se afastar da realidade em si mesma. Sejam aspectos políticos ou religiosos, eles estão carregados de imaginário (“emoções inconscientes” como Freud sugere). A partir disso, neste trecho, particularmente, é possível perceber algumas características que aparecerão durante toda a obra. Logo no início deste trecho “quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois, então, se vai ver se deu mortos”. Poderíamos considerar a fala do narrador ao se referir ao sertão como próxima ao ditado popular “cada um por si”, sem deixar de mencionar o caráter “animal” (natural) que parece ser atribuído às pessoas. Certamente essa “cachorrada”, à qual o narrador se refere, fala aos próprios jagunços. Assim, cria-se todo um alvoroço diante dos embates que serão constantes no decorrer da obra. É correria e tiros pra lá e pra cá... A reação primeira é o latir dos cachorros; só depois aproximam-se as pessoas (jagunços).
Em seguida, Riobaldo começa a falar sobre os aspectos naturais e a imensidão do Sertão. Para isso, parece utilizar o rio Urucuia como um divisor, uma referência. Rio que é bastante enfatizado por Riobaldo durante a narrativa. Ele diz “ser o rio do amor”. Inclusive, sabe-se que as águas desse rio possuem uma tonalidade avermelhada. Tal aspecto está bastante ligado a temática de Grande Sertão: veredas que, grande parte do tempo, aparece marcada entre a violência e o autoritarismo dos jagunços (ethos do Sertão) e o amor represado (pathos) de Riobaldo e também de Diadorim. Assim, ao mencionar o Urucuia, no trecho acima, ele comparece como um limite entre o que seria um “deserto”, uma imensidão, caracterizada pela baixa densidade demográfica, inúmeras carências e ainda assim, carregado de autoritarismo. Vontade de poder. Vanglória de mandar. No outro lado, aparece como referência de fertilidade, com suas imensas fazendas e matas virgens. Por fim, o narrador generaliza o Sertão e afirma, inclusive, que aprovar (ou gostar?) seria uma questão de opinião. Então, voltaríamos à questão de um autoritarismo como consenso/consentimento, mas, além disso, perceberíamos o Sertão mais como um aspecto emotivo, um estado de espírito do que como algo natural do tipo geofísico. Sertão “é onde os pastos carecem de fechos”. Fecho aqui é metáfora para falar da ausência de limites, em todos os sentidos. No sentido do “último Lacan” o desejo seria substituído pela demanda, com a qual não se confunde...
Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes.
... O diabo na rua, no meio do redemunho... Hem? Hem? Ah. Figuração minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandiocabrava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo.[10]
Riobaldo continua divagando sobre a existência do demo e suas manifestações. Afirma que o demo pode estar em tudo: tanto nos seres vivos, como também nos não vivos (tudo que está na Natureza). Ele regularia o seu “estado preto” em tudo. Utiliza-se disso para se perpetuar e difundir o ditado “menino – trem do diabo”. Assim, como também apontado no trecho acima, o demo em tudo poderia estar: “nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... estrumes”: o diabo apodreceria tudo.
A partir disso, Riobaldo começa a expandir sua hipótese para diversos seres vivos. Atribuindo tudo que considera ruim à presença e influência do demo. No entanto, apesar de todas as considerações, continua sem entender o motivo de tais fatos. Isso parece ser um dos aspectos que mais lhe perturba: a ignorância. Todavia, é capaz de observar a “estranhez da mandioca-doce pode de repente virar azangada”; ou da “mandiocabrava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal”. O êxtase proporcionado pela ambivalência ou contradição atinge o auge na “feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel”.
Vemos de novo no texto as temáticas da Observação e da Natureza entrelaçadas. São registros realizados a partir do que poderíamos designar os “dois pilares do método clínico”. Trata-se aqui de um flagrante precioso. Em que inclusive o porco gordo é metáfora irônica para a circunstância do bem-estar e oposição ao mal-estar presente na subjetividade. A expressão “Bem haja” em oposição a “Mal haja-me”. Deus e demo. No que se refere à salvação-da-alma, Riobaldo é taxativo: “muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio”... Ele acredita em todas as religiões, pois elas servem para “desendoidecer”. De fato, pois se não acreditasse em nada, acabaria endoidecendo por não achar explicação para todas as coisas que parecem não ter sentido. Nesse ponto, nos aproximamos do que considera Carlo Ginzburg ao afirmar que as religiões existem para dar uma resposta para fatos até então inexplicáveis. Porém, ao que parece, acreditar em tudo também seria uma forma de endoidecer. Principalmente se levarmos em consideração o embate interno que travado por Riobaldo sempre que se questiona sobre a existência do demo (ou talvez o narrador não considere o demo como sendo parte de uma religião, mas uma “antirreligião”). De qualquer forma, mais uma vez, Riobaldo relaciona “água” e “rio” a aspectos religiosos. No entanto, dessa vez o rio parece não “retombar”...
Guimarães Rosa observa já a hipótese da criação de discursos religiosos “customizados”, ou seja, adaptados a cada tipo de pessoa que busca consolo espiritual. Tem um discurso para o homem, outro para a mulher, outro para o jovem, outro para a família. Hoje, existem igrejas para socialites, etc. Eustáquio Diniz Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, lembra que o Censo de 2000 teve mais de 35 mil respostas diferentes para a pergunta “qual é a sua religião”. Aí está presente a religião “customizada”; adaptada para si, sob medida, acompanhando as transformações na economia.
Os humanos falamos sempre. Ainda quando de nossas bocas não saem palavra alguma. Falamos acordados, dormindo, sonhando, semiadormecidos; falamos inclusive sem emitir sons e palavras. Não por acaso, autores vanguardistas modernistas identificaram suas propostas na justaposição da “cultura erudita” com a “cultura popular”.
[...] o modernismo latino-americano dissertou sobre os usos populares da cultura barroca americana; focou suas análises nos arrabaldes das cidades em expansão; da entrada dos fundos da casa, pela cozinha; no linguajar falado nas ruas, nas feiras populares, na oralidade e a musicalidade das palavras cotidianas – a água da palavra* que conduziu a fruição de diferentes narrativas vanguardistas [...] problematizando a relação entre memória e história; na composição de personagens metamórficos que exprimem a formação do corpo grotesco (aberto, plural, feminino), contra a ortodoxia do corpo clássico (perfeito, ortopédico, masculino) – para usar as terminologias propostas por M. Bakhtin** em sua pesquisa sobre cultura popular no renascimento e reelaboradas como a arte de contra-conquista no sistema de imagens poéticas dos intelectuais latino-americanos.[11]
Sabemos que no humano não há propriamente um órgão exclusivo da observação, não havendo correspondência restrita a cada um dos órgãos dos sentidos. Se os sentidos não estão de todo dispensados, eles também não são suficientes. Para que haja observação é necessário um lugar vazio que cede ocupação a uma representação.
Me trouxeram, rebanhal, os todos possíveis. Do Sucruiú, uns pouquinhos – alguns com as caras secando os brotes das bexigas, más marcas, feito mijo na areia; outros um ou outro de semblante liso fresco, esses escapos de não terem tido a doença. [...] Seriam eles assim bons no ruim, para guerra serviam, para meter em formatura? Tanto todo o mundo achava graça, meus jagunços queriam pagode. Ah, os catrumanos iam de ser, de refrescos. Iam, que nem onças comedeiras! Não entendiam nada, assim atarantados, com temor ouviam minha decisão. - “Filhos-da-mãe!” – eu declarei. Tive de repente fé naqueles desgraçados, com suas desvalidas armas de toda antiguidade, e cabaças na bandola, e panelas de pólvora escura e fedor de fumaça ceguenta.[12]
O episódio descrito acima sucede o momento em que Riobaldo foi “eleito” líder do bando de jagunços, apesar de parecer mais uma imposição do que uma eleição. Após a morte de Joca Ramiro, o posto havia ficado vago. Sugere-se que João Goanhá ou Zé Bebelo assuma a liderança. No entanto, Riobaldo manifesta ativamente sua vontade de fazê-lo no lugar dos outros dois. Dessa forma, Zé Bebelo, por não aceitar ficar sob o comando de ninguém, sai do bando de jagunços. Buscava autonomia e independência?
Em seguida, eles continuam a jornada para atacar o bando de Hermógenes. Assim, Riobaldo, como novo líder, busca novos jagunços para ingressar em seu grupo. O interessante de reparar nesse fragmento é que o termo utilizado por Riobaldo para se referir aos novos integrantes do grupo é rebanhal. De acordo com o dicionário Aurélio Buarque de Holanda uma das definições de rebanho – além de ser, literalmente, um conjunto de gado lanígero sob a guarda de um pastor –, em seu sentido figurado seria “agrupamento de homens que se deixam guiar pelo capricho de alguém”. Não é mera coincidência que essa expressão também seja largamente utilizada no que se refere à religião. O chamado rebanho de Cristo. Líder e liderados, Política e religião, se vinculam tal qual a expressão religião demanda a ligação (re-ligare) entre o céu a terra; o céu e o sertão.
Sobre esse alistamento, o narrador continua “meus jagunços queriam pagode”: essa oração poderia significar que eles queriam festa, bagunça – como sugere o significado mais comum . porém, pode sugerir também uma espécie de relação de caráter religioso. Avançando um pouco mais: o termo pagode pode se referir a um “pavilhão de construção típica, onde alguns povos do Oriente rendem culto a seus deuses”, conforme o mesmo dicionário Aurélio. E o que seria um culto senão uma clara demonstração de subordinação, reverência? Assim, ao se referir aos novos membros de seu rebanho, Riobaldo compara os sertanejos e todos os seus instrumentos toscos de guerra, com onças comedeiras, como que desnorteados, seguindo apenas os instintos. Às ordens de seu pastor.
E indicou outro. Mais adiante não deixei. Deixasse, iam de dedo em dedo me passando para o daquelas pernas de fora, que Osirino era, as pernas forradas de lama seca; ou para o que coçava suas costas em pau de árvore, feito um bezerro ou um porco. Visli a sorrateira malícia nos jeitos deles. E mais o do jegue – no jegue amontado, permanecendo de perfil, aquele bronzeado jumento – que tinha, o homem por nome Teofrásio; e só não desamontava do jegue por ordem minha, que em antes eu tinha-dado. Ele me disse: - “Dou louvor. Em tudo, chefe, vos obedecemos...” – ele disse; e de lá se virou o focinho branco do jumento.[13]
Esse trecho é uma continuação do anterior, em que Riobaldo reúne homens para integrar o bando no qual agora exerce posição de chefe. Riobaldo continua caracterizando os homens a partir de características próprias dos animais. Inicialmente, ele caracteriza Osirino como um porco ou bezerro – após relacioná-lo a comportamentos claramente referentes a animais, como coçar as costas em árvore. Uma característica em comum entre porcos e bezerros é o fato de que ambos são criados para a finalidade do abate. O bezerro, no entanto, por ainda estar em fase de amamentação, não está pronto para tal. De qualquer forma, isso teria uma relação muito próxima ao objetivo de Riobaldo ao angariar aqueles homens. Em certo momento, Riobaldo diz: “[...] Seriam eles assim bons no ruim, para guerra serviam, para meter em formatura? Tanto todo o mundo achava graça, meus jagunços queriam pagode. Ah, os catrumanos iam de ser, de refrescos”.[14]
Em seguida, ele comenta sobre outro sertanejo, chamado Teofrásio. Novamente, ele comenta mais entusiasmadamente sobre o animal que estava sob o homem, no caso um jumento, do que sobre o homem de fato. Ele nos fala sobre a imponência e altivez do animal em contraposição a subordinação de Teofrásio. É corrente a ideia que os jumentos, embora tenham fama de animais pouco inteligentes, possuem um temperamento teimoso e firme causado principalmente devido ao seu senso de perigo. Dessa forma, percebemos isso claramente no trecho acima, em que Teofrásio se mostra obediente e subordinado enquanto Riobaldo fala das “malícias do jegue”. O escritor estava sim comprometido com um dispositivo formal (não realista), mas ancorado na percepção realista das dissonâncias e ambivalências das classes dominantes no Brasil de meados do século XX.
Eu outro texto, João Guimarães Rosa dá prova da unidade com a qual percebe tanto o Sertanejo quanto a Natureza múltipla do Sertão.[15] Assim, diz o prefaciador: “[...] aqui há muito pouca ficção e muito sertão. [...] O sertão contribui com a beleza e a arte, e Alexandre Barbosa da Silva com a veracidade e a modéstia. [...] Tudo aqui é verdadeiro e puro em observância e existência”.[16] Registre-se que observância está para o conceito de observação como existência está para o conceito de Natureza, os fundamentos do método clínico.
Concluímos com duas ou três passagens citadas por Barbosa da Silva que são subscritas com ênfase por Rosa. “Mais que fiel a pintura do campal do crepúsculo matutino, quando o céu oriental é chama, luz e cinzas, e os bandos de marrecos e papagaios passam, pretos de tinta nanquim, querendo esconder a subida do sol”.[17] Ou então: “O urubu-caçador, pesado e preguiçoso, cabeça de pimentão maduro, em voo baixo, paralelo ao chão, alisando as grotas com a sombra”.[18] E ainda:
A cena silvestre da veadinha com a veada é carinhoso cromo, mas assim um flagrante, rigoroso, da borda da mata. [...] Cada buriti é um rei, e há reis em multidão. Aos gritos, às centenas, vivos, verdes, nos cachos de côcos, voam e revoam maritacas, sofrês e periquitos.[19]
Assim que, talvez, a melhor evocação do sertão para Joãozito é mesmo as terras de Minas Gerais. Pois sabemos “o sertão é sem fim; / o sertão está em toda parte; / o sertão tá dentro da gente”.[20]
Mas ainda não foi tudo.
Só aquele sol, a assaz claridade – o mundo limpava que nem um tremer d’água. Sertão foi feito é para ser sempre assim: alegrias! E fomos. Terras muito deserdadas, desdoadas de donos, avermelhadas campinas. Lá tinha um caminho novo. Caminho de gado.[21]
Anteriormente ao momento descrito nesse trecho, alguns jagunços do bando liderado por Riobaldo pedem para desertar, o que é algo permitido nas “leis jagunças” desde que se deixe para trás aquilo que foi conseguido quando faziam parte do bando, indo embora apenas com o que havia sido trazido consigo ao ingressar.[22] No entanto, apesar desta regra ser conhecida pelos jagunços, Riobaldo se sentiu incomodado, mesmo sem ao menos saber os nomes dos homens que estavam pedindo para partir. Para Riobaldo, era como se não estivessem satisfeitos com sua liderança, visto que tinham ingressado devido ao chamado de Zé Bebelo e como a saída dele, tinham “gastado o entendimento” de estarem ali. Assim, Riobaldo havia preferido deixar com que fossem tranquilamente, sem apresentar grandes empecilhos contando com uma possível reza deles.
Todavia, ao mesmo tempo, acaba ficando com a autoestima baixa devido aos homens que desertaram. Sobre isso, Diadorim diz que “carece de ter coragem” para continuar a jornada mesmo com as dificuldades e Riobaldo se pega pensando na jornada encarada por ele e Diadorim ao longo de todo esse tempo. E percebe que vêm caminhando lado a lado, como homens de mãos dadas há muito tempo e para isso há de ter valentia por demais!
É nesse instante que segue o fragmento grifado acima: em meio à confusão, à turbulência de um tremer de águas o mundo parecia fazer sentido, parecia claro e inteligível para Riobaldo. Ele amava Diadorim apesar dos pesares. Dessa forma iam desbravando o Sertão [alegrias] e caminhando por novas veredas. Assim, ele termina com “caminho de gado”, como exatamente uma referência à expansão, a interiorização que prosseguiam fazendo.
Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que a mereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem – como que garças voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...[23]
[...] Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como solucei meu desespero.[24]
A narrativa de Grande sertão: veredas tem como marco de seu fim, o último embate com o bando de Hermógenes, no qual Riobaldo não marcou presença. Ficou totalmente como observador dos eventos até o momento em que percebe um cessar fogo e um embate entre Hermógenes e Diadorim, no qual os dois saem mortos. Riobaldo apaga-se. Acaba sendo acordado depois por seus companheiros jagunços e tem a descoberta de sua vida: Diadorim era mulher... Nesse ponto, fica a pergunta: aquele amor, anteriormente, considerado impossível foi desperdiçado à custa de quê? Quando tudo estava perdido percebe-se que aquele amor não tinha nada de impossível e nunca teve! A isso seguem apenas lamentos e arrependimentos de Riobaldo, relembrando seu amado Diadorim através de elementos atribuídos a ele durante toda a narrativa: os verdes (dos olhos e das sombras dos buritizais) atrelados ao rio do amor que corta o Sertão, Urucúia. Após a surpresa e o voo espantado das garças, Riobaldo percebe o que havia desperdiçado e se dá conta de que o sol jamais acenderia aquele amor de novo.
Como assinala Haroldo de Campos,[25] é necessário chegar ao fim de Grande sertão: veredas para percebermos que estamos diante não de uma teodiceia, mas de uma humanodiceia, onde o Demo sai derrotado. Recordemos o título ambíguo e insinuante da tradução norte-americana para o inglês: The Devil to Pay in the Backlands.
Todavia, as veredas que a isso levam e estariam já presentes na obra de Martin Heideger, na “sua” Floresta Negra. Em outro conto, “Meu tio o Iauaretê”, Rosa[26] ratificará a assertiva da humanodisseia quando o personagem afirma diante de seu provável assassinato pelo homem-onça; então, na ocasião, desconfia das meras onças comedeiras. O diálogo é dramático:
[...] faz isso comigo não, mata não... Onça meu parente... Ei, por causa do preto?... [...] Matei preto não... tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não... Onça meu parente... Eu Macuncôzo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém... Heeé!...Hé... Aar-rra...Cê me arrhoôu... Remuaci... Reiucàanace... Arrã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê...[27]
Aqui estão presentes vocábulos em língua tupi, que mesclam-se à língua geral e à expressão Macuncôzo,[28] de origem africana, para afirmar a não negar o humano na miscigenação naqueles tempos idos... em conexão pulsional com o desejo de viver.
Para Manoel Tosta Berlink, in memorian