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Bartolomé Mitre: Reflexões sobre circulação de ideias, escrita da história e diplomacia nas relações entre Brasil e Argentina1
Bartolomé Mitre: reflexiones sobre la circulación de ideas, la crónica histórica y la diplomacia en las relaciones entre Brasil y Argentina
Bartolomé Mitre: Reflections on the circulation of ideas, the writing of history, and diplomacy in Brazil-Argentina relations
Bartolomé Mitre : réflexions sur la circulation des idées, l’écriture de l’histoire et la diplomatie dans les relations entre le Brésil et l’Argentine
巴托洛梅·米特利:有关巴西和阿根廷之间的思想交流,史学著作和两国外交关系的思考
Bartolomé Mitre: Reflexões sobre circulação de ideias, escrita da história e diplomacia nas relações entre Brasil e Argentina1
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 9, núm. 2, pp. 286-307, 2017
Universidade Federal Fluminense

Recepção: 23 Novembro 2016
Aprovação: 16 Janeiro 2017
Resumo: Este artigo tem como foco alguns aspectos da atuação e do pensamento do militar, ex-presidente argentino e historiador Bartolomé Mitre (1821-1906) em torno das relações entre Brasil e Argentina. Tomamos como ponto de partida o depoimento do Conselheiro Manoel Francisco Correia publicado na Revista do IHGB em 1897 sobre as negociações com Mitre durante missão diplomática no Brasil em 1872. Interpretamos o papel da missão em si e das relações de Mitre com o Império na construção de sua influência sobre a geração de historiadores que defendiam a aproximação entre ambos os países nas primeiras décadas do século XX. Neste sentido, também ganha destaque sua correspondência com o Visconde do Rio Branco na qual a defesa da paz e da cordialidade se faz presente. Traçamos um paralelo entre as ideias que pôs em circulação nas décadas de 1860 a 1880, as últimas do Império, e aquelas que embasaram projetos integracionistas pela via da diplomacia e da escrita da história já no século XX. Projetos estes que tinham em Mitre uma referência e um precursor. Assim, sua atuação funciona como elo de ligação que nos conduz na conjugação de diferentes tempos e personagens históricos.
Palavras-chave: Bartolomé Mitre, escrita da história, diplomacia, relações Brasil/Argentina.
Resumen: Este artículo se centra en algunos aspectos de la actuación y del pensamiento del militar, expresidente argentino e historiador Bartolomé Mitre (1821-1906) en torno a las relaciones entre Brasil y Argentina. Tomamos como punto de partida el testimonio del senador brasileño Manuel Francisco Correia publicado en la revista del Instituto Histórico y Geográfico Brasileño en 1897 sobre las negociaciones con Mitre durante su misión diplomática en Brasil en 1872. Interpretamos el papel de la misión en sí y de las relaciones de Mitre con el Imperio brasileño en el desarrollo de su influencia sobre la generación de historiadores que defendían la aproximación entre ambos países en las primeras décadas del siglo XX. En este sentido, también adquiere relevancia su correspondencia con el vizconde de Rio Branco, en la cual queda patente su defensa de la paz y la cordialidad. Trazamos un paralelismo entre las ideas que puso en circulación en las décadas de 1860 a 1880, las últimas del Imperio, y aquellas que asentaron las bases de proyectos integracionistas por la vía de la diplomacia y la crónica histórica ya en el siglo XX. Proyectos que veían en Mitre una referencia y un precursor. Por eso su actuación funciona como enlace a la hora de conjugar diferentes tiempos y personajes históricos.
Palabras clave: Bartolomé Mitre, crónica histórica, diplomacia, relaciones Brasil/Argentina.
Abstract: The following article focuses on several aspects of the ideas and actions of soldier, historian, and former president of Argentina, Bartolomé Mitre (1821-1906), in terms of Brazil-Argentina relations. The article’s point of departure is the report written by political advisor Manoel Francisco Correia published in the Brazilian Historical and Geographical Institute (IHGB) journal in 1897 on the negotiations conducted with Mitre during the diplomatic mission to Brazil in 1872. We interpret the role of the mission itself as well as the relations between Mitre and the Empire of Brazil in the shaping of its influence on the generation of historians defending the growing rapprochement between the two countries in the early decades of the twentieth century. Mitre’s correspondence with the Viscount of Rio Branco is also analyzed, with its emphasis on the defense of peace and cordial relations. We trace a parallel between the ideas placed into circulation in the final years of the Empire in the 1860s to the 1880s, and those upon which projects of integration were based by means of diplomacy and the writing of history in the twentieth century. With such projects taking Mitre as a point of reference and precursor, his actions therefore serve as a point of connection guiding us in the tracing of links between different historical periods and figures.
Keywords: Bartolomé Mitre, the writing of history, diplomacy, Brazil-Argentina relations.
Résumé: Cet article s’intéresse à certains des aspects de l’action et de la pensée du militaire, ex-président argentin et historien Bartolomé Mitre (1821-1906) quant aux relations entre le Brésil et l’Argentine. Nous prendrons comme point de départ le témoignage du Conseiller Manoel Francisco Correia – publié dans la Revue de l’Institut historique et géographique brésilien en 1897 – sur les négociations avec Mitre dans le cadre de la mission diplomatique de 1872 au Brésil. Nous analyserons le rôle de cette mission et des relations de Mitre avec l’Empire brésilien dans la construction de son influence sur la génération d’historiens qui défendra le rapprochement entre les deux pays lors des premières décennies du XXème siècle. En ce sens, sa correspondance avec le Vicomte de Rio Branco, dans laquelle on retrouve la défense de la paix et de la cordialité, doit également être prise en considération. Nous tracerons un parallèle entre les idées mises en circulation des années 1860 à 1880, les dernières de l’Empire, et celles qui serviront de base aux projets d’intégration par la voie diplomatique et historiographique du XXème siècle. Ces projets avaient en Mitre une référence et un précurseur. Les actions de celui-ci fonctionnent ainsi comme un lien entre différents temps et personnages historiques.
Mots clés: Bartolomé Mitre, écriture de l’histoire, diplomatie, relations Brésil/Argentine.
摘要: 本论文分析和探讨了阿根廷军人,前总统和历史学家巴托洛梅·米特利(Bartolomé Mitre 1821-1906)在巴西-阿根廷关系方面做的思考和行动. 我们参考利用了曼努埃尔·弗朗西斯科·柯海亚(Manoel Francisco Correia) 发表在1897年的《巴西历史地理杂志》(Revista do IHGB)上的一篇文章。这篇文章回顾了1872年米特利访问巴西并举行双边外交谈判的经过。我们分析了米特利的外交风格,他的巴西-阿根廷友好思想及其对20世纪初的阿根廷历史学的影响。另外,我们还分析了米特利和巴西外交家白河子爵(Visconde Rio Branco)的关于两国和平友好关系的通信。我们联系1860-1880年间巴西和阿根廷两国间的和平友好的思想和作为这些思想基础的拉美整合主义运动,这些思想和资源深刻影响了20世纪的巴西和阿根廷的两国外交活动和史学。在拉美整合运动中,米特利是一个坐标和先行者。他的外交思想和行动可以被看作是一个承上启下的接点,把不同时代的历史人物的思想和行动联系在一起。
關鍵詞: 巴托洛梅·米特利(Bartolomé Mitre), 史学著作, 外交, 巴西-阿根廷关系.
Introdução
Em 1897, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicou longo depoimento do Conselheiro Manoel Francisco Correia acerca de suas negociações confidenciais com o general e ex-presidente argentino Bartolomé Mitre, em 1872. Enviado ao Rio de Janeiro em missão diplomática especial pelo então presidente Domingo Sarmiento, Mitre tinha a tarefa de solucionar conflitos oriundos da Guerra do Paraguai. A missão Mitre é importante política e diplomaticamente apontando uma brecha nas históricas tensões entre os países, acirradas no fim da guerra e a partir do início do governo Sarmiento em 1868. Neste artigo, partimos da publicação da Revista do IHGB a fim de interpretar o porquê das 74 páginas dedicadas ao depoimento de Correia. Sua fala funciona como pretexto para uma reflexão sobre as relações entre Brasil e Argentina nas últimas décadas do Império e no início da República.
Procuramos nos perguntar qual seria o sentido político e historiográfico de se conferir tal espaço às negociações confidenciais entre Correia e Mitre. Por que, naqueles primeiros anos da República no Brasil, convidar o ex-ministro do Império para falar no Instituto sobre um episódio emblemático das diplomacias brasileira e argentina após a guerra? Lembrando-se que neste período o IHGB dedicou-se bem mais aos estudos de história colonial do que ao Império diante das dificuldades conjunturais de se trabalhar o tema.3 A partir daí, voltamo-nos para a figura de Mitre e o diálogo por ele desenvolvido com o Brasil após a guerra de modo a pensar suas motivações, objetivos e as consequências de suas ações e ideias para as gerações futuras, na diplomacia e na escrita da história. Neste exercício interpretativo, conjugamos a missão diplomática de 1872, o depoimento de Correia em 1897, os diálogos com o Visconde do Rio Branco entre as décadas de 1860 e 1870 e a geração de historiadores que promoveu uma revisão historiográfica no Brasil e na Argentina no início do século XX, fundando projetos políticos e intelectuais integracionistas através da escrita de uma história oficial.
O depoimento de Manoel Correia em 1897 e a missão Mitre em 1872
Manoel Correia, na ocasião da missão Mitre, era ministro dos Negócios Estrangeiros do Império. Daí seu papel nas negociações com o general argentino. Para compreender sua fala, é necessário antes contextualizar o acontecimento ao qual se refere. É no marco dos “trinta anos de discórdia”4 definidos por Tulio Donghi como o período entre as décadas de 1850 e 1880, que situam-se a vinda de Mitre ao país e suas tentativas de alterar o olhar de desconfiança mútuo entre políticos e a imprensa argentina e brasileira. Na verdade, tratam-se de dois momentos distintos: em outubro de 1871, ele esteve na cidade com o objetivo de visitar o túmulo do filho.5 Pretendia também, segundo Miguel De Marco,6 encontrar-se com o Visconde do Rio Branco a fim de apaziguar os ânimos entre os países. Aqui foi designado membro honorário do IHGB em razão do seu reconhecimento como historiador7 pela instituição. Visitou bibliotecas e fez pesquisas até dezembro, quando, no dia 16, retornou a Buenos Aires.
Pouco tempo depois, em 09 de janeiro de 1872, foi fechado o tratado Cotegipe-Loizaga, resultante de uma série de protocolos assinados entre os governos brasileiro e paraguaio após o fim da guerra, no qual o Império ficava com a terceira parte do Paraguai. Esta notícia encontrou oposição nos meios políticos e na imprensa argentina que, em sua maior parte, atacou o Brasil. O La Nación, de Mitre, procurou poupar a figura de Rio Branco. Diante dos ânimos exaltados, a boa acolhida de Mitre no final de 1871, fez com que Sarmiento, apesar das muitas rivalidades entre eles, o cogitasse para acertar as questões pendentes com o Império. Em junho de 1872, foi designado como enviado extraordinário e ministro plenipotenciário em missão especial ao Rio de Janeiro.8 Segundo De Marco, o enviado deveria alcançar, entre outros objetivos, o reconhecimento do Tratado de Aliança pelo governo brasileiro e a desocupação do território paraguaio por forças aliadas.
Francisco Doratioto afirma que após a guerra:
[...] a política do governo imperial, sob o controle do Partido Conservador, foi a de reafirmar a existência do Paraguai como Estado independente e, ao mesmo tempo, evitar que a Argentina se apossasse de todo o Chaco, como lhe fora facultado pelo Tratado da Tríplice Aliança”.9
Do lado argentino, Sarmiento temia a política expansionista do Império e passou a defender que “a vitória militar não concedia aos vencedores direitos sobre o vencido quanto à definição de fronteiras”.10 O Império se empenhava em evitar o domínio argentino sobre o Chaco e assinou o tratado de janeiro de 1872, aliando-se ao vencido e ferindo os interesses da Argentina. Para Doratioto, numa interpretação distinta da de Miguel De Marco, o fato desta se encontrar em desvantagem militar e política a levou ao uso da diplomacia a fim de garantir o Tratado de Aliança. Segundo ele, este teria sido “o sentido da missão de Bartolomé Mitre, representando o governo Sarmiento, à capital brasileira, em 1872”.11
A missão, no entanto, para Doratioto, foi infrutífera, pois no ano seguinte, ao se dirigir a Assunção, o negociante imperial, barão de Araguaia, não o apoiou. Assim, a diplomacia buscou um acordo de limites e paz com o Paraguai sem a participação do Império, o que deu origem ao Tratado Sosa-Tejedor que, por pressão brasileira, acabou não ratificado pelo Paraguai. As duas Repúblicas apenas fecharam acordo em 1876, quando a hegemonia brasileira no Prata se encontrava enfraquecida. Ainda assim, o resultado foi satisfatório para o Brasil, pois a independência do Paraguai foi ratificada e a Argentina não se apossou do Chaco. A definição da fronteira entre Argentina e Paraguai veio efetivamente em 1878 com a interferência dos Estados Unidos em favor do Paraguai. Se os resultados não foram os esperados para a Argentina, cabe destacar a divulgação de um discurso de defesa da paz, da cordialidade e da amizade entre os países que a longo prazo inspirou políticos, diplomatas e historiadores. Com amplo caráter estratégico e deliberado, acreditamos que os argumentos então instrumentalizados se demonstraram frutíferos no apaziguamento das relações não apenas naquela conjuntura,12 a despeito das disputas territoriais, mas também nas décadas seguintes quando se recorria ao pensamento de Mitre para embasar a aproximação entre os países – especialmente após a proclamação da República no Brasil. Ponto este que será destacado mais adiante.
Retornando à conjuntura que levou à missão e que introduz Manoel Correia no debate, a crise, que envolvia os governos e a imprensa, atingiu ponto crítico quando, em 27 de abril, a Argentina publicou uma dura nota de protesto contra o acordo que, segundo o governo, infringia as decisões do Tratado de Aliança assinado após o fim da guerra. As negociações confidenciais entre o conselheiro brasileiro Manoel Correia e o enviado argentino Bartolomé Mitre tratam basicamente desta nota. Solucionar os conflitos por ela gerados, com clima quase de guerra, era a função destes homens em seus encontros e nas cartas confidenciais e relatórios que produziam para seus superiores, sobretudo Carlos Tejedor, o ministro das Relações Exteriores da Argentina, e José Maria da Silva Paranhos (o Visconde do Rio Branco), presidente do Conselho de Ministros do Império. No depoimento dado ao IHGB em 1897, Correia relata seus encontros com Mitre, bem como estas cartas. Reproduz cronologicamente várias delas e esboça comentários. Não iremos nos ater a todas nos limites deste texto. Do depoimento selecionamos o que mais se adequa ao tema abordado e oferece indícios que fortalecem nossa argumentação.
O primeiro encontro se dá em 9 de julho de 1872, a pedido de Mitre. Relatando-o a Tejedor, ele diz que o ministro brasileiro o recebeu de forma muito amigável, mas que das vezes posteriores que tentou entrar em contato a recepção não foi a mesma. Diante das acusações de Correia, alimentadas pela nota de 27 de abril, de que a Argentina não vinha agindo de forma pacífica e amigável com o Brasil, Mitre defende a união de interesses entre os países. Diz a Tejedor ter defendido ainda que:
[...] a boa política de paz e amizade tinha raízes na vontade nacional, porquanto nem os homens nem os governos teriam podido realizar e manter uma política contra as rezistencias que, com razão ou sem ella, aqui se suppunha existir contra a alliança e o Brasil.13
Complementa afirmando:
[...] o facto de ser eu enviado para reprezentar a política que sempre havia sustentado, contando com a confiança do meo paiz, que me havia encarregado da solução das questões pendentes que nos agitavam, provava, que essa política tinha vida e predominava nos conselhos e nos sentimentos.14
Faz ainda uma crítica às notas trocadas entre os governos brasileiro e argentino que teriam apenas acirrado as rivalidades. Deste fato advinha sua nomeação para a missão. Defendia ser o momento de levar a discussão para os atos diplomáticos que “pacificassem os espíritos”, “restabelecendo as cordiaes relações e sem admittir a hipothese de uma guerra entre dois povos que haviam combatido durante cinco annos pela paz d’estes paizes”.15
Comentando a fala de Mitre para seu público no IHGB, Correia afirma ter-lhe dito que as posições anteriores de Tejedor haviam deixado impressão muito negativa e seria necessário atenuá-la antes de partir para a solução dos problemas relativos aos tratados sobre o Paraguai. Expressa sua admiração por Mitre e aproveita para elogiar o La Nación e o fato do jornal não ter apoiado as ações do Congresso argentino contra o Brasil. Correia relata ainda um encontro de Mitre com Rio Branco no dia 12 de julho. Eles teriam discordado em alguns pontos, sobretudo em relação aos efeitos da nota de 27 de abril – Mitre defendia que ela não havia sido agressiva, já Rio Branco afirmava que o Brasil teve motivos para se ofender. Estas e outras discordâncias mostram que as negociações não foram sempre amigáveis durante a missão. Correia, em seguida, trata de outra carta confidencial enviada por Mitre a Tejedor em 27 de julho. O depoimento sugere que, para solucionar o impasse, o governo argentino enviara nova nota no dia 15 de julho, mas esta não satisfez o governo brasileiro. Para Correia, a resposta argentina não facilitava a transação dos fatos, pois não voltava atrás, sobretudo em relação à nota que havia gerado a discórdia. Confidencialmente, o ministro pede que o governo argentino se manifeste de forma mais clara dizendo que em suas notas não teve intenção de ofender ou gerar inimizades, antes que ele consultasse seus colegas.
Entre julho e setembro de 1872 ocorrem vários encontros entre Correia e Mitre e alguns deste com Rio Branco. Os ministros brasileiros insistiam em que a nota de 27 de abril fosse revisada pelo governo argentino, solicitação com a qual Mitre demonstrava concordar, com a ressalva de que ela não poderia impedir um acordo sobre a questão de fundo que o trazia ao Brasil: a ratificação do Tratado de Aliança. Em carta a Tejedor de 27 de agosto, Mitre considera o impasse gerado pela nota de 27 de abril apenas uma questão de forma e, se o Brasil nela insistisse, a atitude poderia ser entendida como um pretexto para retardar a questão de fundo, por não possuir interesse em solucioná-la. Neste caso, avisa a Correia que se retiraria do Brasil e o tratado estaria realmente rompido por responsabilidade do governo brasileiro. Não obstante, reforça a necessidade de acordo entre as diplomacias brasileira e argentina a fim de se alcançar a paz. Ainda em agosto, Mitre chegou a consultar Tejedor se, em caso de insistência do governo brasileiro, ele deveria comprometer a discussão oficial, se poderia pressionar e, caso necessário, interromper as negociações e encerrar a missão. Mas, enfatiza que não pouparia esforços para que as coisas não chegassem a este extremo.
O governo brasileiro, segundo Correia, estava à espera de uma decisão do governo argentino quando Mitre pediu-lhe nova conferência. Mitre relata este encontro a Tejedor numa confidencial de 11 de setembro de 1872. Ele teria dito a Correia que o maior sinal de confiança que o Brasil poderia ter era sua missão e permanência no Brasil podendo responder em nome do governo argentino. Defende que a Argentina é que deveria se sentir ofendida pelo Império, pois a nota que gerou conflitos foi uma resposta a um ato ofensivo e equivocado: buscar acordos diretos com o Paraguai sem passar pela Argentina. Fala da necessidade de se chegar a um acordo favorável a ambas as partes, evitando-se uma situação indefinida que “comprometteria ou tornaria duvidozos ou menos fecundos os beneficios da paz, que uma politica internacional previdente póde assegurar para o presente e o futuro”.16
Mitre relata ter exposto estas ideias para Correia durante uma hora sem ser interrompido, além de ter lido uma cópia do projeto de nota modificado por Tejedor. Correia teria discordado pela nota não amenizar a de 27 de abril e ainda exigir a entrada imediata na questão de fundo. Para resolver o impasse, Mitre pergunta a Correia se o governo brasileiro aceitaria como base para as negociações pendentes os acordos territoriais que o Barão de Cotegipe havia comunicado a Tejedor. Correia concorda que sim e Mitre reforça que insistir na questão de forma seria um erro e sinal de má vontade da parte do Brasil. Correia ameaça procurar diretamente o ministro argentino e Mitre diz que esta medida seria irregular, pois sua função aqui era justamente fazer esta mediação. A reunião é suspensa a pedido de Mitre e Correia diz que iria consultar o gabinete dos ministros a fim de não tomar apenas para si a responsabilidade. Mitre comunica que pediria uma conferência com o Visconde do Rio Branco e é incentivado pelo próprio Correia, já que a decisão do presidente do conselho de ministros seria fundamental no caso. No depoimento, Correia passa a comentar a carta de Mitre e defende, em 1897, sua posição em 1872. Afirma ter apoiado o encontro de Mitre com o Visconde por ser este muito conhecedor das questões existentes entre Brasil e Argentina.
No dia 17 de setembro, Correia se encontrou novamente com Mitre. Sobre este encontro, Mitre escreveu a Tejedor em carta confidencial de 19 de setembro. Diz que Correia reforçou uma proposta que Rio Branco havia feito no último encontro e que ele aceitou. Correia lhe entregou duas propostas de nota e Mitre ficou de analisar. No dia 18, Mitre entregou-lhe uma terceira proposta, acompanhada de uma emenda ao projeto da proposta brasileira. No dia seguinte, Mitre foi convidado para nova conferência e o ministro comunicou-lhe que a proposta e a emenda foram aceitas pelo conselho de ministros. O ministro pergunta se assim seria possível encerrar a discussão e seguir para as questões de fundo. Mas, Mitre pede a autorização de Tejedor para tomar tal decisão antes de prosseguir com a missão. Aconselha o governo argentino a aceitar a solução, pois a considerava satisfatória para ambos os países. Diz que a proposta era conciliatória e que “tudo fica regulado pela troca reciproca de palavras amigaveis”.17 Deste acordo, surgem as notas de 25 de setembro do governo argentino e de 2 de outubro do governo brasileiro, como forma de conciliação. Com esta informação, Correia encerra seu depoimento no IHGB e, mais uma vez, defende sua posição naquele momento de tensão.
A República, o IHGB, o Itamaraty e o Barão do Rio Branco
Para melhor compreender o sentido do depoimento de Manoel Francisco Correia, é necessário pensar seu lugar de fala, bem como sobre quem fala, o que talvez esclareça o tom explicativo e defensivo que o caracteriza. Desde a proclamação da República, em 1889, o IHGB enfrentava diferentes obstáculos. A República positivista, que iniciava um processo de secularização das instituições políticas no país, via de forma negativa o Instituto de caráter monárquico e católico. Fundado em 1838, o IHGB se fortaleceu ao longo do século como representante dos interesses do Imperador. Como aponta Manoel Salgado Guimarães, o Instituto tinha a função de delinear “um perfil para a ‘Nação brasileira’, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das ‘Nações’ [...]”.18 Neste projeto, internamente, índios e negros tornavam-se os Outros com os quais não deveria haver identificação. Externamente, este Outro, de quem era preciso se diferenciar, era representado pelas repúblicas vizinhas, símbolos do caos e da barbárie. Fator que condiz com a política externa afirmativa adotada pelo Império a partir da década de 1850, até a guerra do Paraguai, na tentativa de estabelecer seu domínio na região, como abordaremos mais adiante.
A relação com a Argentina é marcada por estas desconfianças mútuas manifestadas de forma mais intensa em alguns momentos. O final da guerra é um exemplo deles. Conjuntura na qual ocorreu a assinatura de acordos pelo Brasil que feriam o Tratado de Aliança, conforme vimos acima. Daí a missão Mitre em 1872. Não obstante, será a política externa republicana que investirá numa nova relação com os países vizinhos, sobretudo com a influência do Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores entre 1902 e 1912, ano de sua morte. Filho do Visconde, com quem Mitre também negociou, o Barão, em outro contexto e talvez sob influência paterna, defendia uma política americanista que aproximasse os países da região. Responsável pela redefinição de fronteiras e a anexação de territórios, Rio Branco via na diplomacia um caminho necessário para o apaziguamento de tensões e o desenvolvimento do diálogo em diferentes esferas. Na década de 1860, já havia atuado como secretário do Visconde em missão especial no Rio da Prata e, na volta, tornou-se sócio do IHGB, instituição a qual presidiu de 1908 até sua morte.
Os reflexos desta política americanista foram notáveis no Instituto após a presidência do Barão, conforme já pudemos estudar em outra ocasião,19 mas cabe dizer que já se apresentava relevante logo no início da República, quando o IHGB, fragilizado pela perda de prestígio e financiamento, buscava alternativas para se reerguer no novo cenário político. Neste cenário, o depoimento de Correia seria bastante oportuno. Sem criticar, evidentemente, o Império, do qual ainda era representante a despeito das transições políticas, elogiando o Visconde do Rio Branco e defendendo soluções diplomáticas baseadas no diálogo, Correia falou para um público e uma instituição que buscavam se inserir na realidade republicana, dentro e fora do país. As negociações com Mitre, apesar de serem parte de um episódio diplomático da monarquia, eram um exemplo do passado, da história, para as atuais e futuras gerações republicanas. Exemplo no qual as ideias de cordialidade e pacifismo predominaram.
Estas ideias, é fundamental lembrar, foram o eixo de projetos integracionistas pelo campo da própria escrita da história entre as décadas de 1920 e 1940 e tiveram no Brasil e na Argentina seus principais propulsores.20 A história, que em países ibero-americanos com formação católica acreditamos ser ainda nesta conjuntura a mestra da vida, seguia ensinando para o presente e o futuro. Mesmo que já estivesse claro que ela não se repetiria, a história ofereceria elementos, dados que possibilitariam a aproximação entre estes países, caminhos para os possíveis diálogos. Reinhart Koselleck21 nos auxilia nesta análise não apenas pela teorização sobre a historia magistra vitae (que ele considera ter se enfraquecido após o Iluminismo e a Revolução Francesa), mas também pela ideia de que diante das experiências do seu tempo os homens constroem novas expectativas de futuro. Assim, no Brasil, a proclamação da República e a consequente necessidade de inserção em um novo contexto teriam contribuído para esse processo de aproximação com os vizinhos que ganhará ênfase ao longo da primeira metade do século XX até a Segunda Grande Guerra.
Diante destes fatores, o destaque conferido pelo IHGB à missão Mitre com a publicação do longo depoimento de Correia em 1897, não deve, em nossa interpretação, ser atribuído ao acaso. Se por um lado sua fala era oportuna para a instituição, por outro se referia a acordos negociados com Bartolomé Mitre. Além da sua atuação política e militar, como dissemos, Mitre era também historiador, considerado um dos fundadores da historiografia argentina. Em 1893, criou a Junta de História e Numismática Americana, tomando como modelo o próprio IHGB, do qual era sócio honorário desde 1871. Mitre estrategicamente defendia a aproximação com o Brasil e a ruptura com as rivalidades entre a República e o Império vizinho. Não por acaso era constantemente citado pelos historiadores argentinos e brasileiros que impetraram projetos integracionistas através da escrita e do ensino da história. Historiadores que organizaram, inclusive, os primeiros congressos de história da América entre as décadas de 1920 e 1930 – o primeiro, em 1922, no Rio de Janeiro; o segundo, em 1937, em Buenos Aires.22
Esta é a principal questão do amplo projeto no qual este artigo se insere. Procuramos compreender o porquê de Mitre ter adquirido papel referencial para estes historiadores que o apropriaram e ressignificaram em um período de revisão historiográfica onde as histórias nacionais eram reescritas e pensadas em um contato dialógico com os vizinhos. Acreditamos que os projetos da primeira metade do século XX foram antecedidos pela tentativa de construção de um novo olhar sobre o Brasil defendido por Mitre na segunda metade do século XIX, ainda que amplamente motivado por questões estratégicas, diplomáticas e militares. Olhar que buscou concretizar no diálogo com políticos e intelectuais brasileiros, como o Visconde do Rio Branco, através de artigos no jornal La Nación e com a missão em 1872. Daí a relevância da análise do seu pensamento e atuação historiográfica, política e diplomática em relação ao Brasil. Deste modo, compreende-se melhor o destaque conferido pelo IHGB ao depoimento de Correia sobre a missão Mitre 25 anos depois de sua ocorrência. Falar de Mitre era falar de um ator político e social que contribuiria para a legitimação do americanismo que já se anunciava no Instituto e seria aprofundado pelo Barão do Rio Branco a partir de 1908.
Mitre e o Visconde do Rio Branco: Correspondências
Para reforçar nosso argumento, voltamos um pouco mais no tempo e trazemos para a discussão as cartas trocadas entre Mitre e o Visconde do Rio Branco entre as décadas de 1860 e 1870.23 Propomos pensá-las como indícios de um pensamento que inspirou a geração de historiadores brasileiros e argentinos da qual falamos no início do século XX na defesa, pela via conservadora, da aproximação política, cultural e diplomática entre os países. Esta reflexão, que parte das ideias que circulam através do contato entre os indivíduos e as diferentes gerações, é inspirada amplamente na leitura de Carlo Ginzburg. Para o autor, os processos de produção do conhecimento são sempre dialógicos. Afinal, “nenhum homem é uma ilha, nenhuma ilha é uma ilha”.24 Ginzburg costura leituras, viagens e contatos pessoais que constroem o pensamento intelectual. De certo modo, é este exercício interpretativo que propomos ao conjugar Mitre, Rio Branco, Correia, e os historiadores que os apropriaram décadas depois de suas falas.
Entre as décadas de 1850 e 1880, José Maria da Silva Paranhos ocupou cargos e exerceu diferentes funções diplomáticas relacionadas direta ou indiretamente com a região do Prata. Apenas para traçar um breve panorama, foi ministro residente em Montevidéu em 1852; ministro da Marinha entre 1853 e 1857; ministro de Negócios Estrangeiros entre 1855 e 1859, retornando ao cargo entre 1868 e 1870; e ministro da Guerra em 1871. Entre as missões diplomáticas para as quais foi designado, cabe destaque à missão especial no Rio da Prata, sob as ordens do marquês do Paraná em 1851; à chefia de legação em missões nas repúblicas da Argentina, do Uruguai e Paraguai entre 1852 e 1869; e à colaboração na organização do governo provisório do Paraguai ao final da guerra em 1870.25
Nestas funções, o Visconde atuou em diferentes negociações entre os países vizinhos no sul do continente americano. Isto, evidentemente, sem deixar de agir em prol da construção da hegemonia do Império em um período marcado pela política externa afirmativa na região, conforme analisa Ricardo Salles. Segundo o autor, entre 1852 e 1870, a política externa brasileira no Prata possuiu caráter afirmativo, pois, após o período de consolidação desde a independência, o Império buscou estabelecer seu domínio na região em meio a um projeto de construção de hegemonia externa. O marco inicial deste processo seria a intervenção militar contra o presidente argentino Juan Manuel de Rosas que, em 1852, se uniu a Manuel Oribe, presidente do Uruguai, na tentativa de fundar um país único. O Império brasileiro interferiu diretamente na ação derrubando os planos de Rosas e Oribe. A vitória na Guerra do Paraguai, como lembra Salles, “tratada pelo Estado imperial como uma questão nacional”,26 teria sido, por sua vez, o marco final neste projeto hegemônico.
A atuação política e diplomática do Visconde se dá neste contexto afirmativo no qual assumiu importante papel de interlocução com os países vizinhos. Assim, dialogou com figuras estratégicas como Mitre, com quem manteve correspondência durante mais de uma década, não apenas em momentos de conflitos violentos como a Guerra do Paraguai, mas também em outros onde, embora as tensões não se dissolvessem, o cotidiano e as concepções de diplomacia ganhavam maior espaço do que as estratégias militares e definições territoriais. Daí a relevância de se analisar a correspondência trocada entre eles nas décadas de 1860 e 1870 buscando os principais aspectos que caracterizam seus discursos e, assim, acrescentando novas peças ao mosaico que aqui montamos na expectativa de melhor compreender a ressignificação de Mitre no início do século XX.
No início de 1865, o governo imperial havia exonerado o Visconde da sua missão no Prata. Por esta razão, o então presidente Mitre escreve-lhe como forma de prestar solidariedade. Na carta, elogia os serviços de Rio Branco em especial no que se refere à conciliação dos interesses brasileiros com os dos países vizinhos e amigos. Diz sentir muito a saída de Rio Branco da missão e não questionar as ações do Imperador, mas acrescenta que, ao menos na Argentina, o Visconde deveria estar satisfeito por ter feito um trabalho em favor da paz. Nas palavras de Mitre:
[…] creo […] poder asegurar por lo que respecta á la Nacion que presido, que V. E. debe estar satisfecho del modo como há desempeñado su mision cerca del Gobierno Arjentino, asi como de los nobles y jenerosos esfuerzos que há hecho siempre en favor de la paz á que siempre hemos propendido como regla invariable de nuestra política interna y externa.27
O apreço pelo Visconde e seu trabalho está presente em outra carta enviada por Mitre logo em seguida. Nela, Mitre fala da “bien merecida reputación y fama” de Rio Branco e afirma que ele deixou “inolvidables y gratos recuerdos” por onde passou, além de ter conquistado “alta estima y consideración”.28 Na mesma carta, Mitre se refere a aliança entre a Argentina e o Império brasileiro na conjuntura da Guerra do Paraguai, afirmando que ela seria fecunda para os aliados. Agradece ainda a coleção de tratados do Império que recebera de Rio Branco e dá demonstrações de estima pessoal enviando recordações de sua família para o diplomata brasileiro.
Entre 1865 e 1870, outras cartas aparecem nos Cadernos do CHDD. Todas com temas voltados mais amplamente para questões militares e estratégicas, considerando-se o período da Guerra do Paraguai. Neste texto buscamos aquelas que mais instigam a reflexão sobre o grau de aproximação entre os dois sujeitos históricos destacados e, em especial, o discurso de defesa da aproximação entre Brasil e Argentina ali presente. Em setembro de 1870, o Visconde do Rio Branco, então ocupando a pasta dos Negócios Estrangeiros, escreve a Mitre enviando cópias de discursos por ele proferidos para a aprovação do general. Despede-se de forma bastante amigável, como era comum entre eles, dizendo-se “um afetuoso amigo e atento servidor”.29 Em novembro do mesmo ano, esta proximidade transparece em carta na qual Mitre agradece as condolências enviadas pelo Visconde por ocasião da morte do seu filho Jorge Mitre. Tratando o Visconde como “estimado amigo”, fala da “irreparable desgracia” que o afligia, do peso da perda e se diz em “deuda de gratitud eterna”30 com amigos como o Visconde.
Destacamos, sobretudo, as cartas trocadas no ano de 1872, quando ocorreu a Missão Mitre no Rio de Janeiro. Em fevereiro de 1872, antes da viagem, Mitre escreve ao Visconde a fim de ratificar os tratados assinados pelo Barão de Cotegipe no início da Guerra do Paraguai. Dizia ser este um “interés comun para la buena amistad entre nuestros respectivos países”. Na mesma carta, se apresenta como um “ciudadano argentino que se dirige al ciudadano brasilero” também seu “amigo particular”. Nela ainda lamenta que erros de diplomacia possam pôr em risco os esforços dos “hombres públicos del Rio de la Plata y del Brasil, para consolidar la amistad perpetua de estos paises sobre intereses reciprocos y generales”.31
Após a viagem de Mitre ao Rio de Janeiro, em meio ao contexto trabalhado pelo já citado Francisco Doratioto, encontramos ainda diferentes correspondências suas com o Visconde nas quais ficam registrados a necessidade de apaziguamento da região e seu papel neste processo. A partir de suas boas relações com o Visconde, ele investia em defender diplomaticamente os interesses argentinos. Apelar para a paz e a amizade, evidentemente, carregava também este sentido. Em carta de março de 1873, por ocasião da viagem de Mitre ao Paraguai, o Visconde afirma que nenhum outro político seria mais adequado à missão e que nela via “a ultima e indispensavel garantia de uma paz duradoura e fecunda para esta parte da nossa America”.32 Mitre concorda com a posição de Rio Branco sobre a busca de relações diplomáticas pacíficas (chegando a reproduzir sua frase) na resposta que lhe endereça em 8 de maio do mesmo ano: “Pienso como V. E. que los arreglos definitivos de paz de todos los Aliados con la Republica del Paraguay, es la ultima e indispensable garantia de una paz duradera y fecunda para esta parte de nuestra América”.33
Não detalharemos o contexto histórico argentino nos limites deste texto, mas alguns aspectos são importantes a fim de compreender o sentido da vinda de Mitre, para além das negociações após a guerra, e, em grande parte, o tom por ele conferido ao diálogo com Rio Branco. Na segunda metade do século XIX, duas forças políticas principais rivalizavam no país: os liberais e os federais; Mitre arquitetou o “consenso liberal”, tal como afirma Hilda Sábato,34 em vista da ruptura com os conflitos do passado rosista; foi fundado o Partido de la Libertad, liderado por ele, cujo projeto encarnava em Buenos Aires a representação da liberdade, da unidade, da civilização e do progresso; a imprensa se envolveu em um processo de construção de identidades coletivas – não por acaso Mitre fundou o La Nación em 1870. No confronto com os federais, ao longo da década de 1860, os liberais avançaram por quase todo o território argentino, construindo “una trama en la que aquél se apoyó sobre liderazgos y fuerzas provinciales y regionales”35 – trama que rendeu apoio a Mitre quando da entrada na guerra. Lembrando que com o desgaste no conflito, ele e os liberais perderam apoio e tiveram o poder abalado pelo surgimento de novas forças políticas provinciais.
Entre as décadas de 1860 e 1880, Tulio Donghi36 afirma que foram definidos os contornos de uma ideia de partido que seria central para a futura ordem política argentina. Mitre teria sido o primeiro presidente da nação unificada, enfrentando uma discussão mais específica sobre o tema em uma sociedade que temia a divisão política. Além disso, no que se refere ao seu papel como historiador, atuou diretamente na construção de uma história da Argentina que era, segundo Tulio Donghi, pela primeira vez a história de uma nação, elevando-a “a protagonista única del proceso histórico”37 e empenhando-se em conferir-lhe caráter científico. Para o autor, Mitre acreditava que apenas a figura da nação poderia levar à realização histórica da experiência peculiar da sociedade nascida no Rio da Prata sob a colonização espanhola, a qual era crítico. Donghi fala ainda do otimismo de Mitre que identifica “un proceso histórico en que el pasado contiene ya la promesa cierta de un brillante futuro”.38 Aqui a nação seria vitoriosa pela ação do Estado liberal.
Diante desta conjuntura argentina e da atuação de Mitre em busca de unidade e de um ideal e uma consciência nacionais, é possível que seu olhar amistoso sobre o Brasil, além dos objetivos estratégicos militares e territoriais dos quais falamos, fosse também influenciado pelas características de unidade e pela aparente imagem de conciliação interna do Império. Ainda que não objetivasse necessariamente a centralização política em Buenos Aires, como afirma Hilda Sábato, Mitre almejou um governo que conciliasse as diferentes províncias e alcançasse o apoio das lideranças regionais. Algo que ele mesmo nos sugere em carta particular enviada a Rio Branco em 1875. Declarando seu afeto e estima pelo amigo, elogia sua atuação na tentativa de impedir “el mal y la verguenza de las revoluciones violentas” no Brasil. Diz que ele mesmo foi revolucionário na Argentina no sentido de “fundar cosas durables”, garantindo “la unidad nacional por primera vez” e criando meios “para que ellas [as revoluções]no tuviesen razon de ser”. Para ele, o que vale é a “revolucion pacifica que se opera por el trabajo lento de todos los días”.39
Concepção de revolução conservadora que alimentou a construção do Estado Imperial centralizado e formou boa parte do pensamento político brasileiro ao longo do século XIX.40 Ao que parece, Mitre pretendia também que sua atuação na Argentina inspirasse o Brasil. Mesmo republicano, os supostos apaziguamento e unidade gerados pela monarquia o atraíam, assim como sua visão militar estratégica o levava a buscar relações cordiais com o vizinho hegemônico no Prata. Defendemos que estes fatores contribuíram para um novo olhar sobre o Brasil, embrionário e envolto em tensões e interesses imediatos, mas que se fortalece décadas depois, em especial entre as duas guerras europeias quando a referência de políticos, diplomatas e historiadores a Mitre é constante.
As cartas trocadas entre ele e Rio Branco num contexto de definição da unidade nacional argentina e de transformações internas no Império brasileiro antes, durante e após a Guerra do Paraguai, servem como janela de reflexão para as possíveis brechas criadas em meio às rivalidades entre os países. Os diálogos entre sujeitos históricos individuais bem inseridos institucionalmente permitem pensar as pontes criadas por redes de sociabilidade que envolviam diplomacia e integração regional. Da mesma forma, o interesse do IHGB em 1897 por sua missão no Rio de Janeiro em 1872 nos permite pensar que ela e a figura de Mitre em geral podem ter significado inspiração para os projetos integracionistas da virada do século através dos ideais de paz e cordialidade. Isto se dá principalmente se considerarmos que estes projetos partem da relação entre diplomacia e escrita da história, entre o Itamaraty e o IHGB, além do protagonismo do Barão do Rio Branco, diretamente influenciado pelas ideias do pai, o Visconde. Se as motivações e os contextos são distintos, podemos dizer que estas experiências históricas possuem muito em comum.
Lembramos ainda o que diz Roger Chartier a respeito das correspondências enquanto fontes para os estudos históricos. Para ele, as cartas permitem o acesso a uma realidade social e, ao mesmo tempo, a outra mais íntima, secreta, transpassada por emoções e afetos. Daí seu caráter particular e subjetivo. Para ele, “livre e codificada, íntima e pública, numa tensão entre o segredo e a sociabilidade, a carta, melhor que qualquer outra expressão, associa o vínculo social e a subjetividade”.41 São, deste modo, fontes privilegiadas nas quais o sentimento e a comunicação de si mesmo se apresentam. Expressam ainda uma subjetividade confiada a um interlocutor. Desta avaliação depende a imagem de si construída para si mesmo e para os outros. Nelas estão presentes disputas, vaidades, egos e afetos pessoais e profissionais, além de possíveis projetos políticos. Quando tratamos de cartas trocadas entre figuras proeminentes, como Mitre e o Visconde, encontramos falas pessoais e profissionais, bem como projetos políticos para seus países separadamente e em conjunto. Nas cartas aqui referidas, aparecem tragédias familiares, frustrações profissionais e, sobretudo, o embrião de um projeto integracionista para a América do Sul, embora conservador e recortado por uma visão militar estratégica. Portanto, elas funcionam como um instrumento fundamental de circulação de ideias. Estes homens percebiam a necessidade de construção da paz e da cordialidade entre os países, aspectos que foram insistentemente defendidos pela geração de historiadores argentinos e brasileiros que, posteriormente e em conjunto, reivindicaram a figura de Mitre.
Considerações finais
Ainda na tentativa de acompanhar o pensamento de Mitre sobre o Brasil, cabe trazer para a análise um artigo por ele publicado em 04 de novembro de 1880 no La Nación. Com relações oscilantes entre os países, ele alegava que o Brasil e a Argentina não eram antagônicos. Afinal, mesmo tomando rumos distintos em suas formas de governo, teriam muito em comum – cultural e historicamente – e deveriam assumir para si a responsabilidade de construir um quadro de paz e proximidade em meio a possíveis conflitos na Ibero-América. Além disto, considerava que logo o Brasil se tornaria uma República, como acontecera com muitas outras nações no século XIX. Afirma que o Brasil seria “la nación que en el mundo puede hacernos mas bien y mas mal”42 – ponto em que reflete os temores em relação ao gigante Império vizinho com o qual em diferentes momentos se disputou territórios. Sendo assim, seria melhor dele se aproximar do que rivalizar. Para ele, no período em que escrevia, o Brasil já teria se demonstrado pacífico. Afirma ainda que sem seu auxílio seria impossível fortalecer o papel da política externa argentina na região. Neste sentido, diz: “Ya hoy se conviene por todos, en que el Brasil es un país pacífico, destinado á vivir en paz con nosotros”.43
Lembramos que estas mesmas ideias de paz e cordialidade estavam presentes, por exemplo, nas normas do convênio de Revisão dos Textos de Ensino de História e Geografia (1933), já citado. A generalidade, a cordialidade, a solidariedade, o idealismo, a americanidade e a veracidade eram parâmetros que orientavam o projeto em vista de construir uma releitura da própria história e o conhecimento da história do país vizinho amenizando-se os conflitos para que as futuras gerações pudessem experimentar relações de amizade e trocas culturais. No II Congresso de História da América de 1937, realizado em Buenos Aires, Max Fleiuss, secretário perpétuo do IHGB e figura central em projetos de integração regional, referiu-se a Mitre como figura fundamental ao atuar no desenvolvimento de uma aproximação com consequências voltadas para o futuro. Nas palavras de Fleiuss, Mitre defendia uma união que “se consolide en el presente y se prolongue en el futuro”.44 Cabe acrescentar que obras de Mitre, como as Arengas e as Orações Seletas,45 estiveram entre as traduzidas na Biblioteca de Autores Argentinos traduzidos ao Português organizada pelo Itamaraty a partir de 1938, dando continuidade ao projeto argentino iniciado com a Biblioteca de Autores Brasileiros traduzidos ao Castelhano em 1937. Foi traduzido também o trabalho de Rodolfo Rivarola sobre Mitre intitulado Mitre: uma década de sua vida política (1852-1862).46
Em todos estes projetos e eventos reuniam-se o IHGB, o Itamaraty, a Junta (ou Academia) de Buenos Aires sob incentivo oficial dos governos brasileiro e argentino. São ouvidos, portanto, os ecos das ações e das ideias de Mitre nas últimas décadas do século XIX. Neste sentido, acreditamos que os episódios analisados neste artigo auxiliem na compreensão destas manifestações em torno de Mitre. Sua atuação diplomática com ênfase na missão em 1872, a correspondência com o Visconde do Rio Branco nas décadas de 1860 e 1870, sua fala no La Nación em 1880 e o depoimento de Manoel Correia na Revista do IHGB em 1897 permitem construir uma linha interpretativa que mescla diferentes tempos e sujeitos históricos. Oferecem-nos, assim, indícios do porquê da frequente referência a ele na defesa de revisões, publicações, traduções e reuniões de caráter integracionista, por uma via oficial, nas primeiras décadas do século XX, em especial no período entre guerras quando muito se falou nas Américas como alternativa aos conflitos europeus. Reconhecendo as possíveis lacunas, foi este o caminho escolhido, entre muitos possíveis, para se pensar as relações entre Brasil e Argentina, com destaque para a conjugação entre diplomacia e história, no final do Império e início da República no Brasil. Lembramos, por fim, que longe de desenvolver uma análise linear, buscamos considerar as imbricações e múltiplas influências entre indivíduos e gerações inseridos em diferentes contextos históricos. Processo no qual Mitre nos pareceu um importante elo de ligação.
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Notas
Autor notes
Ligação alternative
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