Resenha

LITURATERRA [Resenha: 2017, 3] Uma teoria política do Holocausto

LITURATERRA [Reseña: 2017,3]

LITURATERRA [Review: 2017,3]

LITURATERRA [Compte rendu: 2017, 3]

文字国 [图书梗概:2017, 3]

Flávio Dantas Martins
Universidade Federal do Oeste da Bahia, Brasil

LITURATERRA [Resenha: 2017, 3] Uma teoria política do Holocausto

Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 9, núm. 3, pp. 554-559, 2017

Universidade Federal Fluminense

SNYDER Timothy. Terra negra: o Holocausto como história e advertência. 2016. São Paulo. Companhia das Letras

Resumo: As resenhas, passagens literárias e passagens estéticas em Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica são editadas na seção cujo título apropriado é LITURATERRA. Trata-se de um neologismo criado por Jacques Lacan2, para dar conta dos múltiplos efeitos inscritos nos deslizamentos semânticos e jogos de palavras tomando como ponto de partida o equívoco de James Joyce quando desliza de letter (letra/carta) para litter (lixo), para não dizer das referências a Lino, litura, liturarios para falar de história política, do Papa que sucedeu ao primeiro (Pedro), da cultura da terra, de estética, direito, literatura, inclusive jurídicas – canônicas e não canônicas – ainda e quando tais expressões se pretendam distantes daquelas religiosas, dogmáticas, fundamentalistas, para significar apenas dominantes ou hegemônicas.

Resumen: Las reseñas, incursiones literarias y pasajes estéticos en Passagens: Revista Internacional de Historia Política y Cultura Jurídica son publicadas en una sección apropiadamente titulada LITURATERRA. Se trata de un neologismo creado por Jacques Lacan para dar cuenta de los múltiples efectos introducidos en los giros semánticos y juegos de palabras que toman como punto de partida el equívoco de James Joyce cuando pasa de letter (letra/carta) a litter (basura), sin olvidar las referencias a Lino, litura, liturarios para hablar de historia política, del Papa que sucedió al primero (Pedro), de la cultura de la terre (tierra), de estética, de derecho, de literatura, hasta jurídica - canónica y no canónica. Se da prioridad a las contribuciones distantes de expresiones religiosas, dogmáticas o fundamentalistas, para no decir dominantes o hegemónicas.

Abstract: The reviews, literary passages and esthetic passages in Passagens: International Journal of Political History and Legal Culture are published in a section entitled LITURATERRA [Lituraterre]. This neologism was created by Jacques Lacan, to refer to the multiple effects present in semantic slips and word plays, taking James Joyce’s slip in using letter for litter as a starting point, not to mention the references to Lino, litura and liturarius in referring to political history, to the Pope to have succeeded the first (Peter); the culture of the terra [earth], aesthetics, law, literature, as well as the legal references – both canonical and non-canonical – when such expressions are distanced from those which are religious, dogmatic or fundamentalist, merely meaning ‘dominant’ or ‘hegemonic’.

Résumé: Les comptes rendus, les incursions littéraires et les considérations esthétiques Passagens. Revue Internationale d’Histoire Politique et de Culture Juridique sont publiés dans une section au titre on ne peut plus approprié, LITURATERRA. Il s’agit d’un néologisme proposé par Jacques Lacan pour rendre compte des multiples effets inscrits dans les glissements sémantiques et les jeux de mots, avec comme point de départ l’équivoque de James Joyce lorsqu’il passe de letter (lettre) à litter (détritus), sans oublier les références à Lino, litura et liturarius pour parler d’histoire politique, du Pape qui a succédé à Pierre, de la culture de la terre, d’esthétique, de droit, de littérature, y compris juridique – canonique et non canonique. Nous privilégierons les contributions distantes des expressions religieuses, dogmatiques ou fondamentalistes, pour ne pas dire dominantes ou hégémoniques.

摘要: Passagens 电子杂志在“文字国”专栏刊登一些图书梗概和文学随笔。PASSAGENS— 国际政治历史和法学文化电子杂志开通了“文字国” 专栏。“文字国”是法国哲学家雅克﹒拉孔的发明,包涵了语义扩散,文字游戏,从爱尔兰作家詹姆斯﹒乔伊斯 的笔误开始, 乔伊斯把letter (字母/信函)写成了litter (垃圾), 拉孔举例了其他文字游戏和笔误, lino, litura, liturarios, 谈到了政治历史,关于第二个教皇(第一个教皇是耶稣的大弟子彼得),关于土地的文化 [Cultura一词多义,可翻译成文化,也可翻译成农作物],拉孔联系到美学, 法学,文学, 包括司法学— 古典法和非古典法, 然后从经典文本延伸到宗教, 教条, 原教旨主义, 意思是指那些占主导地位的或霸权地位的事物。

O professor de história da Universidade de Yale, Timothy Snyder, tem seu terceiro livro publicado no Brasil, Terra Negra, causando repercussão fora da academia. Os principais comentários tratam da questão ambiental para o século XXI, recuperando os argumentos do autor em torno do medo da escassez, mobilizado pela propaganda nazista em torno da noção de Lebensraum (espaço vital). Os comentaristas se concentram na “advertência” extraída do livro de Snyder que a escassez de terras e alimentos frente a uma expansão demográfica foi usada como justificativa para a invasão e o extermínio nos anos 1930. A crise ambiental poderia nos levar a agressão internacional e assassinato em massa novamente? perguntam. Acredito que esse aspecto é secundário no livro. O escritor chama a atenção mesmo para a guerra como falsa solução para o problema agrícola dos anos 1930 e mesmo indica tecnologias alternativas para riscos atuais de crises de escassez hídrica, energética. É válido notar que a revolução verde teve seus custos humanos com expropriações, conflitos e violência. As tecnologias alternativas também tem seus ônus. Todavia, quero me concentrar no problema central do livro, que considero outro.

Terra Negra é menos sobre questão agrária e ecologia do que um livro de história e de teoria política. História do Holocausto, cujos principais méritos são: 1) descentrar a Europa Ocidental, especialmente a Alemanha, como palco do extermínio massivo de milhões de judeus pelos nazistas, dando visibilidade às chamadas terras de sangue – conforme seu livro anterior – da Polônia, Lituânia, Letônia, Ucrânia e Bielorrússia soviéticas, nas quais morreram a maior parte dos judeus – apenas 3% dos judeus mortos eram alemães; 2) criticar a visão hegemônica em torno de Auchwitz e do método de extermínio através do campo de concentração, destacando que o método mais usado foi a morte pela inanição de prisioneiros de guerra e os fuzilamentos massivos em valas comuns como os iniciados em Babi Yar, em Kiev, na Ucrânia soviética, com milhões de seres humanos mortos; 3) destacar a colaboração ativa de pessoas de outros países sob ocupação nazista no Holocausto. Snyder chama atenção para o paradoxo de que a maioria das crianças, mulheres e civis mortos pelos nazistas nunca viram uma câmara de gás e que os campos de concentração possuíam uma instituição de trabalho escravo dos prisioneiros judeus que permitiu que muitos deles sobrevivessem, algo quase inexistente a leste da linha Ribentrof-Molotov nas zonas de ocupação nazi. Sendo um livro de ampla circulação, dá visão a uma historiografia do leste europeu que permite criticar muitas teses sobre totalitarismo e modernidade pautadas em Auchwitz e nos campos.

Mas Terra Negra é também um livro sobre política. Em Terras de Sangue, Snyder foi mais cauteloso em relação a teorias estabelecidas. Fez uma síntese com dados de diversos países do leste europeu, detectou como métodos de extermínio foram experimentados e aperfeiçoados em locais diferentes conforme as condições encontradas pelas forças de ocupação, calculou números, citou testemunhas e debateu alguns clássicos do totalitarismo, como Hannah Arendt. Em Terra Negra, o autor constrói uma argumentação política com base na história do Holocausto. A argumentação é a seguinte: em contextos de conflitos internacionais, quanto mais abalada for a soberania de um Estado sobre um território se aproximando dos extremos de ausência de Estado, mais vulneráveis são as pessoas da região, os não-cidadãos do não-Estado. É um argumento hobessiano em algum aspecto: sem o Leviatã, temos a guerra de todos contra todos. Apoia-se no fato de que os poloneses, os judeus de vários Estados e os soviéticos foram privados de cidadania e proteção de qualquer autoridade antes de serem assassinados. As vítimas eram apátridas e a maior parte das mortes aconteceu em territórios sem Estado. Snyder argumenta que os judeus de Estados soberanos como a Itália fascista antes da queda de Mussolini, ou com soberania parcial, como a Dinamarca ocupada, tiveram mais chances de sobreviver do que os cidadãos privados de vistos, seja porque seus Estados os repudiaram, como os judeus alemães, franceses, holandeses, húngaros ou porque seus Estados soberanos desapareceram com as invasões nazista – a exemplo de Áustria, Tchecoslováquia, Polônia ocidental – e soviética – Polônia oriental, Letônia e Lituânia. Seria uma tese em determinado aspecto, até oposta à tese clássica do totalitarismo: o que levou milhões de pessoas à morte foi a falta de Estado e não o seu excesso.

Snyder critica a tese de que o Estado intervencionista leva ao totalitarismo, tese de Hayek, e argumenta que os alemães sob Hitler desejavam um Estado de Bem-Estar e lutaram pelo sonho americano e não pela sobrevivência. Para isso, entretanto, nos seus planos estava a expansão do território alemão através da guerra de conquista, da colonização – conforme uma espécie de utopia primitivista agrária – e da escravização e extermínio de milhões de pessoas no Leste europeu. Os números do Plano da Fome nazista fossem muito mais ambiciosos – pretendiam matar 30 milhões de eslavos e conseguiram aproximadamente um terço – o extermínio em massa só foi possível porque na terra negra – ou terras de sangue – essas pessoas deixaram de ser cidadãos de um Estado. Este, antes do início dos fuzilamentos em valas e das fábricas de morte, havia sido destruído através da ocupação conjunta da União Soviética e da Alemanha. Ao contrário, os judeus que ainda eram cidadãos de Estados com algum tipo de soberania, precisavam ser expatriados antes da morte, em geral. Embora a história analisada seja a do Holocausto, a advertência passa por outros exemplos de extermínio no século XX e XXI que corroboram a tese do autor: Estados fracos e Estados com zonas sem estado são lugares propícios a guerras civis; soberanias destruídas por guerras e invasões levam a zonas caóticas nas quais o crime vira regra e o ódio vira lei. Os territórios do Estado Islâmico, as zonas de terror da Líbia, a violência na República Democrática do Congo podem corroborar a tese do autor.

Como mencionei, o argumento de teoria política do autor é quase hobbesiano. Quase porque não há, em oposição à ordem do Leviatã, um Estado de natureza de guerra de todos contra todos, mas uma política estatal de extermínio de uma população. Trata-se de um Estado destruindo outro. Essas zonas sem Estado cuja soberania foi destruída por um processo de invasão são conhecidas também como colônias. O colonialismo evidente na invasão nazista ao leste europeu – e a pretensão de Hitler de construir para a Alemanha na Rússia e com os eslavos algo que os britânicos tinham na Índia e com os hindus, uma base ampla de recursos naturais e trabalho escravo – é similar ao processo de conquista colonial europeia na América, África e Ásia, como já notaram os chamados estudos pós-coloniais.

Uma questão interessante que poderia ser levantada se compararmos com os processos de conquista colonial de Estados europeus fora da Europa é a seguinte: os maiores extermínios nas guerras de conquista colonial aconteceram em zonas sem Estados burocráticos estabelecidos ou em locais sem algo que correspondesse a um modelo clássico de Estado? Se olharmos a história da América, a destruição do Estado mexicano precedeu extermínio e caos em um território com Estado, enquanto no Brasil, na zona mais intensa de ocupação colonial sobreviveram os indígenas – nem todos – das missões católicas ou sob proteção da Coroa. Isso corrobora a tese de Snyder de que na ausência de proteção institucional, as pessoas apátridas ficam vulneráveis ao extermínio.

Quando a teoria política de Terra Negra começa a se perguntar sobre como os seres humanos estão vulneráveis quando não são protegidos por um Estado soberano, a questão se desvia um pouco do problema central no Holocausto, que é o racismo, um processo de desumanização do ser humano. Muitos cidadãos poloneses e soviéticos, de nacionalidades distintas, foram mortos porque não era uma guerra convencional, mas uma conquista colonial. O Terceiro Reich não considerava a Polônia ou a União Soviética enquanto Estados soberanos, assim como os impérios europeus desconsideraram os Estados africanos como Estados soberanos – a exceção da missão diplomática britânica Macartney de 1793 na China confirma a regra. Os judeus foram mortos porque eram judeus, inumanos para os padrões nazistas – inumanos como os pacientes de hospitais psiquiátricos, os ciganos, os Testemunhas de Jeová, os homossexuais e outros. A originalidade do Holocausto está em como o racismo como política de Estado e o judeu como inimigo público levados ao extremo foi um processo cruel. Isso, claro, se considerarmos o antissemitismo como racismo, diferente do que autores como Franz Fanon. A aproximação entre fenômenos distintos como o colonialismo e o Holocausto permite, através do método comparativo, insights criativos que podem contribuir na compreensão dos extermínios do século passado e do início deste.

Uma teoria política do Holocausto tem muito a ganhar se inserir o racismo e o colonialismo como referenciais para se pensar a atuação dos nazistas no leste europeu. O mérito de Terra Negra está em destacar que o enfraquecimento de instituições soberanas e a formação de estados-párias através de embargos, bombardeios e invasões militares é um prelúdio de um terror ainda mais brutal quando as mortes de civis deixam de ser um incidente do conflito militar e se tornam uma prática de extermínio. A advertência do autor, de que os executores do extermínio em massa não são muito diferentes de nós e agiram talvez de modo muito semelhante ao que agiríamos em seus lugares, é lúcida e preocupante. Num início de século XXI em que xenofobia, extremismo e crise econômica lembram tanto os anos 1930, agora a um nível mais abrangente do que o da Europa, lembrar do passado é uma advertência necessária.

Notas

2 Lacan, Jacques. Outros Escritos. Tradução Vera Ribeiro; versão final Angelina Harari e Marcus André Vieira; preparação de texto André Telles, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 11-25. [Lacan, Jacques (2001). Autres Écrits, Paris: Éditions de Seuil].
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